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Tecnologia, trabalho e pandemia no capitalismo em crise: admirável mundo novo?* * Agradeço a leitura atenta deste texto realizada por Renato Francisco dos Santos Paula, membro do Comitê Editorial deste n. 144 da Serviço Social & Sociedade, especialmente a sugestão do título deste editorial.

Technology, work and pandemic in capitalism in crisis: admirable new world?

As profundas transformações provocadas pela crise estrutural do capital nas últimas décadas vêm impactando a vida de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que vivem da venda de sua força de trabalho. Com a eclosão da pandemia da covid-19, a partir do início de 2020, esse panorama se agravou dramaticamente em todo o mundo com as medidas de isolamento social e a estagnação das atividades econômicas, provocando demissões em massa, cortes nos salários, deterioração das condições de vida e inseguranças quanto ao presente e ao futuro.

Contudo, os acontecimentos atuais, que envolvem a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, só ganham inteligibilidade se forem conectados ao panorama mais amplo da crise estrutural do capitalismo, que se vê confrontado com suas próprias contradições. As crises no capitalismo, como sabemos, não são fatores episódicos nem excepcionais, mas processos que se se sucedem - “contradição em processo”, na observação de Konicz (2020KONICZ, Tomasz. As origens da crise atual: visão geral das causas sistêmicas e do curso histórico da crise do sistema mundial do capitalismo tardio. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo , n. 35, p. 33-39, 2o sem. 2020.). Como totalidades históricas concretas e contraditórias, a “instabilidade e a propensão às crises - mas também a dinâmica destrutiva - do sistema capitalista resultam da tendência do capital, mediado pelo mercado, de reduzir o uso do trabalho assalariado no processo produtivo” (Konicz, 2020KONICZ, Tomasz. As origens da crise atual: visão geral das causas sistêmicas e do curso histórico da crise do sistema mundial do capitalismo tardio. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo , n. 35, p. 33-39, 2o sem. 2020., p. 35).

Assim, as rupturas econômicas não são “novas crises”, como observa o autor, mas impulsos repetidos de crise em processo, pois o capital precisa se expandir ou se autodestrói; e, ao fazê-lo, tenta se livrar da sua própria substância - o trabalho assalariado -, processo impulsionado pelo progresso técnico que aprofunda a contradição entre as relações sociais de produção e as forças produtivas do trabalho (Marx, 1968MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. Livro 1, v. 1 e 2.).

Nesse contexto, as transformações tecnológicas se aceleram e revolucionam as forças produtivas, introduzindo novas técnicas cada vez mais intensamente incorporadas a processos produtivos, produtos e mercadorias, que dispensam grandes contingentes de trabalho vivo, ampliam a superpopulação relativa e criam massas de trabalhadores(as) descartáveis e supérfluos para as necessidades médias de valorização do valor.

Como analisa Tauile (2001TAUILE, José Ricardo. Para (re)construir o Brasil contemporâneo. Trabalho, tecnologia acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.), o domínio das técnicas é instrumento das relações de poder social e mola propulsora da concorrência no capitalismo moderno. A revolução industrial é a materialização de uma revolução tecnológica no próprio modo de produção capitalista iniciado com a revolução mercantil, que ampliou enormemente os espaços e o alcance das relações capitalistas de produção. Para o autor, apoiado em Marx, a característica principal da revolução industrial “é ser uma onda de cristalização do conhecimento humano, no caso, materializado no trabalho fabril, em máquinas e equipamentos que tem a forma social de capital fixo” (Tauile, 2001TAUILE, José Ricardo. Para (re)construir o Brasil contemporâneo. Trabalho, tecnologia acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001., p. 21).

Desde então, as mudanças na base técnica - da eletromecânica à microeletrônica na passagem do século XX para o século XXI - permanecem revolucionando as forças produtivas em busca de novas formas de extração do excedente por meio do aumento da produtividade do trabalho. A difusão da base técnica microeletrônica materializa uma nova revolução tecnológica em curso e abre um leque de possibilidades de articulação dos agentes produtivos nos processos de trabalho. As novas formas de produção e repartição do excedente competem pela hegemonia para se tornar o padrão socialmente necessário, que garante lucro extraordinário da renda tecnológica do monopólio, de um lado; e, de outro, impõe perdas da desvalorização do trabalho, provocando mais uma crise do trabalho (Tauile, 2001TAUILE, José Ricardo. Para (re)construir o Brasil contemporâneo. Trabalho, tecnologia acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001., p. 121).

Embora com incidências distintas no centro e na periferia do capitalismo mundializado, o processo generalizado de automação e de suporte digital ao trabalho atinge os países do sul global, como o Brasil, de acordo com as particularidades de sua inserção subordinada na divisão internacional do trabalho, mais como consumidor do que produtor de artefatos e dispositivos tecnológicos, e, portanto, dependente dos grandes conglomerados que hegemonizam as tecnologias de informação e comunicação (TIC), a indústria 4.0, a robótica, a inteligência artificial (IA) e as gigantescas plataformas digitais. A amplitude e o alcance das tecnologias digitais impactam a totalidade dos processos de trabalho, não apenas a produção material do “chão da fábrica”, mas também o amplo, heterogêneo e diversificado trabalho no “setor” de serviços, incluindo os serviços públicos e as instituições governamentais, portanto com rebatimentos no trabalho de assistentes sociais.

Como observa Tauile (2001TAUILE, José Ricardo. Para (re)construir o Brasil contemporâneo. Trabalho, tecnologia acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001., p. 120), a aplicação da base técnica microeletrônica encontra caldo fértil justamente nos serviços, principalmente naquelas atividades que lidam com manipulação de informações padronizadas, que ganharam impulso com a automação bancária a partir da década de 1970, exatamente na transição da base técnica da eletrônica para a microeletrônica. Nesse âmbito, o que se observa, de modo geral, é que:

[...] à medida que as informações e os conhecimentos do saber trabalhador são crescentemente codificados nos dispositivos eletrônicos de processamento de dados, para uma grande maioria de atividades de operação de equipamentos e de utilização de bens de consumo durável, ou ainda, de terminais de serviços com base nas novas tecnologias, há nitidamente um processo de simplificação dessas atividades (Tauile, 2001TAUILE, José Ricardo. Para (re)construir o Brasil contemporâneo. Trabalho, tecnologia acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001., p. 123).

Nesse contexto, o movimento de subsunção real do trabalho ao capital (Marx, 1968MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. Livro 1, v. 1 e 2.), como expropriação de conhecimentos e de energias vitais dos(as) trabalhadores(as), sofre uma inflexão no trabalho em serviços, considerando que a informação e o conhecimento são a base das atividades de coleta massiva, registro, codificação, armazenamento, processamento e uso de dados próprios do trabalho intelectual no âmbito dos serviços.

Para Bolaño (2002BOLAÑO, César. Trabalho intelectual, comunicação e capitalismo. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de Janeiro, n. 11, p. 53-78, dez. 2002.apudValente, 2021VALENTE, Jonas C. L. Trabalho e Tecnologias da Informação e Comunicação: para uma crítica da noção de trabalho digital e uma abordagem marxista do fenômeno. In: ALVES, Giovanni (org.). Trabalho e valor. O novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI. Marília: Projeto Editorial Práxis, 2021., p. 179), a subsunção do trabalho intelectual é um traço constitutivo da etapa do sistema inaugurado no fim do século passado, na chamada terceira Revolução Industrial. O digital é exatamente o suporte da informação, não um novo tipo de trabalho ou um adjetivo a ser agregado ao trabalho em função do tipo de tecnologia empregada, como argumenta Valente (2021VALENTE, Jonas C. L. Trabalho e Tecnologias da Informação e Comunicação: para uma crítica da noção de trabalho digital e uma abordagem marxista do fenômeno. In: ALVES, Giovanni (org.). Trabalho e valor. O novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI. Marília: Projeto Editorial Práxis, 2021.). Daí a crítica do autor ao uso do termo “trabalho digital”, da mesma forma que não tem sentido falar em “trabalho mecânico” no século XIX nem em “trabalho eletrônico” para um conjunto de atividades desenvolvidas no século XX.

O uso digital, como suporte da informação, teve nas TICs a base para o desenvolvimento relacionado a um “novo paradigma calcado na coleta massiva de dados (dataficação), ao processamento inteligente por meio de algoritmos e sistemas de inteligência artificial e à oferta de serviços personalizados e moduladores de comportamentos, sobretudo por meio de aplicativos (apps) para cada vez mais atividades (construindo uma ‘appzação de tudo’)” (Valente, 2021VALENTE, Jonas C. L. Trabalho e Tecnologias da Informação e Comunicação: para uma crítica da noção de trabalho digital e uma abordagem marxista do fenômeno. In: ALVES, Giovanni (org.). Trabalho e valor. O novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI. Marília: Projeto Editorial Práxis, 2021., p. 180).

Esta processualidade própria da produção capitalista da “era digital” foi potencializada com o advento da pandemia da covid-19, contexto em que as TIC, notadamente sua aplicação nas diversas modalidades de trabalho remoto ou teletrabalho, tanto nas atividades materiais quanto nas atividades imateriais, funcionaram como um grande laboratório para o capital e seus representantes no aparelho de Estado, viabilizando a exponencial ampliação da produtividade do trabalho mediante a redução do trabalho vivo e a maximização do trabalho morto; a diminuição dos custos do trabalho; o aprofundamento das estratégias de controle e vigilância; a destruição de direitos e conquistas da classe trabalhadora.

Nessa mesma direção, Grohmann (2021GROHMANN, Rafael. Trabalho plataformizado e luta de classes. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo , n. 36, p. 40-46, 1o sem. 2021., p. 41) afirma que o trabalho em plataformas é um “laboratório da luta de classes”, no qual as forças do capital experimentam novas formas de controle e gerenciamento do trabalho; e, num movimento dialético, também abrem possibilidades para os(as) trabalhadores(as) experimentarem novas maneiras de associação e cooperativismo autogestionários, por meio de plataformas de propriedade de trabalhadores(as).

Importa destacar que, para o autor, esse processo de “plataformização do trabalho” é um movimento generalizado que ocorre não apenas com entregadores de mercadorias solicitadas por aplicativos, mas também com professores(as), designers, jornalistas, pedreiros e, acrescento, também com assistentes sociais. Isso se deve não só à crescente dependência das atividades de trabalho em relação às plataformas, entendidas como meios de produção e meios de comunicação (Grohmann, 2021GROHMANN, Rafael. Trabalho plataformizado e luta de classes. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo , n. 36, p. 40-46, 1o sem. 2021., p. 41-42), mas igualmente porque não há um único perfil de trabalhador(a) ou de plataforma. Ao contrário, trata-se de uma configuração altamente heterogênea, com a presença de marcadores de classe, gênero e raça muito nítidos. Basta observar o perfil dos entregadores, em sua maioria homens, negros e jovens. Ou as plataformas de trabalho doméstico, com predomínio de mulheres negras. Cabe acrescentar a concorrência mercadológica desenfreada entre as diferentes plataformas (de fato, empresas, embora não se apresentem como tais), que disputam entre si o maior número de usuários/clientes e, então, precarizam ainda mais as condições de trabalho com vista a oferecer “melhores serviços” com menor preço, à custa do aumento da exploração da força viva de trabalho.

Ainda que haja essa possibilidade de experimentos controlados por coletivos de trabalhadores(as) - e há inúmeros e significativos experimentos em desenvolvimento -, é o capital, hegemonizado pela sua fração financeira, com vista à amplificação do lucro sem limites, que, por meio de sistemas informatizados e digitalizados incorporados crescentemente aos processos de trabalho, rebaixa o valor da força de trabalho, acirra a concorrência intercapitalista, reduz a demanda de trabalhadores(as) na cadeia produtiva de valor em escala global - desde o setor agrícola, passando pela indústria e atingindo os serviços -, promovendo a desqualificação e a reedição de formas de trabalho análogas à escravidão, e a devastação do trabalho e dos direitos dele derivados, bem como desarticulando sindicatos e formas de associação e representação coletivas.

A expansão da digitalização do trabalho e de modalidades de trabalho on-line, como o home office, e as distintas formas de trabalho remoto - teletrabalho, teleatendimento, tele-educação, teleconsultas médicas, teleterapias etc., existentes até então de modo residual -, com a pandemia do novo coronavírus passaram a ser adotadas em larga escala, em todas as áreas e setores do mercado de trabalho público e privado, atingindo também o trabalho de assistentes sociais.

No trabalho de assistentes sociais pré-pandemia, já era possível observar essa tendência, que agora se torna mais visível e generalizada, introduzindo novos elementos a serem problematizados: convivência de trabalho presencial e trabalho remoto no domicílio, sem alteração dos contratos de trabalho; ampliação das jornadas de trabalho sem contrapartidas às(aos) trabalhadoras(es); alterações significativas no conteúdo do trabalho em função de novos processos, organização e gestão das atividades. Tal situação não apenas incorpora novas estratégias de organização e processamento do trabalho, orientadas por uma racionalidade gerencialista-produtivista e guiadas pela razão instrumental, como também (re)configura a natureza do trabalho profissional e seus modos de ser nos diferentes espaços ocupacionais em que se inserem assistentes sociais, dinâmica nem sempre acompanhada de reflexão crítica sobre seus possíveis impactos. Nesse âmbito, é possível observar certa naturalização e fetichização das tecnologias, no sentido formulado por Marx (1968MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. Livro 1, v. 1 e 2., p. 81), em sua análise sobre o fetiche da mercadoria e seu caráter misterioso, quando afirma: “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. Isso confere às formas uma capacidade de interação como se fossem vivas, transformando relações sociais em relação entre coisas, processo que captura a subjetividade dos(as) trabalhadores(as) como denominou Alves (2011ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório. O novo metabolismo social do trabalho e precarização do homem que trabalha. Revista da RET (Rede de Estudos do Trabalho), Marília, v. 4, p. 1-31, 2011.) em sua análise do novo metabolismo social do trabalho.

Contudo, como não se trata de processos lineares, a dimensão contraditória das tecnologias digitais e da internet se manifesta em todos os âmbitos da vida social. No caso do trabalho profissional na pandemia, o teletrabalho ou trabalho remoto se, por um lado, viabilizou a atenção social, ainda que de forma precária e insuficiente, de parcela da população usuária em um contexto de isolamento e aumento da violência contra mulheres, idosos, crianças e adolescentes, por outro, ampliou jornadas de trabalho sem remuneração, intensificou e invadiu as fronteiras dos espaços de vida e de trabalho de assistentes sociais, transferiu novos custos aos(às) próprios(as) trabalhadores(as). Tal contexto trouxe mais impacto sobre a vida das mulheres, especialmente negras e pobres, pois, na tradicional divisão sexual do trabalho, são elas que continuam assumindo a responsabilidade pelas atividades reprodutivas de cuidado na vida privada e no espaço público. Com essa sobrecarga, seguem desempenhando atividades profissionais mais desvalorizadas, mal remuneradas e com menos oportunidades de ascensão profissional.

No trabalho presencial, o recrudescimento de antigas e indevidas requisições profissionais, movidas pela emergência social, como o processamento do auxílio emergencial nos três níveis de governo, a distribuição de cestas básicas, vouchers, entre outros, exigiu respostas profissionais que passaram ao largo de políticas e sistemas públicos, como o SUAS (Sistema Único de Assistência Social), apoiadas em equipes desfalcadas, precárias condições materiais e tecnológicas, ausência de equipamentos de proteção individual e coletiva, de protocolos e planos de contingência, entre outros.

No caso do trabalho docente, que se manteve de forma remota nos últimos dois anos, professores(as) passaram a ministrar aulas e demais atividades acadêmicas por meio de plataformas digitais de propriedade das megacorporações mundiais que, a pretexto da pandemia, passaram a disputar os nichos de negócios abertos pelos ensinos público e privado em todo o país. Os(as) docentes foram obrigados(as), no mais das vezes de forma intempestiva e autoritária, a manejar ferramentas tecnológicas, sem tempo nem condições objetivas e subjetivas para conhecer e se adaptar a dispositivos digitais até então de pouco domínio da categoria profissional.

Todas essas situações nos convocam a refletir sobre o trabalho remoto e o presencial como faces contraditórias e complementares da nova morfologia do trabalho profissional no capitalismo contemporâneo (Raichelis, 2020RAICHELIS, Raquel. Atribuições e competências profissionais revisitadas: a nova morfologia do trabalho no Serviço Social. In: CFESS. Atribuições privativas do/a assistente social em questão. Brasília: CFESS, 2020. v. 2. Disponível em: Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS202-AtribuicoesPrivativas-Vol2-Site.pdf . Acesso em: 22 jan. 2021.
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), assim como buscar apreender o significado das tecnologias em sua historicidade, como produtos do trabalho social cristalizado no sistema maquínico, que potencializa a subsunção real do trabalho intelectual aos circuitos de valorização do capital (Marx, 1968MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. Livro 1, v. 1 e 2.). Mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, abrem possibilidades inéditas de apropriação crítica das TIC em uma dimensão contra-hegemônica, desde que sejam superados tanto os determinismos quanto os fetichismos que cercam o uso das tecnologias. Torna-se urgente, pois, a criação de estratégias de enfrentamento das múltiplas situações que podem colocar em xeque os valores éticos e os compromissos históricos da profissão de Serviço Social com a classe trabalhadora, reconhecendo potencialidades, limites e contradições.

Os artigos deste número especial da Serviço Social & Sociedade, em resposta à chamada realizada, responderam amplamente às temáticas que relacionam trabalho, tecnologias de informação e comunicação e pandemia, problematizando, sob múltiplos ângulos, as implicações para o trabalho profissional de assistentes sociais.

Abordando as distintas e complexas facetas do trabalho e as respostas do capital à sua crise, apresentam um amplo painel da nova morfologia do trabalho “uberizado” (Antunes, 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; Abílio, 2021ABÍLIO, Ludmila C. Uberização, autogerenciamento e o governo da viração. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, p. 55-69, 1o sem. 2021.), que não se reduz ao trabalho na empresa Uber, mas é como vem sendo denominado esse amplo processo de transformações que atinge a forma social do trabalho na atual quadra do capitalismo mundializado e financeirizado, o qual se dissemina amplamente para todos os setores do mercado de trabalho, incluindo o trabalho assalariado de assistentes sociais nos distintos espaços ocupacionais em que se inserem (cf. Raichelis; Vicente; Alburquerque, 2018RAICHELIS, Raquel; VICENTE, Damares; ALBUQUERQUE, Valéria (org.). A nova morfologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.; Raichelis; Arregui, 2021RAICHELIS, Raquel; ARREGUI, Carola C. O trabalho no fio da navalha: nova morfologia no Serviço Social em tempos de devastação e pandemia. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 140, jan./abr. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.242. Acesso em: 27 jan. 2021.
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).

Na leitura do conjunto de artigos que compõem este número, destaca-se que todos trabalham questões teórico-conceituais e estabelecem, em alguma medida, conexões e implicações para o trabalho profissional nas políticas sociais, em determinados espaços ocupacionais; ou problematizam as incidências do ensino remoto emergencial com o uso intensivo das plataformas digitais durante a pandemia da covid-19, no caso do trabalho docente e da formação acadêmica.

No âmbito do trabalho nas políticas sociais, há um conjunto de textos que abordam o significado dos sistemas algorítmicos, da dataficação, da robotização, da plataformização, da uberização do trabalho como processos altamente lucrativos ao capital e a seus representantes no aparelho de Estado, cuja presença até então embrionária dissemina-se com grande velocidade no contexto da pandemia do novo coronavírus. As análises evidenciam como esses dispositivos tecnológicos são instrumentos de poder que submetem o trabalho profissional a rotinas institucionais controladas por poderosas máquinas digitais que padronizam, classificam e selecionam, em geral sem transparência e crescentemente sem a mediação profissional, aqueles(as) usuários(as) que serão excluídos(as) ou beneficiados(as) por políticas e programas sociais públicos. São processos que reproduzem expropriações e desigualdades sociais, além de intensificação, precarização, desqualificação e adoecimento de assistentes sociais. É o caso dos artigos que analisam o processamento de alguns benefícios, como o BPC (Benefício de Prestação Continuada) ou o auxílio emergencial dos governos federal e estaduais implementados durante a pandemia, no caso da política de assistência social e do SUAS; e também a assistência estudantil, quando do trabalho desenvolvido nos institutos federais de educação (IFES). Comparecem também reflexões que particularizam o impacto das TIC nos processos de adoecimento e precarização da saúde de trabalhadores, em função das novas formas de gestão e controle do trabalho subordinado às plataformas digitais. E, ainda, análises que destacam os limites do trabalho de vigilância socioassistencial no âmbito das diretrizes da Política de Assistência Social, ante os desastres socioambientais com barragens, exemplificando com os casos de Mariana e Brumadinho. Aqui o que chama atenção é a insuficiência de cadastros e instrumentos técnicos de registro, bem como a necessidade de aprimorar os sistemas de informação e leitura de dados manejados por assistentes sociais e demais profissionais, no sentido de prevenir ou ao menos mitigar o impacto dos riscos de desastres socioambientais na vida das famílias.

Destaca-se ainda neste número da revista um conjunto de artigos voltados à problematização da formação acadêmica e do trabalho docente no contexto da covid-19, com a adoção do Ensino Remoto Emergencial (ERE) na docência em Serviço Social, aqui analisado em universidade pública, mas extensivo a faculdades e universidades privadas. São problematizados alguns desafios da formação profissional num contexto de perda da qualidade acadêmica dos cursos, burocratização das atividades, aligeiramento das exigências intelectuais, ampliação do controle administrativo das tarefas, perda de autonomia intelectual de docentes, exclusão digital de discentes perante as dificuldades de acesso às plataformas digitais, desgastes da saúde física e da mental de docentes e discentes, entre outros.

Na conclusão desta edição, o artigo que trata da violência doméstica contra mulheres compõe o caleidoscópio de questões que, embora não sendo novas, assim como as múltiplas situações enfrentadas pelos(as) assistentes sociais e demais trabalhadores(as), sofrem um inegável aprofundamento e amplificação. Sendo uma problemática persistente na sociedade brasileira patriarcal, machista e racista, a violência doméstica contra mulheres, atingindo com mais intensidade mulheres negras e pobres, teve um recrudescimento vertiginoso decorrente da necessidade de isolamento social em função da pandemia da covid-19. De certa forma, esse artigo condensa as múltiplas faces do capitalismo em crise e as estratégias ultraneoliberais em curso, que desidrataram ainda mais as já desfinanciadas e fragilizadas políticas públicas de proteção social, no momento em que eram mais necessárias e demandadas pelas camadas mais subalternizadas da classe trabalhadora, especialmente mulheres e jovens pretos(as), pardos(as) e periféricos(as), que dependem das políticas sociais e do fundo público para sua reprodução social.

O que fica evidenciado neste número da revista Serviço Social & Sociedade é a necessidade de nos apropriamos mais profundamente dos elementos que configuram a nova morfologia do trabalho e suas estratégias de vigilância, controle e gestão do trabalho, nas quais as tecnologias de informação e comunicação jogam um papel fundamental. Para isso, é preciso consolidar um campo de estudos e pesquisas na área de Serviço Social e das ciências humanas e sociais, para tornar visíveis e inteligíveis as formas contemporâneas de espoliação, opressão, dominação e exploração do trabalho, mas também as propostas alternativas, as lutas e a resistência da classe trabalhadora na periferia capitalista do sul global.

Boa leitura!

Referências

  • ABÍLIO, Ludmila C. Uberização, autogerenciamento e o governo da viração. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, p. 55-69, 1o sem. 2021.
  • ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório. O novo metabolismo social do trabalho e precarização do homem que trabalha. Revista da RET (Rede de Estudos do Trabalho), Marília, v. 4, p. 1-31, 2011.
  • ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • BOLAÑO, César. Trabalho intelectual, comunicação e capitalismo. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de Janeiro, n. 11, p. 53-78, dez. 2002.
  • GROHMANN, Rafael. Trabalho plataformizado e luta de classes. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo , n. 36, p. 40-46, 1o sem. 2021.
  • KONICZ, Tomasz. As origens da crise atual: visão geral das causas sistêmicas e do curso histórico da crise do sistema mundial do capitalismo tardio. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo , n. 35, p. 33-39, 2o sem. 2020.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. Livro 1, v. 1 e 2.
  • RAICHELIS, Raquel. Atribuições e competências profissionais revisitadas: a nova morfologia do trabalho no Serviço Social. In: CFESS. Atribuições privativas do/a assistente social em questão Brasília: CFESS, 2020. v. 2. Disponível em: Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS202-AtribuicoesPrivativas-Vol2-Site.pdf Acesso em: 22 jan. 2021.
    » http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS202-AtribuicoesPrivativas-Vol2-Site.pdf
  • RAICHELIS, Raquel; ARREGUI, Carola C. O trabalho no fio da navalha: nova morfologia no Serviço Social em tempos de devastação e pandemia. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 140, jan./abr. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.242. Acesso em: 27 jan. 2021.
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/0101-6628.242
  • RAICHELIS, Raquel; VICENTE, Damares; ALBUQUERQUE, Valéria (org.). A nova morfologia do trabalho no Serviço Social São Paulo: Cortez, 2018.
  • TAUILE, José Ricardo. Para (re)construir o Brasil contemporâneo. Trabalho, tecnologia acumulação Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
  • VALENTE, Jonas C. L. Trabalho e Tecnologias da Informação e Comunicação: para uma crítica da noção de trabalho digital e uma abordagem marxista do fenômeno. In: ALVES, Giovanni (org.). Trabalho e valor. O novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI Marília: Projeto Editorial Práxis, 2021.
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    Agradeço a leitura atenta deste texto realizada por Renato Francisco dos Santos Paula, membro do Comitê Editorial deste n. 144 da Serviço Social & Sociedade, especialmente a sugestão do título deste editorial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Sep 2022
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