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Epistemologia e ética na liberação comercial de sementes GM pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)

Epistemology and ethics in the commercial authorization of GM crops by the National Technical Commission of Bio-Security

Resumos

Esta nota apresenta comentários e críticas ulteriores à manifestação feita na Audiência Pública, organizada pelo Ministério Público Federal em 12 de dezembro de 2013, sobre a atuação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) no caso da liberação comercial de sementes GM resistentes a agro tóxicos. Os comentários aqui desenvolvidos seguem duas linhas: primeiro, faço considerações sociológicas sobre o sistema brasileiro de regulação biotecnológica; a seguir, comento, de uma perspectiva pragmática compatível com o modelo da interação entre as atividades científicas e os valores, as consequências epistemológicas e éticas das práticas correntes das empresas de biotecnologia agrícola.


This note presents further commentaries and critiques to the presentation I made in the Public Audience, organized by the Public Federal Ministry in 12th December 2013, about the current situation of the National Technical Commission of Bio-security (CTNBio) concerning the commercial authorization of GM crops resistant to agrotoxics. There are two lines to my commentaries: first, sociological considerations about the Brazilian system of biotechnological regulation; and second, epistemological and ethical consequences of the current practices of the biotechnological enterprises that I address from a pragmatic perspective compatible with the model of the interaction between scientific activities and values.


1 O contexto da manifestação sobre a atuação da CTNBio

As observações e considerações que fazem parte desta nota decorrem da aceitação ao convite que recebi para participar como expositor na Audiência Pública da 4ª. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, realizada em Brasília, nas dependências da Escola Superior do Ministério Público da União, no dia 12 de dezembro de 2013, para tratar da "liberação comercial de milho e soja GM tolerantes ao herbicida 2,4-D".

Os objetivos gerais da Audiência Pública, segundo a convocatória, eram três: (i) "ampliar a discussão sobre as consequências socioambientais" dessa liberação; (ii) "colher subsídios para a atuação institucional sobre o tema" e (iii) "levantar informações a respeito de estudos técnicos que tratem dos efeitos cumulativos e sinérgicos que tais liberações poderão causar na multiplicação do emprego de agrotóxicos nas monoculturas de soja e milho do Brasil, com ênfase nos eventuais prejuízos" aos seguintes quatro aspectos, a saber, "à saúde pública, à qualidade dos alimentos brasileiros, à biodiversidade dos biomas impactados e ao direito ao meio ambiente equilibrado e saudável".

Tendo por base esses objetivos gerais, foram organizados quatro painéis, dos quais me foi pedido para participar daquele que visava "debater o papel da CTNBio na sociedade", o que, sem dúvida, correspondia ao objetivo (ii) acima referido, relativo à atuação da Comissão instituída para tomar decisões técnicas de liberações comerciais de plantas transgênicas, no caso, soja e milho GM tolerantes ao herbicida 2,4-D. Esse debate sobre o impacto social das decisões tomadas na CTNBio estava pautado pelos quatro seguintes assuntos:

(1) estrutura e composição da CTNBio;

(2) implicações éticas e socioeconômicas das deliberações da CTNBio;

(3) publicidade e transparência nas decisões;

(4) sugestões de aprimoramento de processos de avaliação de solicitações de liberação comercial de transgênicos.

Nesse contexto e em vista da limitação de 15 minutos para a manifestação de cada participante do painel, fiz minha apresentação dirigida a mostrar que se a dimensão ética é levada a sério, então é necessário aperfeiçoar o sistema de regulação biotecno lógico no sentido de alcançar um maior controle democrático e social sobre as aplicações biotecnológicas e químicas e sobre sua regulamentação jurídica. Segue o texto original da manifestação, em Brasília, na Audiência Pública de 12 dez. 2013.

2 Texto original da manifestação

Aceitando o convite que me foi enviado pela 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal para participar como expositor do terceiro painel desta Au diência Pública, faço hoje a seguinte apresentação sobre o papel da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) na sociedade.

1 Quanto à estrutura e à composição da CTNBio, do ponto de vista formal, elas parecem adequadas a uma comissão técnica que baseará suas decisões principalmente em análises de risco padrão e de eficácia técnica. Entretanto, três considerações são aqui importantes. Primeiro, a composição da comissão não é transparente: é difícil acessar à composição atual da Comissão; há membros constantemente ausentes; há aparentemente constante troca de representantes dos ministérios; há ministérios que não nomeiam representantes; não há indicação clara de mandatos etc. Segundo, o que é mais preocupante, o funcionamento da Comissão tampouco é transparente. Não fica claro como as decisões são obtidas, com que quorum? Maioria simples dos presentes? Ou maioria simples dos membros? Ou maioria absoluta dos membros da Comissão? Às decisões não é dada ampla publicidade e não parece haver interesse de manter o público informado ou de ter um canal aberto de interlocução com a sociedade civil. Terceiro, constituída como comissão técnica, a CTNBio tem condições de garantir a eficácia da soja e milho GM tolerantes ao agrotóxico - isto é, que aquelas sementes, quando plantadas, serão altamente produtivas e resistirão às aplicações do agrotóxi - co, produzindo um milho ou soja de bom tamanho e aspecto etc., mas ela não tem como garantir que não haverá danos à saúde e malefícios ao meio ambiente e à sociedade, a menos que sejam realizadas pesquisas científicas sobre os efeitos dos alimentos transgênicos tolerantes a agrotóxicos na saúde da população, sobre os efeitos das pulverizações de agrotóxicos para o ar ambiente e para os cursos de água, sobre a taxa de poluição em áreas que sofrem esse tipo de intervenção tecnológica etc. Em suma, a CTNBio não tem como exercer a necessária precaução científica de assegurar-se, por meio de pesquisas empíricas (científicas), das consequências ambientais, sociais, para a saúde etc. da plantação em larga escala de sementes transgênicas tolerantes ao 2,4-D, comprovadamente poluente. Particularmente, no contexto dos efeitos sobre a saúde, há três aspectos a considerar: (1) a ingestão de produtos transgênicos; (2) a in gestão dos resíduos de pesticidas e herbicidas desses produtos transgênicos e (3) a exposição a pesticidas e herbicidas utilizados nos manejos das lavouras. Convém aqui explicitar que a alegação de que a análise técnica de risco padrão é suficiente para os propósitos de regulamentação comercial possui profundas consequências éticas, pois permite que a CTNBio ignore informações, evidências e dados sobre os efeitos colate rais e residuais associados ao uso extensivo e intensivo de organismos GM tolerantes a agrotóxicos.

2 Chegamos assim ao segundo ponto proposto para esta intervenção. As decisões da CTNBio têm evidentes implicações éticas. É preciso aqui ter consciência de que a técnica e, principalmente, a tecnologia possui a característica ambivalente de causar benefícios e malefícios; desde o mais simples utensílio até o mais sofisticado e complexo aparelho exibem essa característica. Isso significa que, do ponto de vista ético, os cientistas e tecnólogos estão obrigados a analisar cientificamente não só os benefícios (econômicos) resultantes da eficácia da aplicação, mas também os possíveis malefícios causados à saúde, ao ambiente, à sociedade. Uma decisão equilibrada eti camente é a que procura assegurar-se de que os malefícios não superem os benefí- cios visados. Para isso, é preciso exercer a precaução, não como impedimento às pesquisas, mas, ao contrário, como uma demanda por mais pesquisas. Assim, para assegurar o equilíbrio do juízo ético, é necessário que mais pesquisas científicas sejam realizadas sobre os efeitos do uso extensivo desses organismos GM para a saúde, para o ambiente e para a sociedade. As liberações de uso comercial em grande escala, por tempo in de terminado e sem monitoramento e reavaliações periódicas, correm o risco de serem decisões com sérias consequências éticas, causando em alguns casos danos irrever síveis, que exigem reparação. As liberações de produtos GM, sementes GM, agrotóxicos e fertilizantes químicos, que já sofreram restrições de uso e mesmo proibições com base em pesquisa científica em outros países ou blocos econômicos, frente às consequências causadas pela liberação do uso, também podem ser ética e legalmente responsabilizadas.

3 De outra ordem, mas não menos prenhe de gravidade, são as consequências socioeconômicas da liberação de organismos transgênicos (GM) tolerantes a agrotóxicos. Ambiental e tecnicamente, a liberação intensifica a excessiva concentração de monoculturas por extensas áreas, a perda drástica de diversidade vegetal e de variedades, a falta de cobertura florestal, o empobrecimento do solo e a poluição de mananciais e rios. Essa drástica e extensiva modificação do meio ambiente vem acompanhada da desorganização de sistemas produtivos tradicionais mais diversificados ou põe em risco programas alternativos de agricultura familiar, de agroecologia, de agricultura orgânica etc. As consequências aqui são para a soberania alimentar da nação e para sua diversidade produtiva. Novamente, a CTNBio não tem competência, enquanto órgão técnico de biossegurança, para avaliar as consequências socioambientais nas áreas de planejamento econômico e social.

4 Em vista do exposto, proponho como aprimoramento dos processos de avaliação da CTNBio, a constituição de um sistema bicameral, constituído pela CTNBio nos seus moldes atuais, corrigidos os inconvenientes apontados acima (em sua composição e processo decisório), na qual são obtidas avaliações técnicas de eficácia produtiva e comercial das sementes transgênicas, e por uma Câmara de Acompanhamento, responsável pelas audiências públicas de informação, por campanhas de esclarecimento, pelas apelações de decisões em face de novas pesquisas científicas sobre as conse quên cias ambientais e na saúde, ocasionadas pela produção poluente dessas colheitas e pela ingestão acumulativa dos alimentos transgênicos tolerantes a agrotóxicos. Essa Câmara poderá, por exemplo, questionar formalmente uma decisão da CTNBio, toda vez que essa decisão não for tomada de maneira transparente. A Câmara de Acompanhamento teria, assim, uma dupla função, a saber, manter a capilaridade da comunicação entre a sociedade e as decisões técnicas da CTNBio e, ao mesmo tempo, servir como fórum de apelação (recurso e revisão), no qual se pode fazer valer a exigência da responsabilidade para a saúde, para o ambiente e para a sociedade por parte dos proponentes de sementes transgênicas tolerantes a agrotóxicos, os quais devem ser instados a colaborar com as pesquisas científicas sobre os efeitos e consequências da produção e uso desses produtos. A Câmara de Acompanhamento pode, dentro de suas atribuições, até mesmo induzir pesquisas científicas, quando sentir que não há evidências suficientes para considerar que é seguro o uso extensivo e intensivo de colheitas GM tolerantes a agro tóxicos. Quanto à composição dessa segunda câmara, ela deve ser presidida pelo Ministério Público Federal, enquanto instância técnica do ordenamento jurídico a que estão sujeitas as liberações comerciais da CTNBio, e deve ser constituída, em parte, por cientistas e especialistas de ecologia, agronomia, saúde, nutrição, sociologia, antropologia, economia, ética, direito ambiental, escolhidos entre pesquisadores de Universidades Públicas segundo um processo de avaliação pelos pares gerido pelo CNPq; e, em parte, por representantes da sociedade civil, ligados aos agricultores, aos trabalhadores rurais, aos consumidores, aos habitantes do entorno de áreas de uso extensivo e intensivo de agrotóxicos, de insumos e fertilizantes químicos.

5 Só assim penso que será possível realizar a necessária monitoração dos efeitos cumulativos e sinérgicos das liberações comerciais de sementes GM tolerantes a agrotóxicos e agir com mais prontidão, no sentido de poder impor moratórias científicas ou até mesmo modificar decisões, sempre e quando forem detectados prejuízos à saúde, à qualidade dos alimentos, à biodiversidade e ao ambiente.

3 Notas ulteriores e atualização da posição em face dos desdobramentos

Tendo em vista que a Audiência Pública, na qual foi feita a manifestação acima, serviu como um dos elementos motivadores da ação impetrada pelo Ministério Público Federal, em março de 2014, contra Anvisa e CTNBio, questionando a primeira pela manutenção da licença de uso das substâncias Glifosato e 2,4-D, das quais o Brasil detém a marca de principal utilizador no mundo (cf. Pavan, 2014), e a segunda por manter a licença de produção de sementes GM de milho e soja resistentes aos dois agrotóxicos mencionados, contra dados científicos sobre os malefícios causados pelo uso intensivo e extensivo dessas substâncias, cabem aqui alguns comentários adicionais a esse respeito que serão divididos em duas ordens. De um lado, questões sociológicas e políticas ligadas ao sistema público de regulação tecnológica e, de outro lado, questões mais propriamente filosóficas ligadas ao conhecimento científico e às implicações éticas do uso da biotecnologia agrícola.

3.1 O sistema brasileiro de regulamentação biotecnológica: estado de exceção tecnológica e fato consumado

Para entender as dificuldades envolvidas na política de biossegurança no país, bem como os impedimentos e obstáculos que tornam lento, quase interminável, o processo de regulação biotecnológica no Brasil - o que é uma marca característica do estado de exceção tecnológica em que se dá a introdução de organismos GM e o amplo uso de agro tóxicos (cf. Mariconda, 2014, seção 3) -, é preciso examinar como está insti tucio nalmente constituído o sistema brasileiro de regulação da biotecnologia agrícola, que está basicamente organizado segundo um conjunto complexo de atribuições e responsabilidades, constituído por três órgãos federais.1

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que visa "promover e proteger a saúde da população e intervir nos riscos decorrentes da produção e do uso de produtos e serviços sujeitos à vigilância sanitária", sendo assim o órgão responsável pelas análises de toxidade de substâncias industriais (farmacêuticas ou agroquímicas) para a saúde humana e ao qual é atribuída a competência para normatizar, controlar e fiscalizar o uso de agrotóxicos, tais como o 2,4-D. Dentre os valores que animam suas atividades encontra-se significativamente "o conhecimento como fonte para a ação". No caso em pauta, a Anvisa é então responsável pela liberação do uso de agrotóxicos, tais como o glifosato e o 2,4-D. Trata-se de uma instituição dotada de sistema de pesquisa.

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que foi concebida como "uma instância colegiada multidisciplinar (...)", tem como finalidade "prestar apoio técnico consultivo e assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da política nacional de biossegurança relativa a OGM, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e pareceres técnicos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comer cialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivados". A CTNBio é responsável então por liberar a comercialização de sementes GM. Note-se, entretanto, que não se trata de um órgão aparelhado para conduzir pesquisas científicas independentes (no interesse público) sobre as consequências do uso em larga escala de organismos GM resistentes a substâncias químicas altamente tóxicas. Configura-se antes como uma instância de legitimação das pesquisas realizadas pelas próprias empresas. A avaliação técnica das propostas é então supostamente realizada por especialistas em um sistema de avaliação por experts.

Finalmente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que possui diversas atribuições (vagamente definidas) ligadas ao meio ambiente, em particular, "propor e editar normas e padrões de qualidade am biental, o zoneamento e a avaliação dos impactos ambientais; (...) a fiscalização ambien tal; (...) o monitoramento ambiental principalmente no que diz respeito à prevenção e controle de desmatamento, queimadas e incêndios florestais (...)". O Ibama é então o responsável pelo licenciamento ambiental e pela análise das consequências ambien tais embora não haja qualquer indicação de pesquisa sobre o impacto do uso de agro tó xicos no ambiente, ficando o órgão nesse aspecto aparentemente ligado à Anvisa e CTNBio. O Ibama é basicamente um órgão de vigilância ambiental, que impõe multas por danos ambientais causados por desastres - na maior parte das vezes, derramamentos e vazamentos de produtos químicos durante o transporte - mas que não está provido de um dispositivo próprio e independente de pesquisa ambiental.

Neste ponto cabe considerar que os três órgãos responsáveis pelo estabelecimento indispensável do marco regulatório de biossegurança compõem um subsistema no interior do sistema institucional de governo, estando ligados às políticas de Estado pela vinculação desses órgãos regulatórios aos respectivos ministérios: Ministério de Saúde; Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação; Ministério do Meio Ambiente. O sistema regulatório está, portanto, inserido na política econômica desenvolvimen tista promovida pelo governo, na qual o agronegócio ocupa um lugar de destaque, favorecendo o desenvolvimento da biotecnologia agrícola que, ao ligar a eficácia técnica estritamente a razões econômicas (lucro e acumulação de capital), insere-se no contexto das políticas nacionais de inovação tecnocientífica que se desenrolam na economia capitalista neoliberal.

Logo de início, salta aos olhos o problema da repartição das responsabilidades entre os três órgãos de regulamentação. Essa partição de responsabilidades - que separa os organismos (em particular, os organismos GM) das substâncias químicas (agro tóxicos e fertilizantes químicos, às quais os organismos GM são resistentes, considerados da perspectiva da saúde humana) e do meio ambiente (no qual são produzidos esses organismos artificiais, esses bioartefatos, e são aplicados os agrotóxicos e fertilizantes) - compromete e obstaculiza o compromisso social e o exercício da responsabilidade social e ética. Além disso, não deixa de ser significativa, nas atribuições da Anvisa, a ausência de referência explícita à "saúde animal", que só é considerada na medida em que se liga à saúde humana por meio dos experimentos fisiológicos com animais sobre os efeitos cumulativos e residuais de organismos artificiais criados em condições de controle experimental (e, portanto, em uma situação descontextualizada) e usados em larga escala em condições ambientais abertas (e, portanto, em condições contextuais que excedem e impedem o controle experimental da aplicação); situação aberta na qual o organismo GM se encontra em coevolução com todos os outros organismos, inclusive os humanos. Mas a saúde animal ela mesma pensada em sua relação com o ambiente está aparentemente excluída de consideração, assim como o ambiente, para o qual não há um sistema público de pesquisa com vistas ao desenvolvimento de pesquisas científicas sobre as consequências ecológicas e ambientais de aplicações extensivas dos agro tóxicos Glifosato e 2,4-D.

Evidentemente, a análise detalhada do funcionamento do sistema regulatório depende do desenvolvimento de pesquisa sociológica sobre como foi institucionali za do esse sistema, por meio do exame das leis e decretos que instituíram os três órgãos já referidos, bem como das políticas implantadas pelos ministérios; como funciona o sistema de regulação, em particular, qual é o regime de produção e difusão de conhecimen to científico (cf. Shinn, 2008Shinn, T. Regimes de produção e difusão de ciência: rumo a uma organização transversal do conhecimento. Scientiae Studia, 6, 1, p. 11-42, 2008.; Marcovich & Shinn, 2012Marcovich, A.; & Shinn, T. Regimes of science production and diffusion: towards a transverse organization of knowledge. Scientiae Studia, 10, special issue, p. 33-64, 2012.) acerca das consequên cias de aplicações tecnológicas em grande escala de agrotóxicos e sementes GM; exame das condições institucionais para o desenvolvimento de um regime de pesquisa mul ties tratégica que permita avaliar, ao mesmo tempo, as consequências do uso das biotec no logias e o potencial de tecnologias alternativas (cf. Lacey, 2014Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014.; Mariconda; 2014Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014.).

Sem desenvolver este ponto que depende de pesquisa e análise sociológi ca detalhadas sobre o funcionamento do sistema de regulação e sobre o regime de pesquisa científica que tem sido desenvolvido nesse quadro institucional regulatório, cabe destacar que a própria estrutura e funcionamento do sistema regulatório brasileiro e a dificuldade de instituir um regime de pesquisa público sobre as consequências do uso intensivo e extensivo de substâncias agrotóxicas, tais como o Glifosato e o 2,4-D, tem tornado muito lenta a regulamentação, favorecendo a manutenção do processo de re gu lação em um estado de constante suspensão de regras, normas, padrões e procedimentos - suspensão característica do estado de exceção tecnológica durante o qual as empresas de biotecnologia praticam a política do fato consumado (cf. Mariconda, 2014Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014.), muitas vezes com o endosso dos órgãos regulatórios.

As aplicações tecnológicas em grande escala, características da inovação tecno científica, tais como as da agricultura GM e o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, têm sido implantadas em uma situação caracterizada pela excepcionalidade social, sanitária e ambiental. Essa excepcionalidade sistêmica caracteriza um estado de exceção tecnológica, que se constitui como um invariante da situação civilizatória atual e que consiste na suspensão de valores e normas tradicionais, e muitas vezes até a suspensão de padrões técnicos, que regem a saúde, a propriedade, os ambientes, a imputação de danos e das responsabilidades. É essa excepcionalidade que permite a pro dução de fatos consumados, ou seja, continuar a usar em larga escala as substâncias Gli fosato e 2,4-D, enquanto é preparada a proibição com base em estudos científicos que comprovam os efeitos maléficos do uso dessas substâncias; enquanto dura a ex cepcio nalidade se aprofundam as consequências sociais (desorganização rural, imigração para as cidades, perda de soberania alimentar), as consequências ambientais (diminuição de espécies vegetais, poluição genética e ambiental, modificações drásticas de paisagens e alteração dos ciclos básicos do ambiente terrestre, a saber, o ciclo da água, o ciclo do carbono, o ciclo do nitrogênio e o ciclo do fósforo; cf. Lotka, 1954Lotka, A. J Elements of mathemathical biology.New York: Dover, 1954 [1924]. [1924], p. 209-52), e as consequências na saúde humana (por ingestão de alimentos GM tratados com agrotóxicos químicos ou por exposição às aplicações dos agrotóxicos).

É importante notar que o caráter sistêmico (e, portanto, invariante) da excepcio nalidade tecnológica decorre do "peculiar amálgama de natureza e sociedade" (Beck, 2010 Beck, U. Sociedade de risco. Tradução S. Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010 [1986].[1986], p. 9) realizado pelo avanço da sociedade industrial e pela modernização científico-tecnológica e, finalmente, pela hegemonização da ordem tecnológica econômica que transformou definitivamente o "meio natural" em um meio mediado por objetos (atualmente até mesmo organismos vivos artificiais, ou moléculas e arranjos atômicos na escala nanométrica) e por processos artificialmente produzidos ou defla grados (tais como a produção de enzimas específicas pelas plantas de milho e soja resistentes a agrotóxicos que não eram antes naturalmente segregadas pelas plantas). O meio no qual vivemos resulta então da integração e contaminação da natureza pela ordem tecnológica que serve de base para o desenvolvimento econômico. Ao longo de sua transformação tecnológico-industrial e de sua comercialização global, a natureza foi absorvida pela ordem tecnológica. A natureza se converte, ao mesmo tempo, em pré-requisito indispensável do modo de vida no sistema científico tecnológico atual, porque dela depende uma série de disponibilidades, ou seja, disponibilidades - naturais e artificiais - locais e condições climáticas e ambientais locais em equilíbrio di nâmico com as condições climáticas e ambientais globais. Entretanto, essa dependência ontológica engendra na ordem econômica uma dependência imanente da natureza: "a dependência do consumo e do mercado agora também significam um novo tipo de dependência da 'natureza', e essa dependência imanente da 'natureza' em relação ao sistema mercantil converte-se, no e com o sistema mercantil, em lei do modo de vida" (Beck, 2010Beck, U. Sociedade de risco. Tradução S. Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010 [1986]. [1986], p. 9) na ordem tecnológica atual. Ou seja, o controle da natureza e seu descontrole, ou seja, a modificação drástica das condições ambientais e climáticas, são consequências inevitáveis do modo de vida (científico-tecnológico) em que vivemos, mas essa transformação acelerada da natureza em meio tecnológico altera as condições e disponibilidades naturais a tal ponto que se mostra como ameaça à sobre vivência de coletividades e comunidades humanas e, enfim, da própria humanidade (cf. Mariconda, 2014Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014.).

As questões levantadas até aqui permitem revelar a ordem de dificuldade do sistema de regulação em propiciar o desenvolvimento de programas públicos de pesquisa multiestratégica sobre as consequências do uso intensivo de tecnologias químicas na agricultura. Elas apontam também para outro aspecto acerca da questão institucional que se relaciona com as alternativas agrícolas à agricultura transgênica e, o que é muitas vezes desconsiderado, com os trabalhos necessários para a recuperação ambiental (descontaminação e recuperação) de áreas quimicamente contaminadas. Torna-se necessário criar espaços institucionais, no seio das universidades públicas, para o ensino dedicado a alternativas agrícolas (agroecologia, agrofloresta etc.) reconhecidas como científicas e que operam na escala local de autossuficiência e sustentabilidade ecológica; para o desenvolvimento de programas de pesquisa multiestratégica, seja com a finalidade de controle científico das consequências de aplicações biotecnológicas em grande escala, seja com a finalidade de desenvolvimento de tecnologias alternativas que não se vinculam ao dispositivo universal agrobioquímico, seja com a finalidade de monitoramento científico da recuperação de áreas quimicamente contaminadas; programas de pesquisa científica dirigidos ao desenvolvimento de técnicas agrícolas com orientação mais local, tais como a agricultura familiar, a agricultura orgânica, a permacultura, agroecologia, mais equilibrados do ponto de vista social, com soluções tecnológicas mais adequadas à sustentabilidade ambiental e à autossuficiência produtiva. Isso significa que esses programas tampouco podem ser gerenciados segundo as perspectivas tão francamente favoráveis à inovação tecnocientífica (cf. Mariconda, 2012Mariconda, P. R Get ready for technoscience: the constant burden of evaluation and domination. Review article of J. Echeverría, "La revolución tecnocientífica". Scientiae Studia, 10, special issue, p. 151-62, 2012.), intimamente vinculada aos valores do desenvolvimento e crescimento econômico. Uma iniciativa importante que vem sendo adotada por algumas universidades e por movimentos de produtores ligados à agroecologia e à agricultura familiar é a criação e manutenção de bancos de sementes com vistas a preservar as variedades crioulas, como é o caso do International Center for Tropical Agriculture em Colúmbia (cf. McCouch, 2013McCouch, S. Feeding the future. Nature, 499, p. 23-4, 4 jul 2013.) que abriga 65.000 amostras de sementes. Enfim, aqui é então possível pôr em discussão a necessária reinstitucionalização da ciência em vista de estabelecer limites científicos às aplicações biotecnológicas do grupo de seis empresas - Monsanto, Sygenta, Dupont, Basf, Bayer e Dow Chemicals - que controlam o mercado de organismos GM e de agrotóxicos e fertilizantes químicos (cf. Thuswohl, 2014Thuswohl, M. Grupo de seis empresas controla mercado global de transgênicos. Repórter Brasil, 2013. Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2013/11/grupo-de-seis-empresas-controla-mercado-global-de-transgenicos-2/>. Acesso em: 20 ago. 2014.
http://reporterbrasil.org.br/2013/11/gru...
).

3.2 Epistemologia e ética: produção de conhecimento científico e responsabilidade ética em seu uso tecnológico

Os comentários que seguem colocam-se em outro plano, pois abordam essa questão do uso no Brasil dos agrotóxicos Glifosato e 2,4-D, do ponto de vista da filosofia (e, portanto, do ponto de vista da universalidade) e nas fronteiras entre a epistemologia e a ética, explorando essa possibilidade de reflexão crítica propiciada pelo modelo da interação entre os valores e as atividades científicas. Enquanto os valores foram considerados como meramente subjetivos - isto é, expressões de emoções, preferências e preconceitos dos indivíduos, responsáveis quando muito por ações irrefletidas ou espontâneas -, a ética permaneceu confinada a um pequeno território no processo de estabelecimento do conhecimento objetivo dos fatos por meio de procedimentos metódicos racionais, na medida em que a objetividade depende dos consensos intersub je tivos internos às comunidades de especialistas; consensos que pressupõem um éthos, isto é, certo código tácito na obtenção do conhecimento e uma responsabilidade tácita pelo uso do conhecimento. Tampouco retirou a ética de seu confinamento a concepção de que os valores se objetivam em imperativos racionais ou em princípios éticos universais que dirigem normativamente a ação, porque não parece que as comunidades de especialistas ou os campos científicos disciplinares produzam avaliações com base em princípios éticos gerais, mas antes parece haver uma espécie de moralidade corrente que se liga a uma constelação ampla de valores (fins, objetivos, aspirações, projeções futuras etc.), parametrizados por instituições (universidades, instrumentos, laboratórios, grandes instrumentos, indústrias, agências públicas e privadas de financiamento etc.) que fornecem os meios para o desenvolvimento da pesquisa científica. A ciência e a técnica constituem em certo sentido uma espécie de hábito, pois supõem adquirir certo tipo de atitude (curiosa) investigativa perante os objetos e processos naturais que não está separada da prática de certas virtudes morais, de modo que são os hábitos e os costumes que caracterizam a maior parte das atividades, seja as científicas, seja as técnicas, vinculando essas atividades interna e externamente a uma moral (ética) comunitária.

Da perspectiva pragmática aqui adotada, segundo a qual toda ação é individual, assim como são pessoais e individuais as decisões que são tomadas em vista de certos fins, bem como as decisões de proceder à ação e de tornar efetivamente real certa aplicação, os valores fazem parte do "mundo da vida", isto é, estão relacionados à totalidade da experiência (atualizada em certa época e contexto social), permitida pelo estágio de desenvolvimento técnico da comunidade na qual o indivíduo vive. Entretanto, em virtude da hegemonia do complexo biofisicoquímico - composto das mais diversas ramificações e especialidades de subdisciplinas da física, da química e da biologia e que serve de base às mais recentes especialidades experimentais e técnicas (biotecnologia, nanotecnologia, bionanotecnologia, mecatrônica, robótica, inteligência artificial etc.) - as decisões, por exemplo, de aplicar um agrotóxico em larga escala e continuadamente, tornam-se especializadas, pois acabam sendo sempre vinculadas ao conhecimento científico e técnico corrente dos especialistas. Nessas condições, o problema ético levantado pelas consequências das aplicações tecnológicas, pragmaticamente entendido, é o problema "da relação entre a liberdade pessoal e a ordem estável" da comunidade humana (local, social, científica, artística, religiosa etc.) a que pertence o indivíduo que toma a decisão de pôr em prática a ação (cf. Mariconda, 2014Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014., seção 4.1).

Nesse sentido, o funcionamento de toda comunidade pressupõe a existência de um éthos - em particular, a existência da comunidade científica pressupõe um conjunto de valores cognitivos e sociais e práticas compartilhadas - que é mantido pelos integrantes da comunidade, que são assim responsáveis pela manutenção e estabilidade de certos padrões e hábitos que constituem a moralidade e a coesão da comunidade. Mas desta perspectiva vale a fórmula pragmática segundo a qual "o conhecimento dos fatos pressupõe o conhecimento dos valores" (Mariconda, 2014Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014., p. 76). Para praticar a ciência, isto é, para aplicar o método científico, é preciso proceder segundo o éthos científico, isto é, ser imparcial na pesquisa, praticar a neutralidade cognitiva, não fraudar, não plagiar, não alterar os dados para ajustá-los a uma determinada hipótese, ser responsável no uso do conhecimento etc. Ora, as transgressões a esses valores levantam justamente o problema ético da relação entre a decisão individual de cometer certa transgressão e as consequências dessa transgressão não só internamente para a coesão da comunidade científica, mas também externamente para outras comunidades humanas eventualmente afetadas pela decisão e ação técnica.

Um aspecto de ampla repercussão epistemológica e ética consiste em que todo o sistema de regulação está perpassado pelo segredo. Desde a técnica de transgenia, pela qual as sementes GM são tornadas resistentes aos agrotóxicos Glisofato e 2,4-D, que é protegida por patentes, até os pareceres emitidos nas comissões de ética, de bioética, na CTNBio etc. no curso dos processos de liberação e acompanhamento da comercia lização e utilização desses agrotóxicos, que estão sujeitos à cláusula de confidencia lidade, exibem uma tensão característica com os procedimentos científicos. Por um lado, as patentes (científicas e técnicas) produzem uma tensão epistemológica com a cláusula, ligada à objetividade, da publicidade dos resultados científicos (com prejuízo da universalidade e imparcialidade do conhecimento); por outro lado, a confidencia lidade em pareceres éticos e científicos sobre aplicações tecnológicas, que exigem expertise (conhecimento especializado) tem graves implicações éticas, porque a confidencialidade exime de responsabilidade pessoas (indivíduos) que tomam decisões importantes, tais como, por exemplo, a de manter a comercialização sem restrições do Glifosato ou do 2,4-D, com base em razões científicas insuficientes, ou até mesmo contra evidências científicas certificadas. Ora, a negação de fatos científicos cada vez mais certificados sobre os efeitos do milho e soja transgênicos e de sua entourage química (no Brasil, principalmente os agrotóxicos Glifosato e 2,4-D e fertilizantes químicos) no meio ambiente e na saúde humana e animal; o recurso à propaganda enganosa no sentido de afirmar um consenso científico inexistente sobre a segurança do uso de organismos GM (cf. European, 2013European Network of Scientists. No scientific consensus on GMO safety. Disponível em: <http://ensser.org/increasing-public-information/no-scientific-consensus-on-gmo-safety/>. Acesso em: 18/11/2013.
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); a alegação de que não é necessária pesquisa científica sobre as consequências ou efeitos dos organismos GM na saúde e no ambiente; e a insistência em manter o uso e difusão dos agrotóxicos químicos contra evidências estatísticas que se acumulam sobre os efeitos cancerígenos, genéticos e teratológicos, produzidos pela ingestão dessas substâncias ou pela exposição a elas, ultrapassam os limites do cálculo econômico e desconhecem os limites científicos e éticos, de modo que seus efeitos alastram-se descontroladamente em cadeia, sem respeitar fronteiras (estaduais, nacionais) ou barreiras (zonas de proteção à contaminação genética, química etc.). Nesse sentido, o uso intensivo de agrotóxicos ocorre, portanto, em uma zona de total experimentação, em uma situação totalmente aberta ao acidental, isto é, uma situação de descontrole dos efeitos acidentais, imprevistos, co laterais e residuais do uso intensivo da biotecnologia agrícola praticada pelas empresas de biotecnologia e pelas indústrias químicas a ela associadas.

Quando se examina, do ponto de vista filosófico (epistemológico/ético), a atuação da CTNBio na liberação de organismos GM, o aspecto mais significativo é, sem dúvida, o uso, por parte dos integrantes dessa comissão, de dois princípios opostos, a saber, o princípio de precaução e o princípio da equivalência substancial. Embora o regimento da própria comissão não apresente uma adesão clara a qualquer dos dois princípios, a atuação da comissão revela que o princípio da equivalência substancial é majoritariamente adotado.

De um lado, há aqueles que subscrevem o princípio de precaução, tomado como o exercício da "precaução científica", que envolve a exigência e urgência de (1) uma moratória técnica - isto é, a suspensão ou descontinuação do uso em larga escala de sementes GM e de (2) um incremento de pesquisa científica alternativa contextualizada sobre os efeitos e consequências do uso dessas biotecnologias químicas tendo em vista a descontinuação do uso de agrotóxicos químicos e de organismos artificiais resistentes a agrotóxicos e, de outra parte, de uma agenda alternativa de transição (com o desenvolvimento de programas de pesquisa científica e técnica sobre a descontaminação e recuperação de áreas), que permita passar das estratégias experimentais e descon textualizadas, praticadas pelo agronegócio para uma agricultura sustentável desenvolvida segundo estratégias contextualizadas que contemplam os meios locais em ciclos mais fechados de produção de insumos e de energia, ou seja, mais próximas de práticas sustentáveis com formas de gerenciamento diferentes das utilizadas pelo geren ciamento tecnocientífico ligado à inovação de linha neoliberal (cf. Mariconda, 2012Mariconda, P. R Get ready for technoscience: the constant burden of evaluation and domination. Review article of J. Echeverría, "La revolución tecnocientífica". Scientiae Studia, 10, special issue, p. 151-62, 2012.; Lacey, 2014Lacey, H. Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica?. Scientiae Studia, 12, 4, p. 669-95, 2014.).

De outro lado, incentivado por parte das grandes corporações do agronegócio biotecnológico e por especialistas ligados ao sistema nacional de pesquisa e à CTNBio, há o uso do "princípio da equivalência substancial" que representa, por assim dizer, a orientação pretensamente científica dominante das decisões e laudos fornecidos por especialistas das diversas áreas que compõem essa comissão. Segundo esse princípio, os alimentos GM possuem uma estrutura química semelhante a suas contrapartes naturais, de modo que se pode assumir que essa "equivalência substancial" assegura que o uso desses alimentos "não levanta novos riscos à saúde e, portanto, é aceitável para o uso comercial" (Millstone; Brunner & Mayer, 1999Millstone, E.; Brunner, E.; & Mayer, S. Beyond "substantial equivalence". Nature, 401, p. 525-6, 7 oct 1999., p. 525). Na verdade, esse conceito de "equivalência substancial", que se limita às estruturas e propriedades químicas e exclui os testes biológicos, toxicológicos e imunológicos, nunca foi bem definido, de modo que "o grau de diferença existente entre um alimento natural e sua alternativa GM antes de sua 'substância' deixar de ser aceitavelmente 'equivalente' não é definido, nem há qualquer acordo sobre uma definição entre os legisladores" (p. 525). Além disso, os cientistas não se mostram capazes de "predizer os efeitos bioquímicos e toxicológicos de um alimento GM a partir de sua composição química" (p. 526), o que, entretanto, deveria acontecer para que o princípio fosse empiricamente testável. Nessas condições, o uso do conceito de "equivalência substancial" por parte das autoridades regulatórias age mais propriamente como uma barreira à pesquisa ulterior e apro fun dada sobre os possíveis riscos e consequências dos alimentos GM. Trata-se, portanto, de um princípio inerentemente anticientífico, "porque foi criado principalmente para produzir uma desculpa para não realizar os testes bioquímicos e toxicológicos requeridos" (p. 526), para um uso eticamente responsável da biotecnologia.

O princípio da equivalência substancial estabelece, assim, o vínculo entre o modus operandi da CTNBio e a perspectiva anticientífica das seis corporações envolvidas na agricultura de monocultura transgênica. Dois índices revelam esse vínculo. Em primeiro lugar, a maioria das publicações acerca do assunto são de autoria de cientistas ligados às indústrias produtoras do agrotóxico 2,4-D ou são trabalhos financiados por essa indústria, o que cria uma grande confusão, porque, por um lado, esses artigos empregam métodos científicos e passam pela avaliação dos pares mas, por outro lado, é presumível que o interesse do financiamento conduza a um viés nesses estudos que mostram a inexistência de efeitos negativos (cf. Neumeister, 2014). Na CTNBio, a maioria dos pareceres aceita os dados e resultados das pesquisas realizadas pelas indústrias interessadas nas liberações de seus produtos, além de que muitos pesquisadores que fazem parte dessa comissão recebem financiamento das indústrias. Em segundo lugar, essas pesquisas empreendidas ou financiadas pelas indústrias "conduzem a uma 'diluição' da informação - uma tática também utilizada pela indústria de tabaco. Os paralelos entre a indústria do tabaco e a indústria de pesticidas são múltiplos, não apenas em sua argumentação e estratégia, mas também nos resultados finais de que - apesar das evidências - os agentes causadores de câncer não são proibidos" (Neumeister, 2014Neumeister, L. The risks of the herbicide 2,4-D. Munich: Technobiosafety, 2014. Disponível em: <http://www.genewatch.org/uploads/f03c6d66a9b354535738483c1c3d49e4/Risks_ of_herbicide_2_4_D. pdf>. Acesso em 20 fev. 2014.
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, p. 10). Vale lembrar que o mesmo tipo de tática aparece na indústria petrolífera contra os relatórios sobre os efeitos da queima de combustíveis fósseis no aquecimento global pelo IPCC (cf. Leite, 2014Leite, J. C Controvérsias científicas ou negação da ciência? A agnotologia e a ciência do clima. Resenha de N. Oreskes & E. M. Conway, "Merchands of doubt. How a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming". Scientiae Studia, 12, 1, p. 179-89, 2014.).

Em vista do exposto até aqui é possível formular as seguintes questões relativas à responsabilidade ética de cientistas e tecnólogos. A primeira questão diz respeito a certo "lapso cultural" que está presente seja na concepção subjetivista dos valores, seja na concepção bioética que separa a ética da filosofia e principalmente a afasta da epistemologia, como se fosse um campo autônomo ou uma disciplina especializada. Evidentemente, a própria filosofia, enquanto disciplina acadêmica, não esteve imune à onda de especialização que varreu as ciências ditas particulares. Entretanto, a filosofia é o domínio da integração, da não fragmentação e, em especial, da crítica episte mológica e ética aos limites dos conhecimentos científicos particulares; o que nos obriga a recolocar o alcance da reflexão ética e sua necessária ligação com a epistemologia. Como apresentei nesta nota, há uma relação profunda entre a transformação técnica do ambiente e as condições de sobrevivência da espécie humana. Todas as ações humanas são valorativas, mesmo as automáticas (naturais e universais da espécie) realizam-se em um contexto amplamente determinado pela cultura e por práticas sociais, de modo que as ações humanas estão integradas em um amplo complexo valorativo.

Em segundo lugar e em vista da primeira consideração, cabe considerar as questões relacionadas à responsabilidade social e ética de cientistas e tecnólogos, levantadas pelo estágio atual de desenvolvimento científico e tecnológico. Essas questões são, em grande medida, consequências da "consideração pragmática" dos valores que os concebe incorporados nas instituições e manifestando-se nas práticas individuais realizadas no interior dessas instituições. Assim, até que ponto as restrições impostas pelos direitos de propriedade intelectual (DPI) ou pelas patentes das empresas de bio tecnologia ferem o princípio da universalidade do acesso ao conhecimento científico ou impedem o exercício da imparcialidade científica? A proteção (o segredo) de inovações biotecnológicas, propiciada por patentes que garantem a exclusividade do conhecimento de produção e de comercialização de artefatos biotecnológicos (tal como sementes GM), pode ser considerada uma prática compatível com a ciência? Garantir o direito de propriedade do conhecimento é compatível com a necessária equidade na distribuição dos produtos desse conhecimento? Em suma, há lugar para a ética, entendida agora como compatível com a justiça distributiva, em uma sociedade cada vez mais organizada em função dos negócios tecnocientíficos? A conjunção entre conhecimento, utilidade, lucro e acumulação de capital é compatível com o bem-estar e com a justiça social?

Finalmente, do ponto de vista ético aqui adotado, segundo o qual o problema ético está na relação entre a liberdade pessoal de escolher entre múltiplos cursos de ação e a manutenção da ordem social ou comunitária, aquele que decide manter uma aplicação tecnológica intensa e em larga escala, contrariando as evidências científicas de que ela tem consequências maléficas para a saúde e o ambiente, tem, do ponto de vista epistemológico, uma atitude anticientífica e a ação decorrente de sua decisão comete uma falta ética grave contra a humanidade. Dado o caráter global da biotecnologia química aplicada à agricultura, essas situações deveriam ser remetidas a tribunais internacionais para o julgamento desses casos que se configuram como crimes contra a humanidade. Aqui, e ainda em função da perspectiva pragmática, é preciso separar, de um lado, as empresas, indústrias e órgãos regulatórios e, de outro lado, os indivíduos que as integram. Enquanto as empresas devem ser obrigadas a limpar a poluição que produziram, mediante não só o pagamento de indenização aos prejudicados por suas ações, mas também mediante o financiamento de programas de descontaminação e recuperação das áreas afetadas pelas aplicações de agrotóxicos, tais como o Glifosato e o 2,4-D, os presidentes, diretores, cientistas e membros de agências reguladoras, que estão implicados nas decisões de continuar a aplicar os agrotóxicos em questão, devem assumir a responsabilidade ética individual de suas decisões e enfrentar judicialmente as consequências de suas ações.

Agradecimentos. O autor agradece o financiamento da Fapesp recebido pelo Projeto Temático 2011/51614-3: "Gêne se e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade", do qual esta nota crítica é um dos resultados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014
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