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Análise das obras do PAC (Eixo Minha Casa, Minha Vida) em Valparaíso de Goiás (GO): a produção de uma realidade integradora/segregadora

Analysis of PAC (Minha Casa, Minha Vida Axis) in Valparaiso de Goias (GO): the production of a integrating/segregating reality

Resumo

Valparaíso de Goiás surgiu de um desmembramento do município de Luziânia, em 1995. No Censo de 2010 do IBGE, Valparaíso de Goiás contava com 132.982 habitantes. Em 2015, a estimativa oficial indicou um expressivo crescimento populacional, quando o município atingiu a marca de 153.255 habitantes. O presente artigo analisa o processo de fragmentação regional promovido no curso da integração do território nacional centrada em Brasília. Como elemento central, destacamos o processo de segregação residencial, manifestado neste município goiano, a partir da impossibilidade dos migrantes fixarem residência em Brasília. Nesta perspectiva, investigamos o Programa Minha Casa, Minha Vida, com o objetivo de verificar suas repercussões no processo segregador que, desde a construção de Brasília, afeta drasticamente a vida dos que tiveram a vida polarizada pela nova capital da república.

Palavras-chave:
Espaço urbano; PAC; Minha Casa, Minha Vida; Segregação

Abstract

Valparaiso de Goias emerged from a dismemberment of the municipality of Luziania, in 1995. In the 2010 Census of IBGE, Valparaiso de Goias had 132,982 inhabitants. In 2015, the official estimate indicated a significant population growth when the municipality reached the 153,255 inhabitants mark. This article analyzes the regional fragmentation process promoted in the course of integration of the national territory centered in Brasilia. As a central element, we highlight the residential segregation process, manifested in this municipality of Goias, from the impossibility of migrants take up residence in Brasilia. In this perspective, we investigated the program Minha Casa, Minha Vida, in order to verify their impact on segregating process, from the construction of Brasilia, dramatically affects the lives of those who had polarized life in the new capital of the republic.

Keywords:
Urban space; PAC; Minha Casa, Minha Vida; Segregation

Introdução

A transferência da capital federal do litoral para o interior do país, no início da segunda metade do século XX, sempre aparece de modo destacado nos estudos dedicados ao processo de integração do território nacional. A nova capital brasileira, interiorizada, propiciou a reorientação da dinâmica dos fluxos no território brasileiro, justificando um vultoso investimento na infraestrutura necessária para a integração de regiões que permaneceram desarticuladas desde o período colonial. É importante frisar que Brasília foi erguida no Planalto Central brasileiro, mas não em um lugar qualquer. Uma comissão de expedicionários, chefiada pelo astrônomo Luis Cruls, definiu, na segunda metade do século XIX, o lugar que melhor abrigaria a nova capital articuladora, anunciada formalmente já na Constituição da República promulgada em 1891.

O objetivo perseguido era fazer com que a dinâmica das relações políticas e econômicas praticadas no interior do país fosse incrementada. Na realidade, a iniciativa possuía uma dimensão ainda maior: suprimir a desarticulação regional presente no território nacional (VESENTINI, 1986VESENTINI, José Willian. A capital da geopolítica. São Paulo: Ática, 1986.). Brasília representa a busca pelo estabelecimento de novos nexos na dinâmica territorial. A nova capital deveria atrair fluxos de pessoas, produtos e serviços, que, por sua vez, justificariam a construção da infraestrutura que permitiria o redirecionamento destes fluxos para outras regiões “não ocupadas”.

Então, a partir de ações planejadas, as relações políticas e econômicas travadas no interior do território brasileiro foram reorientadas. Como desdobramento destas iniciativas, houve uma redefinição nas relações presentes na região Centro-Oeste do país: uma redefinição marcada por intensos movimentos que, a princípio, não foram corretamente estimados pelos agentes oficiais. Estes movimentos podem ser demonstrados pelas taxas regionais de urbanização. Enquanto na década de 1940 a região Centro-Oeste foi a que apresentou a menor taxa de urbanização, na década de 1980 ela ficou abaixo somente da região Sudeste.

Entre as expressões regionais que registram a repercussão da política nacional-integradora, destacamos o processo de fragmentação territorial que reconfigurou os municípios situados próximos de Brasília, o símbolo maior de todo o ideário integrador. Isto porque desde as primeiras ações com vistas à edificação da nova sede administrativa, uma intensa relação entre a integração nacional e a fragmentação regional passou a acompanhar o processo de construção e consolidação da capital integradora (MELLO, 2009______. Brasília, Águas Lindas de Goiás e o (Des)Encontro da Racionalidade com a Irracionalidade. Tese (doutorado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2009.).

Neste contexto, Luziânia aparece como exemplo do processo fragmentador. O território deste município goiano foi fragmentado, viabilizando a criação de Santo Antônio do Descoberto (1982), Cidade Ocidental (1991), Valparaíso de Goiás (1995), Novo Gama (1995). Em 1995, foi a vez de Santo Antônio do Descoberto ter seu território fragmentado, abrindo espaço para a criação de Águas Lindas de Goiás.

Expressando quantitativamente a força de atração populacional exercida pela nova capital federal, temos o crescimento médio anual da população do Distrito Federal, que, nas décadas de 1960 e 1970, atingiu o índice de 14,9%. Neste curto intervalo de tempo, a população do DF passou de 140,1 mil para 537,5 mil habitantes. É importante destacar que este fluxo foi alimentado por trabalhadores em busca de vagas na construção civil (CAIADO, 2000CAIADO, Maria Cecília S. Estruturação urbana e mobilidade intra-regional: a região do entorno de Brasília, 2000.; PAVIANI, 1998_______. A conquista da cidade. Brasília: UnB, 1998.).

Nas décadas seguintes, o crescimento populacional continuou acentuado. A inovação ficou por conta da incorporação do território de municípios goianos no processo de fixação de migrantes. Entre 1970 e 1980, a população do Distrito Federal cresceu numa média anual de 8,15%; saltando de 537,5 mil para 1.176,8 mil. Já o crescimento populacional dos municípios que fazem divisa com a capital federal atingiu a média anual de 9,19%, passando de 50,2 mil para 120,8 mil habitantes.

Nesse contexto, um grande e irregular adensamento populacional avançou sobre o território dos municípios goianos do entorno de Brasília. O fato é que a nova capital foi profundamente impactada pelas expectativas dos migrantes que foram em sua direção à procura de oportunidades de uma vida melhor. Os municípios próximos do Distrito Federal foram envolvidos por relações intensas que romperam com suas características territorializadas historicamente. No bojo deste fluxo migratório, fazendas foram loteadas e municípios foram desmembrados para atender às necessidades de moradia dos migrantes; bem como aos interesses dos especuladores do solo urbano em franca expansão nos municípios limítrofes a capital federal.

Um processo segregador esculpiu formas espaciais assimétricas no território limítrofe à capital federal territorialmente ordenada. Nos municípios goianos, uma desordem expressiva passou a revelar contradições não evidenciadas pelos agentes enunciadores dos discursos oficiais. Na atualidade, quando os municípios goianos - produzidos no curso do processo de integração territorial centrado em Brasília - aparecem na grande mídia, o que fica evidente é o complexo estado de desordem e violência neles instaurados, a partir da transferência da capital federal.

No presente artigo, destacamos alguns aspectos deste processo segregador promovido no município de Valparaíso de Goiás, emancipado de Luziânia em 1995. Centramos nossas atenções na segregação residencial presente no município a partir da construção de Brasília; bem como analisamos as repercussões do Programa Minha Casa, Minha Vida em um território marcado por uma expressiva complexidade.

Desenvolvimento

A forma como se deu o parcelamento do solo dos municípios da Região do Entorno de Brasília indica um movimento flagrante: o povoamento e o processo de urbanização dos municípios foram promovidos a partir da refuncionalização de propriedades rurais fragmentadas por especuladores imobiliários. Mas, à medida que a legislação municipal dificultou a continuidade dessa prática, ocorreu outro tipo de parcelamento: a fragmentação do território de Luziânia para a criação de novos municípios livres de restrições legais que dificultavam o parcelamento do solo. Desta forma, a abertura de loteamentos seguiu seu curso vertiginoso.

Mello (1999MELLO, Marcelo de. Luziânia: a fragmentação territorial de um município do Entorno de Brasília. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 1999., 2009______. Brasília, Águas Lindas de Goiás e o (Des)Encontro da Racionalidade com a Irracionalidade. Tese (doutorado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2009.) ressalta que, no contexto do Plano de Metas e dos Programas Nacionais de Desenvolvimento, municípios que deveriam servir de anteparo para a redistribuição populacional, em escala nacional, acabaram servindo de ponto “final” para milhares de pessoas. Assim, lugares de passagem se tornaram lugares de permanência.

É importante enfatizar que toda dinâmica populacional estava centrada nas demandas relativas à integração do território nacional. Contudo, em nenhum momento houve uma preocupação sistematizada que indicasse a intenção de promover uma melhoria nas condições de vida da população migrante. O que se escutava eram pronunciamentos oficiais que colocavam a necessidade do “bolo crescer” - a riqueza produzida pelo país - para que, posteriormente, ele pudesse vir a ser dividido entre os cidadãos.

Podemos dizer que foi sobre a égide dos argumentos evidenciadores do “bolo em crescimento” e da abertura econômica, que a emblemática década de 1980 tornou-se um divisor de águas quando tratamos dos fluxos migratórios. Foi sob a ação da força de novas tramas territoriais, arquitetadas para acomodação dos interesses do capital interno com o externo, que este período viu o processo migratório deixar de ser marcado, predominantemente, pela longa distância.

Regionalmente, os territórios de Brasília e de seu entorno estão entre os que melhor representam a ação continuada exercida por um Estado que esperou o “bolo crescer” e deixou à margem cidadãos que tinham nos deslocamentos improvisados a única esperança de reproduzir, de forma precária, a sua existência. É importante destacar que o improviso registrado no território está em descompasso com os discursos de um Estado que evidenciou a necessidade das intervenções oficiais serem balizadas racionalmente. Como marca da distância entre os discursos dos agentes do Estado e suas práticas, o território goiano do entorno de Brasília registra, de forma inequívoca, o descaso com a gestão dos movimentos migratórios que acompanharam, intensamente, as intervenções oficiais das décadas de 1950 a 1990 e penetraram no século XXI. Intervenções que objetivaram unicamente a abertura de caminhos que viabilizassem a penetração do capital no interior do país, bem como a sua circulação por todas as regiões brasileiras.

Neste contexto, devem ser destacadas as medidas adotadas pelo Estado para alterar as estruturas produtivas existentes no Planalto Central. O campo e as novas cidades, pensadas estrategicamente para viabilizar a penetração do capital no ambiente do Cerrado, redefiniram os usos deste ambiente. É fundamental registrar que uma das funções da rede urbana implantada no Centro-Oeste era criar as condições necessárias à modernização das atividades agropecuárias (SANTOS, 2005SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Edusp, 2005.). As atividades regidas sob esta perspectiva perseguiram sempre a otimização da capacidade produtiva, por meio de bases racionais que garantissem uma maior produção com um custo reduzido, sem exigir significativas melhorias das condições sociais.

Esta dissociação flagrante, entre os propósitos econômicos e as demandas sociais, fez com que as intervenções governamentais não contemplassem um expressivo volume de migrantes, que permaneceram desprezados pelas ações oficiais. Esta situação repercutiu no território da capital-federal, apesar dos esforços dos agentes hegemônicos, que promoviam processos segregadores com o intuito de distanciar as manifestações improvisadas da pobreza migrante do território de Brasília: cidade planejada racionalmente.

Atualmente, a capital da república apresenta um território marcado por paisagens híbridas, constituídas por objetos vinculados tanto às ações oficiais balizadas racionalmente, quanto às iniciativas improvisadas de migrantes em busca das condições mínimas de reprodução de sua existência. Esta realidade demonstra que os mecanismos segregadores não conseguiram apartar as contradições produzidas a partir das ações assimétricas capitaneadas pelo Estado: não foi possível a criação de uma fronteira que isolasse as “virtudes” do progresso civilizador do “atraso” dos migrantes sertanejos que, segundo os olhos dos progressistas, teimavam em permanecer indolentes.

Os agentes produtores da valorização diferencial do espaço urbano

O espaço habitado pelo homem é produto de relações travadas socialmente. O processo de produção do espaço é marcado por uma expressiva diversidade de elementos revelados pela paisagem; que, por sua vez, representa as ações do homem no espaço. Os elementos capturados por meio da paisagem indicam, a partir de suas formas e seus conteúdos, as intenções contraditórias de uma sociedade marcada por classes antagônicas, repletas de tensões e conflitos.

Produzido em um ambiente conflituoso, o espaço geográfico evidencia diferenças. Há espaços que se destacam por terem dinâmicas rapidamente alteradas, enquanto outros permanecem por longo tempo apresentando as mesmas formas e funções. Entre os fatores que se destacam no processo de alteração das dinâmicas espacialmente manifestadas estão os de caráter demográfico.

O espaço é uma categoria de análise da realidade caracterizada por uma ampla gama de possibilidades. Quando abordamos as relações de poder manifestadas espacialmente, penetramos em uma dimensão do espaço representada por outra categoria: o território. Para Souza (2009SOUZA, Marcelo Lopes de. "Território" da divergência (e da confusão): em torno das imprecisas fronteiras de um conceito fundamental. In: SAQUET, Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Savério (orgs.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular: UNESP. Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2009, p. 57-72.), o território é produto de relações de poder centradas em disputas políticas e econômicas. Todavia, isso não quer dizer que a cultura seja irrelevante no processo de produção do território, pois ele é definido por três elementos principais: as relações de poder, as redes e as identidades. A ação indissociável destes elementos promove a constituição de inúmeras territorialidades, ou seja, o território é um produto social historicamente espacializado (SAQUET, 2009SAQUET, Marcos Aurelio. Por uma abordagem territorial. In: SAQUET, Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Savério (orgs.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular: UNESP. Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2009, p. 73-94.).

No bojo das relações territoriais assimetricamente estabelecidas, os deslocamentos populacionais evidenciam escalas dos jogos de poder. No presente artigo, contemplamos tais deslocamentos manifestados no espaço urbano. Ao tratar de questões urbanas, devemos calibrar nosso olhar investigativo e definir os recortes e as dimensões da análise. A análise aqui apresentada evidenciou a produção e reprodução de um espaço urbano, produto de conflitos em torno da hegemonia de sua hierarquização, no contexto de um sistema produtivo em que impera a propriedade privada dos meios de produção.

Nesta perspectiva, destacamos as disputas por moradias e o papel do Estado e dos agentes imobiliários. Por esta razão, o território é uma categoria de análise privilegiada; assim como o espaço urbano, a cidade e a segregação residencial. A investigação aqui apresentada privilegiou o município de Valparaíso de Goiás, integrante da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE/DF), área metropolitana que apresenta cenários de crescimento e deslocamento populacionais vertiginosos.

Analisando esta intrincada temática, Corrêa (1995CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cidades. Disponível em <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/home.php> Acesso em set.-out./2014a.
http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/hom...
) apresenta e qualifica os agentes produtores do espaço urbano: os proprietários dos meios de produção, sobretudo os grandes industriais; os proprietários fundiários; os promotores imobiliários; o Estado; e os grupos sociais segregados. Cada agente apresenta uma característica, sendo o Estado, segundo Corrêa (1995CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cidades. Disponível em <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/home.php> Acesso em set.-out./2014a.
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), o regulador do processo de produção do espaço: ele é pressionado por interesses dos demais agentes e subsidia suas ações de forma desigual, promovendo a valorização diferencial do solo urbano.

Os agentes situados de maneira privilegiada, no interior de relações sociais assimétricas, trabalham em prol de uma distribuição desigual da renda e da acumulação do capital advinda da exploração capitalista do solo urbano. A partir de um modelo socialmente perverso, uma oposição é engendrada: de um lado, a concentração da riqueza nas mãos de uma minoria; de outro, a “proliferação” de déficits sociais representados pela restrição no acesso a serviços e equipamentos públicos. Como produto desta oposição materializada territorialmente, grande parte da população encontra-se imersa em problemas só minimizados por meio de protestos, sistematicamente criminalizados pelas estruturas hegemônicas de poder.

Ao considerar a produção desta realidade, um fato deve ser destacado: os investimentos realizados no espaço urbano são distribuídos de maneira desigual. Uma das grandes tarefas dos agentes hegemônicos, apresentados por Corrêa (1995CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cidades. Disponível em <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/home.php> Acesso em set.-out./2014a.
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), é planejar e gerir a valorização diferencial do solo urbano. Esta, por sua vez, se manifesta por meio da oferta de equipamentos e serviços urbanos oferecidos de maneira desigual, garantindo a reprodução ampliada do capital, a partir da mercantilização de um solo urbano parcelado e destituído de sua função social.

A valorização desigual do solo urbano estabelece uma seletividade no acesso à habitação. Esta seletividade é representada por conceitos como segregação e auto-segregação. A compreensão de tais processos solicita o entendimento de que, no sistema capitalista, o solo urbano é mercadoria. Como tal, existem determinadas condições materiais para que o mesmo possa ser adquirido. Assim, nem todos têm acesso a um solo urbano mercantilizado.

Formação histórica de Valparaíso de Goiás (GO)

O primeiro loteamento aberto no território que hoje abriga o município de Valparaíso de Goiás foi implantado em 1959. O empreendimento recebeu o nome de Parque São Bernardo e, atualmente, é um dos bairros da cidade. A data de implantação do empreendimento evidencia que sua criação ocorreu simultaneamente à construção de Brasília. Na ocasião, a região recebeu grande número de migrantes (PREFEITURA MUNICIPAL DE VALPARAÍSO DE GOIÁS, 2014PREFEITURA MUNICIPAL DE VALPARAÍSO DE GOIÁS. História. Disponível em <http://www.valparaisodegoias.go.gov.br/valparaiso-de-goias/historia> Acesso em nov./2014.
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).

Mello (1999MELLO, Marcelo de. Luziânia: a fragmentação territorial de um município do Entorno de Brasília. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 1999.) e Silva (2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012.) afirmam que o Parque São Bernardo, conhecido também como Parque da Divisa, surgiu a partir da transferência de prostíbulos do Distrito Federal para Goiás. Estabelecimentos desta natureza não seriam admitidos no território federal em um momento próximo da inauguração da cidade-capital da república.

Com a proximidade do fim das obras de construção a dita Cidade Livre deveria ser "higienizada". Ou seja, as prostitutas, antes bem-vindas, tornaram-se um estorvo no contexto da nova capital. Pela proximidade com Brasília e consequentemente com a Cidade Livre, o bairro de Luziânia Parque São Bernardo é escolhido para ser o "depósito" onde as "mulheres de vida fácil" se estabeleceriam [...]. E as prostitutas se tornam exemplos de migração forçada (SILVA, 2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012., p. 67).

Outra importante ação no processo de formação de Valparaíso de Goiás ocorreu em 19 de abril de 1979, quando o prefeito de Luziânia, Walter José Rodrigues, inaugurou o Núcleo Habitacional Valparaíso I. Na época, o mais novo Núcleo Habitacional de Luziânia possuía 864 casas, uma escola estadual e um prédio que abrigou a administração local. O Núcleo Residencial, construído pela Encol, começou com muitos problemas: não havia comércio, a falta de água era frequente e só havia transporte coletivo na BR-040 (PREFEITURA MUNICIPAL DE VALPARAÍSO DE GOIÁS, 2014).

No dia 2 de maio de 1980, por meio do Decreto-Lei nº 972, o aniversário da fundação do Núcleo Habitacional passou a ser comemorado no dia 19 de abril. Na ocasião, Valparaíso de Goiás contava com um posto telefônico, uma agência de Correios e Telégrafos, um escritório de contabilidade, onze lojas comerciais, uma escola estadual e duas escolas particulares, atualmente extintas (PREFEITURA MUNICIPAL DE VALPARAÍSO DE GOIÁS, 2014PREFEITURA MUNICIPAL DE VALPARAÍSO DE GOIÁS. História. Disponível em <http://www.valparaisodegoias.go.gov.br/valparaiso-de-goias/historia> Acesso em nov./2014.
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).

O Núcleo Habitacional foi desmembrado do município de Luziânia e elevado à categoria de município, com a denominação de Valparaíso de Goiás, pela lei estadual nº 12.667, de 18 de julho de 1995 (PREFEITURA MUNICIPAL DE VALPARAÍSO DE GOIÁS, 2014PREFEITURA MUNICIPAL DE VALPARAÍSO DE GOIÁS. História. Disponível em <http://www.valparaisodegoias.go.gov.br/valparaiso-de-goias/historia> Acesso em nov./2014.
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). O território que hoje abriga o município de Valparaíso de Goiás era uma área rural, composta por fazendas cujas atividades estavam voltadas à pecuária extensiva. Por conta da inauguração de Brasília, as fazendas foram fracionadas em chácaras que serviam para o lazer dos moradores da capital federal (MELLO, 1999MELLO, Marcelo de. Luziânia: a fragmentação territorial de um município do Entorno de Brasília. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 1999., 2009______. Brasília, Águas Lindas de Goiás e o (Des)Encontro da Racionalidade com a Irracionalidade. Tese (doutorado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2009.; SILVA, 2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012.; SILVA, 2014; VIEIRA, 2014VIEIRA, Rosângela Viana. A Reprodução do Espaço na Metrópole: a habitação como negócio urbano. Tese (doutorado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2014.).

A pressão por moradia, no processo de consolidação de Brasília, fez com que as chácaras fossem fracionadas para a abertura de loteamentos voltados para a população de baixa renda. Diante da impossibilidade de fixar residência no Distrito Federal, um expressivo contingente populacional foi segregado para além dos limites da capital federal (SILVA, 2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012.).

Valparaíso de Goiás foi considerado ideal pelos promotores imobiliários, por apresentar vantagens comparativas. De acordo com Silva (2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012., p. 70), "relevo relativamente plano com eletrificação rural. Localização nas proximidades da BR-040, que orientou e orienta a urbanização. Facilidade para a mobilidade até o Plano Piloto de Brasília". É importante ressaltar que estes argumentos foram elaborados por especuladores imobiliários, pois a aludida “facilidade de mobilidade para o Plano Piloto de Brasília” é ilusória. A precariedade apresentada pelo serviço de transporte público dificulta o deslocamento para Brasília.

A grande deficiência na oferta de serviços fundamentais, como saúde e educação, faz com que a população deste município goiano recorra aos serviços oferecidos no Distrito Federal. Partindo desta realidade, Silva (2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012., p. 109) afirma que:

[...] os migrantes que formaram o município e que, até hoje [...] possuem relações institucionais com Goiás e relações sociais e funcionais com Brasília. Essa interescalaridade redunda numa ambiguidade territorial. Que por sua vez culmina na construção da identidade territorial de Valparaíso de Goiás. Pulverizada recorrentemente pela cultura dos sempre chegantes.

Atualizando a realidade apresentada por Valparaíso de Goiás - um município situado na mesorregião do Leste Goiano e na microrregião do Entorno de Brasília (ver Mapa 1) -, verificamos que sua população, no ano 2000, era de 94.856 habitantes (IBGE, 2000). Já o Censo de 2010, indica que sua população atingiu a marca de 132.982 habitantes. As estimativas mais recentes do IBGE, de 2015 (IBGE, 2016), revelam que o município possui atualmente 153.255 habitantes (ver Gráfico 1).

Gráfico 1
Evolução populacional de Valparaíso de Goiás: 1997-2015

Mapa 1
Localização de Valparaíso de Goiás (GO) (2014)

O município possui uma área de 61,41 km². Em 2010, Valparaíso apresentou uma expressiva densidade demográfica, alcançando a marca de 2.165,48 habitantes por km² (IBGE, 2016). Como o número de habitantes aumentou em 2015, o município possui atualmente 2.495,60 habitantes por km².

Segundo Silva (2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012.), Valparaíso de Goiás não possui zona rural e é o terceiro menor município do estado de Goiás. Em 2010, de acordo com dados do Censo do IBGE (IBGE, 2014a), 33.438 pessoas, com 10 anos ou mais de idade, residiam em Valparaíso de Goiás, mas trabalhavam em outro município; enquanto 28.449 pessoas, da mesma faixa etária, residiam e trabalhavam no município de Valparaíso de Goiás. Ou seja, do total de 61.887 habitantes do município, com 10 ou mais anos de idade que trabalhavam, mais de 54% desenvolviam suas atividades profissionais fora de Valparaíso de Goiás. Este dado justifica o elevado fluxo de pessoas que se deslocam diariamente para o Distrito Federal pela BR-040.

A principal via de acesso à Brasília é a BR-040. A rodovia apresenta intenso fluxo de veículos, evidenciando, de acordo com Silva (2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012., p. 76), "[...] o caráter conurbado e conflituoso característico da vida nervosa da metrópole".

Com relação à economia do município de Valparaíso de Goiás, Silva (2012SILVA, Gilmar Elias Rodrigues da. Valparaíso de Goiás-GO: migração e dinâmica socioespacial - 1995/2010. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2012., p. 41) afirma que ela "estrutura-se em torno do setor terciário, na construção civil e com tendência ao setor moveleiro. A ausência de uma economia embasada no setor primário se justifica em função da inexistência de área rural neste município". O Censo de 2010, do IBGE, dividiu em 22 seções as atividades exercidas pela população. Seguindo os critérios do IBGE, verificamos como a população de Valparaíso de Goiás está distribuída nestas seções de atividades (ver Tabela 1):

Tabela 1
Seção de atividade do trabalho principal dos moradores de Valparaíso de Goiás: 2010

De acordo com a Tabela 1, a atividade econômica que apresenta maior expressão entre os moradores de Valparaíso de Goiás é a de comércio e reparação de veículos automotores/motocicletas, com 17,1% do total da população. Em seguida aparece a Construção, com 11,3% do total da população. Na terceira posição estão relacionados os Serviços domésticos, com 10,01%. A construção civil aparece de maneira destacada, devido à construção dos inúmeros empreendimentos imobiliários na RIDE-DF. Os serviços domésticos também se apresentam de maneira expressiva, pois a proximidade com o Distrito Federal faz com que a população de Valparaíso de Goiás trabalhe em domicílios desta unidade federativa.

Ações do Minha Casa, Minha Vida em Valparaíso de Goiás

Neste tópico, abordamos questões relativas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), enfatizando sua atuação frente à questão habitacional. O referido programa governamental promoveu investimentos no Brasil, a partir de uma segmentação em seis eixos: Transportes; Energia; Cidade Melhor; Comunidade Cidadã; Minha Casa, Minha Vida; e Água e Luz para Todos.

Segundo o Ministério do Planejamento (2015MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Disponível em <http://www.pac.gov.br> Acesso em abr./2015.
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), o programa foi criado em 2007, no segundo mandato do presidente Lula (2007-2010), e promoveu a retomada do planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país; contribuindo para um desenvolvimento acelerado. Para seus idealizadores, o PAC é um plano estratégico de resgate do planejamento e de retomada dos investimentos em setores estruturantes do país, o que possibilitou o aumento da oferta de empregos e a geração de renda, elevando o investimento público e privado a partir de obras fundamentais.

Em 2011, o PAC iniciou uma segunda fase, com mais recursos e mais parcerias com estados e municípios. O objetivo era a melhoria da qualidade de vida nas cidades brasileiras (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, 2015MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Disponível em <http://www.pac.gov.br> Acesso em abr./2015.
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). Contudo, a realidade produzida a partir das ações não se aproximou dos objetivos presentes no discurso oficial.

A partir dos dados oferecidos pelo IBGE, foi possível avaliar a demanda por moradia de interesse social no ano do Censo. Assim, pudemos verificar que no decorrer das ações do Minha Casa, Minha Vida, não houve uma correspondência entre os produtos ofertados e as necessidades da população em situação de vulnerabilidade social. A análise demonstra que o aumento da renda e uma melhor qualidade de vida não se fizeram presentes na vida dos moradores de Valparaíso de Goiás. Como elemento destacado, apresentamos um fato representativo: segundo dados do IBGE, a maioria dos domicílios do município abriga famílias com renda equivalente a faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida; contudo, não foram edificadas unidades habitacionais para este segmento da população de Valparaíso de Goiás.

O Minha Casa, Minha Vida é um programa governamental que tem como meta reduzir o déficit habitacional brasileiro: um dos problemas mais crônicos do país. A primeira fase do programa foi implementada entre os anos 2009 e 2011, a segunda fase compreendeu o período de 2011 a 2014, e a terceira fase teve início em 2015 e seguirá até 2018.

A meta da primeira fase era a construção de 2 milhões de unidades habitacionais, das quais 60% deveriam estar voltadas para famílias de baixa renda. Em 2010, após um ano de atividade, o Minha Casa, Minha Vida alcançou um milhão de contratações; mas, até o final de 2011, não atingiu a meta traçada (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, 2015MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Disponível em <http://www.pac.gov.br> Acesso em abr./2015.
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). Segundo Rolnik (2012ROLNIK, Raquel. 10 anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela Reforma Urbana às cidades da Copa do Mundo. In: RIBEIRO, Ana Clara Torres; VAZ, Lilian Fessler; SILVA, Maria Lais Pereira da (Org.). Quem planeja o território? Atores, arenas e estratégias. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital/ANPUR, 2012, p. 87-104., p. 100), a atual política habitacional:

[...] é concebida e praticada como elemento de dinamização econômica para enfrentar uma possível crise e gerar empregos, colocando-se de forma desarticulada com uma política de ordenamento territorial e fundiária destinada a disponibilizar terra para moradia popular. O resultado é um extraordinário aumento no preço de terras e imóveis.

O programa Minha Casa, Minha Vida, na área urbana, foi dividido em três faixas de renda mensal: até R$1.600 (faixa 1), de R$ 1.601,00 até R$3.275 (faixa 2) e de R$ 3.276,00 até R$5.000 (faixa 3). Além da construção das unidades habitacionais (Minha Casa, Minha Vida), fazem parte desse eixo as áreas Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) e Urbanização de Assentamentos Precários (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, 2015MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Disponível em <http://www.pac.gov.br> Acesso em abr./2015.
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). Em sua terceira fase, o programa passou por uma atualização das faixas de renda: até R$1.800 (faixa 1); de R$1.801,00 até R$2.350 (faixa 1,5); de R$2.351,00 até R$3.600,00 (faixa 2); e de R$3.601,00 até R$6.500,00 (faixa 3).

Para as famílias da faixa 1, a Caixa Econômica Federal oferece um financiamento de até 120 meses (10 anos), com prestações mensais na casa de 5% da renda bruta da família, sendo R$25,00 o valor mínimo da parcela (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2015CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Minha Casa, Minha Vida. Disponível em <http://www.caixa.gov.br/voce/habitacao/minha-casa-minhavida/urbana/Paginas/default.aspx> Acesso em abr./2015b.
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). O Minha Casa, Minha Vida possui grande apelo eleitoral e é frequentemente acusado de ignorar as conquistas no campo do direito à cidade e da cidadania. Rolnik (2012ROLNIK, Raquel. 10 anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela Reforma Urbana às cidades da Copa do Mundo. In: RIBEIRO, Ana Clara Torres; VAZ, Lilian Fessler; SILVA, Maria Lais Pereira da (Org.). Quem planeja o território? Atores, arenas e estratégias. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital/ANPUR, 2012, p. 87-104.) afirma que ele foi formulado como política industrial, financiando diretamente as construtoras. Desta forma, o Programa foi convertido em mecanismo de transferências de subsídios públicos para o preço da terra e dos imóveis, sem estabelecer um controle sobre o processo de especulação imobiliária. Analisando um cenário mais atual, Rolnik (2016INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Ipeadata. Disponível em <http://www.ipeadata.gov.br> Acesso em out./2014.
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) considera que medidas anunciadas pelo governo federal inviabilizam a edificação de unidades habitacionais para a faixa 1. Isto porque as contratações destinadas a este segmento ficam condicionadas a aportes orçamentários, o que se mostra difícil em um cenário econômico marcado pelo corte de gastos públicos. Desta forma, como destaca a urbanista, será “o fim do Minha Casa Minha Vida para quem mais precisa”.

Em relação à repercussão do Programa Minha Casa, Minha Vida em Valparaíso de Goiás, Vieira (2014VIEIRA, Rosângela Viana. A Reprodução do Espaço na Metrópole: a habitação como negócio urbano. Tese (doutorado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2014.) destaca que entre 2009 e 2012 não houve nenhum contrato assinado com vistas ao atendimento das demandas da faixa 1. Na faixa 2 foram contratados 1.660 empreendimentos; e na faixa 3, 2.514 empreendimentos. Assim, no período citado, foram contratadas 4.174 unidades habitacionais, mas nenhuma para a faixa 1, que abarca a população de menor renda e maior vulnerabilidade. Já no ano de 2014, foram contratadas 5.558 unidades habitacionais em Valparaíso de Goiás, todas para as faixas 2 e 3 (VIEIRA, 2014VIEIRA, Rosângela Viana. A Reprodução do Espaço na Metrópole: a habitação como negócio urbano. Tese (doutorado), Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, Programa de Pós-graduação em Geografia, Goiânia, 2014., p. 130). A análise deste cenário indica que os dados do Censo 2010, do IBGE, não direcionaram os investimentos para o segmento mais vulnerável, representado pelas famílias da faixa 1. É importante destacar que o PAC/UAP - Urbanização de Assentamentos Precários -, promoveu um investimento de mais de R$ 7.000.000,00 em Valparaíso de Goiás, direcionado para a urbanização de assentamentos precários, especificamente para as mais de 200 unidades habitacionais da Vila Guaíra (BRASIL, 2014BRASIL. PAC 2: a gente faz um Brasil de oportunidades. Goiás. 2014., p. 71). Contudo, quando consideramos a faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida, nenhuma unidade habitacional foi edificada.

Os dados do Censo de 2010 do IBGE comprovam a existência de uma demanda expressiva por unidades da faixa 1. As variáveis de rendimento nominal mensal familiar, em nosso entendimento, constituem uma fonte segura para balizar a distância entre os discursos oficiais e a realidade materializada.

O Censo de 2010 apresentou o dia 31 de julho de 2010 como data de referência. Nessa data, o salário mínimo era de R$510,00. Os dados do último Censo realizado são importantes, pois possibilitam a elaboração de uma cartografia socioeconômica do município de Valparaíso de Goiás. O Censo possui inúmeras variáveis e selecionamos aquelas que condizem com nosso estudo.

Selecionamos algumas variáveis para referenciar quantitativamente elementos importantes para a análise das questões habitacionais, como famílias com rendimento nominal mensal: de até 3 salários mínimos; de 3 a 5 salários mínimos; e, de 5 a 10 salários mínimos.

O primeiro mapa que representa a renda familiar mensal é o Mapa 2. Este mapa compreende as famílias com rendimento nominal mensal de até 3 salários mínimos. Isso significa que, em 2010, tais famílias possuíam renda de até R$1.530 mensais. Naquele momento, 34.046 famílias se enquadravam na faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida: o que corresponde a 86,33% do total de famílias.

Mapa 2
Mapa de Valparaíso de Goiás: famílias com rendimento nominal mensal de até 3 salários mínimos (2010)

O Mapa 3 indica as famílias que possuíam, na data de referência do Censo de 2010, rendimento nominal mensal de 3 a 5 salários mínimos: de R$1.530,00 a R$2.550,00. Essa variável abarca, também, parte das famílias que se enquadram na faixa 1 do Programa Minha Casa, Minha Vida; pois a variável considera o rendimento de 3 a 5 salários mínimos e, por esta razão, incluem as famílias com 3 salários mínimos que, naquele momento, correspondia à R$1.530,00 e se enquadravam na faixa 1.

O total de famílias representadas por esta variável - de 3 a 5 salários mínimos - atingiu a casa das 2.480 unidades; ou seja, 6,28% do total de famílias, um quantitativo pouco expressivo se comparado as famílias com até 3 salários mínimos de renda.

Mapa 3
Mapa de Valparaíso de Goiás: famílias com rendimento nominal mensal de 3 a 5 salários mínimos (2010)

No Mapa 4, apresentamos as famílias que, em 2010, tinham um rendimento nominal mensal de 5 a 10 salários mínimos: uma renda de R$2.550,00 a R$5.100,00. Um quantitativo de 1.208 famílias compôs este segmento, representando 3,06% do total de unidades habitacionais do município. Essas famílias se encaixavam nas faixas 2 e 3 do Minha Casa, Minha Vida.

Mapa 4
Mapa de Valparaíso de Goiás: famílias com rendimento nominal mensal de 5 a 10 salários mínimos (2010)

Os dados apresentados indicam que a população de baixa renda de Valparaíso de Goiás não foi priorizada pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. O quantitativo de famílias que se encaixavam na faixa 1 do Programa Minha Casa, Minha Vida, em 2010, alcançou a expressiva marca de 34.046 famílias (86,33% do total de famílias, desconsiderando as que recebiam de 3 a 5 salários mínimos); contudo, nenhuma unidade habitacional vinculada à faixa 1 do Programa foi edificada.

Considerações Finais

A complexidade do território urbano contemplado neste artigo está relacionada à construção de Brasília. A nova capital federal foi acompanhada por um discurso que a apresentava como a “capital da esperança”. A edificação de uma nova cidade, em um espaço relativamente despovoado, promoveu um processo migratório centrado nos canteiros de obras destinados a edificação da capital federal interiorizada. Em pouco tempo, Brasília e seu entorno receberam levas de migrantes em busca de trabalho e de melhores condições de vida.

O número de migrantes ultrapassou a capacidade das instalações construídas para abrigar os operários. Como consequência, precoces manifestações reivindicando moradia passaram a compor a realidade da cidade-capital ainda em construção. Como alternativa, os municípios goianos limítrofes à Brasília passaram a receber os migrantes que, em um primeiro momento, aspiraram morar na nova capital da república.

Neste contexto, o estado de Goiás foi envolvido por complexas relações territorializadas: além de perder parte do território de três municípios para a construção de Brasília (Luziânia, Formosa e Planaltina), os municípios do entorno da capital federal apresentaram um incremento populacional vertiginoso. Entre os municípios goianos, Luziânia foi, certamente, o mais severamente afetado. Esta afirmação é facilmente comprovada quando recordamos que seu território foi fragmentado, originando outros cinco municípios.

Assim, na segunda metade do século XX, processos de conurbação passaram a se manifestar no Planalto Central brasileiro. Na atualidade, Luziânia, Valparaíso de Goiás, Novo Gama, Gama e Santa Maria apresentam uma continuidade em suas estruturas urbanas que dificulta a percepção das fronteiras que individualizam cada ente federativo.

Entre os municípios produzidos neste contexto fragmentador, evidenciamos Valparaíso de Goiás. A ênfase dada a esta realidade urbana pode ser justificada pelo fato de Valparaíso de Goiás possuir uma altíssima densidade habitacional: 2.495,60 habitantes por km². Por esta razão, os agentes do espaço urbano que atuam em Valparaíso de Goiás realizam suas ações de forma muito estratégica.

A demanda por moradia no município se dá em função de sua proximidade com Brasília, pois ele faz limite com a capital federal. As ações estratégicas dos promotores imobiliários se manifestam, por exemplo, por meio do parcelamento do solo de chácaras para a construção de condomínios horizontais e verticais.

Neste contexto, como questão central no processo de fixação de migrantes nos municípios goianos limítrofes à Brasília, o problema da moradia aparece de maneira destacada. No Brasil, ao longo do século XX, inúmeras políticas habitacionais tomaram forma para atender a população de baixa renda. Como vimos, no século XXI, um programa habitacional tem ocupado um espaço privilegiado na mídia. Trata-se do Minha Casa, Minha Vida, lançado em 2009, no contexto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O referido programa habitacional tem destacado a necessidade de construção de moradias populares.

O problema do Programa é que seu discurso prioriza a moradia para a população de baixa renda, mas o mundo concreto indica uma grande distância entre o que está grafado nos documentos oficiais e o que foi materializado nos municípios. A investigação por nós apresentada evidencia este fato. Segundo o Censo de 2010, do IBGE, mais de 85% das famílias de Valparaíso de Goiás se enquadravam na faixa 1, pois tinham renda mensal de até R$1.600,00. Apesar deste dado, nenhuma unidade habitacional foi direcionada a este segmento mais vulnerável socialmente.

Na realidade, o município investigado faz coro com a realidade brasileira, que apresenta como imperativo uma alteração na condução das políticas habitacionais. Essa alteração estabelece como princípio novas bases, fundadas na função social do uso do solo, a partir de uma organização que priorizasse a aquisição de moradia por parte da população de baixa renda. Outro fator relevante, no processo de alteração das práticas oficiais, está relacionado à necessidade de alteração da visão de mundo dos responsáveis pela elaboração e execução dos programas: é importante que a cidade seja percebida como um sistema urbano marcado por serviços e equipamentos públicos integrados e não como um conjunto de empreendimentos isolados, que beneficiam mais agentes políticos e econômicos do que a população em situação de vulnerabilidade social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2016
  • Aceito
    25 Maio 2018
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