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Ativismos não-monogâmicos no Brasil contemporâneo: a controvérsia poliamor ± relações livres

Activismo no monógamo en el Brasil contemporáneo: la controversia poliamor ± relações livres

Resumo

Este artigo analisa as tensões e disputas entre poliamoristas e RLis (Relações Livres), as duas principais identidades não-monogâmicas no Brasil, nos anos 2000-2010, e aquelas responsáveis pela construção de uma militância em torno da multiplicidade afetiva e sexual. Que distinções e hierarquias são mobilizadas a partir de suas interações? É possível e desejável para ambos a consolidação de uma política identitária que subtraia ou invisibilize as suas diferenças em prol da categoria “não-monogamia”? A pesquisa foi realizada com base na análise de publicações em sites e grupos em redes sociais dedicados ao tema, além de entrevistas em profundidade e da participação em eventos não-monogâmicos. Apesar de aliados no combate à norma monogâmica, RLis e poliamoristas disputam a hegemonia do movimento não-monogâmico, divergindo em torno dos princípios que devem nortear os relacionamentos afetivo-sexuais.

Palavras-chave:
conjugalidade; monogamia; poliamor; relações livres, não-monogamia

Resumen

Este artículo analiza las tensiones y disputas entre poliamorosos y RLis (Relações Livres), las dos principales identidades no monógamas en Brasil y las responsables del surgimiento de militancias en torno a la legitimación de la multiplicidad afectiva y sexual en los años 2000-2010. ¿Qué distinciones y jerarquías se movilizan a partir de sus interacciones? ¿Es posible y deseable que ambos consoliden una política identitaria que renuncie o invisibilice sus diferencias a favor de la categoría “no monogamia”? La investigación se realizó a partir del análisis de publicaciones en páginas web y grupos en redes sociales dedicados al tema, además de entrevistas en profundidad y participación en eventos no monógamos. Si bien se ven como aliados en la lucha contra la norma monógama, RLis y poliamorosos se disputan la hegemonía y el control del movimiento no monógamo, divergiendo en torno a los principios que deben guiar las relaciones afectivo-sexuales.

Palabras clave:
conyugalidad; monogamia; poliamor; relações livres; no monogamia.

Abstract

This article aims to analyze the tensions and disputes between polyamorists and RLis - Relações Livres (Free Relationships), the two main non-monogamous identities in Brazil, responsible for the rise of militancy around the legitimation of sexual-affective multiplicity in the years 2000-2010. What distinctions and hierarchies are mobilized from their interactions? Is it possible and desirable for them to consolidate an identity politics that subtracts or disguises their differences in favor of the “non-monogamy” category? The research was conducted on websites and groups in social media dedicated to the theme, in addition to in-depth interviews and participation in non-monogamous events. Even if they see themselves as allies in the struggle against compulsory monogamy, RLis and polyamorists disputed hegemony and control of the non-monogamous movement, diverging around the principles that should guide affective-sexual relationships.

Keywords:
conjugality; monogamy; polyamory; relações livres; non-monogamy.

Introdução1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (PDSE-CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PDJ-CNPq).

Ellis (1911ELLIS, Havelock. 1911. Studies in the Psychology of Sex. Vol.6. Sex in Relation to Society. Philadelphia: F.A. Davis.) mostra que a monogamia, muitas vezes, foi vista como condição não natural e de difícil realização, de modo que ideólogos, ao longo dos séculos XVII e XIX, defenderam a legalização da poliginia, ou seja, a possibilidade de um homem ter mais de uma esposa. Entre essas defesas, o autor faz referência ao panfleto publicado em Londres, no ano de 1658, intitulado A Remedy for Uncleanness, que a fim de evitar o adultério e o infanticídio propunha uma reforma do casamento baseada na poliginia. Em 1780, também em Londres, o reverendo Martin Madan publicaria o livro Theltphthora, argumentando que os males produzidos pela prostituição e pelo sexo fora do casamento poderiam ser sanados por meio do reconhecimento de mais de uma união concomitante.

No século XIX, sob forte ascendência do socialismo e do anarquismo, algumas críticas ao casamento monogâmico, articuladas ao lema do “amor livre”, foram pautadas no ideal de igualdade entre homens e mulheres (Charles Fourier, Robert Owen, Frances Wright, entre outras). Tais formulações influenciaram um conjunto heterogêneo de comunidades utópicas nos Estados Unidos que se distanciaram do modelo tradicional de casamento monogâmico e indissolúvel. São os casos, por exemplo, de New Harmony e Nashoba, iniciadas, respectivamente, pelos próprios Owen e Wright (Guarneri, 1991GUARNERI, Carl. 1991. The Utopian Alternative: Fourierism in Nineteenth-Century America. Ithaca; London: Cornell University Press.; Bederman, 2005BEDERMAN, Gail. 2005. “Revisiting Nashoba: Slavery, Utopia, and Frances Wright in America, 1818-1826”. American Literary History. Vol. 17(3), p. 438-459.), além de Modern Times e Oneida, aquela que recebeu maior atenção acadêmica e que foi mais enfática e sustentável em sua proposta de superação da monogamia (Foster, 1984FOSTER, Lawrence. 1984. Religion and Sexuality: The Shakers, the Mormons, and the Oneida Community. Urbana/Chicago, University of Illinois Press.; Carrara, 2000CARRARA, Sérgio. 2000. “Utopias sexuais modernas: uma experiência religiosa Americana”. Etnográfica, 4(2): 355-368.).

Na segunda metade do século XX, houve uma difusão de conceitos relativos a manifestações não-monogâmicas, consolidando o afastamento com o modelo poligínico, em que apenas o homem tem mais de uma parceira ou esposa. O swing (“troca de casais”) é marcado pela multiplicidade de parcerias sexuais, mantendo a ideia de uma monogamia formal e afetiva. De acordo com Silvério (2014SILVÉRIO, Maria. 2014. Swing. Eu, tu... eles. Lisboa: Chiado.: 71), a sua origem se relaciona com as chamadas “festas das chaves” dos anos 1950, em que as esposas seriam “trocadas” aleatoriamente por uma noite. Conforme assinala von der Weid (2015)VON DER WEID, Olivia, 2015. Swing, o adultério consentido. Um estudo antropológico sobre troca de casais. Rio de Janeiro: Multifoco., atualmente os adeptos divergem da antiga denominação “troca de esposas”, considerando um termo androcêntrico e ultrapassado por não abranger toda a gama de atividades sexuais nas quais os swinguers podem tomar parte, como o “exibicionismo”, o “voyeurismo”, a “troca de casais” e o “sexo grupal” (ibidem: 61).

A expressão “casamento aberto” foi elaborada inicialmente por O´Neill e O´Neill no best seller “Open Marriage: a New Lifestyle for Couples”, publicado em 1972. De acordo com Macklin (1980MACKLIN, Eleanor. 1980. “Nontraditional Family Forms: A Decade of Research”. Journal of Marriage and Family. Vol.42(4), p. 905-922.), os casamentos abertos são caracterizados por uma decisão do casal para que mantenham outros envolvimentos, independentemente da parceria original. Essas relações se diferenciariam do swing por não serem estritamente sexuais e por não dependerem da presença de ambos os cônjuges para a sua realização2 2 Nos últimos anos, a expressão “relacionamento aberto” tem sido mais utilizada do que “casamento aberto”. Alguns pesquisadores afirmam que, como o swing, o relacionamento aberto se caracteriza por um acordo do casal para estabelecer apenas outras relações sexuais e não interações afetivo-sexuais (ver Silvério, 2018). Ainda assim, acredito ser necessário diferenciá-las, considerando que enquanto a prática do swing ocorre, geralmente, em ambientes fechados e voltados à prática sexual, em relacionamentos abertos os encontros “extraconjugais” podem acontecer em festas e espaços públicos, sem a mesma ênfase no contato sexual. .

Poliamor é um termo cunhado, nos anos 1990, para nomear diversas formas “éticas” ou “responsáveis” de não-monogamia (Anapol, 1997ANAPOL, Deborah. 1997. Polyamory: The New Love without Limits. San Rafael, CA: IntiNet Resource Center.; Klesse, 2006KLESSE, Christian. 2006. “Polyamory and its ‘others’: contesting the terms of non-monogamy”. Sexualities. Vol.9, n.5, p.565-583.; Cardoso, 2010CARDOSO, Daniel. 2010. Amando vári@s - Individualização, redes, ética e poliamor. Dissertação de mestrado. Universidade Nova de Lisboa.). Ele designa a possibilidade de estabelecer múltiplas relações afetivo-sexuais concomitantes e consensuais (Pilão, 2019PILÃO, Antonio. 2019. “Quando o amor é o problema: feminismo e poliamor em debate”. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, v. 27, n. 3, e55097.). Entre poliamoristas se evidencia a defesa da igualdade de gênero (Barker e Langdridge, 2010BARKER. Meg; LANGDRIDGE, Darren. 2010. “Whatever Happened to Non-monogamies? Critical Reflections on Recent Research and Theory”. Sexualities. Vol.13, (6), p. 748-772.; Klesse, 2010KLESSE, Christian. 2010. “Paradoxes in gender relations: [Post] feminism and bisexual polyamory”. In: BARKER, M & LANGDRIDGE, D. (Eds.), Understanding non-monogamies. London: Routledge, p. 109-120. ; Pilão, 2015PILÃO, Antonio. 2015. “Entre a liberdade e a igualdade: princípios e impasses da ideologia poliamorista”.Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 44, p. 391-422. ), a crítica à heteronormatividade (Rubin et al., 2014RUBIN, Jennifer et al. 2014. “On the Margins: Considering Diversity Among Consensually Non-monogamous Relationships”. Journal fur Psychologie. Vol.22. p. 1-23.; Silvério, 2018SILVÉRIO, Maria. 2018. Eu, tu... ilus: poliamor e não-monogamias consensuais. Tese de doutorado. ISCTE-IUL.), e a valorização da bissexualidade (Anderlini-D’Onofrio, 2004ANDERLINI-D’ONOFRIO, Serena. 2004. Plural Loves: Designs for Bi and Poly Living. Binghamton, NY: Harrington Park Press.; Pilão, 2012aPILÃO, Antonio. 2012a. “Poliamor e bissexualidade: idealizando desvios”. In: Anais do 36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2012.).

O poliamor se difere do swing em função de não se voltar exclusivamente para a dimensão sexual e também do casamento aberto, por permitir mais de um vínculo conjugal estável e profundo. Os modelos de relacionamento poliamorista podem ser simplificados em dois: as relações “em grupo”, nas quais mais de duas pessoas mantêm relações entre si e, as relações “em par”, nas quais um poliamorista tem mais de uma parceria diádica (Pilão, 2015PILÃO, Antonio. 2015. “Entre a liberdade e a igualdade: princípios e impasses da ideologia poliamorista”.Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 44, p. 391-422. ). Esses formatos costumam ser divididos em “aberto” e “fechado”. No primeiro caso está colocada a possibilidade de novos relacionamentos e, no segundo, é praticada a “polifidelidade” 3 3 O termo polifidelidade significa a fidelidade a vários parceiros. A sua origem remete à comunidade Kerista de São Francisco (1971-1991) e o aumento de sua circulação se vincula à publicação da newsletter de Ryam Nearing (Loving More), em 1984. .

As “relações livres” (RLi) são o único conceito de não-monogamia originalmente elaborado no Brasil, mais precisamente em Porto Alegre, nos anos 2000. A sua formulação esteve articulada a grupos de militância e de discussão sobre família, feminismo e libertação sexual (Barbosa, 2011BARBOSA, Monica. 2011. Movimentos de resistência à monogamia compulsória. A luta por direitos sexuais e afetivos no século XXI. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia.). Nas relações livres, os sujeitos são entendidos como autônomos para a expressão e a realização dos seus desejos afetivos e sexuais, podendo ter relações casuais ou criar laços duradouros, a despeito de seus outros relacionamentos (Bornia Junior, 2018BORNIA JR, Dardo. 2018. Amar é verbo, não pronome possessivo: etnografia das relações não-monogâmicas no sul do Brasil. Tese de doutorado. UFRGS.). A constituição da RLi se deu a partir da recusa ao poliamor, termo que, além de internacional, é anterior e mais difundido do que o de relações livres. Nos anos 2010, com o crescimento da notoriedade da RLi e a sua expansão para outras capitais, intensificaram a relação entre os grupos e os questionamentos sobre suas semelhanças e contrastes.

A proposta deste artigo é analisar a controvérsia entre poliamoristas e RLis, as duas principais identidades não-monogâmicas no Brasil, nos anos 2000-2010, e aquelas que desenvolveram um ativismo em torno da legitimação da multiplicidade afetiva e sexual e de resistência à monogamia (Barbosa, 2011BARBOSA, Monica. 2011. Movimentos de resistência à monogamia compulsória. A luta por direitos sexuais e afetivos no século XXI. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia.; Pilão, 2017aPILÃO, Antonio. 2017a. “‘Ninguém deveria se preocupar se o parceiro transa com outra pessoa’: Uma análise da militância não-monogâmica de Regina Navarro Lins”. Toledo, PR: Tempo da Ciência, v. 24, n. 48, p.29-44.; Bornia Junior, 2018BORNIA JR, Dardo. 2018. Amar é verbo, não pronome possessivo: etnografia das relações não-monogâmicas no sul do Brasil. Tese de doutorado. UFRGS.). Dessa maneira, ambos almejaram visibilizar as suas práticas, lutar contra o preconceito e oferecer apoio a quem tem relacionamentos não-monogâmicos4 4 Inspirados em outros movimentos contemporâneos de grande repercussão pública no debate sobre gênero e sexualidade, notadamente o feminista e o LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), poliamoristas e RLis procuraram problematizar a norma monogâmica, de modo a reconhecê-la não como uma escolha ou um problema individual, mas em sua dimensão social, coercitiva e opressora. Os termos “militância” e “ativismo” foram empregados aqui indistintamente para se referir à construção de coletivos que tem como finalidade contribuir para a legitimação das relações não-monogâmicas, ainda que, como será possível observar ao longo do trabalho, apenas o primeiro apareça como categoria êmica. Para uma análise crítica e histórica sobre a difusão dos termos militância e ativismo no Brasil ver Sales (2019). . Quais distinções, hierarquias e tensões foram mobilizadas a partir das interações entre grupos e indivíduos que se reconhecem como poliamoristas ou como RLis? É possível e desejável para ambos a construção de uma política identitária que subtraia ou invisibilize as suas diferenças e disputas em prol da categoria “não-monogamia”?

Por meio de uma “cartografia das controvérsias” (Venturini, 2010VENTURINI, Tommaso. 2010. “Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory”. Public Understanding of Science, Vol. 19 (3): p.258-273.), pretendo revelar as tensões formadoras do ativismo não-monogâmico, evidenciando a pluralidade de conflitos e de opiniões divergentes, de modo que os envolvidos além de concordarem em seu desacordo, não conseguem ignorar um ao outro (Venturini, 2010: 261VENTURINI, Tommaso. 2010. “Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory”. Public Understanding of Science, Vol. 19 (3): p.258-273.). A controvérsia se refere à constituição de sujeitos políticos e a emergência de um movimento social (Taylor, 2000TAYLOR, Verta. 2000. “Mobilizing for Change in a Social Movement Society”. Contemporary Sociology. Vol.29(1), p. 219-230.) que transgride e desafia valores, instituições e estruturas sociais, de forma a atuar contra um adversário compartilhado (Gamson, 1999 apud Taylor, 2000: 222TAYLOR, Verta. 2000. “Mobilizing for Change in a Social Movement Society”. Contemporary Sociology. Vol.29(1), p. 219-230.), no caso, a norma monogâmica.

A opção por analisar a relação entre poliamoristas e RLis se deve ao papel de destaque que ela desempenha para eles, de forma a mobilizar inúmeras publicações, discussões on-line e em encontros off-line5 5 Sigo uma tendência, cara a antropologia (Miller & Slater, 2004; Rifiotis, 2016; Hine, 2017, entre outros), que recusa tomar a distinção “virtual” e “real” como um ponto de partida metodológico. Nesse sentido, múltiplas são as formas pelas quais os sujeitos articulam aquilo que acontece nas redes sociais e fora delas, não existindo uma fronteira estável e instransponível entre elas. No contexto desta pesquisa, a ideia de um continuum on/off line (Beleli, 2015) é pertinente para aludir a maneira como ideias, relações, emoções e conflitos em torno da não-monogamia não se limitam a um desses eixos, entrelaçando-se. . Assim, além de gerarem conflitos, são fontes importantes para a elaboração de identidades individuais e coletivas. Para uma compreensão mais pormenorizada das experiências e discursos de RLis e poliamoristas brasileiros sobre amor, sexualidade e monogamia, sugiro a leitura de outras produções indicadas ao longo do artigo e do recém-publicado dossiê “Afetos, Políticas e Sexualidades não-monogâmicas” (Pilão et al., 2021PILÃO, Antonio et al. 2021. “Apresentação dossiê Afetos, políticas e sexualidades não-monogâmicas”. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, MG, v.16, n.3, p. 8-15.).

Este trabalho parte da pesquisa construída durante o mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ), entre os anos de 2011 e 2017. A investigação foi conduzida a partir da análise de publicações em sites e em grupos on-line dedicados ao poliamor e às relações livres6 6 Entre as páginas analisadas: http://Poliamorbrasil.org/ e http://relacoeslivres.com.br/. Entre os grupos de discussão: a comunidade “Poliamor Brasil”, na rede de relacionamentos Orkut e os grupos no Facebook: “Pratique Poliamor Brasil” e “Relações Livres”. Mais informações estão disponíveis em Pilão (2012b, 2017b). . Foram utilizadas ainda nove entrevistas em profundidade com organizadores da Rede Pratique Poliamor Brasil e da Rede Relações Livres7 7 As entrevistas foram realizadas por mim e tiveram roteiro semi-estruturado, com duração de uma a quatro horas. Cinco delas foram feitas com poliamoristas e quatro com RLis. Mais informações sobre os entrevistados podem ser consultadas em Pilão (2012b, 2017b). . Também auxiliaram no desenvolvimento da minha visão sobre o tema as observações e conversas, realizadas desde 2011, com os interlocutores em eventos não-monogâmicos (reuniões, debates, rodas de apoio, festas etc).

O artigo está estruturado em três partes. Na primeira, apresento sinteticamente como se deu a emergência do ativismo não-monogâmico no Brasil. Em seguida, analiso como RLis e poliamoristas percebem suas fronteiras e interseções. Por fim, abordo os esforços e os desafios no sentido de formar em conjunto um movimento que rompa com a sua fragmentação e potencialize politicamente narrativas sobre alternativas às relações monogâmicas.

A formação de redes de militância não-monogâmica no Brasil

Em maio de 2004, foi criada a comunidade “Poliamor Brasil” no Orkut8 8 O Orkut foi uma rede social criada em 2004 e extinta em 2014. No Brasil era a mais popular, totalizando 54 milhões de usuários (Roncolato e Peralva, 2011). que foi o principal veículo de comunicação entre poliamoristas brasileiros até 2011, totalizando 1.791 membros. Nesse ano foi construída a Rede Pratique Poliamor Brasil (RPPB) e um grupo homônimo no Facebook9 9 Embora tenha se tornado, em 2012, o grupo mais relevante, a partir de 2013, com a multiplicação dos grupos no Facebook, deixou de ser o mais ativo e numeroso. . O objetivo da RPPB era transformar o poliamor em um movimento social, de modo a não restringi-lo ao âmbito privado, criando “uma rede de apoio, conhecimento e militância” 10 10 É importante destacar que o conceito de poliamor jamais esteve restrito à RPPB, ou ao eixo Rio de Janeiro e São Paulo, de modo que outros grupos on-line integraram poliamoristas de diferentes regiões do país, mas sem ter a militância em prol do poliamor como eixo central. . Assim, seria possível aumentar a visibilidade do poliamor, romper com os seus significados negativos e estimular outras pessoas a adotarem esse modelo de relação (Pilão, 2017cPILÃO, Antonio. 2017c. “Algumas considerações acerca do trabalho de campo numa pesquisa sobre o poliamor no Brasil”. ComCiência (UNICAMP), Dossiê 185, p. 01-08.). Entre 2011 e 2012, ela esteve dividida em duas coordenações, uma no Rio de Janeiro e outra em São Paulo. O intuito de expansão para outros estados não se concretizou, havendo um declínio dessa organização nos anos seguintes. Até 2017, apenas o grupo do Rio de Janeiro se manteve ativo, ainda que intercalando momentos de maior e menor regularidade de atividades11 11 Pilão e Goldenberg (2012) mostram haver divergências a respeito da elaboração de uma “política identitária” em torno do poliamor, de modo a ser possível reconhecer posturas diferentes da RPPB, ou seja, mais “privatistas”, focadas na resolução de problemas práticos dos relacionamentos e que desvalorizam a construção de uma identidade coletiva. .

Uma das iniciativas de membros da rede foi procurar suporte jurídico para o reconhecimento das “uniões poliafetivas”, isso é, o registro de união estável envolvendo três ou mais pessoas. A primeira delas foi lavrada no dia 13 de fevereiro de 2012, no Tabelionato de Notas de Tupã (São Paulo), contribuindo decisivamente para a popularização do termo poliamor no país (Pilão, 2021aPILÃO, Antonio. 2021a. “Normas em movimento: monogamia e poliamor no contexto jurídico brasileiro”. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, MG, v.16, n.3, p.103-115.). Com a repercussão gerada, o número de matérias jornalísticas, discussões acadêmicas e em movimentos sociais se expandiu significativamente (Pilão, 2017cPILÃO, Antonio. 2017c. “Algumas considerações acerca do trabalho de campo numa pesquisa sobre o poliamor no Brasil”. ComCiência (UNICAMP), Dossiê 185, p. 01-08.). Como consequência, um “poliencontro”, promovido por coordenadores da Rede Pratique Poliamor RJ (24.08.2014), divulgado pela mídia (Vanini, 2014VANINI, Eduardo. 2014. “Encontro sobre poliamor debate relações não monogâmicas no Rio”. O Globo. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/encontro-sobre-poliamor-debate-relacoes-nao-monogamicas-no-rio-13677221 (21.08.2014) [Último acesso em 20.04.2022].
https://oglobo.globo.com/sociedade/encon...
), contou com mais de duzentas pessoas, número bastante superior ao dos encontros realizados em anos anteriores.

A criação da Rede Relações Livres antecedeu a RPPB, remetendo à fusão de dois grupos interessados em relações não-monogâmicas em Porto Alegre. Um deles, chamado “Família e Feminismo”, havia se originado no Primeiro Fórum Social Mundial, em 2001. Já o outro grupo integrava o Movimento Esquerda Socialista (MES) que sairia do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2004, para participar da fundação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). O contato entre eles ocorreria, na internet, no final de 2005, e as atividades conjuntas caminharam no sentido de obter informações sobre as alternativas de modelos de relacionamento conjugal existentes, como: casamento aberto, swing e poliamor. A conclusão de que nenhum deles os contemplava levaria, em 2006, à criação de um novo termo.

Nos três primeiros anos, as reuniões do grupo foram presenciais e regulares, concentradas em debates teóricos como a definição de “relações livres”, da monogamia e de outras formas de não-monogamia. Marx e Engels eram referências centrais (Barbosa, 2011BARBOSA, Monica. 2011. Movimentos de resistência à monogamia compulsória. A luta por direitos sexuais e afetivos no século XXI. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia.; Bornia Junior, 2018BORNIA JR, Dardo. 2018. Amar é verbo, não pronome possessivo: etnografia das relações não-monogâmicas no sul do Brasil. Tese de doutorado. UFRGS.), de modo que os fundadores do grupo se reconheciam como “materialistas” e viam o casamento monogâmico como uma instituição social conectada à formação da propriedade privada e à distribuição da herança. Além de atividades internas, o grupo publicou textos on-line e promoveu inúmeros eventos públicos, como panfletagens, palestras e festas.

Essas ações favoreceram a expansão do termo, levando, a partir de 2009, a relações livres a deixar de ser um grupo presencial para se tornar “Rede Relações Livres”. Acreditava-se que as divergências teóricas e políticas oriundas do crescimento do movimento seriam sanadas com a criação da rede, mantendo o protagonismo do grupo de Porto Alegre, mas aceitando a pluralidade de posições12 12 Segundo um interlocutor de Barbosa (2011: 76): “o grupo era como um partido, a pessoa era ou não era RLI [...]”, já como rede seria mais “fluido”, incluindo não militantes e pessoas que queriam praticar ou conhecer o movimento. . No começo, uma integração entre as organizações regionais (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Salvador etc) foi almejada. Para isso, RLis de Porto Alegre viajaram para essas e outras cidades a fim de auxiliarem na formação local.

Os conflitos internos e entre os grupos regionais contribuíram para a dissolução de vários deles em 2014. No ano seguinte, o do Rio de Janeiro foi o único a manter atividades regulares. Em Porto Alegre, o agravamento de desavenças levaria à separação do grupo fundador. Alguns organizadores declararam, em entrevistas, que o motivo foi a disputa por liderança, outros atribuíram a discordâncias relacionadas ao feminismo13 13 Em outro momento (Pilão, 2019), analisei discursos feministas que afirmam que as relações livres e o poliamor são formas de privilégio masculino. Tais críticas contribuíram para uma crescente desconfiança das mulheres em relação aos homens não-monogâmicos. A esse respeito, Bornia Junior (2018) afirma que os RLis mais antigos e identificados, sobretudo, com a pauta não-monogâmica divergiam do grupo de mulheres que submeteram essa pauta à luta feminista e denunciaram práticas machistas no meio. . Desde então, algumas atividades têm sido realizadas por parte do grupo14 14 Para representarem um novo coletivo, ao invés da antiga denominação RLi, optaram por RLi-E, tratando aquela categoria como uma expressão genérica de uma forma de relação afetivo-sexual. A nova nomenclatura permitiria promover uma diferenciação em relação a RLis não vinculados ao grupo, ou seja, aqueles que não seriam RLi-E. A opção pelo emprego do aditivo “E” teria o intuito de fazer alusão à busca de superarem as oposições: amor x amizade; amor x sexo, almejando combiná-las em suas relações. , como a publicação de um livro sobre RLi (Rodrigues et al., 2017RODRIGUES, Marco et al. 2017. Relações livres: uma introdução. Porto Alegre: Editora Regina Faria, Coleção RLi.) e a criação de um espaço de artes e estudos em Porto Alegre (Atelier 130) (Bornia Junior, 2018). Em função da epidemia do novo Coronavírus (Covid-19), ao longo dos anos de 2020 e 2021, as atividades presenciais foram suspensas, restringindo-se a debates on-line.

A controvérsia entre RLis e poliamoristas

O esforço de RLis de afirmarem a sua autonomia identitária e ideológica pode ser compreendido levando em consideração a história do movimento. Para criar uma terminologia, a RLi tomou conhecimento do conceito de poliamor para então recusá-lo. Variadas são as estratégias de comparação empregadas por RLis em relação ao poliamor, que como mostrei é uma categoria mais antiga e de circulação internacional.

O empenho na construção de sua singularidade é notável, mas tensa na medida em que para isso é preciso determinar o que é o poliamor. Como será possível observar, os argumentos utilizados para constituir essa separação são, normalmente, rejeitados pelos poliamoristas, o que gera um paradoxo. Enquanto os RLis necessitam se diferenciar para terem existência própria, para os poliamoristas, aceitar a identidade RLi passa por reconhecer uma definição do poliamor com a qual não concordam15 15 Apesar do processo de homogeneização e de estereotipagem de “outros” não ser uma particularidade da construção identitária RLi, é necessário destacar que a distinção RLi/poliamor é mais fundamental para os primeiros do que para os segundos. Dessa maneira, poliamoristas brasileiros se empenham mais na delimitação de fronteiras entre o poliamor, a monogamia e não-monogamias vistas como não amorosas e/ou promíscuas (Pilão, 2013; Silvério, 2018). .

Adiante, analiso cada uma das três principais formas de distinção elaboradas por RLis e como elas foram contestadas por poliamoristas.

Polifidelidade

Um dos meios primordiais com que RLis se particularizam em relação aos poliamoristas consiste na declaração de que o poliamor presume polifidelidade:

Poliamor é a possibilidade de se ter duas ou mais relações afetivo-sexuais onde esteja incluída a cláusula de “polifidelidade”; ou seja, o dever de exclusividade sexual aos parceiros reconhecidos e com direitos de ingerência nas possibilidades e opções de relação um do outro (Rede Relações Livres, 2011REDE RELAÇÕES LIVRES. 2011. “O que é poliamor?”. Disponível em: Disponível em: https://rederelacoeslivres.wordpress.com/2011/05/03/o-que-e-poliamor/ (03.05.2011) [Último acesso no dia 20.04.2022].
https://rederelacoeslivres.wordpress.com...
).

A definição do poliamor que inclui tanto arranjos “abertos” como “fechados” é desconsiderada por RLis ou então recusada como um defeito conceitual. Ao procurarem restringir o poliamor à polifidelidade visam estabilizar a demarcação de fronteiras, impedindo que a definição de poliamor englobe outras formas de não-monogamia. Como, em seu conjunto, a RLi rejeita a polifidelidade, não aceitaria estar contida no “guarda-chuva” poliamorista, incorporada a um termo que não obrigatoriamente presume “liberdade” amorosa e sexual irrestrita e inegociável.

É necessário ressaltar que a polifidelidade é constantemente reprovada por poliamoristas brasileiros16 16 A associação do poliamor à polifidelidade faz sentido se considerarmos que, no momento de criação das relações livres, a palavra poliamor ainda era pouco difundida no país. De fato, nas formulações sobre o tema nos Estados Unidos ela tem maior relevância do que no contexto brasileiro (Pilão, 2015). , por conta de ser vista como uma extensão da monogamia, portanto, menos digna e libertária do que as relações poliamorosas abertas (Pilão, 2013PILÃO, Antonio. 2013. “Reflexões sócio-antropológicas sobre Poliamor e amor romântico”. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, v. 12, n.35, p. 505-524.). Essa crítica é tão recorrente que uma poliamorista adepta da polifidelidade decidiu sair de um grupo da “Pratique Poliamor” em função dos seguidos comentários negativos sobre o seu relacionamento: “não posso me sentir confortável dentro do conceito de polifidelidade pq isso é absurdo aos olhos da maioria dos praticantes do poliamor (...) me retiro do grupo e desejo, por mais irônico que seja, mais amor e compreensão na vida de vocês.”

É importante destacar o empenho de RLis em manterem essa definição do poliamor mesmo quando poliamoristas continuamente a rechaçam e até depreciam aqueles que optam pela polifidelidade. Acredito que a busca está em “consertar” as diferenças, estabelecendo fronteiras precisas e estáveis entre conceitos que não são facilmente distinguíveis. Para afirmarem a sua autonomia, os RLis constroem oposições nas quais o poliamor assume um lugar de outro total, sem ambiguidades, a partir de uma classificação segura e inequívoca, pautada na inconciliação entre a autonomia afetivo-sexual (RLi) e a polifidelidade (poliamor).

Esse processo de distinção pode ser proveitosamente pensado a partir do conceito de abjeção (Miskolci, 2012MISKOLCI, Richard. 2012.Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte, Autêntica.), já que há uma tentativa de criar dessemelhança ao atribuir ao outro o que é considerado pelo grupo como impuro, incorreto ou anormal. Na perspectiva RLi o ser abjeto por excelência é a monogamia, de modo que aproximá-la do poliamor implica em afastá-la de si. O poliamor, em função de incorporar a polifidelidade e consequentemente se conectar à monogamia, é temido e rejeitado, já que a sua impureza e hibridização é percebida como potencialmente contaminante.

A tentativa de RLis de estabelecer o que é o poliamor se choca com a maneira como poliamoristas definem a sua própria prática. O que é uma contradição para um RLi, ou seja, englobar sob um mesmo termo o combate à monogamia e à defesa de um certo tipo de controle sobre os parceiros (polifidelidade), faz parte da multiplicidade de possibilidades conjugais poliamorosas e expressa a tensão entre a ênfase na liberdade ou na mutualidade, característica da ideologia poliamorista (Pilão, 2015PILÃO, Antonio. 2015. “Entre a liberdade e a igualdade: princípios e impasses da ideologia poliamorista”.Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 44, p. 391-422. ).

O esforço em abarcar opostos (restrição e autonomia; reciprocidade e espontaneidade), é interpretado por RLis como um meio dos poliamoristas não tomarem uma posição clara de que lado estão. Já que os poliamoristas toleram essas ambiguidades, ao invés de optarem coletivamente por um dos extremos, os RLis tentariam resolver o dilema, sustentando que o poliamor é uma forma de enfrentar à monogamia que não rompe com a sua lógica, já que não é efetivamente livre, concedendo aos parceiros o poder de controlá-los.

Liberdade

A visão de que poliamor presume polifidelidade, importante nas formulações mais antigas da RLi, foi lentamente modificada, muito por causa da recusa de poliamoristas em aceitarem essa compreensão restritiva do poliamor. Dessa maneira, ainda que RLis tenham passado a se conformar com a ideia de que o poliamor não presume polifidelidade, reforçaram outros aspectos de diferenciação. O principal deles se refere a afirmação de que RLis não aceitariam nenhuma “ingerência” dos parceiros sobre a sua autonomia, de modo a não seguirem “obrigações morais” ou “exercerem direitos” sobre eles:

O único imperativo de nossos relacionamentos é o desejo (sexual e/ou afetivo) e, assim, não há regras ou acordos de nenhum tipo (...) Não dividimos nem subtraímos nada de ninguém, não exigimos que parceirxs nos completem ou deem conta de nossas angústias. (Amores Livres, 2013AMORES LIVRES. 2013. “Diferenças entre Poliamor e Relações Livres - delineando algunsconceitos”. Disponível em: Disponível em: https://amoreslivres.wordpress.com/2013/07/24/diferencas-entre-poliamor-e-relacoes-livres-delineando-alguns-conceitos / (24.07.2013) [Último acesso em 21.04.2022].
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).

Uma organizadora da RLi acrescenta que “A luta do Poliamor é a multiplicidade afetiva, a luta da RLi é a liberdade sexual e afetiva. Pode haver multiplicidade afetiva sem liberdade e pode haver liberdade sem multiplicidade [afetiva]. Não são a mesma coisa.” Embora essa caracterização seja mais aceita no meio poliamorista, também é alvo de discordâncias. Isso se explica pelo fato de existirem poliamoristas que assim como os RLis defendem uma total autonomia individual, opondo-se à construção de acordos e restrições (Pilão, 2015PILÃO, Antonio. 2015. “Entre a liberdade e a igualdade: princípios e impasses da ideologia poliamorista”.Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 44, p. 391-422. ). Nesse sentido, uma coordenadora da Rede Pratique Poliamor Brasil, igualmente contrariada por essa diferenciação, reforça a tese de que a RLi é somente uma maneira de praticar o poliamor, estando, portanto, contida nele:

Colocam como se o POLIAMOR fosse algo restritivo e cheio de regrinhas X, Y e Z....quando NÃO: Poliamor é um movimento social com um leque de possibilidades, de arranjos, de modos de se relacionar, é tão amplo que nele cabem tanto o poli fechado quanto o RLI.

A ideia de que as relações livres são apenas uma forma de poliamor não raramente vem acompanhada da afirmação de que se trata de uma versão ruim. Entre os poliamoristas é considerado que a RLi é uma prática excessivamente individualista, egoísta e despreocupada com os parceiros. Ter uma relação pautada em acordos é então visto não só como possibilidade, mas como uma questão ética fundamental17 17 A esse respeito ver Klesse (2006, 2011); Haritaworn et al. (2006) e Wosick-Correa (2010). . Segundo a coordenadora citada acima, as relações livres seriam marcadas pela obrigatoriedade de que o indivíduo e a autonomia sejam priorizados sobre os parceiros e o companheirismo, o que os tornaria um gênero de não-monogamia “neoliberal”.

Essa avaliação reaparece em uma publicação em que se considera que a valorização da autonomia individual entre RLis afastaria coletivismos e atitudes de preocupação com os outros. Dessa forma, a liberdade almejada dependeria de uma autonomia emocional e financeira que excluiria as pessoas mais vulneráveis18 18 Essa crítica também é recorrente entre feministas (Pilão, 2019), transexuais e não-heterossexuais (Bornia Junior, 2018). :

A exigência de que as pessoas sejam autônomas economicamente - para dizer o mínimo - exclui as camadas menos privilegiadas economicamente da classe trabalhadora, tornando o RLi acessível somente à classe média. [...] Por isso, o modo de vida RLi é, no mínimo, uma porta aberta para a cooptação capitalista, por ele estar pronto para servir o modo de vida mercantil que vivemos nesses aspectos. Ele segue o direcionamento político de fortalecimento do privado em detrimento do público. Caminho este que já estamos percorrendo com bastante velocidade, infelizmente, com o neoliberalismo. (Burden, 2014BURDEN, Bruno. 2014. “RLi: uma não-monogamia neoliberal?” Disponível em:Disponível em:http://makes0ap.blogspot.com/2014/02/rli-uma-nao-monogamia-neoliberal.html (03.02.2014) [Último acesso no dia 21.04.2022].
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).

A conexão entre liberdade e neoliberalismo e também o crescimento de leituras feministas que atribuem à não-monogamia a opressão das mulheres (Pilão, 2019PILÃO, Antonio. 2019. “Quando o amor é o problema: feminismo e poliamor em debate”. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, v. 27, n. 3, e55097.) fez com que muitos RLis passassem a reconhecer a liberdade como uma noção problemática. Diante dessas críticas, percebi uma mudança na maneira de se referirem à questão dos acordos e negociações nos relacionamentos, de modo a afirmarem mais constantemente que a liberdade não pode ser exercida sem “responsabilidade afetiva19 19 Essa preocupação, que se intensifica a partir de 2015, pode ser observada em Amores Livres (2016). ”.

Em entrevista, um dos organizadores do grupo RLi de Porto Alegre disse considerar o conceito de liberdade “duvidoso” por possibilitar uma interpretação de oposição ao cuidado. Ele explica que essa ideia é resultado do crescimento da RLi e de sua descontextualização, saindo dos círculos restritos da esquerda, onde a liberdade pressuporia igualdade, para atingir um público maior, no qual a liberdade ganharia esse sentido “liberal”, de descompromisso, de “cada um por si”. Nessa defesa, procura-se argumentar que a proposta das relações livres é originalmente anticapitalista e anti-opressões, já que a liberdade desejada para si seria ampliada aos parceiros: “Se querer livre é também querer livre aos outros”, declara outra RLi.

Dessa maneira, a acusação de que os RLis são “neoliberais” é rebatida com a afirmação de que os poliamoristas são “apolíticos”20 20 De fato, há poliamoristas que defendem a “privatização” do debate sobre não-monogamia, não reconhecendo a sua dimensão política e a necessidade de criticar estruturas sociais ou combater opressões. Apesar disso, outras posições caminham no sentido de articular a monogamia ao capitalismo, ao patriarcado e à heteronormatividade. (Wilkinson, 2010; Pilão e Goldenberg, 2012). : “o Poli busca uma saída individual para a questão da monogamia, sem questionar que não existe fim da monogamia dentro dos marcos do capitalismo, sem lutar contra as opressões” (Amores Livres, 2013AMORES LIVRES. 2013. “Diferenças entre Poliamor e Relações Livres - delineando algunsconceitos”. Disponível em: Disponível em: https://amoreslivres.wordpress.com/2013/07/24/diferencas-entre-poliamor-e-relacoes-livres-delineando-alguns-conceitos / (24.07.2013) [Último acesso em 21.04.2022].
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). Ao considerar a RLi como um movimento anticapitalista e o poliamor não, atribui-se a ele a perpetuação das desigualdades sociais, enquanto “a proposta das relações livres, ao contrário de todas as demais, é política em primeiro lugar, derivando diretamente da oposição ao patriarcado e à propriedade privada” (Amores Livres, 2014AMORES LIVRES. 2014. “Não-monogamia: formatos vs.Ideologias”. Disponível em: Disponível em: https://amoreslivres.wordpress.com/2014/11/02/nao-monogamia-formatos-vs-ideologias / (02.11.2014) [Último acesso em 21.04.2022].
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)21 21 Apesar disso, Bornia Junior (2018) aponta para a perpetuação de assimetrias no meio, predominando pessoas cisgêneras, brancas, jovens, com curso superior e que mantém relações prioritariamente heterossexuais; tendências essas que também pude observar entre poliamoristas (Pilão, 2012b). . Portanto, ambos procuram se definir politicamente como “de esquerda” e ao caracterizarem o outro como “capitalista”, “neoliberal”, “apolítico” ou “opressor”, levariam a sua deslegitimação, rechaçando essas críticas de si.

Amor

Outro elemento de distinção das relações livres se refere ao desacordo do uso do amor como meio de legitimação da sexualidade e da conjugalidade. Os RLis alegam poder manter relações com diversos graus de envolvimento emocional, o que incluiria como possibilidade a ausência desse sentimento. Desse modo, uma fundadora do grupo do Rio Grande do Sul defende que: “liberdade sem amor não é um marcador poliamoroso e amor sem liberdade não é um marcador RLi.” É interessante observar que quando consideram que o poliamor rompe com a monogamia amorosa, mas não completamente com a sexual, os RLis sustentam que o poliamor está contido na RLi:

RLis não precisam do amor pra justificar suas relações. Nesse sentido o título “poliamor” somente compreende parte do que é ser RLi (...) Sexo e amor podem andar juntos ou separados em uma mesma relação; um RLi possui liberdade em ambos (...) Relação Livre é quando a pessoa mantém autonomia e plena liberdade pessoal seja lá qual for a relação sexual/afetiva e em qualquer circunstância de estabilidade. (Rede Relações Livres [s.d]REDE RELAÇÕES LIVRES. [s.d]. “Essencial”. Disponível em: Disponível em: https://rederelacoeslivres.wordpress.com/essencial / [Último acesso no dia 20.04.2022].
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).

Nessa leitura, o poliamor apenas libertaria do controle monogâmico o amor, mas manteria restrições sobre a livre expressão da sexualidade, já que o sexo só seria bem-visto e aceito ao ser conectado a ele22 22 Essa crítica ao poliamor é amplamente compartilhada em pesquisas sobre o tema (entre outros, Klesse, 2006; Cardoso, 2010; Pilão, 2013, 2021b). . Assim, o englobamento do poliamor que era realizado, enquanto termo genérico, sobre as relações livres, como modelo relacional específico, é invertido. Nessa perspectiva, as relações livres são bem mais abrangentes do que as poliamoristas, por não se limitarem ao amor, apesar de poder incluí-lo. Ser RLi, nessa ótica, é ser poliamorista, mas ir além.

Como tenho mostrado, o esforço de distinção provém de RLis, enquanto os poliamoristas questionam os critérios utilizados por eles: “É mt engraçado a cada argumento que damos dizendo o pq poliamor não é o que eles definem, eles inventam uma nova definição para ‘alocar’ o poliamor.” Outro comentário reforça o incômodo:“e pior, dizem que somos coisas que não somos”. A afirmação de que se uma relação não tem amor não é poliamorosa é julgada uma compreensão bastante rasa do significado do poliamor. A justificativa empregada por poliamoristas é a de que essa visão não leva em consideração que o que diferencia o poliamor de outras formas de não-monogamia é que o amor por mais de uma pessoa é igualmente possível, não implicando em obrigação de amar várias.

Se a distinção da monogamia tende a ser mais simples, uma vez que os dois grupos concebem uma oposição plena em relação a ela, a definição de fronteiras entre RLis e poliamoristas é mais tensa, na medida em que a proximidade entre os conceitos demanda um maior esforço em sua elaboração. Talvez seja possível reconhecer nesse processo de distinção o que Freud (1995FREUD, Sigmund. 1995. “O mal estar na civilização”. In: Obras psicológicas completas. Trad. José Octávio de A. Abreu . Rio de Janeiro: Imago, v. XXI.) chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”, uma ação de deslocamento da hostilidade interna para a alteridade mais próxima, percebida como uma ameaça. Com isso, atenuam-se as críticas no interior de cada grupo, facilitando a sua coesão, de forma que as hostilidades retornam mais severas nas relações intergrupais.

A organização de um movimento não-monogâmico no Brasil

Os confrontos e divergências permanentes em grupos não-monogâmicos trazem também a aspiração e defesa de que se esqueçam as contradições, organizando-se em conjunto: “Por mim, geral se unia e militava junto”; “Eu já falei várias vezes que não gosto dessa divisão em igrejinhas não-monogâmicas disputando fiéis. Entendo que se busque uma diferenciação conceitual, mas acho que a militância deveria ser única”; “Se vc olhar os grupos de poliamor e rli vai ver q são as mesmas pessoas! Então pq não admitir que tá todo mundo junto pela não monogamia, deixar os rótulos de lado e ir militar junto?”.

Não é incomum que a busca de RLis por afirmarem a sua autonomia seja vista por poliamoristas como “separatismo”, “sectarismo”, ou uma maneira de desunir o movimento não-monogâmico e difamar o poliamor. Essa posição é sustentada por um coordenador da Rede Pratique Poliamor que considera “toda essa necessidade de auto-afirmação uma coisa egoísta, mesquinha e irracional”. Apesar de declarar a sua descrença sobre a viabilidade de organização conjunta, não foram poucas as iniciativas nesse sentido.

O principal projeto de aproximação foi a criação dos Encontros das Manifestações (ou Culturas) Não-Monogâmicas, cuja primeira edição foi sediada em Porto Alegre, em junho de 2011. Esse encontro foi precedido por uma reunião organizativa ocorrida em fevereiro do mesmo ano, em São Paulo, que contou com doze poliamoristas e uma das principais lideranças da RLi, que veio de Porto Alegre. No site deste grupo foram divulgadas algumas das propostas e resoluções relativas ao encontro:

(...) Construção de uma identidade não-mono geral e que nossas diferenças como correntes particulares poderiam permanecer mas sem ser destrutiva de uma unidade geral. Para nós já era claro que o tema “correntes” não deveria iniciar nossa relação. (...) Propusemos uma sequência cumulativa de acordos que cuidava por evitar a precipitação de temas que opunham as correntes não monogâmicas (como a disputa das conceituações RLi x Poli). E propúnhamos uma acumulação lógica: 1) Nosso primeiro debate deveria ser sobre o que centralmente nos opomos de conjunto: monogamia (para 2011); 2) Depois disto caberia fazer um consistente balanço da situação atual da monogamia (para 2012); 3) E só depois debater quais são as formas alternativas à monogamia (para 2013) (...) Para nossa felicidade, observem só: Sabem qual foi o centro temático da 1ª Reunião Nacional não monogâmica (2011)? “O que é monogamia - visões” (...) [grifos do original] (Rede Relações Livres, 2012aREDE RELAÇÕES LIVRES. 2012a. “Poliamor x Relações Livres (RLi)”. Disponível em: Disponível em: https://rederelacoeslivres.wordpress.com/2012/08/14/poli-x-rli/ (14.08.2012) [Último acesso em 20.04.2022].
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).

A iniciativa e a pauta de discussões foram propostas pela Rede Relações Livres. Esse protagonismo foi acompanhado por tensões, uma vez que os poliamoristas se sentiam em segundo plano e os RLis se ressentiam por eles desvalorizarem os encontros. Estes ainda criticaram aqueles por fugirem do tema planejado: “Lamentamos que os participantes da primeira reunião nacional tenham vindo com fome de ‘correntes’; e correspondentemente despreparados sobre a pauta acordada, ‘monogamia’” (Rede Relações Livres, 2012bREDE RELAÇÕES LIVRES. 2012b. “Reunião Nacional Não-Mono”. Disponível em: Disponível em: https://rederelacoeslivres.wordpress.com/2012/12/27/4440 / (27.12.2012) [Último acesso em 20.04.2022].
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). O encontro que teria sido gerado visando a consolidação da identidade não-monogâmica parece ter produzido o efeito contrário, aumentando as rivalidades. Portanto, já em 2011, com a aproximação entre os grupos, era evidente que havia uma possibilidade de discórdias e conflitos em torno de suas distinções.

A diferença de postura em relação aos encontros pode ser compreendida levando em consideração a dinâmica de funcionamento de cada um deles. Nesse período, as relações livres se organizavam no Rio Grande do Sul como um movimento presencial, no qual todos os membros se conheciam e tinham acúmulo de posições políticas e teóricas. Já os poliamoristas estavam mais ligados às redes sociais, interagindo com centenas de pessoas de diferentes regiões do país e sem uma estrutura centralizada que permitisse falar em nome dos outros. Inspirados pela organização coletiva da RLi criaram, em 2011, a sua própria associação, a já mencionada RPPB, favorecendo o embate com a RLi e a disputa pelo protagonismo não-monogâmico.

O encontro seguinte foi realizado no Rio de Janeiro, em novembro de 201223 23 A programação e as resoluções do segundo encontro estão disponíveis em Rede Relações Livres (2012a). e caminhou no sentido de ruptura e insucesso na construção de uma militância conjunta e de uma unidade identitária entre RLis e poliamoristas. O evento foi promovido apenas pelos primeiros, já que os segundos desistiram de fazer parte da organização, argumentando não serem consultados das decisões concernentes ao encontro. Os RLis, por sua vez, questionaram a falta de responsabilidade e envolvimento da RPPB.

Durante o período de realização dos dois Encontros das Manifestações Não-Monogâmicas (2011 e 2012), as atividades presenciais do poliamor eram mais regulares no Rio de Janeiro e em São Paulo, enquanto as da RLi predominavam no Rio Grande do Sul. Nos anos seguintes, com a maior nacionalização de ambas, as interações e as tensões entre os grupos se acentuaram.

No Rio de Janeiro, um número significativo de pessoas passou a comparecer em eventos tanto de um grupo quanto de outro. As convergências geradas entre eles levaram a uma nova tentativa de unidade em 2015, dessa vez, restrita ao estado. A aproximação se intensificou quando um fundador da RPPB começou a fazer parte da organização da RLi (Machado, 2015MACHADO, Rafael. 2015. “Por que me tornei RLi”. Disponível em: Disponível em: http://cria-indesejada.blogspot.com.es/2015/03/por-que-me-tornei-rli.html (06.03.2015) [último acesso em 20.04.2022].
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). Ele buscou, sem sucesso, que as atividades previamente desenvolvidas pela RLi passassem a ser consideradas conjuntas, em vista da sua participação, o que gerou atrito, resistência e um novo afastamento.

É importante salientar que mesmo que o poliamor fosse um conceito mais conhecido, as relações livres ganharam grande adesão identitária e, no Rio de Janeiro, em 2015, haviam se constituído como um grupo sólido. Esse crescimento despertava preocupação entre poliamoristas, como se observa em um comentário em um grupo on-line dedicado ao poliamor, em que se afirma que um grande número de pessoas “está com uma ideia completamente desinformada e distorcida sobre o que é poliamor (...) Ou a militância está fraca demais, ou a contra-militância está mais forte.”

A busca pela unificação dos eventos não-monogâmicos no Rio de Janeiro talvez possa ser compreendida como uma das tentativas de poliamoristas conterem o crescimento das relações livres e, subsequentemente, das críticas ao poliamor. Com isso, a identidade RLi seria enfraquecida, passando a ser invisibilizada ou a estar contida na poliamorista. Acredito que declarar que ambas são iguais, ou que o termo poliamor engloba o de relações livres, são iniciativas que visam o convencimento de que a expressão “relações livres” é desnecessária e improdutiva na luta contra a monogamia.

Desse modo, a aproximação entre os grupos não conduziu somente ao propósito enunciado, isto é, de fortalecimento de seus elos e de articulação do ativismo não-monogâmico. Nota-se nesse processo o intuito de apagamento da RLi e o empenho destes em afirmarem a sua singularidade e superioridade como ideologia e modelo relacional.

Considerações finais

A antropologia, desde a sua institucionalização no século XIX, tem abordado diferentes formas de família e de casamento e apontado para o processo de consolidação da monogamia no mundo ocidental moderno (John Mclennan, Lewis Morgan, Robert Briffault, entre outros). Manifestando oposição à monogamia, um conjunto diverso de conceitos tem sido mobilizado, entre os mais antigos, “amor livre” e, entre os mais difundidos na contemporaneidade, “relacionamento aberto”.

Como tais terminologias, o poliamor e as relações livres categorizam práticas e sentimentos, mas vão além, classificando também pessoas. Dessa maneira, os termos “RLi” e “poliamorista” se constituem como possíveis lugares de sujeito, análogos ao ocupado pelas identidades sexuais e de gênero. Tratam-se, portanto, de poderosos mecanismos de distinção e identificação, de modo que determinados grupos constroem uma visão de si e dos outros orientada por essas categorias.

A RLi e o poliamor foram durante a pesquisa (2011-2017) os únicos grupos não-monogâmicos com defensores públicos e militâncias organizadas no Brasil. Isso implica afirmar que a arena política sobre não-monogamia no país esteve vinculada centralmente a eles. Nesse sentido, mesmo que se vissem como aliados no combate à monogamia compulsória, suas vozes disputaram hegemonia e controle do movimento não-monogâmico, procurando demonstrar deter a melhor solução para a superação da exclusividade afetivo-sexual.

É notória a tentativa de desqualificação do outro, de maneira a atribuir a si o caminho mais eficiente e politicamente engajado de resistência à monogamia. Ainda que parte das iniciativas de poliamoristas tenha sido de recusa da autonomia RLi, a considerando uma modalidade específica de poliamor, não deixaram de depreciá-la, corroborando a separação. Assim, direcionaram duras críticas ao “neoliberalismo” e a “irresponsabilidade afetiva” dos RLis, apresentando-se como superiores eticamente. Por seu turno, RLis acusaram e inferiorizaram os poliamoristas por perpetuarem princípios monogâmicos, destacando o amor, aceitando o casamento, a polifidelidade e o controle da liberdade.

Em comum, o fato de poliamoristas e RLis enfrentarem a monogamia compulsória a partir de uma premissa remoralizadora, evidenciando o anseio de construção de outras normatividades. Houve, portanto, uma aspiração à demarcação de fronteiras precisas entre os diversos arranjos conjugais, entre o bem e o mal, o puro e o impuro, atentando a uma lógica eminentemente binária. Como consequência dessa dinâmica essencialista, a manutenção de espaços de abjeção e discriminação de pessoas e práticas que fogem ao modelo preconizado pelo grupo, atribuindo qualidades irrepetíveis a si mesmos e ressaltando o que há de mais desprezível no outro. A condenação da polifidelidade e a disputa pela ênfase relacional na consensualidade ou na liberdade individual foram o sintoma mais explícito dessa cruzada moral.

Tais reflexões remetem ao que Carrara (2015CARRARA, Sérgio. 2015. “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”. Mana. Vol.21(2): p.323-45.) designa como uma “nova geografia do mal” e do “perigo sexual”, que já não tem como base de sustentação o ideal de casal monogâmico, heterossexual e reprodutivo. No “novo regime da sexualidade”, quaisquer manifestações da sexualidade consentidas e que não coloquem a si ou a terceiros em risco são vistas como dignas de pleitearem cidadania (Carrara, 2015: 332CARRARA, Sérgio. 2015. “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”. Mana. Vol.21(2): p.323-45.). Assim, os pressupostos valorizados são da liberdade e do consentimento, ressaltando os ideários de “liberação” e de “democracia” sexual. Como consequência, as críticas se voltam às práticas não consentidas e assimétricas e à ausência de prazer e excitação sexual, patologizando as “faltas” e “carências” (Ibidem: 339).

O que a controvérsia não-monogâmica parece revelar é que os ideais de liberdade e consensualidade, que marcam o “novo dispositivo da sexualidade”, mantêm entre si uma relação de tensão e até mesmo de contradição. Dessa forma, enquanto RLis tomaram a liberdade e a satisfação individual como valores primordiais, poliamoristas confrontaram esse primado a partir da defesa da responsabilidade afetiva e da necessidade de construir relações baseadas nos princípios de mutualidade e de consensualidade. Assim, a ênfase na “liberação sexual” colidiu com a busca de uma “democracia sexual”, de modo que liberdade e igualdade se mostraram conceitos antitéticos.

Gostaria de finalizar sugerindo que se a unidade política não-monogâmica foi comprometida pela tensão entre poliamoristas e RLis, essa distinção perdeu força no plano das identidades individuais, crescendo o uso da categoria comum “não-monogamia”. Os conflitos entre os grupos também contribuíram para o enfraquecimento da influência de suas redes de militância, de forma a ser perceptível uma tendência à privatização e até mesmo à despolitização do debate sobre relações não-monogâmicas no Brasil. Desse modo, observa-se, na segunda metade da década de 2010, o retraimento da associação da não-monogamia com ideologias políticas de esquerda, assim como da preocupação em optar por uma dessas terminologias (RLi ou poliamor) 24 24 Nos últimos anos, Gonçalves (2021) aponta para o surgimento no país de novos atores políticos não-monogâmicos, como a ativista Geni Nuñes e o projeto “Não-Monogamia em Foco”. Diferentemente de fundadores da RLi e da RPPB, o marxismo e a militância em partidos políticos não constituíram as influências mais destacadas, mas sim o anticolonialismo e a interseccionalidade. .

A ideia de que há um modelo de relação que expressa a verdade de si tem cedido lugar ao entendimento das práticas como mais contingentes, portanto, variáveis. A única certeza deles parece estar sobre o que não se é ou não se quer ser, qual seja, “monogâmico”. A propensão ao reconhecimento de si e dos seus relacionamentos como “não-monogâmicos”, no lugar de “poliamorista” ou “RLi”, promove uma sensação de maior autonomia e flexibilidade. Com isso, escapariam da encruzilhada poliamor versus relações livres, permitindo incorporar às suas possibilidades outras práticas sexuais, arranjos conjugais e moralidades.

Em função do enfraquecimento desses atores políticos, de suas redes de militância e identidades, parece que caminhamos para o fechamento da controvérsia entre RLis e poliamoristas. Apesar disso, os embates morais entre liberdade e responsabilidade continuam pautando os debates sobre não-monogamia, só que a partir de outras linguagens e fóruns de discussão. Em que medida a identidade não-monogâmica conseguirá, realmente, equilibrar essas tensões, apaziguando as controvérsias, é uma questão ainda em aberto.

Referências

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  • VON DER WEID, Olivia, 2015. Swing, o adultério consentido. Um estudo antropológico sobre troca de casais Rio de Janeiro: Multifoco.
  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (PDSE-CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PDJ-CNPq).
  • 2
    Nos últimos anos, a expressão “relacionamento aberto” tem sido mais utilizada do que “casamento aberto”. Alguns pesquisadores afirmam que, como o swing, o relacionamento aberto se caracteriza por um acordo do casal para estabelecer apenas outras relações sexuais e não interações afetivo-sexuais (ver Silvério, 2018SILVÉRIO, Maria. 2018. Eu, tu... ilus: poliamor e não-monogamias consensuais. Tese de doutorado. ISCTE-IUL.). Ainda assim, acredito ser necessário diferenciá-las, considerando que enquanto a prática do swing ocorre, geralmente, em ambientes fechados e voltados à prática sexual, em relacionamentos abertos os encontros “extraconjugais” podem acontecer em festas e espaços públicos, sem a mesma ênfase no contato sexual.
  • 3
    O termo polifidelidade significa a fidelidade a vários parceiros. A sua origem remete à comunidade Kerista de São Francisco (1971-1991) e o aumento de sua circulação se vincula à publicação da newsletter de Ryam Nearing (Loving More), em 1984.
  • 4
    Inspirados em outros movimentos contemporâneos de grande repercussão pública no debate sobre gênero e sexualidade, notadamente o feminista e o LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), poliamoristas e RLis procuraram problematizar a norma monogâmica, de modo a reconhecê-la não como uma escolha ou um problema individual, mas em sua dimensão social, coercitiva e opressora. Os termos “militância” e “ativismo” foram empregados aqui indistintamente para se referir à construção de coletivos que tem como finalidade contribuir para a legitimação das relações não-monogâmicas, ainda que, como será possível observar ao longo do trabalho, apenas o primeiro apareça como categoria êmica. Para uma análise crítica e histórica sobre a difusão dos termos militância e ativismo no Brasil ver Sales (2019)SALES, André. 2019. Militância e Ativismo: Cinco ensaios sobre ação coletiva e subjetividade. Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista..
  • 5
    Sigo uma tendência, cara a antropologia (Miller & Slater, 2004MILLER, Daniel; SLATER, Don. 2004. Etnografia on e off-line: cibercafés em Trinidad. Horizontes antropológicos, v. 10, n. 21, p. 41-65.; Rifiotis, 2016RIFIOTIS, Theophilos. 2016. “Etnografia no ciberespaço como “repovoamento” e explicação”. Rev. bras. Ci. Soc.[online]. v.31, n.90, p.85-98. ; Hine, 2017HINE, Christine. 2017. “From Virtual Ethnography to the Embedded, Embodied, Everyday Internet”. In: HJORT, L. et al.The Routledge Companion to Digital Ethnography. Routledge, p. 21-28., entre outros), que recusa tomar a distinção “virtual” e “real” como um ponto de partida metodológico. Nesse sentido, múltiplas são as formas pelas quais os sujeitos articulam aquilo que acontece nas redes sociais e fora delas, não existindo uma fronteira estável e instransponível entre elas. No contexto desta pesquisa, a ideia de um continuum on/off line (Beleli, 2015BELELI, Iara. 2015. “O imperativo das imagens: construção de afinidades nas mídias digitais”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 44, p. 91-114.) é pertinente para aludir a maneira como ideias, relações, emoções e conflitos em torno da não-monogamia não se limitam a um desses eixos, entrelaçando-se.
  • 6
    Entre as páginas analisadas: http://Poliamorbrasil.org/ e http://relacoeslivres.com.br/. Entre os grupos de discussão: a comunidade “Poliamor Brasil”, na rede de relacionamentos Orkut e os grupos no Facebook: “Pratique Poliamor Brasil” e “Relações Livres”. Mais informações estão disponíveis em Pilão (2012bPILÃO, Antonio. 2012b. Poliamor: um estudo sobre conjugalidade, identidade e gênero. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro., 2017bPILÃO, Antonio. 2017b. “Por que Somente um Amor?”: um estudo sobre poliamor e relações não-monogâmicas no Brasil. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 7
    As entrevistas foram realizadas por mim e tiveram roteiro semi-estruturado, com duração de uma a quatro horas. Cinco delas foram feitas com poliamoristas e quatro com RLis. Mais informações sobre os entrevistados podem ser consultadas em Pilão (2012bPILÃO, Antonio. 2012b. Poliamor: um estudo sobre conjugalidade, identidade e gênero. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro., 2017bPILÃO, Antonio. 2017b. “Por que Somente um Amor?”: um estudo sobre poliamor e relações não-monogâmicas no Brasil. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 8
    O Orkut foi uma rede social criada em 2004 e extinta em 2014. No Brasil era a mais popular, totalizando 54 milhões de usuários (Roncolato e Peralva, 2011RONCOLATO, Murilo; PERALVA, Carla. 2011. “Quem está aí”. Jornal Estado de São Paulo. - Caderno Link - p. 51 - (14/02/2011).).
  • 9
    Embora tenha se tornado, em 2012, o grupo mais relevante, a partir de 2013, com a multiplicação dos grupos no Facebook, deixou de ser o mais ativo e numeroso.
  • 10
    É importante destacar que o conceito de poliamor jamais esteve restrito à RPPB, ou ao eixo Rio de Janeiro e São Paulo, de modo que outros grupos on-line integraram poliamoristas de diferentes regiões do país, mas sem ter a militância em prol do poliamor como eixo central.
  • 11
    Pilão e Goldenberg (2012)PILÃO, Antonio; GOLDENBERG, Mirian. 2012. “Poliamor e monogamia: construindo diferenças e hierarquias”. Revista Ártemis, v. 13, p. 61-73. mostram haver divergências a respeito da elaboração de uma “política identitária” em torno do poliamor, de modo a ser possível reconhecer posturas diferentes da RPPB, ou seja, mais “privatistas”, focadas na resolução de problemas práticos dos relacionamentos e que desvalorizam a construção de uma identidade coletiva.
  • 12
    Segundo um interlocutor de Barbosa (2011: 76)BARBOSA, Monica. 2011. Movimentos de resistência à monogamia compulsória. A luta por direitos sexuais e afetivos no século XXI. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia.: “o grupo era como um partido, a pessoa era ou não era RLI [...]”, já como rede seria mais “fluido”, incluindo não militantes e pessoas que queriam praticar ou conhecer o movimento.
  • 13
    Em outro momento (Pilão, 2019PILÃO, Antonio. 2019. “Quando o amor é o problema: feminismo e poliamor em debate”. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, v. 27, n. 3, e55097.), analisei discursos feministas que afirmam que as relações livres e o poliamor são formas de privilégio masculino. Tais críticas contribuíram para uma crescente desconfiança das mulheres em relação aos homens não-monogâmicos. A esse respeito, Bornia Junior (2018)BORNIA JR, Dardo. 2018. Amar é verbo, não pronome possessivo: etnografia das relações não-monogâmicas no sul do Brasil. Tese de doutorado. UFRGS. afirma que os RLis mais antigos e identificados, sobretudo, com a pauta não-monogâmica divergiam do grupo de mulheres que submeteram essa pauta à luta feminista e denunciaram práticas machistas no meio.
  • 14
    Para representarem um novo coletivo, ao invés da antiga denominação RLi, optaram por RLi-E, tratando aquela categoria como uma expressão genérica de uma forma de relação afetivo-sexual. A nova nomenclatura permitiria promover uma diferenciação em relação a RLis não vinculados ao grupo, ou seja, aqueles que não seriam RLi-E. A opção pelo emprego do aditivo “E” teria o intuito de fazer alusão à busca de superarem as oposições: amor x amizade; amor x sexo, almejando combiná-las em suas relações.
  • 15
    Apesar do processo de homogeneização e de estereotipagem de “outros” não ser uma particularidade da construção identitária RLi, é necessário destacar que a distinção RLi/poliamor é mais fundamental para os primeiros do que para os segundos. Dessa maneira, poliamoristas brasileiros se empenham mais na delimitação de fronteiras entre o poliamor, a monogamia e não-monogamias vistas como não amorosas e/ou promíscuas (Pilão, 2013PILÃO, Antonio. 2013. “Reflexões sócio-antropológicas sobre Poliamor e amor romântico”. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, v. 12, n.35, p. 505-524.; Silvério, 2018SILVÉRIO, Maria. 2018. Eu, tu... ilus: poliamor e não-monogamias consensuais. Tese de doutorado. ISCTE-IUL.).
  • 16
    A associação do poliamor à polifidelidade faz sentido se considerarmos que, no momento de criação das relações livres, a palavra poliamor ainda era pouco difundida no país. De fato, nas formulações sobre o tema nos Estados Unidos ela tem maior relevância do que no contexto brasileiro (Pilão, 2015PILÃO, Antonio. 2015. “Entre a liberdade e a igualdade: princípios e impasses da ideologia poliamorista”.Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 44, p. 391-422. ).
  • 17
    A esse respeito ver Klesse (2006KLESSE, Christian. 2006. “Polyamory and its ‘others’: contesting the terms of non-monogamy”. Sexualities. Vol.9, n.5, p.565-583., 2011KLESSE, Christian. 2011. Notions of Love in Polyamory - Elements in a Discourse on Multiple Loving. Laboratorium. Vol. 3, no. 2:4-25.); Haritaworn et al. (2006)HARITAWORN, Jin. et al. 2006. “Poly/logue: A Critical Introduction to Polyamory”. Sexualities, Vol.9(5), p.515-529. e Wosick-Correa (2010)WOSICK-CORREA, Kassia. 2010. “Agreements, rules and agentic fidelity in polyamorous relationships”. Psychology & Sexuality, Vol.1:1, p. 44-61..
  • 18
    Essa crítica também é recorrente entre feministas (Pilão, 2019PILÃO, Antonio. 2019. “Quando o amor é o problema: feminismo e poliamor em debate”. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, v. 27, n. 3, e55097.), transexuais e não-heterossexuais (Bornia Junior, 2018BORNIA JR, Dardo. 2018. Amar é verbo, não pronome possessivo: etnografia das relações não-monogâmicas no sul do Brasil. Tese de doutorado. UFRGS.).
  • 19
    Essa preocupação, que se intensifica a partir de 2015, pode ser observada em Amores Livres (2016)AMORES LIVRES. 2016. “Não existe relação livre sem responsabilidade afetiva”. Disponível em: Disponível em: https://amoreslivres.wordpress.com/2016/06/05/nao-existe-relacao-livre-sem-responsabilidade-afetiva / (05.06.2016) [Último acesso em 21.04.2022].
    https://amoreslivres.wordpress.com/2016/...
    .
  • 20
    De fato, há poliamoristas que defendem a “privatização” do debate sobre não-monogamia, não reconhecendo a sua dimensão política e a necessidade de criticar estruturas sociais ou combater opressões. Apesar disso, outras posições caminham no sentido de articular a monogamia ao capitalismo, ao patriarcado e à heteronormatividade. (Wilkinson, 2010WILKINSON, Eleanor. 2010. “What’s Queer about Non-monogamy Now?”. In: BARKER, M. e LANGDRIDGE, D (Eds.). Understanding Non-Monogamies. London, UK: Routledge, p. 243-254.; Pilão e Goldenberg, 2012PILÃO, Antonio; GOLDENBERG, Mirian. 2012. “Poliamor e monogamia: construindo diferenças e hierarquias”. Revista Ártemis, v. 13, p. 61-73. ).
  • 21
    Apesar disso, Bornia Junior (2018)BORNIA JR, Dardo. 2018. Amar é verbo, não pronome possessivo: etnografia das relações não-monogâmicas no sul do Brasil. Tese de doutorado. UFRGS. aponta para a perpetuação de assimetrias no meio, predominando pessoas cisgêneras, brancas, jovens, com curso superior e que mantém relações prioritariamente heterossexuais; tendências essas que também pude observar entre poliamoristas (Pilão, 2012bPILÃO, Antonio. 2012b. Poliamor: um estudo sobre conjugalidade, identidade e gênero. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 22
    Essa crítica ao poliamor é amplamente compartilhada em pesquisas sobre o tema (entre outros, Klesse, 2006KLESSE, Christian. 2006. “Polyamory and its ‘others’: contesting the terms of non-monogamy”. Sexualities. Vol.9, n.5, p.565-583.; Cardoso, 2010CARDOSO, Daniel. 2010. Amando vári@s - Individualização, redes, ética e poliamor. Dissertação de mestrado. Universidade Nova de Lisboa.; Pilão, 2013PILÃO, Antonio. 2013. “Reflexões sócio-antropológicas sobre Poliamor e amor romântico”. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, v. 12, n.35, p. 505-524., 2021bPILÃO, Antonio. 2021b. “Conjugalities and sexualities in conflict: monogamy and polyamory among LGBT groups”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology- Florianópolis, v. 18, e18503.).
  • 23
    A programação e as resoluções do segundo encontro estão disponíveis em Rede Relações Livres (2012a)REDE RELAÇÕES LIVRES. 2012a. “Poliamor x Relações Livres (RLi)”. Disponível em: Disponível em: https://rederelacoeslivres.wordpress.com/2012/08/14/poli-x-rli/ (14.08.2012) [Último acesso em 20.04.2022].
    https://rederelacoeslivres.wordpress.com...
    .
  • 24
    Nos últimos anos, Gonçalves (2021)GONÇALVES, Ítalo. 2021. “Matemática dos afetos, dissensos e sentidos sociais acerca das noções de ‘monogamia’ e ‘não-monogamia’”. Teoria e Cultura, v. 16, p. 61-75. aponta para o surgimento no país de novos atores políticos não-monogâmicos, como a ativista Geni Nuñes e o projeto “Não-Monogamia em Foco”. Diferentemente de fundadores da RLi e da RPPB, o marxismo e a militância em partidos políticos não constituíram as influências mais destacadas, mas sim o anticolonialismo e a interseccionalidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2021
  • Aceito
    29 Jan 2022
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