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HENNING, Carlos Eduardo & BRAZ, Camilo (orgs.). 2017. Gênero, sexualidade e curso de vida: diálogos latino-americanos. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária. 177 pp.

HENNING, Carlos Eduardo; BRAZ, Camilo. (orgs.). 2017.Gênero, sexualidade e curso de vida: diálogos latino-americanos . Goiânia: Editora da Imprensa Universitária. 177 pp.

De que maneiras as implicações sociais relacionadas a identidades sexuais e de gênero afetam os sujeitos e suas trajetórias em diferentes momentos da vida? A coletânea Gênero, sexualidade e curso de vida: diálogos latino-americanos, organizada por Carlos Eduardo Henning e Camilo BrazHENNING, Carlos Eduardo & BRAZ, Camilo (orgs.). 2017. Gênero, sexualidade e curso de vida: diálogos latino-americanos. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária. 177 pp., oferece uma série de contribuições acerca desta questão. Ela reúne um conjunto variado de investigações que exploram os entrelaçamentos da diversidade sexual e de gênero em diferentes fases da vida. A obra é parte da Coleção Diferenças, resultado da parceria entre o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás (PPGAS/UFG) e o Centro Editorial e Gráfico da UFG (Cegraf). A coletânea é bilíngue, seus textos se dividem em três capítulos escritos em espanhol e quatro capítulos em língua portuguesa. A partir desta questão central, que relaciona o gênero, a sexualidade e o curso da vida, as pesquisas reunidas nesta obra desdobram temas diversos, como sociabilidade rural, processos migratórios, performances políticas, identidade e parentesco.

Na introdução, “Entrelaçando Relações de Gênero, Sexualidade e o Curso da Vida: perspectivas e diálogos latino-americanos”, os organizadores apresentam os seis capítulos que compõem a coletânea, contextualizando-os em relação à Antropologia do Curso da Vida. Henning e Braz elucidam sobre este campo de estudos que busca problematizar o caráter substantivo das idades, desvelando as variabilidades histórico-culturais em que se localizam as elaborações simbólicas das fronteiras entre as fases da vida. Os organizadores apontam que, no Brasil e na América Latina dos últimos anos, há um acentuado desenvolvimento de análises socioantropológicas do curso da vida que buscam interlocuções com temáticas de gênero e sexualidade. Para ilustrar esse cenário, os organizadores citam uma série de estudos que se tornaram influentes nas últimas décadas e que representam a expansão desses debates - sobretudo em relação aos temas da velhice e das interseções de envelhecimento, gerações e homossexualidade masculina. Neste sentido, definem a organização da coletânea como um esforço para visibilizar investigações mais recentes, privilegiando aquelas que foram produzidas no âmbito de Programas de Pós-graduação em Antropologia de instituições do centro-oeste brasileiro, e também de outros países latino-americanos, no intuito de estreitar diálogos regionais e transnacionais.

No primeiro capítulo, “Socialidad Rural Entre Varones: relatos de un joven homosexual”, Maurício List Reyes, antropólogo mexicano da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla (BUAP) aborda formas de homossociabilidade em um contexto que ele chama de “rururbano”. Através da análise de um relato biográfico, o autor investiga diferentes modalidades de interação entre homens em duas comunidades localizadas em torno da capital do estado de Puebla, no México, onde se desenrolaram a infância e a juventude de Sebastián, o personagem da pesquisa. Pela memória acionada por Sebastián, marcada pelo trânsito entre tais comunidades rurais e a capital de Puebla, o autor analisa os diversos significados que os sujeitos atribuem às práticas sexuais entre homens - as quais, em geral, são mantidas sem prejuízo das identidades masculinas e heterossexuais - considerando as maneiras como se distinguem em função da idade e dos contextos. Assim, o autor explora as dificuldades que se interpõem ao reconhecimento de identidades não heterossexuais em ambientes profundamente marcados pela heteronormatividade, onde a migração se apresenta como uma alternativa para os sujeitos em relação ao exercício da homossexualidade.

“‘Quando a maioria é mais velha, tudo o que vocês faz é se foder’: jovens feministas e questões geracionais a partir da Marcha das Vadias de Goiânia/GO” é título do capítulo de autoria da antropóloga brasileira Paula Nogueira Pires Batista, vinculada ao Ser-Tão - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Goiás (UFG). Nele, a autora analisa as continuidades e descontinuidades entre “jovens feministas” e “feministas históricas” com base na investigação realizada sobre a Marcha das Vadias de Goiânia. Apoiando-se na pesquisa etnográfica, situada em espaços on-line e off-line do feminismo goiano e na realização de entrevistas semiestruturadas, a autora explora as tensões e as diferenças que marcam a atuação de feministas “jovens” e “adultas”, trazendo à discussão os modos como os marcadores de raça, classe e idade incidem nas subjetividades e nas performances políticas de suas interlocutoras. Na análise das relações entre essas diferentes militâncias, marcadas por conflitos geracionais, a autora busca desvelar as relações de poder que permeiam a política feminista, lançando luz sobre as possibilidades de aliança e atuação política que contestam as dicotomias hierarquizantes em favor das coalizões transformadoras.

O terceiro capítulo analisa diferentes trabalhos etnográficos realizados pelos antropólogos brasileiros Guilherme Passamani e Tiago Duque da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). “As bichas de hoje e de ‘ontem’ da região do Pantanal de Mato Grosso do Sul: sobre regimes de visibilidade e (des)caminhos do curso da vida” desenvolve a reflexão sobre esses dois universos de interlocutores. Na primeira parte do artigo, os autores examinam a prática da “montagem” de jovens “efeminados”, que se refere ao ato de vestir-se e comportar-se com modos que são tidos como próprios da “mulher”. Eles discutem como essa prática constitui parte de regimes de visibilidade que garantem um tipo de reconhecimento negociado em determinado período da vida desse grupo. Na segunda parte, são abordados os efeitos do processo de envelhecimento na vivência da sexualidade e do gênero de sujeitos, com idades entre 52 e 82 anos, referidos como homens com condutas homossexuais. Os autores observam que há uma “relação indócil entre envelhecimento e sexualidade” e analisam a tendência desses sujeitos de se transformarem em “senhores mais discretos”. Assim, o capítulo aborda algumas formas pelas quais essas distintas trajetórias interagem a partir do enfrentamento de processos de abjeção na construção de suas existências “bichas” em diferentes momentos do curso de vida.

Em seguida, o quarto capítulo, intitulado “La memoria travesti de una contadora”, do sociólogo peruano Giancarlo Cornejo da Universidade da Califórnia (UC Berkeley), explora as temporalidades por meio de uma perspectiva queer. Assumindo a permeabilidade entre tempos passados, presentes e futuros, o autor interroga quais abordagens não normativas podem ser empregadas ao tratarmos de uma vida queer. Cornejo desenvolve esta questão pela reescrita e releitura de uma narrativa fragmentada, constituída por diferentes episódios da vida de Chiara, uma ativista travesti peruana, cuja idade ultrapassa os 50 anos. Neste capítulo, o autor discorre sobre a narrativa de Chiara contextualizando seu relato em relação aos eventos que testemunhou em seu país, atravessado por uma crise econômica e pela acentuada violência dos conflitos internos que despontaram no início da década de 1980. Além dos impactos desse cenário no curso de vida de Chiara, sua memória é ainda profundamente marcada por perdas causadas pela epidemia da AIDS e pelos medos coletivos que se manifestaram nesse período em torno do vírus HIV e da síndrome. O autor analisa como sua interlocutora narra e significa essa trajetória em que muitos desafios e violências se interpuseram ao seu sonho de se tornar contadora.

O sociólogo Fernando Rada Schultze, da Universidade de Buenos Aires (UBA), é autor do quinto capítulo desta coletânea que aborda os tipos de velhice e envelhecimento de pessoas gays, lésbicas e trans na Argentina. Em “La diversidad en el curso de la vida: trayectorias y memorias de los y las mayores LGBT argentinos”, Schultze trabalha qualitativamente os dados oriundos de 100 entrevistas realizadas com sujeitos autoidentificados como gay, lésbica e trans em grandes centros urbanos da Argentina. Considerando fatores como nível educacional, origem, aceitação familiar e migração, o autor constrói uma tipologia dos modelos de envelhecimento destes três grupos e realiza uma análise comparativa. Ao acessar a memória desses sujeitos com idades acima de 60 anos - exceto o grupo de pessoas trans, cuja expectativa de vida é de 45 anos - Schultze reconstrói esses processos de envelhecimento, buscando desvelar como e por quais razões tais velhices são diferencialmente produzidas à luz das dimensões de gênero e sexualidade.

O último capítulo discorre sobre o sentido da paternidade na trajetória de homens que, após um período de conjugalidade heterossexual, identificaram-se como homossexuais. “Prazer, desejo e verdade: narrativas de pais gays que tiveram seus filhos em uniões heterossexuais” refere-se à pesquisa etnográfica realizada na França por Flávio Luiz Tarnovski, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Neste trabalho, o autor busca compreender as articulações entre o desejo de ter filhos, casamento heterossexual e identidade homossexual para além da hipótese da “renúncia” à homossexualidade em favor da paternidade, a qual muitas vezes é assumida em estudos sobre famílias homoparentais. Tarnovski atenta para a complexidade envolvida na articulação entre esses fatores na experiência de tais sujeitos e problematiza a ideia de orientação sexual “inata” e “definitiva”. Em uma perspectiva diacrônica, o autor analisa as diferentes motivações acionadas pelos sujeitos da pesquisa ao narrarem a “saída do armário”, as quais desafiam a noção de “verdadeira sexualidade”. A análise de Tarnovski contribui para compreender a produção das identidades sexuais menos como uma “carreira” e mais como um processo.

Os estudos que compõem a coletânea, ao se apoiarem em metodologias qualitativas, explorando técnicas etnográficas e biográficas, mobilizam dados da memória e da experiência dos sujeitos. As análises articulam, por diferentes caminhos, a dimensão subjetiva de tais vidas com os sentidos sociais que adquirem enquanto integrantes de coletividades. Desse modo, as pesquisas se aproximam de uma perspectiva semiótico-narrativa ao buscarem as lógicas internas que os sujeitos conferem às tramas de significados em que estão enredados (Arfuch, 2002: 267ARFUCH, Leonor. 2010 [2002]. “O espaço biográfico nas ciências sociais”. In: ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ.). Ao tomarem as narrativas de seus interlocutores como objetos de análise, os pesquisadores e a “jovem pesquisadora” - conforme Batista se descreve - elaboram abordagens socioantropológicas conscientes em relação à “ilusão biográfica”, tal como evidenciada por Bourdieu (1986BOURDIEU, Pierre. 1998 [1986]. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO, Janaina (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV.). Assim, cientes das ficções que atravessam os relatos biográficos, os autores e a autora trabalham, ao mesmo tempo, de forma crítica e sensível com as narrativas acessadas pelas entrevistas e/ou por meio da observação participante.

Ao abordar as memórias e as vivências de sujeitos LGBT e de feministas “jovens” e “históricas”, analisando-as em função das diferenças geracionais e/ou do curso de vida, as pesquisas reunidas nesta coletânea contribuem para a reflexão sobre permanências e mudanças nas experiências e nas trajetórias desses sujeitos e dos ativismos feministas e sobre diversidade sexual e de gênero ao longo das últimas décadas. Também por se tratar de investigações produzidas por autores latino-americanos em diferentes cidades da região do Centro-Oeste brasileiro e de outros países da América Latina - com exceção da pesquisa de Tarnovski, realizada na França - sendo diversos os sujeitos das pesquisas em relação a seus lugares de origem, as discussões presentes nesta publicação contribuem para a compreensão sobre o que particulariza e unifica tais experiências de vida e os processos de construção de suas identidades. Assim, pela pluralidade das experiências e histórias de vida analisadas, juntos, esses estudos desvelam o caráter descontínuo da produção sociocultual das identidades sexuais e de gênero, além dos vários sentidos e formas que podem assumir em diferentes lugares ou, ainda, em diferentes momentos de uma mesma biografia.

Ao retraçarem essas narrativas, as pesquisas colaboram na recuperação da memória dos grupos que, como bem assinala Schultze, tende a ficar omitida na historiografia oficial. Nesse escopo, os métodos biográfico e etnográfico se apresentam como meios privilegiados para acessar em profundidade tais histórias e trabalhar as questões levantadas pelos entrelaçamentos do gênero, da sexualidade e do curso de vida. No cruzamento de tais temas, embora a normatividade sexual e de gênero se apresente como uma constante na vida dos sujeitos, os estudos deste livro apontam as múltiplas maneiras pelas quais elas são incorporadas, subvertidas ou habitadas, contribuindo desse modo para a investigação de diferentes modalidades de agência e de formações específicas de relações de poder. Em vista dessas considerações, afirmo que esta é uma publicação valiosa para quem tenciona conhecer distintos modos de como o gênero, a sexualidade e o curso da vida incidem sobre os sujeitos, ao mesmo tempo em que são matéria de reflexão e reelaboração por esses mesmos sujeitos.

Referências bibliográficas

  • ARFUCH, Leonor. 2010 [2002]. “O espaço biográfico nas ciências sociais”. In: ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ.
  • BOURDIEU, Pierre. 1998 [1986]. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO, Janaina (orgs.). Usos e abusos da história oral Rio de Janeiro: Editora da FGV.
  • HENNING, Carlos Eduardo & BRAZ, Camilo (orgs.). 2017. Gênero, sexualidade e curso de vida: diálogos latino-americanos Goiânia: Editora da Imprensa Universitária. 177 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019
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