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Vozes do Sul Global: a midiatização dos feminismos em um podcast de mulheres brasileiras pelo mundo1 1 Este texto deriva do projeto de Pesquisa “Que comece o Matriarcado”, a construção de ativismo on-line e solidariedades off-line entre brasileiras vivendo em Paris, referente à Bolsa Produtividade Nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil, processo 307378/2019-5.

Voces del Sur Global: la mediatización de los feminismos en un podcast de mujeres brasileñas por el mundo

Resumo

O podcast Femigrantes BR se define como “um espaço de conversa de mulheres feministas e imigrantes pelo mundo”. Em maio de 2022, o Femigrantes BR contava com 21 episódios, reunindo histórias de brasileiras que vivem e atuam em diversos países. Na voz das entrevistadas, histórias de vida expandem-se para além do relato pessoal, rico em si mesmo, para conectar-se com estruturas solidamente assentadas como as do racismo e das relações desiguais entre Norte e Sul Global. A partir do objeto e do cenário descritos, procuro investigar qual tem sido a contribuição dos feminismos, enquanto discurso político, para o “empoderamento” dessas mulheres migrantes e analisar como a midiatização do debate feminista reflete na forma como estas atuam na vida pública do país no qual passaram a viver. No esforço para atender a esses pontos, dedico-me a um trabalho imersivo nos meios digitais e, em diálogo com aportes dos estudos feministas da tecnologia, decoloniais, pós-coloniais e da comunicação midiática, intento pensar como ocupação feminista da internet pode potencializar transformações sociais nas estruturas desiguais de gênero e contribuir para desafiar as hierarquias entre Norte e Sul Global.

Palavras-chave:
Femigrantes BR; podcast feminista; midiatização; feminismo decolonial; Sul Global

Resumen

El podcast Femigrantes BR se define como “un espacio de conversación de mujeres feministas e inmigrantes por el mundo”. En mayo de 2022, Femigrantes BR tuvo 21 episodios, que reunieron historias de mujeres brasileñas que viven y trabajan en varios países. En las voces de las entrevistadas, las historias de vida se expanden más allá del relato personal, rico en sí mismo, para conectarse con estructuras firmemente establecidas como las del racismo y de las relaciones desiguales entre el Norte y el Sur Global. A partir del objeto y el escenario descritos, busco investigar cuál ha sido la contribución de los feminismos, como discurso político, al empoderamiento de estas mujeres migrantes y analizar cómo la cobertura mediática del debate feminista se refleja en la forma de actuar en la vida pública del país en el que ahora viven. En el esfuerzo por atender estos puntos, me dedico a un trabajo de inmersión en los medios digitales y, en diálogo con aportes de los estudios feministas de la tecnología, decoloniales, poscoloniales y de la comunicación mediática, busco pensar cómo la ocupación feminista de la internet puede potenciar transformaciones sociales en las estructuras desiguales de género y contribuir a desafiar las jerarquías entre el Norte y el Sur Global.

Palabras clave:
Femigrantes BR; podcast feminista; midiatización; feminismo decolonial; Sur Global

Abstract

The podcast Femigrantes BR is defined as “a space for conversation among feminist-immigrant women around the world”. The podcast had 21 episodes, gathering stories of Brazilian women who live and work in several countries. In the voices of the interviewees, life stories expand beyond the personal account and connect with firmly established structures such as racism and the unequal relations between the Global North and South. Taking that object and scenario, I investigate what has been the contribution of feminisms, as political discourse, to the “empowerment” of those migrant women and analyse how the media coverage of the feminist debate reflects on the way they act in the public life of the country in which they now live. In the effort to attend to these points, I engage in an immersion in digital media and, in dialogue with contributions from feminist media, technology, decolonial, postcolonial studies, I discuss how the feminist occupation of the internet can potentiate social transformations in unequal gender structures and contribute to challenge hierarchies between North and Global South.

Keywords:
Femigrantes BR; feminist podcast; mediatisation; decolonial feminism; Global South

Bem-vindas e bem-vindos ao Femigrantes BR

- Uhuu!! - Uau, conseguimoooos! Vencemos o desafio da tecnologia - [risos] - Tecnologia versus as mulheres - [mais risos] (Lilian Moreira e Priscila Preta festejando o sucesso da gravação de entrevista realizada à distância para o episódio #3 do Femigrantes Podcast BR)

“Vencemos o desafio da tecnologia”, comemora a internacionalista Lilian Moreira, após finalizar mais um episódio do podcast Femigrantes BR. Ao antagonizar “mulheres” à “tecnologia”, Moreira reconhece o alijamento histórico de mulheres do acesso a tecnologias, sobretudo as negras e racializadas.

Negra, de pele clara, como se define, a anfitriã do Femigrantes está em Paris desde quando migrou para cursar mestrado em Direitos Humanos. O projeto do Femigrantes começou em uma parceria tripla entre Lilian Moreira, Lidiane Vieira e Bousso Benussi Thioune, as duas primeiras brasileiras e a última uma italiana de ascendência senegalesa. As três apostaram no formato de podcast como uma mídia capaz de projetar vozes feministas que estão refletindo sobre fronteiras, identidade, gênero e raça.

Na França, essas três mulheres com formação em ensino superior e com pós-graduação realizada em Paris, descobriram-se como uma espécie de “Outro” racializado e, assim, menos “civilizado”. Descobriram também que esse sentimento de inferioridade, que se mistura com uma certa indignação, não era individual, mas experimentado por outras mulheres migrantes, sobretudo aquelas que carregam na pele as marcas de uma origem não-europeia presumida, como no caso de Bousso, a italiana negra que compartilhou com Lilian a bancada do Fémigrantes FR. Ser negra a desloca geograficamente e simbolicamente: 1. Não pode ser europeia; 2. Não deve ser escolarizada.

Bousso, narra2 2 Milena Britto discute a narrativa de si tal como ela é adotada no estilo literário de autoras brasileiras contemporâneas como uma estratégia política. Ao analisar o livro Este Cabelo, de Djaimilia Pereira, Britto propõe que a voz na primeira pessoa que se expande em um “narrar a si [...] passa por uma proposta da autora de se descobrir como parte de um processo histórico e ao mesmo tempo, ao se reconhecer como participante de um certo grupo social, questionar com a escrita tanto quanto com a temática” (Britto, 2018, p. 103-104). Daí nossa escolha pelo verbo narrar. , no primeiro episódio do Fémigrantes FR, no qual o projeto é apresentado às e aos ouvintes, a constante surpresa das pessoas, e mesmo a desconfiança, relativa à sua nacionalidade. Na suposição de ser ela uma imigrante de fora da União Europeia, está implicada a ideia de que sob cada pele negra há uma selva (Bhabha, 1998BHABHA, Homi K. 1998. O local da cultura. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG., p. 39). Percepções que atravessam também o cotidiano de Lilian, que no Brasil foi percebida e se percebeu por muito tempo como “morena”, e de Lidiane, com seus traços indígenas, tantas vezes apagados pelo desejo branqueador, que não é exatamente dela, mas de toda uma região na qual o eurocentrismo naturalizou a experiência das pessoas dentro de um padrão de poder no qual a raça/pele/cor atuam como marcas da colonialidade do poder (Quijano, 2000QUIJANO, Aníbal. 2000. “Colonialidad del poder y clasificación social”. Journal of World-systems Research. Special Issue: Festchrift for Immanuel Wallerstein. Vol. 2, p. 342-386., p. 343).

A ideia de sistematizar experiências de mulheres migrantes, anônimas, que tivessem uma reflexão feminista sobre o processo migratório se inicia em francês como relembra Lilian:

Na verdade, a gente começou com o podcast em francês, lembra? Eu fiz com minha amiga Bousso3 3 Bousso é italiana filha de pais senegaleses, formada em Letras e no momento de escrita deste artigo estava se dedicando ao Femigrantes em italiano. O Fémigrantes em francês registrou 8 episódios. O Femigrantes BR se inicia com a parceria de Lidiane Vieira, socióloga, amapaense, também fazendo mestrado em Paris. Lidiane integrou o projeto durante 06 episódios, se desligando do projeto por razões pessoais. Hoje a equipe do Femigrantes BR é composta por Gabriela de Carvalho, Luciana Gransotto, Mairê Carli, a identidade visual é de Patrícia Kuniyasi (a PKá) e Glauco Salmazio, responsável pela edição, sonorização e criador da identidade sonora do podcast. , então, a gente teve a ideia juntas. Fruto de discussões que a gente iniciou o master [mestrado] lá em 2014, 2015, pelo fato de sermos duas imigrantes que não temos o francês como primeira língua, e das nossas conversas. Então, eu acho que foi uma vontade de compartilhar com outras pessoas a tomada de consciência que a gente tava vivendo aqui na condição de mulheres racializadas e migrantes na França. O momento que bateu a luz foi num verão, numa conversa sobre coisas intensas e profundas da vida. Aí a gente começou com o podcast em francês e depois cada uma resolveu lançar um na sua língua materna. (Lílian, em depoimento à pesquisadora, em 28/05/2022, por meio de áudio no WhatsApp).

Neste texto, concentro-me na versão brasileira desse projeto que busca, por meio de uma produção midiática relativamente barata, mesclar a informalidade da oralidade à difusão de conteúdo teórico.

A difusão e compartilhamento digital de conteúdos, tem proporcionado a “formação de comunidades feministas nas mídias digitais que elaboram formas de subjetividade” (Gonzaga, 2018GONZAGA, Juliane. 2018. Novo feminismo: acontecimento e insurreição de saberes nas mídias digitais. Tese entregue ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras -UNESP/Araraquara., p. 114). Nessas comunidades, a tendência ao relato pessoal aproxima e sensibiliza um número considerável de jovens mulheres às temáticas relativas às experiências femininas de mulheres cisgêneras e/ou transgêneros, em um mundo atravessado por estruturas que perpetuam as desigualdades de gênero. As mesmas têm também contribuído para uma ideia de “empoderamento4 4 Adiamos essa discussão para a seção final deste artigo. ” algo problemática. Para Hamlin e Peters (2018HAMLIN, Cynthia; PETERS, Gabriel. 2018. “Consumindo como uma Garota: Subjetivação e Empoderamento na Publicidade Voltada para Mulheres”. Lua Nova. Abril de 2018. nº 103, p. 167-202., p.170), no seu percurso, “o conceito de empoderamento feminino passa de uma acepção francamente “coletivista” a uma versão individualizada pode ser situado naquela dinâmica mais ampla do capitalismo tardio”, na qual as mídias digitais e as redes sociais on-line cumprem um papel eminentemente político. Porém, tem sido nesses mesmos meios que os questionamentos acontecem e essas capturas têm sido desafiadas.

Nascido durante a pandemia do Covid-19, o Femigrantes BR Podcast se assume como “um espaço de conversa de mulheres feministas e migrantes pelo mundo” (fala de abertura que se repete a cada episódio). Reunindo histórias de brasileiras que migraram voluntariamente5 5 A maior parte das entrevistadas é composta por mulheres que migraram para realizar seus estudos de nível superior (sejam cursos completos ou parciais) no exterior. O fato de se reconhecerem como migrantes e não como em “mobilidade científica” ou “cientistas internacionais” é relevante para a comunicação, pois outorga valor político às suas identidades. Como explica Thaís França (2016, p. 208), “cada vez mais imigração e imigrantes referem-se a sujeitos estigmatizados como perigosos, problemáticos, que atravessam fronteiras sem estar resguardados por privilégios legais sendo, portanto, indesejados. Já a mobilidade científica alude ao deslocamento geográfico de uma elite intelectual e laboral, portanto, bem-vindo”. para países como Japão, França, Irlanda, Itália, Canadá, Estados Unidos, Senegal, Inglaterra, Dinamarca, Noruega, Alemanha, entre outros, o Femigrantes BR Podcast apoia-se em narrativas que interseccionam gênero, nacionalidade, sexualidade e raça, biografias que atualizam o slogan “o pessoal é político”.

[I]ndividual e coletivo, psíquico e social, pessoal e político são termos interdependentes, que não podem ser observados separadamente quando tratamos das identidades sociais e de suas representações culturais. Entre as diversas narrativas presentes nas mídias e que surgem para contar histórias que ultrapassem os discursos dominantes dicotômicos entre aspectos “internos” ou “externos”, temos aquelas que se valem de gêneros e formatos radiofônicos (ou sonoros) e que podem, assim, dar voz e ouvidos a esses agentes. (Soares; Vicente, 2021SOARES, Rosana de Lima ; VICENTE, Eduardo. 2021. “Áudio e ativismo social: uso das práticas do podcast para a visibilidade de um discurso feminista”. In: RADAKOVICH, Rosario; WORTMAN, Ana Elisa. Nuevas Mutaciones del Consumo Cultural en el Siglo XXI: Tecnologías, Espacios y Experiencias. 1ª ed. Buenos Aires: ALAS. p. 9-23., p.12).

Na voz das entrevistadas, as histórias de vida expandem-se para além do relato pessoal, rico em si mesmo, para se conectar com eventos macrossociais como crises econômicas, transformações sociais, políticas públicas e para a reflexão analítica de como estruturas solidamente assentadas, como o racismo e as relações desiguais entre Norte e Sul Global, impactam as biografias das entrevistadas. Se pensar a partir dessa dualidade não significa prender-se a binários divididos por linhas duras, mas justamente se constituir a partir desse entre-lugares, das experiências fronteiriças que possibilitam outras narrativas. Assim, segundo Iqani e Resende (citado por Janotti Junior),

o Sul global pode ser conceitualizado como inscrito dentro de uma ‘territorialidade narrativa’. O objetivo é entender questões de mídia e do Sul global como, de fato, sendo constitutiva e constituinte desta (dentro e desde) territorialidade, o que quer dizer que a mídia não somente se inscreve em um território (o Sul global) mas também é responsável por produzir narrativas sobre isso (Iqani; Resende, 2020, apud Janotti Junior. 2021JANOTTI JUNIOR, Jeder Silveira. 2021. “Cultura Pop, Conectividade e Rasuras em Tempos de Ambientações Comunicacionais Digitais”. Cult De Cultura: Revista interdisciplinar sobre arte sequencial, mídias e cultura pop. Vol. 1, nº 01, p. 23-33., p.25).

Nos últimos três anos (2019 a 2022), os podcasts que se dedicam às pautas feministas se multiplicam em um contexto de expansão e reconfiguração do rádio e do sonoro, na qual os debates sobre identidade, igualdade e diferença ganharam centralidade. A pandemia da Covid-19 agudizou as discussões interseccionais, ao mesmo tempo em que contribuiu para o recrudescimento dos conservadorismos, os quais têm se mostrado também antifeministas (Tabuchi; Rossi, 2021TABUCHI, Mariana Garcia; ROSSI, Amélia Sampaio. 2021. “Neoliberalismo E Antifeminismo: a Escalada Global Contra as Mulheres”. Revista Culturas Jurídicas. Vol. 8, nº 20, p. 460-486.).

Os conteúdos gerados para os episódios do Femigrantes BR Podcast, até maio de 2022, apostaram na dimensão biográfica das narrativas para promover uma escuta empática. Os programas, divididos em dois blocos, abrem com relatos que remontam a trajetória migratória da entrevistada, sua história familiar, entre outros temas de cunho mais pessoal para, no segundo momento, explorar uma temática específica associada às pesquisas acadêmicas. Não raro as pesquisas derivaram em atuação militante e reverberam no campo laboral de cada uma das mulheres que ocupam a bancada do podcast6 6 Já foram debatidos temas como interseccionalidade e saúde de imigrantes(#2); afro turismo (#03); mídia e migração (#04); maternidade e migração (#05); abuso sexual de crianças e adolescente (#06); decolonialidade da migração (#07); hisperssexualização de brasileiras (#08); pandemia e restrições migratórias para estudantes (#09); migração reversa (#10); migração e indicadores de felicidade (#11); inserção profissional como imigrante (#13); histórias marcantes narradas por entrevistadas (#14); Corpos e raízes afro-brasileiras (#15); nutrição e colonialidade (#16); amores binacionais e hierarquias globais (#12 e #17); especial 8 de Março (#18); Mulheres refugiadas da Ucrânia (#19); síndrome da impostora e migrantes mulheres (#20); música e a redescoberta da identidade migrante (#21). Aqui não trataremos nos cinco especiais chamados de Choquitos Culturais, quadros lançados entre os episódios e nem das discussões que ocorrem por meio do grupo na plataforma Telegram, o Femigrupo. .

O podcast é um ecossistema de comunicação composto principalmente de palavras faladas, com programação de assuntos de interesse comum, em que as restrições de tempo e as questões de acesso são pequenas. É um meio que oferece esforços de baixo investimento para atrair atenção pública substancial. Apesar de que nem todos os indivíduos saibam produzir um podcast, ou mesmo encontrar uma massa crítica de ouvintes para um podcast criado, o ecossistema de podcast exibe uma diversidade de perspectivas, que vão desde o formato, passando pela duração e efeitos sonoros, até as temáticas que conquistam grandes audiências. (Pelúcio, Luvizotto, Silva, 2022PELÚCIO, Larissa, LUVIZOTTO, Caroline, SILVA, Thamires. 2022. “Podcast Fé-Mi-Grantes e A Intersecção entre Gênero, Raça e Nacionalidade”. Manuscrito não publicado., p. 03).

Produzir conteúdos de forma muitas vezes artesanal e encontrar formas gratuitas de difundi-los em meio alternativos tem sido um dos atrativos de podcasts feministas, os quais se tornaram meios de resistência em cenários políticos de inflexão conservadora.

A partir de escuta sistemática dos 21 episódios do Femigrantes BR Podcast e de entrevistas por meio do WhatsApp7 7 Lilian Moreira é uma das integrantes de um grupo de brasileiras feministas, o qual aqui vou chamar de Fridas e a Resistência, nome ficcional. O coletivo se formou após o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, no intuito de reunir brasileiras residentes na França para discutir caminhos para angariar votos para Fernando Haddad (PT), opositor do candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro. Fui convidada por Lilian a participar de reuniões do grupo, assim nosso contato se estreitou. Quando o projeto do Fémigrantes FR se iniciou, mostrei meu interesse pelo mesmo, nascendo assim uma interlocução que se estabeleceu por WhatsApp e em encontros presenciais, sempre que estive em Paris. Foi no mesmo grupo que conheci Lidiane Vieira, com quem também passei a conversar por meios digitais e encontros presenciais, já sinalizando meu interesse de pesquisa em relação à produção e ao conteúdo dos podcasts. Quanto a Boussou, não cheguei a conhecê-la, mas ela estava ciente do desenvolvimento da pesquisa e forneceu informações por meio de Lilian, sempre por WhatsApp. O WhatsApp mostrou-se como eficiente meio para comunicações pontuais e mais ágeis. Por intermédio daquele aplicativo pude sanar algumas dúvidas em relação ao projeto, complementar informações sobre as entrevistadas e ainda se mostrou um canal de solidificação de afetos. As trocas de mensagens digitais, somadas aos emojis, figurinhas e gifs (materiais visuais disponíveis no aplicativo) fomentaram vínculos de confiança e amizade, fundamentados de início em parceria política entre a pesquisadora e as produtoras do Femigrantes BR. com as idealizadoras da iniciativa, além de participação como convidada em um dos programas, procuro investigar neste artigo (1) qual tem sido a contribuição dos feminismos, enquanto discurso político, para o “empoderamento” dessas mulheres migrantes; (2) compreender como a midiatização das pautas feministas impactam a experiência internacional das entrevistadas, (3) analisar como a midiatização do debate feminista reflete na forma como as migrantes atuam na vida pública do país no qual passaram a viver e/ou como, a partir do exterior, exercem seu feminismo em relação à sociedade de origem.

Organizado em quatro partes, Este artigo, provém das inquietações que o rol dos objetivos acima suscita, o que permite interseccionar gênero, raça e nacionalidade a partir dos aportes do feminismo decolonial e dos estudos pós-coloniais em diálogo com aportes dos estudos feministas da tecnologia e da comunicação midiática. Essas aproximações tocam nos recursos da oralidade e das narrativas biográficas como estratégias de comunicação acionadas pelas podcasters feministas para a difusão do conteúdo que produzem com o Femigrantes BR. Assim, o artigo é dedicado a pensar, a partir de um produto específico, quais têm sido as contribuições dos feminismos para transformar as mídias digitais em espaços menos feudalizados.

O feminismo põe o mundo de cabeça para baixo

“Eu sempre fui feminista sem saber”. Essa é uma frase que ecoa por diversos episódios do Femigrantes BR Podcast. A declaração sugere que as discussões feministas, intensificadas nas últimas duas décadas, vêm fornecendo um vocabulário político fundamental para as entrevistadas organizarem suas experiências pretéritas frente à decisão de migrar. Reflexões que reverberam nas posturas pessoais e engajamentos políticos dessas mulheres.

Como aconteceu com Lilian Moreira, hoje a voz do Femigrantes BR, muitas outras mulheres entrevistadas para o podcast contaram que mesmo antes da migração, ainda meninas, ouviram e viram em suas casas mulheres fortes, decididas e que as ensinaram que ser mulher não é um erro.

Mães, tias, avós aparecem como figuras modelares também quando o tema é cor de pele e textura dos cabelos. São muitas as falas nesse sentido revividas em vozes embargadas:

“Minha filha, tu tem que ter muito orgulho de ser negra”. Pra mim, essa afirmação que minha mãe fez quando eu tinha seis anos de idade, construiu minha identidade;

Meus pais sempre valorizaram muito nossa cor (...) minha mãe sempre valorizando muito nosso cabelo;

Eu vim de um ambiente simples, de poucas ambições, apesar de minha mãe sempre dizer, ‘você precisa continuar os estudos, você precisa não depender de outra pessoa... de marido, ou de qualquer outra pessoa pra te dar suporte material pra que você seja uma pessoa bem-sucedida na vida.

A escuta detida das falas das entrevistadas negras revela que o “sucesso” como uma categoria social de mobilidade que associa investimentos nos estudos ao enfrentamento do racismo. Entre a maioria das entrevistadas que se identificam como negras, a formação básica foi motivo mobilizador da família que fazia sacrifícios para proporcionar à prole uma educação vista como de qualidade8 8 Nem todas cursaram escolas privadas ou tiveram esse acesso durante todo o ensino básico. Mas é patente o esforço dos pais em proporcionar para elas um “bom ensino”, o que muitas vezes as colocou em ambientes sociais hostis, fosse relativo a serem elas mulheres não-brancas ou por serem das classes populares. . Não é incomum que entre todas as entrevistadas, independente de cor/etnia, sejam elas as primeiras da família a obterem titulações acadêmicas tão elevadas. Como resenha Martínez,

[g]eógrafos e geógrafas vêm dedicando-se a entender o papel da educação e, para além, a importância do conhecimento na produção de espaço (Geddie, 2015; King; Raghuram; Keynes, 2013; Waters, 2016). Do mesmo modo, acadêmicas feministas vêm produzindo ideias para interrogar conceitos espaciais fundacionais nos estudos de internacionalização da educação (Doerr, 2014; Matus; Talburt, 2009; Sidhu; Dall’alba, 2012). A associação dessas perspectivas vem levando a críticas sobre a celebração da internacionalização da educação superior e tem permitido acadêmicas e acadêmicos a reconhecer desigualdades reproduzidas por práticas descorporeificadas, uma vez que a mobilidade incita mudanças de poder nos corpos à medida em que produz novas formas de viver o espaço por raça, gênero e sexualidade (Hanson, 2010). (Martinez, 2019MARTINEZ, César A. F. 2019. Geografias Afetivas: Nação, Gênero E Sexualidade Nas Narrativas De Estudantes Internacionais. Trabalho apresentado no XIII ENANPEGE, São Paulo., p. 3)

Talvez por isso, estudar no exterior apareça como uma ocupação simbólica de uma geografia política prestigiada, assim como como um território que suscita afetos e afetações.

Nas experiências das entrevistadas que mudaram para países do Norte Global, ser brasileira está estreitamente relacionado com ser vista como não-branca9 9 Apenas duas entrevistadas tiveram experiências distintas, sintomaticamente as que mudaram para países fora da União Europeia (Senegal e Japão). . Para algumas dessas mulheres, esse foi um dos deslocamentos simbólicos que mais as mobilizou politicamente. A racialização da nacionalidade aparece como um tema disparador político que encontrou termos para a reflexão e combate em vocabulários emprestados de múltiplas vertentes do feminismo.

Paradoxalmente, para as mulheres negras a racialização experienciada no exterior as fez enxergar e discutir mais o racismo brasileiro do que os que estavam experimentando nos países de destino. No exterior, muitas encontraram pessoas negras nas universidades, em postos prestigiosos de trabalho e espaços de lazer. Essa ocupação menos segregadas de territórios valorizados as fizeram perceber que no Brasil muitas vezes elas foram as “pretas únicas” na escola privada, no escritório ou no bairro de classe média10 10 “A gente vai falar como mudar de país nos fez abraçar a nossa identidade afro-brasileira”, anuncia Moreira, na abertura do episódio 15, “Corpos e raízes afro-brasileiras pelo mundo”. Esse abraço é chamado muitas vezes de “encontro com a África” e aparece mais sublinhado no episódio citado, mas está presente na fala de todas as entrevistadas negras. .

É revelador que o encontro com um mundo em que negros ocupam lugares diversos tenha se dado em países da Europa.

Metade da minha turma de mestrado era de pessoas negras;

Encontrei os irmãos africanos (...) reconstruindo uma história preta;

Quando eu cheguei, eu participei de um grupo chamado Panafricando, que eu me conectei com diversas pessoas da diáspora, foi muito importante pra mim (...) esse grupo realiza muitos festivais que promovem a cultura de países africanos.

As falas acima são declarações pinçadas de diferentes narrativas de mulheres entrevistadas para o podcast.

Ainda que essa presença negra em países europeus testemunhe a herança de processos violentos como o imperialismo, o que chamei de revelador mais acima, tem a ver com o fato dessa população de imigrantes negros e negras virem de experiências múltiplas, não apenas as marcadas pela exclusão racial e, mais grave, por um passado associado à escravização mercantil. Esses (re)encontros reverberam subjetivamente e, em muitos casos, politicamente para as brasileiras entrevistadas. É quando as narrativas passam a produzir sentidos outros, não apenas tratam de biografias pessoais, mas de processos coletivos de transformação.

O cruzamento de fronteiras também sempre “reposiciona” e transforma subjetividades e visões do mundo (...) Nossos múltiplos “locais” ou posições de sujeito mudam, de forma crucial para a política da tradução, de acordo com nossos movimentos e passagens por “localidades” espaço-temporais. Nossas subjetividades são, ao mesmo tempo, baseadas no lugar e des-locadas ou mal- colocadas (Alvarez, 2009ALVAREZ, Sonia E. 2009. “Construindo uma política feminista translocal da tradução”. Revista Estudos Feministas. Dezembro de 2009. Vol. 17, nº 3, p. 743-753., pp. 744-745).

Não raro, as femigrantes (chamarei também assim as entrevistadas do podcast) se sentiram “des-locadas” e “mal-colocadas”, como argumenta Sônia Alvarez (2009ALVAREZ, Sonia E. 2009. “Construindo uma política feminista translocal da tradução”. Revista Estudos Feministas. Dezembro de 2009. Vol. 17, nº 3, p. 743-753.), no fragmento acima, escrevendo sobre outro contexto, mas também olhando para mulheres feministas e migrantes. A sensação de estar mal-colocada aparece em diversas falas a partir de dois referentes: a colonialidade do poder e a colonialidade do saber. A geopolítica do conhecimento as leva a se sentirem mal-colocadas, pois quase sempre, essas mulheres que falam diversas línguas, têm mestrado e/ou doutorado, não conseguem se estabelecer no mercado de trabalho a partir de suas qualificações profissionais. Seja porque precisam percorrer labirintos burocráticos para que consigam validar seus diplomas; seja porque o conhecimento que têm não é valorizado como “universal”, mas visto como “local” e, assim, não aplicável fora de seus países de origem. A persistente desqualificação de suas expertises, as fez, muitas vezes, duvidar de suas capacidades. Os efeitos da colonialidade do poder são insidiosos11 11 A colonialidade é a ordem discursiva e epistemológica que, na proposta de Quijano (2000), deu sustentação à modernidade. Este componente foi gestado a partir da expansão europeia sobre outras regiões do planeta e que continua, na contemporaneidade, a orientar a maneira como lugares e pessoas são hierarquizados. A colonialidade nasce com o colonialismo, reconhece Quijano, mas este último, ao contrário da primeira, nem sempre implica em relações racista de poder. . Mesmo quem consegue ter a leitura crítica sobre esses processos históricos hierarquizantes, se prende em suas longas teias, finas o suficiente para penetrar nas subjetividades, mesmo naquelas que estão constituindo-se pela resistência.

A sexualização da nacionalidade brasileira é outra constante nas narrativas das entrevistadas. Não raro, foi esse aspecto cultural que as fez olhar para o gênero tanto quanto para a nacionalidade, entendendo que esta última era, antes de tudo, raça. Em linhas apressadas, mas firmes, esse é o traçado que aparece nas narrativas das entrevistadas quando revisitam a sua tomada de consciência feminista.

Nas narrativas como experiência enraizada da existência humana (Motta, 2013MOTTA, Luiz Gonzaga. 2013. Análise crítica da narrativa. 1ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília., p.17), o feminismo colabora para construir sentidos para esses deslocamentos. Ao falarem de experiências pretéritas, termos como “machismo”, “sexismo”, “misoginia” sustentam reflexões sobre o processo migratório, tanto no que se refere à decisão de saírem do Brasil, quanto em relação à chegada e à adaptação em um outro país. A “descolonização” do pensamento aparece como um exercício diário de olhar para si mesma nos ambientes estrangeiros, a partir de um repertório intelectual que veio sendo formado por diferentes meios: os estudos universitários, o acesso à literatura feminista e a discussões crescentes sobre raça, gênero e sexualidade em meios digitais.

Do contato com pautas feministas a partir de redes sociais online às discussões no âmbito acadêmico ainda quando estudantes de graduação e mesmo secundaristas, passando por formação mais sistematizada nos estudos de gênero e feministas, as entrevistadas parecem ter encontrado nos feminismos negro, decolonial e interseccional um campo semântico poderoso. A textura geral12 12 Luiz Gonzaga Motta (2013, pp. 17-18), a partir de Roger Silverstone, define a textura geral da experiência como a “atitude ativa do ser humano de perseguir fins, moldar sua vida e a dos outros, refletir e criar em constante interação”. Esta se constitui “intersubjetivamente, de maneira compartilhada, através de contínua interação e comunicação com os demais”. Para Motta, essa tessitura é de ordem narrativa, mais do que conceitual, quer dizer, mais espontânea. Porém, argumento que o conceitual tem se mostrado fundamental na ressignificação das experiências. Ele estrutura novas narrativas, disputando significados com outras já estabelecidas e mesmo levando a reconfigurações subjetivas daquela que narra a si mesma. de suas experiências como estrangeiras passa por “questionamentos sobre as consequências coloniais que continuam a interferir na vida de vários sujeitos, principalmente da mulher negra” (Britto, 2018BRITTO, Milena. 2018. Um mapa diaspórico nas tramas do cabelo. Afro-Ásia. Março de 2018. nº 57, p. 215-220., p. 102)13 13 Escreve Milena Britto, referindo-se ao livro Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, autora angolana vivendo em Lisboa. Considerei essa proposição apropriada para a discussão que desenvolvo nesta seção. .

Ao tecerem discursivamente suas biografias, termos como “epistemicídio”, “colonialidade”, “sul global”, pontuam e organizam narrativas que dialogam com produções intelectuais relativamente recentes, por meio das quais as entrevistadas se apropriam de uma gramática decolonial na reflexão crítica das suas experiências como mulheres, brasileiras, feministas e migrantes. Proponho, em eco a Françoise Vergès (2020VERGÈS, Françoise. 2020. Um feminismo decolonial. 1ª ed. Ubu Editora.), que essas vozes Femigrantes que reverberam por mídias transnacionais e falam com e para uma audiência plural, integram as lutas de emancipação das mulheres do Sul global. E o fazem não como uma espécie de nova onda feminista, ou como expoentes de uma nova geração somente, mas como herdeiras de histórias que estão sendo recontadas.

Os persistentes resíduos coloniais que se amalgamam no conceito de colonialidade do poder têm sido sistematicamente desafiados a partir da contribuição de autores e autoras como Aníbal Quijano, Maria Lugones, Walter Mignolo, Ochy Curiel, mas as mais citadas pelas brasileiras entrevistadas para o podcast Femigrantes BR são as autoras estadunidenses do feminismo negro e algumas poucas brasileiras como Lelia Gonzalez e Carla Akotirene. O diálogo Sul-Sul parece ainda frágil. Ainda assim, o Femigrantes BR Podcast se propõe a protagonizar narrativas de mulheres anônimas que, a partir do Norte, possam aportar uma “nova perspectiva de análise para entender de forma mais completa as relações derivadas de ‘raça’, sexo, sexualidade, classe e geopolítica de forma imbrincada” (Curiel, 2019CURIEL, Ochy. 2019. “Construindo metodologias feministas desde o feminismo decolonial”. In: DE MELO, Paula Balduino de Melo et al. (Orgs). Descolonizar o feminismo. Brasília: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília. p. 44., p. 32). As inspirações de Moreira, assim como das entrevistadas, vêm marcadas pelo que Ochy Curiel (op. cit.) chamou de feminismos críticos. Aquelas que “deram uma reviravolta nas teorias e nas práticas feministas”, propondo outras epistemologias, o que implica em outros olhares e posicionalidades.

Na logomarca atual do Femigrantes BR, essas torções aparecem de forma bastante gráfica. O mapa-múndi é representado de “cabeça para baixo”, ou seja, desenha uma inversão em relação à forma convencional pela qual nos acostumamos a vê-lo representado. Assim, regiões como a América Latina, a África e grande parte da Ásia estão ao norte, desenhando com seus contornos um perfil feminino que remete a uma mulher racializada (Ver figura 1). Essa inversão traduz o caminho crítico e a maior parte dos deslocamentos territoriais e simbólicos pelos quais passaram as entrevistadas.

É a partir dessa posição (de cabeça para baixo) que passo à discussão sobre a midiatização das pautas feministas e as formas de ocupação da internet por essas mulheres.

Figura 1:
logomarca do Podcast Femigrantes

O podcast é político

Vamo criar uma hashtag e movimentar isso (risos)”, sugere uma das entrevistadas do Femigrantes. Ainda que a proposta tenha sido feita em tom de provocativa brincadeira, ela só faz sentido porque, nas últimas décadas, hashtags têm sido importantes ferramentas digitais na luta de feministas, sobretudo, das mais jovens e as que possuem maior acesso às redes sociais on-line. As hashtags#meuprimeiroassedio, #meuamigosecreto, #eunãomereçoserestuprada, #foracunha, #elenão, contam uma história recente do feminismo brasileiro, na qual o movimento histórico de mulheres se encontra com a mídias digitais14 14 Para uma discussão aprofundada sobre as hashtags feministas ver Josemira Reis e Graciela Nathansohn, 2017. .

As femingrantes, em sua maioria, cresceram em um mundo conectado15 15 Das 18 entrevistadas, nove nasceram nos anos de 1990; sete nos anos 80; apenas uma na década de 60 e outra nos anos de 1940. Duas vieram de contextos rurais, sendo três delas dos subúrbios cariocas e uma de Petrópolis. Nove viveram a maior parte de suas vidas em capitais: São Paulo (02), Campo Grande (02), Florianópolis (01), Porto Alegre (01), Belo Horizonte, (01) Salvador (02). Vindas do interior dos estados são duas: Ribeirão Preto (SP) e Joinville (SC). . Mesmo aquelas que vieram de lares com limitações orçamentárias significativas ou de meios rurais, têm experiências de adolescência e juventude associadas às redes sociais online e acesso a sites e blogs na internet. Foi por meio dos acessos em cibercafés, nos computadores das escolas ou mesmo em casa, que foram aprendendo a trafegar por um território difuso e plural onde se depararam com temáticas sobre diversidade sexual e de gênero, discussões sobre raça e corpo. Algumas delas, como veremos logo mais, se tornaram também produtoras de conteúdo, motivadas por esse arsenal de ideias. Na partida para o exterior, aquelas discussões acumuladas ao longo dos anos de deambular por espaços online foram em suas bagagens.

A internet, em sua arquitetura contemporânea, tem possibilitado formas mais acessíveis de se difundir e consumir conteúdos (o que não significa que tenha se tornado mais transparente e menos corporativa). Os aparatos tecnológicos, como celulares inteligentes conectados à rede e um sem-número de aplicativos, têm simplificado a produção de material audiovisual e verbovisual como nunca havíamos visto antes na história recente das mídias. Assim, sujeitos coletivos historicamente invisibilizados ou destituídos de poder de enunciação passam a ocupar espaços comunicacionais que se constituíram como um ecossistema de mídias de conectividade - um sistema que alimenta e, por sua vez, é alimentado por normas sociais e culturais que se expandem simultaneamente em nosso mundo cotidiano (Van Dijck, 2016, p. 53).

A apropriação da Web social, de suas diferentes plataformas e linguajes pelo ativismo feminista tem possibilitado uma maior participação e visibilidade no discurso público, ao contar com as ferramentas precisas para o lançamento e difusão de suas demandas, assim como para conseguir apoios em um contexto global. Ainda que o meio digital se constitua como uma esfera há mais da sociedade em que estão presentes as desigualdades e violências do mundo offline, também podem energizar as ações desenvolvidas, dada a potência real e mítica da tecnologia e sua projeção mundial. (Piñero-Otero, 2021PIÑEIRO-OTERO, Teresa. 2021. “Los nuevos modelos de publicidad en revistas nativas digitales deportivas: el caso de Marca Plus”. Revista Inclusiones. Vol. 8, nº 8, Especial, p. 231-254., p. 233)16 16 Original em espanhol: La apropiación de la Web social, de sus diferentes plataformas y lenguajes, por el activismo feminista ha posibilitado su mayor participación y visibilidad en el discurso público, al contar con las herramientas precisas para el lanzamiento y difusión de sus demandas, así como para la consecución de apoyos en un contexto global. Aunque el medio digital constituye una esfera más de la sociedad, en la que están presentes las desigualdades y violencias del mundo offline, también puede energizar las acciones desarrolladas, dada la potencia real y mítica de la tecnología, y su proyección mundial. .

Os podcasts fazem parte desse arsenal de novas formas de ação comunicativa. São novas porque podem ser acessadas sob demanda, além da possibilidade tecnológica de se espraiar para além das fronteiras que circunscrevem a radiodifusão a territórios físicos específicos. Além disso, são produções de baixo custo, uma vez que se pode utilizar aplicativos gratuitos para celulares para o registro de voz e inserir efeitos sonoros por meio das ferramentas que estes disponibilizam. Pode-se, ainda, subir o material de forma gratuita para plataformas tocadoras de podcast e se valer de perfis criados nas redes sociais on-line para difundi-los. Os podcast podem ser, como os programas de rádio, acompanhados enquanto realizamos outras tarefas do dia a dia. Facilidade que atende às demandas contemporâneas de uma sociedade altamente produtivista em que o estímulo a sermos multifuncionais (mais que simplesmente funcionais) e permanecer em atividades formativas e produtivas têm sido elementos que nos ajudam a entender o boom dos podcasts (Soares; Vicente, 2021SOARES, Rosana de Lima ; VICENTE, Eduardo. 2021. “Áudio e ativismo social: uso das práticas do podcast para a visibilidade de um discurso feminista”. In: RADAKOVICH, Rosario; WORTMAN, Ana Elisa. Nuevas Mutaciones del Consumo Cultural en el Siglo XXI: Tecnologías, Espacios y Experiencias. 1ª ed. Buenos Aires: ALAS. p. 9-23.).

À parte essas características, e por conta delas, os podcasts são um espaço possível para vozes historicamente alijadas das mídias mainstream. É assim que o Femigrantes BR se reconhece. Como repete a cada episódio Lilian Moreira, reverberando as vozes da equipe voluntária que hoje integra o projeto, aquele é um “espaço de mulheres feministas e migrantes pelo mundo”. Assumidamente decolonial, o Femigrantes se mantém sem outros financiamentos que não as contribuições modestas de ouvintes recolhidas por meio de crowdfund (fundos digitais solidários de suporte financeiro).

Acompanhar os episódios do Femigrantes BR Podcast é também conhecer a atuação de brasileiras nascidas nas décadas de 1980 e 1990 (apenas duas delas eram mulheres acima dos 50 anos), que buscam, a partir do exterior, desenvolver projetos voltados para mulheres brasileiras, crianças, estudantes de todas as identidades sexuais, imigrantes de diferentes nacionalidade e status migratórios, valendo-se muitas vezes do ecossistema de comunicação digital para viabilizar projetos, propagá-los e possibilitar a interação com o público visado.

Como Jeder Silveira Janotti Junior, acredito de forma assumidamente entusiasta,

que o modo como o ambiente tecnológico da cultura digital entrelaçou as formas de produzir, circular e consumir produtos culturais aponta para a emergência de novos agenciamentos entre cultura, tecnologia e relações sociais (...). Neste contexto, parece-me interessante pensar, junto com José Van Dijck (2013VAN DIJCK, Jose. 2016. La cultura de la conectividad: una historia crítica de las redes sociales. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores.), em uma ambientação comunicacional que se traduz nos termos de uma ecologia.

As ideias de ambiente, ambientação e ecossistema comunicacionais definem conexões em rede que pressupõem mediações e transmissibilidade entre artefatos técnicos (objetos) e humanos, estabelecendo associações que ajuntam, separam e configuram modos de habitar mundos na cultura contemporânea. (Janotti Junior, 2021JANOTTI JUNIOR, Jeder Silveira. 2021. “Cultura Pop, Conectividade e Rasuras em Tempos de Ambientações Comunicacionais Digitais”. Cult De Cultura: Revista interdisciplinar sobre arte sequencial, mídias e cultura pop. Vol. 1, nº 01, p. 23-33., p. 25)

Habitar mundos ou O Mundo como mulher latina migrante é uma experiência plural, flagrante na amostra aqui considerada. Mesmo que se trate de mulheres escolarizadas, jovens (em sua maioria) e brasileiras, a interseccionalidade entre classe, regionalidade, tons de pele e sexualidade diversifica as vivências. São marcadores que tramam tessituras que constituem redes específicas de integração local e ação transnacional. As mediações e transitabilidades vão sendo alinhavadas em delicados pontos que integram plataformas que se combinam em um ecossistema que Van Dijck chamou de “mídias de conectividade”. “Um sistema que alimenta e, por sua vez, é alimentado por normas sociais e culturais que se expandem simultaneamente em nosso mundo cotidiano” (Van Dijck apud Janotti Junior, 2021JANOTTI JUNIOR, Jeder Silveira. 2021. “Cultura Pop, Conectividade e Rasuras em Tempos de Ambientações Comunicacionais Digitais”. Cult De Cultura: Revista interdisciplinar sobre arte sequencial, mídias e cultura pop. Vol. 1, nº 01, p. 23-33., p. 25).

As transformações sociais pelas quais o Brasil passou, nas últimas duas décadas desse milênio, nos lançaram de ciclos políticos progressistas - momento em que a maior parte das entrevistadas experimentou como adolescentes ou jovens adultas - para um outro ciclo de inflexão conservadora. Orquestrada pelo Estado, desenhou-se no Brasil uma vaga antifeminista, abertamente violenta e indisfarçavelmente racista, avesso às políticas igualitárias que vínhamos conhecendo17 17 Entre 2002 e 2015, houve uma intensificação das políticas de Estado de promoção da igualdade de gênero e raça, como a implantação da política de cotas raciais na UFRJ e na UNEB, em 2002; no ano seguinte, a formação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres - SPM. Ainda em 2003, criou-se a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), que, em 2015, foi incorporada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, unindo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Direitos Humanos, e a Secretaria de Políticas para as Mulheres; em 2004, surge o Programa Brasil Sem Homofobia. Em oito anos do governo Lula, o Estado promoveu 74 Conferências que versaram sobre 40 temas diferentes: crianças e adolescentes, Mulheres, Meio Ambiente, Raça, Saúde, Educação, Pessoas com Deficiências, só para listar algumas dessas temáticas.Em 2008, tivemos a primeira Conferência Nacional de Direitos LGBT (Aguião, 2017, s/p). . As reverberações e reações a esses cenários possibilitaram, motivaram e provocaram intervenções das brasileiras aqui consideradas, passando elas a serem produtoras de conteúdos midiáticos e não apenas consumidoras destes.

Listo a seguir algumas dessas produções: 1. o perfil no Instagram @brasileirasdomundo com mais de 46 mil seguidoras (em junho de 2022). A iniciativa se propõe a empoderar mulheres brasileiras migrantes e desconstruir estereótipos de gênero e nacionalidade; 2. a revista eletrônica Viajadamente, voltada para a saúde mental de quem migra e inserção laboral no país receptor; 3. ainda no Instagram, o perfil @pretanaitalia (com mais de 17 mil seguidoras, em junho de 2022) que pretende dar dicas sobre viver na Itália a partir do ponto de vista de uma mulher preta e latina; 4. o blog Papacapim18 18 http://www.papacapim.org/ , onde Sandra Guimarães, femigrante de origem rural, ligada ao Movimento dos Sem Terra, discute alimentação e colonialidade, capitalismo, especismo e agronegócio; 5. a campanha “Ninguém Mexe Comigo”, idealizada por Paola Bellucci, para uma educação protetiva para crianças se prevenirem contra o abuso sexual. Lançada em 2020, o clip musical da campanha foi divulgado pela TV Cultura e, em maio de 2021, a canção já tinha versões em 10 idiomas além do português19 19 Acesso ao clip da campanha, gravado durante a pandemia da Covid-19, com as e os voluntários em suas casas: https://www.youtube.com/watch?v=J1RHieEwRNE. No Instagram, o perfil é @ninguem.mexe.comigo ; 6. ou ainda a iniciativa de Vera Jus, co-coordenadora do Coletivo Encrespa Geral Londres (@encrespageraloficial, perfil com 1.174 seguidores mil seguidoras/es, em junho de 2022, no Instagram e 20 mil e 700, no Facebook).

À parte as citadas iniciativas individuais, na bancada do Femigrantes BR Podcast estiveram também as atuações institucionais. As entrevistadas que integram a Rede de Apoio a Mulheres Brasileiras Vítimas de Violência Doméstica - REVIBRA20 20 A Rede atua em diferentes países para a proteção jurídica e assistência psicológica de conterrâneas, mas também de outras nacionalidades que estejam em situação de vulnerabilidade de gênero e de nacionalidade. discutiram: relacionamentos binacionais e o mito do príncipe encantado gringo; a racialização na imigração; a descolonização dos projetos migratórios; maternidade e migração, em conversas nas quais a experiência pessoal das entrevistadas aviva a proposição de Donna Haraway (1995HARAWAY, Donna. 1995. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu . Abril de 2015. nº 5, p. 7-41.) sobre saberes situados.

A inegável potência dessas iniciativas todas não apaga que seu ambiente de repercussão é o da cultura digital, aqui percebida, a partir das lentes críticas de Graciela Nathansohn (2018NATHANSOHN, Graciela. 2018. Por Uma Internet Feminista e Decolonial. Anais XX Encontro Internacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre Mulher e Relações de Gênero (REDOR). Disponível em: Disponível em: https://www.redor2018.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNDoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjM6IjE5MSI7fSI7czoxOiJoIjtzOjMyOiI1MjNhZDIwNDVjZTY2ZjFjNGJjZWNkZDE0MWYzZjMwMCI7fQ%3D%3D [Acessado em 31.07.2023]
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, s/p), como uma “matriz epistêmica filha da globalização hegemônica e do capitalismo transnacional”. Porém, inspirada por Helena Suárez Val, proponho que podemos fazer usos subversivos dessas ferramentas e desses espaços. Suárez Val chama essas formas de ativismo feminista de “desobedientes”, pois transformam as tecnologias projetadas no Norte global, por (principalmente) homens, em ferramentas para denunciar a violência de gênero.

Meios digitais e não digitais, desobedientemente apropriados por ativistas feministas, adquirem uma vitalidade autopropulsora, “fazendo coisas continuamente” (Bennet, 2009, p.112; ênfase no original) à medida que se movem através de redes e formatos humanos e de computadores, sendo reutilizados, re-significados e re-compartilhados21 21 Original em inglês: “digital and non-digital media disobediently appropriated by feminist activists, acquire a self-propelling vitality, “continually doing things” (Bennet, 2009, p.112; emphasis in the original) as they move through human and computer networks and formats, being re-used, re-signified and re-shared”. Val, 2018VAL, Helena Suárez. 2018. “Vibrant Maps: exploring the reverberations of feminist digital mapping”. Diseño, Arte y Sociedad. Vol. 3, nº 5, p. 113-139., p. 118).

Desobedecer para descolonizar, pode ser uma estratégia para tornar a internet mais feminista? Não ofereço uma resposta a essa inquietante questão, pois, penso, como Graciela Nathansohn (op. cit.) e Evgeny Morozov (2018NATHANSOHN, Graciela. 2018. Por Uma Internet Feminista e Decolonial. Anais XX Encontro Internacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre Mulher e Relações de Gênero (REDOR). Disponível em: Disponível em: https://www.redor2018.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNDoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjM6IjE5MSI7fSI7czoxOiJoIjtzOjMyOiI1MjNhZDIwNDVjZTY2ZjFjNGJjZWNkZDE0MWYzZjMwMCI7fQ%3D%3D [Acessado em 31.07.2023]
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), que não podemos ser ingênuas quando transitamos por territórios altamente vigiados, controlados e mercantilizados. Ainda assim, resisto na questão para que ela se desacomode em nós.

Midiatização e feminismos: inquietações no lugar de conclusões

Assistimos, na última década desse milênio, uma notável inflexão nas pautas feministas no cenário nacional22 22 Pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha em 2019 mostra que mulheres com curso superior tendem a se identificar mais com o feminismo (44%) do que aquelas que cursaram apenas o ensino médio (33%). O mesmo levantamento aponta que “entre mulheres de cor preta, 47% são feministas, índice que fica em 37% entre paradas e 36% entre brancas” (Datafolha, 2019, s/p). Esses resultados aparecem encarnados nas biografias das brasileiras que estiveram na bancada do Femigrantes BR. , estreitamente relacionada à consolidação do projeto democrático brasileiro, ao amadurecimento de movimentos sociais identitários, como aqueles que lutam por direitos sexuais, raciais e de gênero e a governos mais afeitos às demandas de segmentos historicamente subalternizados. Some-se a esse cenário a intensificação do uso e acesso às mídias digitais23 23 De acordo com PNAD Contínua TIC 2017 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, que investiga o acesso à Internet e à televisão, além da posse de telefone celular para uso pessoal, a Internet chega hoje a três em cada quatro domicílios do país. Porém, o acesso à rede mundial de computadores é feito por 97% das pessoas ouvidas por meio do celular, o qual é usado sobretudo para envio ou recebimento de mensagens de texto, voz ou imagens por aplicativos diferentes de e-mail (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23445-pnad-continua-tic-2017-internet-chega-a-tres-em-cada-quatro-domicilios-do-pais). Última consulta em 10/06/2022. Pesquisa realizada pelo IBOPE, em 2019, mostrou que mulheres formam a maior parte de usuárias da internet (53%). como Facebook, Twitter e Instragram, por meio das quais usuárias(os) se tonam produtoras(es) de conteúdo e replicadoras/es de discursos diversos, entre estes estão os que podem ser associados a temas das agendas feministas, como direitos sociais iguais, equidade de salário, direitos reprodutivos, descriminalização do aborto, denúncias contra violência doméstica e, mais recentemente, a luta contra o assédio sexual. As pautas associadas ao corpo, como território político, têm formatado diálogos com agendas dos movimentos de pessoas transexuais e travestis, bem como os movimentos negros.

Todas essas recentes mudanças e alianças estão estreitamente vinculadas à midiatização dos ativismos (Aquino; Bittencourt, 2013AQUINO BITTENCOURT, Maria Clara. 2015. “As narrativas colaborativas nos protestos de 2013 no Brasil: midiatização do ativismo, espalhamento e convergência”. Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación. Agosto-Novembro de 2015. nº 129, p. 325-343.), a qual, por sua vez, se vincula à ampliação de vocabulário político por meio do qual comportamentos culturalmente naturalizados ou silenciados passam a ser questionados e denunciados. Termos como “misoginia”, “assédio”, “empoderamento feminino”, “racismo estrutural” se somaram ao léxico político que mobiliza palavras como homofobia, lesbofobia, transfobia, transfeminismo, cisheteronomatividade, entre outras, que se converteram em hashtags e est as em tópicos de debate nas redes. De forma que esse vocabulário especializado foi sendo apropriado por diferentes agentes. Assim, conforme retoma Garcia,

Segundo Fausto Neto (2008), o avanço da midiatização causa transformações de regimes de falas, dentro de reformulações de práticas, de contratos, dispositivos, operações e da própria problemática da produção de sentido. Nesses processos, são geradas novas configurações de vida social e individual, de dinâmicas e lógicas, em que há novos formatos de trocas simbólicas e antigos costumes. (Garcia, 2011GARCIA, Adriana Domingues. 2011. “Nem tudo é midiatização: como entender, ver e analisar a complexidade dos processos comunicacionais sem banalizar”. Revista Emancipação. Vol. 11, nº 2, p.215-224., p. 216).

O conceito de midiatização pode oferecer elementos teóricos para se pensar nessas práticas e sua associação aos ativismos. Detidamente, aqueles ativismos articulados por mulheres feministas, campo no qual o engajamento é atravessado por lógicas midiáticas. Número de visualizações, “likes”, comentários, entre outras formas de deixar rastros digitais cuja métrica quantifica os ativismos e os individualiza, exigindo acuradas estratégias e negociações entre quem produz conteúdos e a invisibilidade algorítmica que organiza as plataformas na internet.

Feminismo e tecnologias de comunicação cultivam um flerte histórico que conhece seu ponto de inflexão nos anos de 1990, quando o termo ciberfeminismo foi cunhado por Sadie Plant, diretora do Centre for Research into Cybernetic Culture, da Universidade de Warwick, para descrever a convergência entre mulheres e tecnologia. Relação esta que Plant caracterizava como íntima e subversiva (Ureta, 2005URETA, Ainara. 2005. “La Red al servicio de las mujeres. Aproximación a la relación mujer y medios de comunicación en Internet”. Estudios sobre el Mensaje Periodístico. nº 11, p. 375-392., p. 383). O mote “o pessoal é político” já essa relação insinuava essa relação no final da década de 1960. Com a midiatização dos feminismos e da política de gênero e sexualidade, a palavra de ordem cunhada por Carol Hanisch24 24 Carol Hanisch cunhou o slogan “o pessoal é político”, em 1969. Considerada radical por alguns/algumas críticos/as. Jornalista engajada na luta pelos diretos civis de negros e outras minorias políticas, esteve à frente de protestos como pelo fim dos concursos de misses, engajou-se em diferentes lutas, como a livrada pelo fim do apartheid na África do Sul. Ainda viva, Hanisch defende o ativismo presencial, ainda que reconheça os efeitos mobilizadores das mídias sociais digitais. Para uma entrevista com Hanisch ver: https://medium.com/@feminismoclasse/entrevista-com-carol-hanisch-b9016b1d5375 (última consulta em 16/06/2022). há mais de 50 anos ganha também sua versão invertida: o político se torna altamente pessoal.

O espaço virtual da Internet coloca ao alcance do movimento feminista potencias expressivas desconhecidas, entre outras, uma nova significação de comunicação coletiva que converte a as mulheres em autoras, transmissoras e destinatárias de informação (...) Por tudo isso, parece razoável afirmar que o coletivo feminino encontra na nova plataforma digital um cenário reivindicativo sem igual, no qual se pode acessar conteúdos coerentes com seus interesses e necessidades informativas. (Ureta, 2005URETA, Ainara. 2005. “La Red al servicio de las mujeres. Aproximación a la relación mujer y medios de comunicación en Internet”. Estudios sobre el Mensaje Periodístico. nº 11, p. 375-392., p.381).25 25 Original em espanhol: “El espacio virtual de Internet pone al alcance del movimiento feminista potencias expresivas desconocidas, entre otras, una nueva significación de comunicación colectiva que convierte a las mujeres en autoras, transmisoras y destinatarias de información (...) Por todo ello, parece razonable afirmar que el colectivo femenino encuentra en la nueva plataforma digital un escenario reivindicativo sin igual, en el que poder acceder a contenidos coherentes con sus intereses y necesidades informativas.”

Porém, como reconhece Lilian Moreira (via WhatsApp, em 04/06/22), os grupos conservadores parecem ocupar de forma mais eficiente os territórios digitais. Mesmo porque, são os escândalos, as notícias sensacionalistas, as teorias da conspiração os conteúdos mais impulsionados pelas plataformas como Facebook e mesmo redes de conversas privadas como WhatsApp, difíceis de serem monitoradas (Morozov, 2018MOROZOV, Evgeny. 2018. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. 1ª ed. São Paulo: Ubu Editora.). Às empresas interessa o extrativismo de nossos dados, mais do que a difusão de conteúdos genuínos e verdadeiros.

Ainda assim,

Estes canais alternativos têm permitido às mulheres situar suas perspectivas e temáticas de interesse na agenda pública, através de processos de automediação de massas no meio digital. De fato, a automediação constitui uma das principais ações do ativismo feminista internacional. A recopilação de notícias ausentes nos meios de comunicação, a mudança de foco no seu tratamento, a introdução de novas vozes ou o revisionismo histórico (a chamada herstoria [a história delas]) não só oferecem uma leitura feminista das diferentes realidades com perspectiva de género, também apresentam um importante trabalho de visibilização e divulgação. Listas de difusão, blogs, redes sociais ou podcast supõem manifestações desse trabalho de automediação feminista. Coletivos e pessoas individuais se lançaram na criação de diferentes tipos de conteúdos, que vão desde temáticas mais próximas à teoria e à práxis feministas, à apresentação de vozes e perspectivas mais diversas e dissidentes. (Piñeiro-Otero, 2021PIÑEIRO-OTERO, Teresa. 2021. “Los nuevos modelos de publicidad en revistas nativas digitales deportivas: el caso de Marca Plus”. Revista Inclusiones. Vol. 8, nº 8, Especial, p. 231-254., p, 234)26 26 Original em espanhol: “Estos canales alternativos han permitido a las mujeres situar sus perspectivas y temáticas de interés en la agenda pública, a través de procesos de automediación de masas en el medio digital. De hecho, la automediación constituye una de las principales acciones del activismo feminista internacional. La recopilación de noticias ausentes en los medios de comunicación, el cambio de foco en su tratamiento, la introducción de nuevas voces o el revisionismo histórico (la llamada herstoria7) no sólo ofrecen una lectura feminista de las diferentes realidades con perspectiva de género, también presentan una importante labor de visibilización y divulgación. Listas de difusión, blogs, redes sociales o podcast suponen manifestaciones de esta labor de automediación feminista. Colectividades y personas individuales se han lanzado a la creación de diferentes tipos de contenidos, que van desde temáticas más próximas a la teoría y praxis feministas, a la presentación de voces y perspectivas más diversas y disidentes”.

O propósito da produção midiática analisada neste artigo foi promover a escuta de anônimas vozes fronteiriças27 27 A equipe do Femigrantes Br Podcast pretende alargar essa escuta para pessoas que migraram em condições menos favoráveis e mesmo precárias. , cheias de sotaques e regionalismos, que encontram no vocabulário político dos feminismos elementos narrativos que as ajudam a reler suas histórias, ao mesmo tempo que as contam para uma audiência tão imaginada quanto incerta. Ocupar brechas digitais de gênero, raça, classe, nacionalidade, religião, idade etc. e buscar estratégias a fim de superá-las é um dos 16 pontos “reivindicatórios para o fim da hegemonia do mercado e para a livre circulação de ideias na rede”, tirados no II Encontro Internacional Ciberfeminista ocorrido em Salvador, durante o Fórum Social Mundial/FSM.

Sem ilusões de uma ciberutopia, penso que é fundamental que sigamos nos interrogando “como feministas, que tipo de internet queremos e o que necessitamos para alcançá-la?” (Nathansohn, 2018NATHANSOHN, Graciela. 2018. Por Uma Internet Feminista e Decolonial. Anais XX Encontro Internacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre Mulher e Relações de Gênero (REDOR). Disponível em: Disponível em: https://www.redor2018.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNDoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjM6IjE5MSI7fSI7czoxOiJoIjtzOjMyOiI1MjNhZDIwNDVjZTY2ZjFjNGJjZWNkZDE0MWYzZjMwMCI7fQ%3D%3D [Acessado em 31.07.2023]
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, s/p). “Para tanto será necessário romper o monopólio intelectual e discursivo que as empresas de tecnologia mantêm sobre nossa imaginação política”, escreve Evgeny Morozov (2018MOROZOV, Evgeny. 2018. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. 1ª ed. São Paulo: Ubu Editora., s/p), referindo-se às lutas antineoliberais. Tomo emprestada essa estratégia, pois só entendo o feminismo decolonial do Femigrantes Br como uma produção crítica ao neoliberalismo. Como tal, questionadora de sentidos individualizantes do “empoderamento”.

Como Cecília Sardenbeg (2009SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. 2019. Conceituando “empoderamento” na perspectiva feminista. Comunicação oral apresentada ao I Seminário Internacional: Trilhas do Empoderamento de Mulheres. Salvador.), reconheço que apesar das origens radicais do conceito “empoderamento”, o termo passou por processos de teorização acadêmica e de domesticação de Estado que o mergulharam em uma polissemia politicamente escorregadia. Não se trata aqui de querer fixá-lo como conceito, mas de encarar esses usos diversos, situando seus sentidos e tensões no campo em que ele é mobilizado, e das significações que aparecem nas narrativas das mulheres que estiveram na bancada do Femigrantes BR.

No âmbito do campo discursivo de ação dos feminismos, as brasileiras entrevistadas encontraram recursos teóricos e conceituais que fomentaram e expandiram suas reflexões sobre seus projetos e vivência de migração. Ao nomearem experiências de subalternização, reconhecendo-as como produtos de relações desiguais que hierarquizam corpos e países, passaram a produzir resistências. Talvez seja isso o que as femigrantes chamam de “empoderamento”.

Parte desse fortalecimento, que as leva a questionar relações assimétricas de poder, passa pela midiatização dos feminismos, fenômeno que não se separa facilmente da plataformização das agendas feminista por meio da internet. Porém, como ponderam Josemira Reis e Graciela Nathansohn, alcançar a internet que queremos exige que nos lancemos em uma guerra de guerrilha no intento de fissurar as bases androcêntricas que estão na gênese da internet com seu berço militarista e seu corolário comercial, as “empresas de capital de risco, acadêmicos e hackers, todos segmentos sociais controlados eminentemente por homens brancos e falantes de língua inglesa” (Reis; Natansohn, 2017REIS, Josemira Silva; NATHANSOHN, Graciela. 2017. “Com quantas hashtags se constrói um movimento? O que nos diz a “Primavera Feminista” brasileira”. Tríade: comunicação, cultura e mídia. Vol. 5, nº 10, p. 114-130., p.117).

Mulheres racializadas, falando em português brasileiro, têm mostrado que os feminismos têm oferecido uma linguagem de combate eficiente, não só transformando suas vidas privadas como as instrumentalizando para atuações em diversas frentes políticas, decoloniais e antipatriarcais. Como ativistas voluntárias, associadas a organismos internacionais ou atuando como pesquisadoras acadêmicas, as femigrantes têm, mesmo que modestamente, desafiado o privilégio da “voz” masculina na podosfera. Suas vozes falam de experiências de serem mulheres expatriadas, enovelam-se com estruturas macrossociais e conectam-se a lutas pretéritas, revisitadas a partir de uma outra ótica feministas, aquela que tem colocado o mundo de cabeça para baixo.

Referências bibliográficas

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  • VAN DIJCK, Jose. 2016. La cultura de la conectividad: una historia crítica de las redes sociales Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores.
  • VERGÈS, Françoise. 2020. Um feminismo decolonial 1ª ed. Ubu Editora.
  • 1
    Este texto deriva do projeto de Pesquisa “Que comece o Matriarcado”, a construção de ativismo on-line e solidariedades off-line entre brasileiras vivendo em Paris, referente à Bolsa Produtividade Nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil, processo 307378/2019-5.
  • 2
    Milena Britto discute a narrativa de si tal como ela é adotada no estilo literário de autoras brasileiras contemporâneas como uma estratégia política. Ao analisar o livro Este Cabelo, de Djaimilia Pereira, Britto propõe que a voz na primeira pessoa que se expande em um “narrar a si [...] passa por uma proposta da autora de se descobrir como parte de um processo histórico e ao mesmo tempo, ao se reconhecer como participante de um certo grupo social, questionar com a escrita tanto quanto com a temática” (Britto, 2018, p. 103-104). Daí nossa escolha pelo verbo narrar.
  • 3
    Bousso é italiana filha de pais senegaleses, formada em Letras e no momento de escrita deste artigo estava se dedicando ao Femigrantes em italiano. O Fémigrantes em francês registrou 8 episódios. O Femigrantes BR se inicia com a parceria de Lidiane Vieira, socióloga, amapaense, também fazendo mestrado em Paris. Lidiane integrou o projeto durante 06 episódios, se desligando do projeto por razões pessoais. Hoje a equipe do Femigrantes BR é composta por Gabriela de Carvalho, Luciana Gransotto, Mairê Carli, a identidade visual é de Patrícia Kuniyasi (a PKá) e Glauco Salmazio, responsável pela edição, sonorização e criador da identidade sonora do podcast.
  • 4
    Adiamos essa discussão para a seção final deste artigo.
  • 5
    A maior parte das entrevistadas é composta por mulheres que migraram para realizar seus estudos de nível superior (sejam cursos completos ou parciais) no exterior. O fato de se reconhecerem como migrantes e não como em “mobilidade científica” ou “cientistas internacionais” é relevante para a comunicação, pois outorga valor político às suas identidades. Como explica Thaís França (2016, p. 208), “cada vez mais imigração e imigrantes referem-se a sujeitos estigmatizados como perigosos, problemáticos, que atravessam fronteiras sem estar resguardados por privilégios legais sendo, portanto, indesejados. Já a mobilidade científica alude ao deslocamento geográfico de uma elite intelectual e laboral, portanto, bem-vindo”.
  • 6
    Já foram debatidos temas como interseccionalidade e saúde de imigrantes(#2); afro turismo (#03); mídia e migração (#04); maternidade e migração (#05); abuso sexual de crianças e adolescente (#06); decolonialidade da migração (#07); hisperssexualização de brasileiras (#08); pandemia e restrições migratórias para estudantes (#09); migração reversa (#10); migração e indicadores de felicidade (#11); inserção profissional como imigrante (#13); histórias marcantes narradas por entrevistadas (#14); Corpos e raízes afro-brasileiras (#15); nutrição e colonialidade (#16); amores binacionais e hierarquias globais (#12 e #17); especial 8 de Março (#18); Mulheres refugiadas da Ucrânia (#19); síndrome da impostora e migrantes mulheres (#20); música e a redescoberta da identidade migrante (#21). Aqui não trataremos nos cinco especiais chamados de Choquitos Culturais, quadros lançados entre os episódios e nem das discussões que ocorrem por meio do grupo na plataforma Telegram, o Femigrupo.
  • 7
    Lilian Moreira é uma das integrantes de um grupo de brasileiras feministas, o qual aqui vou chamar de Fridas e a Resistência, nome ficcional. O coletivo se formou após o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, no intuito de reunir brasileiras residentes na França para discutir caminhos para angariar votos para Fernando Haddad (PT), opositor do candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro. Fui convidada por Lilian a participar de reuniões do grupo, assim nosso contato se estreitou. Quando o projeto do Fémigrantes FR se iniciou, mostrei meu interesse pelo mesmo, nascendo assim uma interlocução que se estabeleceu por WhatsApp e em encontros presenciais, sempre que estive em Paris. Foi no mesmo grupo que conheci Lidiane Vieira, com quem também passei a conversar por meios digitais e encontros presenciais, já sinalizando meu interesse de pesquisa em relação à produção e ao conteúdo dos podcasts. Quanto a Boussou, não cheguei a conhecê-la, mas ela estava ciente do desenvolvimento da pesquisa e forneceu informações por meio de Lilian, sempre por WhatsApp. O WhatsApp mostrou-se como eficiente meio para comunicações pontuais e mais ágeis. Por intermédio daquele aplicativo pude sanar algumas dúvidas em relação ao projeto, complementar informações sobre as entrevistadas e ainda se mostrou um canal de solidificação de afetos. As trocas de mensagens digitais, somadas aos emojis, figurinhas e gifs (materiais visuais disponíveis no aplicativo) fomentaram vínculos de confiança e amizade, fundamentados de início em parceria política entre a pesquisadora e as produtoras do Femigrantes BR.
  • 8
    Nem todas cursaram escolas privadas ou tiveram esse acesso durante todo o ensino básico. Mas é patente o esforço dos pais em proporcionar para elas um “bom ensino”, o que muitas vezes as colocou em ambientes sociais hostis, fosse relativo a serem elas mulheres não-brancas ou por serem das classes populares.
  • 9
    Apenas duas entrevistadas tiveram experiências distintas, sintomaticamente as que mudaram para países fora da União Europeia (Senegal e Japão).
  • 10
    “A gente vai falar como mudar de país nos fez abraçar a nossa identidade afro-brasileira”, anuncia Moreira, na abertura do episódio 15, “Corpos e raízes afro-brasileiras pelo mundo”. Esse abraço é chamado muitas vezes de “encontro com a África” e aparece mais sublinhado no episódio citado, mas está presente na fala de todas as entrevistadas negras.
  • 11
    A colonialidade é a ordem discursiva e epistemológica que, na proposta de Quijano (2000), deu sustentação à modernidade. Este componente foi gestado a partir da expansão europeia sobre outras regiões do planeta e que continua, na contemporaneidade, a orientar a maneira como lugares e pessoas são hierarquizados. A colonialidade nasce com o colonialismo, reconhece Quijano, mas este último, ao contrário da primeira, nem sempre implica em relações racista de poder.
  • 12
    Luiz Gonzaga Motta (2013, pp. 17-18), a partir de Roger Silverstone, define a textura geral da experiência como a “atitude ativa do ser humano de perseguir fins, moldar sua vida e a dos outros, refletir e criar em constante interação”. Esta se constitui “intersubjetivamente, de maneira compartilhada, através de contínua interação e comunicação com os demais”. Para Motta, essa tessitura é de ordem narrativa, mais do que conceitual, quer dizer, mais espontânea. Porém, argumento que o conceitual tem se mostrado fundamental na ressignificação das experiências. Ele estrutura novas narrativas, disputando significados com outras já estabelecidas e mesmo levando a reconfigurações subjetivas daquela que narra a si mesma.
  • 13
    Escreve Milena Britto, referindo-se ao livro Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, autora angolana vivendo em Lisboa. Considerei essa proposição apropriada para a discussão que desenvolvo nesta seção.
  • 14
    Para uma discussão aprofundada sobre as hashtags feministas ver Josemira Reis e Graciela Nathansohn, 2017.
  • 15
    Das 18 entrevistadas, nove nasceram nos anos de 1990; sete nos anos 80; apenas uma na década de 60 e outra nos anos de 1940. Duas vieram de contextos rurais, sendo três delas dos subúrbios cariocas e uma de Petrópolis. Nove viveram a maior parte de suas vidas em capitais: São Paulo (02), Campo Grande (02), Florianópolis (01), Porto Alegre (01), Belo Horizonte, (01) Salvador (02). Vindas do interior dos estados são duas: Ribeirão Preto (SP) e Joinville (SC).
  • 16
    Original em espanhol: La apropiación de la Web social, de sus diferentes plataformas y lenguajes, por el activismo feminista ha posibilitado su mayor participación y visibilidad en el discurso público, al contar con las herramientas precisas para el lanzamiento y difusión de sus demandas, así como para la consecución de apoyos en un contexto global. Aunque el medio digital constituye una esfera más de la sociedad, en la que están presentes las desigualdades y violencias del mundo offline, también puede energizar las acciones desarrolladas, dada la potencia real y mítica de la tecnología, y su proyección mundial.
  • 17
    Entre 2002 e 2015, houve uma intensificação das políticas de Estado de promoção da igualdade de gênero e raça, como a implantação da política de cotas raciais na UFRJ e na UNEB, em 2002; no ano seguinte, a formação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres - SPM. Ainda em 2003, criou-se a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), que, em 2015, foi incorporada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, unindo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Direitos Humanos, e a Secretaria de Políticas para as Mulheres; em 2004, surge o Programa Brasil Sem Homofobia. Em oito anos do governo Lula, o Estado promoveu 74 Conferências que versaram sobre 40 temas diferentes: crianças e adolescentes, Mulheres, Meio Ambiente, Raça, Saúde, Educação, Pessoas com Deficiências, só para listar algumas dessas temáticas.Em 2008, tivemos a primeira Conferência Nacional de Direitos LGBT (Aguião, 2017AGUIÃO, Silvia. 2017. “Quais políticas, quais sujeitos? Sentidos da promoção da igualdade de gênero e raça no Brasil (2003 - 2015)”. Cadernos Pagu. Dezembro de 2017. nº 51., s/p).
  • 18
    http://www.papacapim.org/
  • 19
    Acesso ao clip da campanha, gravado durante a pandemia da Covid-19, com as e os voluntários em suas casas: https://www.youtube.com/watch?v=J1RHieEwRNE. No Instagram, o perfil é @ninguem.mexe.comigo
  • 20
    A Rede atua em diferentes países para a proteção jurídica e assistência psicológica de conterrâneas, mas também de outras nacionalidades que estejam em situação de vulnerabilidade de gênero e de nacionalidade.
  • 21
    Original em inglês: “digital and non-digital media disobediently appropriated by feminist activists, acquire a self-propelling vitality, “continually doing things” (Bennet, 2009, p.112; emphasis in the original) as they move through human and computer networks and formats, being re-used, re-signified and re-shared”.
  • 22
    Pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha em 2019 mostra que mulheres com curso superior tendem a se identificar mais com o feminismo (44%) do que aquelas que cursaram apenas o ensino médio (33%). O mesmo levantamento aponta que “entre mulheres de cor preta, 47% são feministas, índice que fica em 37% entre paradas e 36% entre brancas” (Datafolha, 2019DATAFOLHA INSTITUTO DE PESQUISA. 2019. Mulheres Violência e Feminismo. Disponível em: Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2019/04/15/0ccf1b7f5f71464e482dfa38406ec34efem.pdf . [Acessado em 10.06.2022]
    http://media.folha.uol.com.br/datafolha/...
    , s/p). Esses resultados aparecem encarnados nas biografias das brasileiras que estiveram na bancada do Femigrantes BR.
  • 23
    De acordo com PNAD Contínua TIC 2017 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, que investiga o acesso à Internet e à televisão, além da posse de telefone celular para uso pessoal, a Internet chega hoje a três em cada quatro domicílios do país. Porém, o acesso à rede mundial de computadores é feito por 97% das pessoas ouvidas por meio do celular, o qual é usado sobretudo para envio ou recebimento de mensagens de texto, voz ou imagens por aplicativos diferentes de e-mail (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23445-pnad-continua-tic-2017-internet-chega-a-tres-em-cada-quatro-domicilios-do-pais). Última consulta em 10/06/2022. Pesquisa realizada pelo IBOPE, em 2019, mostrou que mulheres formam a maior parte de usuárias da internet (53%).
  • 24
    Carol Hanisch cunhou o slogan “o pessoal é político”, em 1969. Considerada radical por alguns/algumas críticos/as. Jornalista engajada na luta pelos diretos civis de negros e outras minorias políticas, esteve à frente de protestos como pelo fim dos concursos de misses, engajou-se em diferentes lutas, como a livrada pelo fim do apartheid na África do Sul. Ainda viva, Hanisch defende o ativismo presencial, ainda que reconheça os efeitos mobilizadores das mídias sociais digitais. Para uma entrevista com Hanisch ver: https://medium.com/@feminismoclasse/entrevista-com-carol-hanisch-b9016b1d5375 (última consulta em 16/06/2022).
  • 25
    Original em espanhol: “El espacio virtual de Internet pone al alcance del movimiento feminista potencias expresivas desconocidas, entre otras, una nueva significación de comunicación colectiva que convierte a las mujeres en autoras, transmisoras y destinatarias de información (...) Por todo ello, parece razonable afirmar que el colectivo femenino encuentra en la nueva plataforma digital un escenario reivindicativo sin igual, en el que poder acceder a contenidos coherentes con sus intereses y necesidades informativas.”
  • 26
    Original em espanhol: “Estos canales alternativos han permitido a las mujeres situar sus perspectivas y temáticas de interés en la agenda pública, a través de procesos de automediación de masas en el medio digital. De hecho, la automediación constituye una de las principales acciones del activismo feminista internacional. La recopilación de noticias ausentes en los medios de comunicación, el cambio de foco en su tratamiento, la introducción de nuevas voces o el revisionismo histórico (la llamada herstoria7) no sólo ofrecen una lectura feminista de las diferentes realidades con perspectiva de género, también presentan una importante labor de visibilización y divulgación. Listas de difusión, blogs, redes sociales o podcast suponen manifestaciones de esta labor de automediación feminista. Colectividades y personas individuales se han lanzado a la creación de diferentes tipos de contenidos, que van desde temáticas más próximas a la teoría y praxis feministas, a la presentación de voces y perspectivas más diversas y disidentes”.
  • 27
    A equipe do Femigrantes Br Podcast pretende alargar essa escuta para pessoas que migraram em condições menos favoráveis e mesmo precárias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Aceito
    15 Nov 2022
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