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O legado kantiano na Filosofia do Direito Internacional de Kelsen

The Kantian Legacy in Kelsen’s Philosophy of International Law

Resumo

Este artigo defende a existência de uma relação teórica muito próxima entre Kant e Kelsen no âmbito da filosofia do direito internacional. Argumenta-se que há uma herança teórica especialmente com relação aos conceitos de soberania, monismo, e a exigência de um direito internacional como elemento necessário para assegurar a paz. A metodologia utilizada é hermenêutica e analítico-conceitual.

Palavras-chave:
Kant; Kelsen. Direito Internacional. Cosmopolitismo

Abstract

This article defends a narrow theoretical relation between Kant and Kelsen in the field of philosophy of international law. We argue for a theoretical heritage concerning the concepts of sovereignty, monism, and the requirement of an international law as a necessary element for achieving peace. The methodology used is hermeneutical and analytic-conceptual.

Keywords:
Kant; Kelsen; International Law; Cosmopolitanism

1 INTRODUÇÃO

Segundo Paulson, O desenvolvimento da teoria de Kelsen apresenta três fases, sendo que em duas delas o pensamento kantiano exerceria grande influência. A primeira fase (1911-1921), denominada “construtivismo crítico”, caracteriza-se pela afirmação da ciência jurídica como disciplina normativa e pela construção dos conceitos fundamentais do direito. Nesta fase, a ascendência kantiana sobre Kelsen manifesta-se na purificação de conceitos centrais da ciência jurídica. Na segunda fase (1921-1960), chamada de “fase clássica”, Kelsen publica a primeira edição da Teoria Pura do Direito (1934), sendo que os argumentos neokantianos são invocados para resolver o problema da normatividade. Ao longo deste período verifica-se também a influência empirista e da lógica formal aplicada ao direito. Essas influências distintas marcam a divisão da fase clássica em dois períodos: o neokantismo (1921-1935) e o período híbrido (1935-1960), no qual o neokantismo funde-se com elementos analíticos. Na terceira fase (1960-1973), denominada “fase cética”, Kelsen abandonaria as doutrinas neokantianas familiares à fase clássica. É desta fase a publicação da segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960) e dos textos publicados após a sua morte sob o título “Teoria Geral das Normas” (Paulson, 1998PAULSON, Stanley L. Introduction. In: PAULSON, Stanley L; PAULSON, Bonnie Litschewski (orgs). Normativity and Norms: critical perspectives on kelsenian themes. Translations byBonnie Litschewski Paulson , Stanley L. Paulson andMichael Sherberg . New York: Clarendon /Oxford University Press, 1998. p. 23-24., p. xxiv-xxx). Entretanto, esse artigo chama a atenção para o fato de que o afastamento de Kelsen do neokantismo não significa um afastamento da filosofia kantiana, especialmente com relação a algumas posições defendidas por Kant em seus textos de filosofia política e do direito, ainda que o próprio Kelsen não diga isso explicitamente.

De acordo com Paulson, “a chave para a dimensão normativa da Teoria Pura do Direito, particularmente nos escritos de 1920 e início de 1930, é um argumento kantiano” (Paulson, 1992PAULSON, Stanley L. Neo-Kantian Dimension of Kelsen’s Pure Theory of Law. Oxford Journal of Legal Studies, v. 12, n. 3, p 311-333, 1992., p. 312). Kelsen, assim como Kant, localiza o Direito no reino do dever ser. Mas o dever ser kelseniano é pensado de uma forma distinta. Kant considera que o Direito é uma subclasse das leis morais cuja fundamentação última se encontra na razão e não no âmbito da Física ou da experiência. É exatamente neste ponto que Kelsen afasta-se de Kant e aproxima-se do positivismo científico, pois busca um fundamento para o direito no âmbito do fenômeno ou da experiência.

Os textos de Kelsen que serão objeto de análise neste artigo perpassam todas as fases apontadas pela classificação de Paulson. Contudo, ao invés de chamar a atenção para a proximidade da teoria kelseniana do direito com a teoria do conhecimento kantiana, como fazem muitos intérpretes, nosso objetivo é lançar luz sobre os pontos de encontro entre a filosofia do direito internacional de Kelsen e a filosofia política e jurídica kantiana acerca do cosmopolitismo. Ao realizar essa aproximação entre Kant e Kelsen no âmbito da filosofia do direito internacional, será ressaltada também a tensão interna existente no conjunto da obra de Kelsen entre a metodologia proposta para a teoria do direito e aquela apresentada no âmbito de um projeto para as instituições do direito internacional, no qual o jurista notadamente assume uma determinada ideologia política. Esse artigo está dividido em três seções: primeiramente, apresenta-se a teoria do cosmopolitismo jurídico de Kant, num segundo momento, apresenta-se a filosofia do direito internacional de Kelsen. Essa construção pretende colocar ênfase em conceitos como soberania, monismo, e a proposta de um direito internacional capaz de assegurar a paz. Na última seção faz-se um balanço de como ambos os filósofos podem ser colocados no mesmo espectro da filosofia do direito internacional.

2 KANT E O COSMOPOLITISMO JURÍDICO

Para enquadrar o tópico desse artigo é preciso traçar aqui uma distinção entre o direito cosmopolita, enquanto um tipo particular de direito, e o cosmopolitismo jurídico em Kant. O direito cosmopolita é uma subespécie do direito público, um direito de hospitalidade, que garante “o direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território do outro”, o qual nessa formulação possui como objetivo central invalidar qualquer tipo de colonialismo (cf. Caimi, 1997CAIMI, Mario. On the interpretation of the third definitive article of Kant’s essayZum ewigen Frieden, In: ROHDEN, Valerio (org.). Kant e a instituição da paz/Kant und die Stiftung des Friedens. Porto Alegre: Editora da URFGS/Göethe Institut, 1997. p. 201-209. ), pois um povo que recebe a visita tem o direito de “rejeitar o estrangeiro, se isso não puder ocorrer sem a ruína dele (...)” (ZeF, AA 08:358)1 1 Todas as citações das obras de Kant seguem o padrão internacional estabelecido pela Akademie Ausgabe. Nesse sentido, as siglas das obras de Kant utilizadas aqui indicam os seguintes textos: IaG = Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita; TP = Sobre a expressão corrente, isso pode ser correto na teoria mas não serve para a prática; WDO = O que significa orientar-se no pensamento; RGV = Religião nos limites da simples razão; GMS = Fundamentação da metafísica dos costumes; Prol = Prolegômenos a toda metafísica futura que queira conceber-se com ciência; KrV = Crítica da razão pura; ZeF = À paz perpétua; MS = Metafísica dos costumes; SF = Conflito das faculdades. , tal como no caso de naufrágios ou perseguição política, por exemplo. Já o cosmopolitismo jurídico se constitui como uma exigência normativa e jurídica que permeia a definição e o desenvolvimento do direito para além dos limites da soberania estatal2 2 Segundo Cavallar (2012), é possível falar de diferentes tipos de cosmopolitismo presentes na filosofia Kantiana, tais como o cosmopolitismo moral, jurídico, epistemológico e religioso. . É essa perspectiva de um cosmopolitismo jurídico e sua relação com o conceito de soberania estatal que pretendemos analisar nas filosofias do direito de Kant e de Kelsen.

Na filosofia do direito de Kant, a perspectiva ficcional do estado de natureza se apresenta como uma construção teórica referencial para pensar a legitimidade e os limites do Estado e do direito. Essa ficção é construída a partir de dois princípios. O primeiro é uma lei permissiva da razão prática que estende o imperativo categórico do direito para justificar e regular as relações jurídicas entre os seres humanos. Nesse sentido, a partir de um universalismo individualista é possível justificar pretensões de direito mesmo antes da existência do Estado3 3 Sobre o princípio normativo de um individualismo universalista ver Rotsboll, 2020. . Esse princípio faz com que, por um lado, a perspectiva contratualista já pressuponha que o contrato social seja firmado por sujeitos dotados de pretensões jurídicas e não por coisas e, por outro lado, permite pensar relações jurídicas que restrinjam a atuação do Estado, seja internamente, isto é, com relação aos próprios cidadãos, seja externamente, com relação a outros Estados ou a indivíduos que vivem fora do Estado. Esse princípio é normativo, pois dele oriunda a necessidade moral da superação do estado de natureza, isto é, a exigência da criação de instituições políticas e jurídicas que elaborem e administrem o direito de modo racional. O segundo princípio com o qual é pensado o estado de natureza é um princípio de caráter explicativo, que se baseia em certas concepções antropológicas relacionadas com o que Kant nomeia de sociabilidade insociável. Segundo esse princípio, o ser humano é representado no estado de natureza como tendo uma tendência a impor sua vontade aos demais. Nesse sentido, a posição Kantiana se aproxima daquela caracterização feita por Hobbes, de que o estado de natureza é um estado de guerra. Essa guerra não precisa ser efetiva, basta que ela seja potencial. A guerra é definida exatamente como o uso potencial e unilateral da força para resolver os conflitos acerca das pretensões de direito dos envolvidos.

O surgimento do Estado representa a superação do estado de natureza, por conseguinte, do estado de guerra. Dito de outra forma, a criação do Estado é a criação de uma instituição político-jurídica que determinará, interpretará e garantirá os direitos dos indivíduos. Apenas com o Estado surge a possiblidade do direito entendido no sentido pleno. Abandona-se a perspectiva de um direito provisório e problemático, característico do estado de natureza, em favor de um direito peremptório e objetivo. Na terminologia Kantiana, a qual é nesse sentido muito diferente da terminologia usada contemporaneamente, essa passagem é caracterizada pela mudança da perspectiva do direito privado para o direito público. O que entendemos hodiernamente por direito privado seria para Kant parte do direito público. Isso significa que todo o direito objetivo somente pode ser efetivado dentro do Estado. Antes e fora do Estado, têm-se um direito problemático e provisório, o qual tem validade e significado apenas parcial. Pode-se dizer assim que há em Kant um entrelaçamento entre os conceitos de Estado, direito e paz. A paz somente é possível a partir do direito. Essa paz jurídica não é sem conflito. O que ocorre é que o direito disciplina os conflitos, tanto no sentido de que mantém a insociabilidade dentro dos limites, quanto apresenta uma forma institucional para lidar com eles.

Para Hobbes, o Estado justifica-se por meio de um raciocínio prudencial na medida em que ele se apresenta como a alternativa mais adequada para escapar da morte violenta, à qual todos estão constantemente sujeitos no estado de natureza. Já para Kant, o Estado justifica-se por meio de uma exigência da razão prática, a qual não pode tolerar que indivíduos morais, ou seja, que indivíduos dotados de direito tenham de fundar suas expectativas de realização desses direitos sobre elementos contingentes e irracionais, como o uso unilateral da força ou a sorte. O aspecto da insociabilidade não cumpre qualquer papel nessa justificação. Nesse sentido, por mais que os seres humanos sejam concebidos como “bondosos e amantes do direito”, mesmo assim o estado civil seria necessário (cf. MS, AA 06:312), pois sempre é possível e provável que eles discordem de boa-fé sobre como interpretar os direitos em um caso específico. Há, assim, uma separação clara entre os campos da ética e do direito.

Por outro lado, na ausência do estado civil e sob a condição inerente da insociabilidade, certos direitos provisórios servem como parâmetro. Por exemplo, no estado de natureza, a guerra é a única forma de um indivíduo ou um Estado fazer valer suas pretensões de direito frente aos demais. Por outro lado, exatamente porque a guerra é uma forma precária e problemática, segue-se que tanto os indivíduos quanto os Estados devem abdicar de sua liberdade selvagem para adquirir uma liberdade civil. Nesse aspecto nota-se a influência de Rousseau, isto é, a saída do estado de natureza é representada como o abandono completo da liberdade selvagem, para assumir outra liberdade, de caráter e conteúdo distintos. Um dos principais elementos que constituem essa mudança se encontra no abandono da pretensão de cada um se colocar como juiz e executor dos seus próprios direitos.

Estabelece-se, assim, um entrelaçamento entre os conceitos de Estado, direito e paz. A paz não significa ausência de conflitos, muito menos uma representação idílica de uma condição de felicidade e harmonia plenas. Paz significa a existência de um procedimento legítimo de resolução dos conflitos mediante regras do direito positivo, as quais, por sua vez, deveriam ser criadas por meio de um processo político e democrático4 4 Sobre o conceito de democracia em Kant ver KLEIN, 2019, p. 667-694. . O Estado envolve uma estrutura institucional com três personalidades, representadas pelos três poderes, o legislativo, o judiciário e o executivo. Essa estrutura institucional exige que a lei seja produzida, interpretada e aplicada segundo certos tempos e procedimentos publicamente conhecidos. Assim, o conceito de Estado exige que todos os seus cidadãos abdiquem da pretensão de criar, interpretar e aplicar suas pretensões jurídicas em causa própria. Se, por um lado, o elemento característico do estado de natureza é o selvagem no qual vige o contínuo estado de guerra, por outro lado, o conceito de Estado exige que todos abdiquem de sua liberdade selvagem, de sua pretensão de soberanos absolutos. Há, assim, um entrelaçamento entre Estado e soberania.

Diferentemente do Estado Hobbesiano, no qual o soberano possui liberdade absoluta para determinar os direitos e deveres dos súditos, ou do Estado Lockeano, no qual os indivíduos ainda reservam para si uma parcela de soberania que se manifesta no direito de revolução, o modelo Kantiano encontra um equilíbrio no conceito de um Estado que é ao mesmo tempo o soberano absoluto (contra Locke), mas também que não pode retirar direitos que os indivíduos possuíam no estado de natureza (contra Hobbes). Esse equilíbrio, sempre delicado, se traduz na legitimidade do Estado em delimitar, interpretar e implementar esses direitos que já estão presentes no estado de natureza, mas sem os eliminar. Nesse sentido, por exemplo, tendo os indivíduos no estado de natureza o direito de contrair matrimônio ou de ter propriedade, o Estado não pode simplesmente revogar esses direitos, mas pode delimitá-los, interpretá-los e implementá-los do modo que julgar adequado. Se no estado de natureza um indivíduo poderia contrair casamento com qualquer idade, no estado civil pode-se estabelecer que o casamento somente pode ser contraído por indivíduos numa determinada faixa etária, que não estejam previamente casados, etc. e que o casamento somente é legitimo se ocorrer segundo certos procedimentos, etc. De todo modo, se os indivíduos estiverem descontentes com o direito positivo que regula todos esses aspectos, a única saída legítima é a atuação política de mudança do direito via reforma e não o descumprimento do direito.

Desde os seus primeiros escritos políticos, Kant sempre chamou atenção para um outro vínculo que se estabelece com o direito e que determina sua legitimidade e efetividade, a saber, o vínculo entre as relações jurídicas nacionais e as internacionais. “O problema de uma constituição civil perfeita depende, por sua vez, de uma relação externa legal entre os Estados e não pode resolver-se sem esta última.” Assim os Estados devem

sair do estado sem leis dos selvagens e ingressar numa liga de povos, onde cada Estado, inclusive o mais pequeno, poderia aguardar a sua segurança e o seu direito não do seu próprio poder ou da própria decisão jurídica, mas apenas dessa grande federação de nações (Foedus Amphyctyonum)5 5 “Foedus amphyctyonum” faz referência à coligação das cidades-estados gregas, cuja função era sua mútua proteção (cf. HÖFFE (2006, 170)). , de uma potência unificada e da decisão segundo leis da vontade unida [von einer vereinigten Macht und von der Entscheidung nach Gesetzen des vereinigten Willens erwarten könnte]. (IaG, AA 08: 24)

Fica claro nesse excerto que Kant defende a existência de um estreito vínculo conceitual entre a possibilidade da justiça em nível estatal com a possibilidade da justiça em nível interestatal. Entretanto, a maneira como ele define essa federação, isto é, com os conceitos de “potência unificada” e de “decisão segundo leis da vontade unida”, indica a exigência de uma instituição aos moldes do Estado, a qual deveria abranger a totalidade do globo. Nesse sentido, além dos Estados, haveria um supra Estado, um Estado de segunda ordem, que teria “um poder unificado que lhe dá força; por conseguinte a introduzir um estado civil mundial de pública segurança estatal [einen weltbürgerlichen Zustand der öffentlichen Staatssicherheit], (...) que também não existe sem um princípio da igualdade das ações e reações, a fim de não se destruírem entre si” (IaG, AA 08: 26). Kant reconhece que já na sua época os Estados se ofereciam como árbitros para mediar conflitos alheios, mas faziam isso sem possuírem qualquer competência jurídica. De todo modo, isso já pode ser visto como a preparação “para um futuro grande corpo político [Staatskörper], de que o mundo precedente não pode ostentar exemplo algum”, para que assim seja constituída “uma condição cosmopolita [weltbürgerlicher Zustand] como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originárias do gênero humano” (IaG, AA 08:28), ou ainda “um todo cosmopolita [weltbürgerliches Ganze]”, isto é, um sistema de todos os Estados que correm o risco de atuar entre si de forma prejudicial” (KU, AA 5: 432).

Da mesma forma que o Estado se apresenta como a instituição necessária para garantir o direito e dar um fim à guerra de todos contra todos no âmbito dos indivíduos, os Estados deveriam também dar esse mesmo passo, ou seja, sair do seu estado de natureza no qual “nenhum Estado, em relação a outro, se encontra um só instante seguro quanto à sua independência ou propriedade”, de modo que “para tal situação nenhum outro remédio é possível a não ser (por analogia com o direito civil ou político os homens singulares) o direito das gentes, fundado em leis públicas apoiadas no poder, às quais cada Estado se deveria submeter.” (TP, AA 08: 312)

Kant estava familiarizado com a alternativa teoria do “equilíbrio de poder”, mas ele desqualifica essa perspectiva na medida em que tal sistema seria “como a casa de Swift, que fora construída por um arquiteto de modo tão perfeito, segundo todas as leis do equilíbrio, que imediatamente ruiu quando um pardal em cima dela pousou” (TP, AA 08: 312). Em outras palavras, não se pode considerar como um sistema de direito quando as partes a quem esse direito se destina tiverem legitimidade para rejeitar sua aplicação. Além disso, o alegado apelo à boa vontade dos Estados a cumprirem com os tratados por eles reconhecidos também não funda direito em sentido estrito. É exatamente pela falta da existência de instituições estatais jurídicas capazes de efetivar o direito das gentes que Kant atribui a Grócio, Pufendorf e Vatel o título de “meros tristes consoladores [lauter leidige Tröster]” (ZeF, AA 08:355).

Em última instância, para Kant, a ideia de direito conduz a exigência normativa de uma república mundial:

Os Estados com relações recíprocas entre si não têm, segundo a razão, outro remédio para sair da situação sem leis, que encerra simplesmente a guerra, senão consentir leis públicas coativas, do mesmo modo que os homens singulares entregam a sua liberdade selvagem (sem leis), e formar um Estado de povos [Völkerstaat] (civitas gentium), que (sempre, é claro, em aumento) englobaria por fim todos os povos da terra. Mas se, de acordo com a sua ideia do direito das gentes, isto não quiserem, por conseguinte, se rejeitarem in hipothesi o que é correto in thesi, então a torrente da propensão para a injustiça e a inimizade só poderá ser detida, não pela ideia positiva de uma república mundial [Weltrepublik] (se é que tudo não se deve perder), mas pelo sucedâneo negativo [negative Surrogat] de uma federação antagônica a guerra, permanente e em contínua expansão, embora com o perigo constante da sua irrupção. (ZeF, AA 08: 357)

Entretanto a parte final dessa passagem despertou intenso debate, pelo fato de parecer indicar que se os Estados não aceitarem abdicar da sua soberania, então restaria apenas um substituto “semirracional”, a perspectiva de uma federação antagônica à guerra. Nesse debate surgiram três grupos distintos de interpretações: a) aqueles que assumem que Kant acaba abandonando, a partir da publicação de À Paz perpétua, a perspectiva de uma república mundial. Entre eles estão Volker (1995), Rawls (2004RAWLS, John. O Direito dos Povos. Tradução Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2004.), Habermas (2018HABERMAS, Jürgen. A ideia kantiana da paz perpétua - à distância histórica de duzentos anos. In: HABERMAS, Jürgen . A inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Tradução Denilson Luís Werle. São Paulo: Unesp, 2018. p. 281-339. (1995HABERMAS, Jürgen. Kant’s Idea of Perpetual Peace, with the Benefit of Two Hundred Years’ Hindsight. In: BOHMAN, James; LUTZ-BACHMANN, Matthias (ed.). Perpetual Peace: Essays on Kant’s Cosmopolitan Ideal. Cambridge: The MIT Press, 1997. p. 113-154.)), Flikschuh (2010FLIKSCHUH, Katrin. Kant’s Sovereignty Dilemma. Journal of Political Philosophy, n. 18(4), p. 469-493, 2010.) e Ripstein (2009RIPSTEIN, Arthur. Force and Freedom: Kant’s Legal and Political Philosophy, Cambridge: Harvard University Press, 2009.). Há ainda aqueles que defendem que Kant se equivocou, segundo os pressupostos de sua própria filosofia do direito, em abandonar a ideia positiva de uma república mundial. Entre eles estão Carson (1988CARSON, Thomas. Perpetual peace: What Kant should have said. Social Theory and Practice, n. 14, p. 173-214, 1988.), Axinn (1989AXINN, Sidney. Kant on World Government. In: FUNK, Gerhard.; SEEBOHM, Thomas (ed.). Proceedings of the Sixth International Kant Congress. Washington, DC: 1989, p. 245-249.), HöffeHÖFFE, Otfried. Kant’s Cosmopolitan Theory of Law and Peace.Cambridge: Cambridge University Press, 2006. (1999; 1998; 2005; 2006); Dodson (1993 DODSON, Kevin. Kant’s Perpetual Peace: Universal Civil Society or League of States? Southwest Philosophical Studies, n. 15, p. 1-9, 1993.), Kersting (1996KERSTING, Wolfgang. Weltfriedensordnung und globale Verteilingsgerechtigkeit. Kants Konzeption eines vollständigen Rechtsfriedens und die gegenwärtige politische Philosophie der internationalen Beziehungen. In: MERKEL, Reinhard; WITTMANN, Roland (hrsg.). Zum ewigen Frieden: Grundlagen, Aktualität und Ausichten einer Ideen von Immanuel Kant. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. p. 172-212. ) e Lutz-Bachmann (1997LUTZ-BACHMANN, Matthias. Kant’s idea of peace and the philosophical conception of a world republic. In: BOHMAN, James; LUTZ-BACHMANN, Matthias (ed.). Perpetual Peace: Essays on Kant’s Cosmopolitan Ideal. Cambridge: The MIT Press, 1997. p. 59-78.). Finalmente, há um terceiro grupo que argumenta que Kant não abandonou a perspectiva de uma república mundial, mas que estabeleceu a federação antagônica à guerra como um elemento inicial e intermediário de um processo de desenvolvimento jurídico em direção à república mundial. Entre os intérpretes que defendem isso estão: Fichte (1796FICHTE, Gottlieb Johann. Zum ewigen Frieden- Ein philosophisher Entwurf von Immanuel Kant (1796). In: SAAGE, Richard; BATSCHA, Zwi (hrsg.). Fridensutopien Kant, Fichte, Schlegel, Görrers. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979. p. 83-92.), Cavallar (1992, 211; 1999CAVALLAR, Georg. Kant and the Theory and Practice of International Right. Cardiff: University of Wales Press, 1999. p. 113-132. , 2002), Kleingeld (2004KLEINGELD, Pauline. Approaching Perpetual Peace: Kant’s defense of a league of states and his ideal of a world federation. Journal of European Philosophy, v. 12, p. 304-325, 2004.; 2012KLEINGELD, Pauline. Kant and Cosmopolitanism: The Philosophical Ideal of World Citizenship, Cambridge: Cambridge University Press, 2012.), Bird/Hruschka (2008BYRD, Sharon; HRUSCHKA, Joachim. From the state of nature to the juridical state of states. Law and Philosophy, n. 27, p. 599-641, 2008.; 2010) e Geismann (1983GEISMANN, Georg. Kants Rechtslehre vom Weltfrieden. Zeitschrift für philosophische Forschung, n. 37, p. 363-388, 1983.; 1996; 2012). Nossa posição segue essa terceira via.6 6 Uma avaliação detalhada de cada uma das posições e uma argumentação sobre as razões para a filiação a essa terceira linha interpretativa pode ser encontrada em: KLEIN, 2020a, p. 129-148; KLEIN, 2020b, p. 209-249.

Assim, por um lado, o conceito de direito, na sua forma mais desenvolvida pode existir apenas em uma república mundial, visto que somente desse modo haveria instituições que pudessem determinar, interpretar e garantir os direitos tanto dos Estados federados (pessoas artificiais), quanto dos indivíduos naturais, seja nas suas relações internas ou externas. Por outro lado, a perspectiva de uma federação antagônica à guerra deve ser vista como o ponto de partida para a criação gradual de direito e de uma disposição jurídica. O direito produzido nesse intermédio, em que não se está nem propriamente num puro estado de natureza entre Estados, nem ainda em um perfeito estado civil, deve ser entendido como um direito ainda problemático. Kant nunca teorizou sobre como esse desenvolvimento deveria acontecer. Mas insistiu que esse processo deve ser voluntário, isto é, os Estados não deveriam ser coagidos mutuamente (através do emprego da força) para entrarem nessa federação. Os Estados e os indivíduos deveriam amadurecer seu conceito de direito e compreender que somente assim podem alcançar uma paz duradoura e ter sua liberdade garantida. Nesse sentido, os tratados bilaterais e multilaterais deveriam ser interpretados como criando aos poucos uma espécie de direito consuetudinário internacional. Aqui onde a reflexão de Kant se encerra, encontramos um ponto de contato com a filosofia do direito internacional de Kelsen, a qual traz consigo a vantagem de mais de um século de história, bem como a experiência e os conhecimentos de um jurista.

Antes de dar início a uma análise de como a filosofia do direito internacional de Kelsen segue essa perspectiva cosmopolita estabelecida por Kant, é importante chamar a atenção para outros elementos conceituais relevantes que estão em estreita conexão.

Kant compreende o direito como um sistema integrado e coordenado de um mesmo sistema de normas. Assim, o cosmopolitismo jurídico é intrínseco ao próprio imperativo categórico do direito, de modo que qualquer “aquisição será sempre apenas provisória se esse contrato não se estende a todo o gênero humano.” (MS, AA 06:266) Há, assim, um vínculo gradual e contínuo de uma mesma exigência normativa que vai desde os direitos provisórios dos indivíduos no estado de natureza até a exigência normativa do direito internacional. O direito internacional não é uma opção aos Estados, no sentido de que eles teriam legitimidade para recusar. Na verdade, trata-se de uma assunção lógico-normativa implícita da sua própria presunção de legitimidade. Em outras palavras, quando um Estado se apresenta frente aos demais como demandando reconhecimento de sua legitimidade, ao mesmo tempo ele já está obrigado a reconhecer a legitimidade dos demais e, finalmente, a possibilidade e legitimidade da criação de um direito internacional que regule as suas relações. Essa tese Kelsen nomeará de monismo do direito nacional e internacional.

Relacionada com o monismo, encontra-se a crítica à posição de que os Estados deveriam ser considerados como soberanos absolutos, no sentido de que seria moralmente ilegítimo para o próprio Estado se submeter ao direito internacional ou ainda, que seria imoral abdicar da sua soberania. Não há dúvidas de que a partir de uma analogia com os indivíduos naturais, Kant atribua valor moral ao Estado enquanto um fim em si mesmo, mas o significado e os limites dessa tese precisam ser contextualizados. A função dessa analogia é evitar que Estados possam tratar uns aos outros como simples objetos, isto é, que Estados não possam ser comprados, herdados ou divididos por outros Estados como se fossem coisas, ou seja, os Estados devem tratar uns aos outros como pertencendo a uma comunidade de pessoas morais. Do contrário, “usa-se e abusa-se dos súditos à vontade, como se fossem coisas de uso” (ZeF, AA 08:344), ou seja, em última instância, tratar Estados como coisas significa tratar seres humanos como tal, o que contradiz à ideia normativa do direito. Entretanto, considerar que os estados tenham personalidade moral não é um argumento para lhes subtrair do dever de se submeter ao direito internacional. Portanto, para Kant, a soberania dos Estados deve ser limitada pelo direito internacional.

Mas enquanto não for criada uma república mundial, que possua os poderes de um judiciário, legislativo e executivo, ou seja, enquanto o direito internacional ainda estiver numa forma jurídica provisória, a guerra ainda é a única sanção possível. Nesse sentido, trata-se de uma sanção jurídica no contexto ainda de um estado de natureza. Ainda que apenas problematicamente legítima, a guerra é a única forma que os Estados possuem para fazer valer os seus direitos e assegurar os acordos assinados. Nesse sentido, Kant incorpora na sua filosofia jurídica o direito à guerra, na guerra e após a guerra (MS, AA 06: 346-351).7 7 Porém, para Kant, de uma perspectiva exclusiva da razão prática, a guerra é sempre absolutamente condenável: “um estado de guerra (da lei do mais forte), (...) é em si mesmo injusto no mais alto grau, apesar de com isso nenhum dos dois sofrer injustiça da parte do outro, sendo obrigação dos Estados avizinhados sair desse estado.” (MS, AA 06: 344) Assim, “a razão moral prática pronuncia em nós seu veto irrecusável: não deve haver guerra; nem aquela entre mim e você no estado de natureza, nem aquela entre nós como Estados, (...) pois essa não é a maneira pela qual cada um deve procurar o seu direito.” (MS, AA 06: 354) Também de uma perspectiva pragmática moral, a guerra é um problema, pois como menciona o mote grego: “a guerra é má porque faz mais gente má do que as leva” (ZeF, AA 08:365 / cf. RGV, AA 06:34n.).

Por fim, cabe ainda chamar a atenção para a separação entre o quid facti e o quid juris do sistema normativo estatal, ou seja, a famosa separação entre uma questão de fato e uma questão jurídica8 8 Essa separação está atrelada a uma concepção jus positivista presente na filosofia Kantiana. Essa é obviamente uma afirmação bastante contenciosa na literatura, sendo que o próprio Kelsen interpreta a filosofia kantiana do direito como sendo uma das grandes expoentes da posição jusnaturalista (Cf. KELSEN, 2017, nesse sentido também Bobbio (1995, 139f.), Höffe (1995, 72), Byrd/Hruschka (2010, 35f.)). Entretanto, a perspectiva de que Kant poderia ser visto como defendendo um juspositivismo encontra suporte em Waldron (1996) e Hopton (1982), o qual aproxima a posição de Kant daquela defendida por Austin. Ainda que Maus (2018, 241ff.) não utilize essa categorização, ela parece defender uma interpretação semelhante com relação a Kant. Para uma análise detalhada do positivismo jurídico de Kant ver Klein, 2021, p. 73-105. . Para Kant,

É inútil investigar a origem histórica desse mecanismo [do Estado como uma estrutura politico-jurídica], i. é, não se pode ir além do instante inicial da sociedade civil (pois os selvagens não criam um instrumento de sua submissão à lei, e pode-se deduzir já da natureza de homens rudes que eles terão começado com a violência). Mas é punível encetar essa investigação com a intenção de talvez alterar com violência a constituição agora em vigor. (MS, AA 06: 339f.)

Nesse excerto é formulada a tese de que a criação dos Estados ocorreu por meio da violência. Entretanto, apesar disso, não é a violência que gera o direito, de modo que é punível, ou seja, contrário ao mandamento da razão que se coloque em questão a legitimidade do Estado a partir do fato histórico do seu surgimento. Há claramente aqui uma separação entre o quid facti e o quid juris. O processo histórico genealógico da criação do Estado (i. é, a questão factual) não determina a atual legitimidade (i. é, a questão de direito) dessa instituição (cf. MS, AA 06:318ff; 371f. / ZeF, AA 08: 371). Assim, mesmo em um Estado despótico deve-se obedecer às leis, sendo ilegítima toda tentativa de revolução. O argumento de Kant segue o sentido de que uma constituição civil injusta é melhor do que nenhuma, pois havendo uma abre-se espaço para a possibilidade de uma gradual reforma em direção à constituição republicana. Há uma separação para Kant entre um Estado despótico, que ainda possui um estado jurídico e um Estado bárbaro, no qual impera a mera força9 9 Nesse sentido: “São leis permissivas da razão conservar a situação de um direito público, viciado pela injustiça até por si mesma estar madura para a transformação plena ou se aproximar da sua maturação por meios pacíficos, pois qualquer constituição jurídica, embora só em grau mínimo seja conforme ao direito, é melhor do que nenhuma; uma reforma precipitada depararia com o seu último destino (a anarquia).” (ZeF, AA 08:373n.) ou ainda, o “motim numa constituição em vigor é uma subversão de todas as relações civis jurídicas, portanto de todo o direito, i. é, não é mera alteração da constituição civil, mas sua dissolução, e a subsequente passagem para a melhor não é metamorfose, mas paligenesia, exigindo um novo contrato social, sobre o qual o anterior (agora suprimido) não tem influência” (MS, AA 06:340). Assim, é importante chamar a atenção para uma distinção entre estado despótico que ainda possui uma constituição jurídica, e um Estado bárbaro, que não a tem. Não é possível analisar esse aspecto em detalhe nesse artigo, mas pode-se dizer brevemente que, mesmo num Estado despótico há direito positivo, enquanto num Estado bárbaro, não há leis, mas meras ordens, tais como aquelas dadas por um ladrão armado. A teoria do direito de Kelsen parece não comportar essa diferença. .

Essa separação entre quid facti e quid juris é importante na medida em que permite aceitar que o direito consuetudinário e também os direitos positivados sejam considerados direito, também no âmbito internacional. Ainda que, de uma perspectiva moral, um determinado tratado possa ser considerado injusto a uma das partes, ele ainda é juridicamente válido. Com isso abre-se a perspectiva teórica de um processo de reforma a partir do que já foi conquistado, ainda que de modo parcial e problemático (cf. MS, AA 06:340; 355). Para Kant, o fato de uma norma estar positivada não impede que ela possa ser modificada por vias políticas. Mas se uma norma está positivada, então ela tem validade. Uma posição contrária conduziria a situação de considerar poucos ou talvez nenhum Estado e sistema jurídico como válido se alguma das partes submetidas a ele entendesse que tal tratado estivesse em descompasso com seu conceito de justiça. Assim, assumindo que os tratados internacionais e o direito consuetudinário internacional possuem validade, ainda que algumas partes o considerem injusto, abre-se a possibilidade de que o próprio sistema jurídico internacional possa ser reformado em direção ao ideal de uma república mundial. Em suma, para Kant, a própria definição de direito positivo comporta em si mesma sempre um déficit com relação ao conceito de justo, mas isso não é um impedimento para a validade jurídica desse sistema normativo.

3 KELSEN E A FILOSOFIA DO DIREITO INTERNACIONAL

Também para Kelsen a distinção entre o quid facti e quid juris do sistema normativo possui suma relevância, tornando-se um dos principais pontos de sua crítica aos juristas alemães do século XIX e início do século XX. Essa distinção se encontra consubstanciada claramente em sua distinção entre ser (sein) e dever ser (sollen). É basicamente sobre esta distinção que são construídos seus argumentos em defesa de um conceito de soberania distinto daquele predominante desde Bodin, a saber, um conceito no qual as questões de fato (sein) e de direito (sollen) se sobrepõem. 10 10 A respeito da relação entre moral, direito e política em Kelsen ver CONSANI, 2016, p. 125-170.

A crítica ao sincretismo metodológico em torno do conceito de soberania e de direito aparece logo no primeiro capítulo de sua obra de 1920 “Das Problem der Souveränität und die Theorie des Völkerrechts” (O problema da soberania e a Teoria do Direito Internacional). Kelsen considera que o conceito de soberania é um dos melhores exemplos para mostrar a anarquia metodológica que ameaça a ciência jurídica justamente por produzir confusões entre considerações político-morais, sociológicas, psicológicas e as considerações jurídicas. Em outras palavras, o conceito de soberania, conforme desenvolvido pela tradição do pensamento político moderno, segundo a qual o poder político soberano funda o direito, estando ao mesmo tempo dentro e fora da ordem jurídica, acaba por impor à ciência do direito metodologias externas ao próprio direito. (Kelsen, 1920KELSEN, Hans. Das Problem der Souveriinitiit und die Theorie des Volkerrechts. Beitrag zu einer Reinen Rechtslehre. Tübingen: Mohr, 1920. , p. 1-7)

Kelsen enxerga nesse modo de compreensão da soberania uma tendência naturalista que, segundo ele, aborda o problema da soberania como uma questão de fato, ao modo das ciências empíricas da natureza. O problema da soberania, portanto, deve ser resolvido com outra metodologia, a saber, o “método normológico”. Assim, Kelsen considera que o conceito e soberania somente pode ser atribuído ao direito ou à norma jurídica. Recorrendo a uma metáfora lógica, o autor pressupõe uma norma ou um sistema de normas como soberano. A norma suprema é uma pressuposição lógica do ordenamento jurídico. É a partir dessa pressuposição que se apresenta uma justificação lógico-jurídico normativa para a origem da autoridade do direito e do Estado. (Kelsen, 1920KELSEN, Hans. Das Problem der Souveriinitiit und die Theorie des Volkerrechts. Beitrag zu einer Reinen Rechtslehre. Tübingen: Mohr, 1920. , p. 4-7). Não se trata de negar a política ou a soberania enquanto uma força real, mas sim de delimitar o campo do direito e separá-lo daquele da política.

Do mesmo modo que a soberania não pode ser concebida como uma questão de fato, o Estado não pode ser definido como uma realidade social, isto é, não pode ter uma explicação causal. Segundo Kelsen, o Estado soberano, considerado como objeto da ciência jurídica, deve ser entendido como um ordenamento supremo, o qual não deriva de nenhum outro ordenamento superior. Assim, do ponto de vista da teoria do direito, o conceito de Estado é reduzido ao de ordem jurídica. A soberania só pode ser reconhecida como qualidade do Estado definido como ordenamento jurídico e, nesse sentido, não como uma qualidade real e empiricamente observável no mundo dos fatos, mas sim como um pressuposto ou uma hipótese no pensamento do observador que deseja conhecer o Estado e o Direito. (Kelsen, 1920KELSEN, Hans. Das Problem der Souveriinitiit und die Theorie des Volkerrechts. Beitrag zu einer Reinen Rechtslehre. Tübingen: Mohr, 1920. , p. 9-15). Kelsen afirma que o ordenamento jurídico possui competência soberana apenas se suas modificações repousam sobre suas próprias determinações, isto é, sobre as normas do próprio ordenamento. E acrescenta ainda que um ordenamento jurídico pode ser soberano sem ter a possibilidade ilimitada de modificação de suas próprias decisões (Kelsen, 1920KELSEN, Hans. Das Problem der Souveriinitiit und die Theorie des Volkerrechts. Beitrag zu einer Reinen Rechtslehre. Tübingen: Mohr, 1920. , p. 47-51). Esse entendimento, que será objeto de crítica de Carl Schmitt em sua obra Teologia Política, marca os limites da soberania compreendida como um conceito jurídico, uma vez que não se torna objeto de análise a soberania enquanto um poder político capaz de organizar ou subjugar as forças sociais em divergência, como na visão schmittiana. Em seu entendimento, a soberania, compreendida como norma fundamental, como norma hipoteticamente pressuposta, é a base suprema do ordenamento jurídico (Kelsen, 1922KELSEN, Hans. Rechtswissenchaft und Recht. Erledigung eines Versuches zur Uberwindung der Rechtsdogmatik: Wien, 1922. , p. 133). É a expressão da unidade do sistema legal e da pureza do conhecimento jurídico. (Kelsen, 1925KELSEN, Hans. Allgemeine Staatslehre. Berlin: J. Springer, 1925. , pp. 105/106). Conforme sumarizado por Francois Rigaux, o enfoque lógico kelseniano pode ser definido pelos seguintes elementos:

i) a identificação do direito e do Estado; ii) a ideia de que uma ordem jurídica é um composto de normas, cuja validade depende de uma norma fundamental hipotética, a Grundnorm; iii) a exclusão de qualquer elemento factual na construção de uma ordem jurídica; e, iv) o repúdio a qualquer referência a outras premissas não lógicas, como a moral ou o direito natural. (Rigaux, 1998RIGAUX, Francois. Hans Kelsen on International Law. European Journal of International Law, n. 9, p 325-343, 1998., p. 329)

Essa forma de definir a soberania e o Estado assume grande relevância quando a discussão migra do direito estatal para o direito internacional pois, se a soberania é definida como “um poder ou ordem não sujeito a qualquer ordem legal superior” (Kelsen, 1998KELSEN, Hans. Sovereignty. In: PAULSON, Stanley L. Introduction. In: PAULSON, Stanley L; PAULSON, Bonnie Litschewski (org.). Normativity and Norms: critical perspectives on kelsenian themes. Translations by Bonnie Litschewski Paulson, Stanley L. Paulson and Michael Sherberg. New York: Clarendon/Oxford University Press, 1998. p. 525-536., p. 525), torna-se difícil pensar a submissão dos Estados soberanos ao direito no âmbito internacional.

Na primeira edição da Teoria Pura do Direito (1934), ao analisar a relação entre o Estado e o direito internacional11 11 Cabe aqui apenas chamar a atenção para o fato de que Direito internacional obriga os indivíduos indiretamente (apenas os Estados são sujeitos do direito internacional) - (1934, p. 142). Porém, a partir dos escritos da década de 40 Kelsen passa a defender que o direito internacional não se dirige diretamente aos Estados, mas também aos indivíduos (KELSEN, 1990, p.486). Nesse caso, também aqui Kelsen se aproxima de Kant, para quem no direito das gentes se considera “não somente uma relação entre um Estado com o outro em seu todo, mas também a de pessoas singulares de um Estado com indivíduos de outro, bem como dos indivíduos com o outro Estado como um todo” (KANT, MS, AA 06: 344). , Kelsen retorna à sua concepção lógica da estrutura do direito e encontra no direito consuetudinário geral (allgemeinen Gewohnheitsvölkerrechtes) uma espécie de Grundnorm do direito internacional, isto é, uma norma que autoriza os sujeitos da comunidade jurídica internacional a regular sua conduta pelo costume (Kelsen, 2008, p. 139)12 12 No seu livro Teoria geral do direito e do Estado, Kelsen retoma esse ponto ao defender que “A norma fundamental do direito internacional deve ser uma norma que aprova o costume como o fato criador de normas e que poderia ser formulada da seguinte maneira: ‘os Estados devem se conduzir como têm se conduzido de costume.’ O direito internacional consuetudinário, desenvolvido com base nessa norma, é o primeiro estágio dentro da ordem jurídica internacional.” (KELSEN, 1990, 525) Nesse caso, o direito produzido pelos tratados com base no pacta sunt servanta constituiria o segundo nível, enquanto o terceiro seria o direito produzido pelos órgãos que foram por sua vez criados por tratados internacionais. . O direito internacional, em seu entendimento, é definido do mesmo modo que o direito estatal, a saber, como uma ordem coercitiva, que se manifesta por meio de represálias e da guerra. A diferença, contudo, é que enquanto o direito estatal já funciona segundo o princípio da divisão do trabalho, tendo uma estrutura centralizada de produção e de aplicação das normas jurídicas, o direito internacional lembra o direito das sociedades primitivas, já que é descentralizado, as normas gerais são criadas a partir do costume ou dos tratados e a aplicação das punições fica a cargo das próprias partes. (Kelsen, 2008KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre: Einleitung in die rechtswissenschaftliche Problematik. Studienausgabe der 1. Auflage 1934. Herausgegeben und eingeleitet von Matthias Jestaedt. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008., p. 140-141).

Em 1934, Kelsen já considerava que a linha divisória entre o direito estatal e o direito internacional apenas desapareceria de fato se a evolução do direito internacional levasse à formação de um Estado mundial. Contudo, enquanto isso não acontece ele busca compreender em que medida os dois ordenamentos jurídicos - o estatal e o internacional - podem coexistir sem entrarem em conflito. A questão da existência ou não de conflito leva ao debate sobre como deve ser entendida a relação entre o direito estatal e o direito internacional, debate consubstanciado nas teses monistas e dualistas.

A tese dualista sustenta a distinção entre o ordenamento jurídico estatal e o internacional. A crítica de Kelsen aos dualismos pode ser considerada, segundo Brunkhorst, um elemento decisivo para uma espécie de revolução no direito internacional (Brunkhorst, 2011BRUNKHORST, Hauke. Critique of dualism: Hans Kelsen and the Twenty Century Revolution in International Law. Constellations, vol. 18, n. 4, , pp. 496-512, 2011., p. 498-501). Kelsen, como um signatário da tese do monismo, considera que ambos os ordenamentos jurídicos podem ser pensados a partir de uma unidade cognoscitiva de todo o direito, de modo que o conjunto formado pelo direito internacional e os ordenamentos jurídicos estatais pode ser entendido como unitário, do mesmo modo que se considera unitário o conjunto de normas do Estado. Ele refuta a tese dualista (ou pluralista) segundo a qual o direito internacional e o direito estatal são dois sistemas distintos e independentes de normas. Segundo ele, a tese dualista carece de sustentação lógica, pois ao atribuir o caráter jurídico às normas de ambos os ordenamentos, tomando-os como autônomos, acaba-se por ter que admitir a possibilidade de conflitos insolúveis entre essas normas. (Kelsen, 2000KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 364-366).13 13 Considerando que a tese monista não sofreu alterações com a publicação da segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), doravante será utilizado o texto da segunda edição.

Kelsen considera que o conflito não é o termo técnico adequado para nomear uma possível contradição entre uma norma estatal e uma norma internacional (por exemplo, quando um tratado internacional confere aos membros de uma minoria os mesmos direitos políticos que aos membros da maioria, mas o direito estatal estabelece um tratamento desigual entre grupos). Segundo Kelsen, não há de se falar em conflito, mas sim em “antinormalidade”, algo que ocorre também dentro do ordenamento jurídico estatal quando se tem uma lei inconstitucional ou uma sentença ilegal. Nesse caso, não há conflito de normas no ordenamento jurídico, pois a norma inferior deve ser anulada segundo os procedimentos previstos e pelo órgão competente. No caso do direito internacional, como não há um procedimento para a anulação da lei inferior em contradição com a norma internacional, Kelsen considera que pode haver a aplicação de uma sanção ao Estado, na forma de retaliação ou de guerra. Aqui novamente se verifica outro aspecto do direito internacional como ordenamento jurídico primitivo, pois não existem instituições e procedimentos para a revisão das normas de modo a torná-las nulas. (Kelsen, 2000KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 366/367)

Kelsen considera que a unidade do direito estatal e do internacional pode ocorrer de dois modos: ou o direito internacional precisa ser concebido como uma ordem jurídica delegada pela ordem jurídica estatal e, por conseguinte, incorporada a esta (primado do direito estatal), ou o direito internacional é compreendido como uma ordem jurídica superior que delega competências para os ordenamentos jurídicos estatais (primado do direito internacional). Em ambos os casos se tem uma interpretação monista da relação entre ambos os ordenamentos jurídicos e não uma interpretação dualista.14 14 Para uma crítica à tese monista, ver HART, H.L.A. A Doutrina Kelseniana da Unidade do Direito. In: HART. H.L.A. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 348-385. (Kelsen, 2000KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 368-370)

O problema de se abraçar a tese do primado do direito estatal, segundo Kelsen, é que isso pode levar à ineficácia do direito internacional, já que os Estados precisam reconhecer o direito internacional como vinculante para que ele possa ter validade. Nesta perspectiva, acentua-se o primado da soberania dos Estados (Kelsen, 2000, p. 372). Aqui, novamente Kelsen contrapõe-se à compreensão da soberania como um fato ou expressão do máximo poder real. Ele argumenta que se a soberania fosse considerada como uma questão de poder real, os Estados pequenos ou sem capacidade de competir em termos bélicos ou econômicos com as grandes potências nem sequer poderiam ser considerados soberanos. (Kelsen, 2000KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 373; Kelsen, 1998KELSEN, Hans. Sovereignty. In: PAULSON, Stanley L. Introduction. In: PAULSON, Stanley L; PAULSON, Bonnie Litschewski (org.). Normativity and Norms: critical perspectives on kelsenian themes. Translations by Bonnie Litschewski Paulson, Stanley L. Paulson and Michael Sherberg. New York: Clarendon/Oxford University Press, 1998. p. 525-536., p. 528)

A primazia do direito internacional significa justamente que as normas jurídicas internacionais se encontram acima daquelas do direito estatal. A soberania estatal é, assim, limitada. Desse modo, a soberania estatal não pode ser considerada autoridade jurídica suprema, mas deve ser compreendida como liberdade do Estado para agir. Kelsen considera que apenas assim uma organização mundial se torna eficaz e o primado do direito internacional passa a desempenhar um papel decisivo na ideologia política do pacifismo, ao passo que, em seu entendimento, o primado do direito estatal reforça a ideologia política do imperialismo, uma vez que legitima a autoridade do Estado para agir em nome de seus próprios interesses, mesmo que isso entre em contradição com as normas do direito internacional. (2000, p. 381/382; Kelsen, 2017, p. 591-595).

Ao apontar para o pacifismo e para o imperialismo como ideologias, Kelsen novamente ressalta o limite entre uma teoria do direito e uma filosofia político-jurídica. À teoria do direito internacional, como ciência do direito, importa apenas explicar de forma lógica qual o fundamento do direito internacional e de que modo se estabelece a relação entre o sistema de normas estatal e o sistema de normas internacional a fim de evitar o conflito de normas. Ao afirmar a inevitabilidade da construção monista, Kelsen acaba por reconhecer que, no âmbito da teoria do direito, tanto a perspectiva do primado da ordem jurídica estatal quanto a perspectiva do primado da ordem jurídica internacional acabam por cumprir o seu papel de estabelecer uma relação lógica entre ambos os ordenamentos, embora reconheça que o primado da ordem jurídica internacional pareça apresentar uma melhor justificação para a limitação da liberdade de ação do Estado (cf. Kelsen, 2017, p. 595). Contudo, no âmbito de uma filosofia política e do direito, Kelsen assume sua preferência pela primazia do direito internacional (Kelsen, 1990KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1990., p.551), a qual se torna mais evidente já durante à Segunda Guerra Mundial. Como ressalta Bobbio (1998BOBBIO, Norberto.; ZOLO, Danilo. Hans Kelsen, the Theory of Law and the International Legal System: A Talk. European Journal of International Law, n. 9, p. 355-367, 1998., p. 358), o direito internacional assume, na obra de Kelsen, um valor fundamental: a paz.

A paz se torna um dos grandes motes da filosofia político jurídica de Kelsen durante os anos da segunda guerra mundial. É então que a aproximação com a filosofia política kantiana se torna ainda mais evidente.15 15 Segundo Jochen von Bernstorff, o projeto cosmopolita kelseniano se aproxima mais do conceito de civitas máxima de Christian Wolf do que da proposta kantiana exposta no ensaio sobre a paz perpétua. Segundo ele, isso ocorre porque Kant ainda mantem uma noção forte da soberania estatal substancial (cf. BERNSTORFF, 2010, p. 243). Entretanto, como se mostrou na seção anterior, a visão kantiana aponta para uma redução progressiva do aspecto substancial da soberania estatal e, também por isso, defende-se aqui que é mais adequado aproximar os projetos de Kant e de Kelsen no âmbito da filosofia do direito internacional. Escreve Kelsen:

Há verdades tão evidentes por si mesmas que devem ser sempre proclamadas e incessantemente reiteradas para que não sejam condenadas ao esquecimento. Uma dessas verdades é: a guerra é assassinato em massa, a maior desgraça de nossa cultura, a nossa principal tarefa política é garantir a paz mundial, uma tarefa muito mais importante que decidir entre democracia e autocracia, ou capitalismo e socialismo, pois não há possibilidade de progresso social enquanto não se criar uma organização internacional que impeça com eficiência a guerra entre as nações do mundo. (...) Um autor consciente deve dirigir suas sugestões para aquilo que, depois de um atento exame da realidade política, possa considerar-se como possível amanhã, ainda que não possa ser possível hoje. Não fosse assim, não haveria esperança de progresso. Seu programa não deve implicar revolução nas relações internacionais, mas reforma da ordem dessas relações pela melhoria da técnica social predominante nessa área. (Kelsen, 2011KELSEN, Hans. A Paz pelo Direito. Tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. XII.)

Nesse excerto inúmeros são os pontos de proximidade com a filosofia kantiana: 1. A paz como um valor moral (para Kant) e político-jurídico (para Kelsen) que se encontra acima de questões políticas e econômicas; 2. O progresso moral (Kant) ou social (Kelsen) se encontra dependente da resolução do problema da guerra (cf. Kant, IaG, AA 08: 26, 28); 3. A paz como uma tarefa política que se assenta numa esperança justificada (cf. Kant, ZeF, AA 08:386); 4. A realização dessa tarefa por meio de um processo de reformas e não por revolução (cf. Kant, MS, AA 06: 355, 340; Kant, SF, AA 07: 92).

Tal como Kant, Kelsen também aponta para o fato de que “a solução ideal do problema da organização mundial assim como o problema da paz mundial é a criação de um estado mundial composto de todas as nações ou do maior número possível delas” (Kelsen, 2011KELSEN, Hans. A Paz pelo Direito. Tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p.5). Ambos reconhecem que esse ideal de direito funciona como uma ideia regulativa (na linguagem de Kant), a qual deve ser mediada por inúmeros estágios e por um longo processo. Além disso, ambos também concordam que esse processo não deve ser buscado pela via da pax romana, ou seja, pela conquista global de um poderoso leviatã16 16 No caso de Kant, quando Kant rejeita a criação de um Estado mundial na MS, ele está rejeitando monarquia universal, e não de uma república mundial (cf. KLEINGELD, 2004, 2012; HRUSCHKA;BIRD, 2008). Esse aspecto é muitas vezes desconsiderado pelos intérpretes. A permanência dos Estados no estado de natureza, o qual é um contínuo estado de guerra, ainda seria melhor do que se todos os Estados fossem submetidos um a um por um poderoso Estado, de tal forma que surgisse uma monarquia universal. Isso “por que as leis, com o aumento do âmbito de governação, perdem progressivamente a sua força e também porque um despotismo sem alma acaba por cair na anarquia, depois de ter erradicado os germes do bem.” (ZeF, AA 08:367) Cf. tb.: Na monarquia universal “toda liberdade (e o que é consequência sua), toda a virtude, gosto e ciência se deveriam extinguir.” Além disso “este monstro [a monarquia mundial] (em que as leis perdem, pouco a pouco, a sua força), após ter devorado todos os vizinhos, acaba por dissolver a si próprio e, graças à insurreição e à discórdia, divide-se em muitos Estados mais pequenos, os quais, em vez de tender para uma associação de Estados (república livre de povos aliados), começam cada um por seu lado o mesmo jogo, para não deixar que cesse a guerra (...)”. (RGV, AA 06: 34n.) No caso de Kelsen: “O fato de que o Estado não se originou de um contrato social não é argumento contrário à possibilidade de criar uma ordem garantidora da paz por meio de um tratado internacional. Ainda que a paz garantida pelo Estado nacional sempre e em toda a parte tenha sido consequência de um domínio forçado, não há necessidade de acreditar que essa é a única forma de instaurar a paz internacional e que nossa esperança de um mundo melhor tenha de aguardar até que um Leviatã mundial tenha engolido todos os outros.” (Kelsen, 2011, 08, ver também ver p. 06) . Nesse sentido, ambos pensam na necessidade de criação de instituições que aos poucos vão constituindo um Estado, mas de modo distinto daquele processo histórico de formação dos Estados atualmente existentes. Para Kelsen,

Alicerçar a esperança da construção desse Estado federativo mundial sobre o mero exemplo dos Estados Unidos e da Suíça é uma ilusão perigosa. Ainda assim, o objetivo não deve ser considerado inatingível. É bem possível que a ideia de um Estado federativo mundial se realize, mas somente depois de um longo e lento desenvolvimento que equalize as diferenças culturais entre as nações do mundo, principalmente se esse desenvolvimento for promovido pela consciência política e o trabalho educativo no campo das ideias. (...) Do ponto de vista estratégico, há apenas uma questão importante: qual é o próximo passo a ser dado nesse caminho para se obter êxito? É obvio que a princípio só se pode criar uma união internacional de Estados, não um Estado federativo. (Kelsen, 2011KELSEN, Hans. A Paz pelo Direito. Tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., 12)

Esse raciocínio poderia ser utilizado como um resumo da proposta de Kant, isto é, a criação de uma federação das nações como um passo intermediário para a criação futura de uma república mundial. E as similitudes não param por aí. Kelsen insiste, logo após o excerto acima, que a construção gradual do direito internacional pode ser vista ao mesmo tempo como sendo direito internacional de um ponto de vista, e como direito nacional de outro. Ora, é exatamente esse o impasse teórico para o qual Kant chama a atenção no seu segundo artigo definitivo para a paz perpétua, quando afirma que há uma contradição entre a exigência de um Estado mundial e a perspectiva de um direito internacional17 17 Cf. Kant, ZeF, AA 08: 355. Uma excelente análise desse excerto encontra-se em Kleingeld 2012, 59ss; 2004, 312s. . Também a consideração sobre o desarmamento dos Estados (Kelsen, 2011, p.18) está diretamente associada ao terceiro artigo preliminar da paz perpétua, o qual assevera que “os exércitos permanentes devem, com o tempo, desaparecer completamente.” (ZeF, AA 08: 345). Mas Kelsen ultrapassa a posição de Kant ao defender que a primeira instituição internacional que deveria ser criada, por uma questão estratégica, mas também por uma questão lógica e histórica relacionada com desenvolvimento do direito primitivo, seria uma corte internacional com jurisdição compulsória (Kelsen, 2011KELSEN, Hans. A Paz pelo Direito. Tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 12ss.).

Apesar de Kelsen defender um relativismo moral, os seus textos sobre filosofia do direito internacional acabam por trazer à tona uma perspectiva objetiva acerca do direito, a qual o aproxima profundamente de Kant. Kelsen assevera que “a ideia de direito, apesar de tudo, parece que ainda é mais forte que qualquer outra ideologia de poder” (Kelsen, 2011, 19). Kant, por sua vez, constata que mesmo tendo em conta a maldade da natureza humana, a qual pode ver-se às claras na livre relação entre os povos, “é de admirar que a palavra direito não tenha ainda podido ser expulsa da política da guerra como pedante, e que nenhum Estado tenha ainda ousado manifestar-se publicamente dessa última opinião”, ou seja, se a ideia de direito não estivesse profundamente enraizada na natureza humana, “a palavra direito nunca viria a boca desses Estados que querem guerrear entre si.” (Kant, ZeF, AA 08: 355). Assim, mesmo na guerra os Estados precisam prestar uma homenagem à ideia de direito. Tendo em vista todas essas similitudes, é muito provável que Kelsen tivesse em mente o texto de Kant À paz perpétua quando estava a escrever o seu A paz pelo direito. Por fim, se o primeiro é um ensaio filosófico que assume a forma de um tratado de paz, o segundo é uma análise jurídico-filosófica que ao final apresenta a estrutura jurídica de “um pacto de liga permanente para a manutenção da paz”.

5 CONCLUSÃO

A posição universalista do cosmopolitismo jurídico como aquela que faz juz ao direito inato da liberdade do indivíduo (em Kant) ou a primazia do direito internacional sobre o direito nacional como expressão de valores pacifistas e de igualdade (Kelsen) são defendidas por ambos os filósofos como sendo a posição filosófica moralmente correta (Kant) ou a mais adequada (Kelsen) em detrimento de uma primazia do direito nacional, a qual estaria vinculada a uma perspectiva de um amor a liberdade selvagem e bárbara (Kant) ou de um nacionalismo e imperialismo (Kelsen). Isso decorre não da avaliação do conteúdo contingente de uma norma jurídica específica, mas da forma de interpretação do sistema jurídico como um todo. Em outras palavras, uma norma jurídica específica pode ser adequada ou inadequada, seja da perspectiva da moralidade (Kant) ou da perspectiva da democracia (Kelsen), mas isso não diz nada a respeito da moralidade (Kant) ou da legitimidade jurídica (Kelsen) da forma do sistema jurídico como um todo.

A perspectiva da primazia do direito internacional sobre o direito nacional (Kelsen), ou da exigência cosmopolita intrínseca a legitimidade do direito (Kant), podem ser avaliadas da perspectiva do conteúdo e da forma. Mas essa dupla avaliação também é atribuível ao pluralismo. Assim, uma norma jurídica internacional injusta (segundo o valor da democracia em Kelsen e segundo a moralidade do imperativo categórico em Kant) pode ocorrer tanto numa interpretação monista, quanto numa interpretação pluralista do sistema do direito. Porém, no caso do monismo jurídico, há valores universais estabelecidos pela forma do direito (de reciprocidade e coerência jurídica) que podem permitir que tal norma seja reformada e inclusive criticada juridicamente. Já da perspectiva pluralista, em que cada Estado estabelece suas normas segundo suas próprias regras e valores, nada juridicamente pode ser estabelecido. Isso mostra que a própria forma de interpretação do direito internacional feita pelo pluralismo jurídico lhe incapacita para apresentar razões jurídicas para questionar uma norma injusta. Assim, tanto o pluralismo quanto o monismo podem possuir conteúdos, isto é, normas jurídicas particulares injustas ou inadequadas, mas apenas o monismo assume uma interpretação jurídica sistêmica que oferece uma solução para lidar com esse problema.

Segundo a perspectiva de Kant e de Kelsen, da mesma forma que o dualismo e o pluralismo colocam a soberania como estando ao mesmo tempo dentro e fora do direito, por conseguinte, confundindo os momentos políticos e jurídicos, eles também confundiriam os momentos políticos e jurídicos do direito internacional. Essa confusão não fortaleceria nem o direito, nem a política, mas enfraqueceria ambos, pois em última instância transformaria todo o conteúdo jurídico em política, entendida sempre como a vontade do mais forte. Logo, a guerra não seria apenas uma forma de sanção jurídica valida enquanto o sistema do direito internacional não se desenvolve racionalmente (na direção a uma república mundial), mas seria sempre a única forma jurídica válida possível. Por conseguinte, o pluralismo não deixa de ser simplesmente a antiga teoria do equilíbrio de poder, em que cada um permanece na condição jurídica primitiva de ser juiz em causa própria. Nesse caso, a paz não passaria de uma circunstância momentânea de ausência de guerras efetivas, apenas enquanto um “pardal” não ameaçasse seu delicado equilíbrio.

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  • SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
  • 1
    Todas as citações das obras de Kant seguem o padrão internacional estabelecido pela Akademie Ausgabe. Nesse sentido, as siglas das obras de Kant utilizadas aqui indicam os seguintes textos: IaG = Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita; TP = Sobre a expressão corrente, isso pode ser correto na teoria mas não serve para a prática; WDO = O que significa orientar-se no pensamento; RGV = Religião nos limites da simples razão; GMS = Fundamentação da metafísica dos costumes; Prol = Prolegômenos a toda metafísica futura que queira conceber-se com ciência; KrV = Crítica da razão pura; ZeF = À paz perpétua; MS = Metafísica dos costumes; SF = Conflito das faculdades.
  • 2
    Segundo Cavallar (2012CAVALLAR, Georg. Cosmopolitanisms in Kant’s philosophy. In: Ethics & Global Politics, 5:2, 2012. p.95-118.), é possível falar de diferentes tipos de cosmopolitismo presentes na filosofia Kantiana, tais como o cosmopolitismo moral, jurídico, epistemológico e religioso.
  • 3
    Sobre o princípio normativo de um individualismo universalista ver Rotsboll, 2020ROSTBOLL, Christian F. Freedom in the External Relation of All Human Beings: On Kant’s Cosmopolitanism. Kantian Review, v. 25, n.2, p. 243-265, 2020..
  • 4
    Sobre o conceito de democracia em Kant ver KLEIN, 2019KLEIN, Joel T. Kant e o Valor Moral da Democracia Representativa. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 75, p. 667-694, 2019., p. 667-694.
  • 5
    Foedus amphyctyonum” faz referência à coligação das cidades-estados gregas, cuja função era sua mútua proteção (cf. HÖFFE (2006BYRD, Sharon; HRUSCHKA, Joachim. From the state of nature to the juridical state of states. Law and Philosophy, n. 27, p. 599-641, 2008., 170)).
  • 6
    Uma avaliação detalhada de cada uma das posições e uma argumentação sobre as razões para a filiação a essa terceira linha interpretativa pode ser encontrada em: KLEIN, 2020aKLEIN, Joel T. Kant e a Livre Federação das Nações como Meio para a República Mundial. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, v. 25, p. 129-148, 2020a., p. 129-148; KLEIN, 2020bKLEIN, Joel T. O Cosmopolitismo Jurídico de Kant. Ethic@ (UFSC), v. 19, p. 209-249, 2020b., p. 209-249.
  • 7
    Porém, para Kant, de uma perspectiva exclusiva da razão prática, a guerra é sempre absolutamente condenável: “um estado de guerra (da lei do mais forte), (...) é em si mesmo injusto no mais alto grau, apesar de com isso nenhum dos dois sofrer injustiça da parte do outro, sendo obrigação dos Estados avizinhados sair desse estado.” (MS, AA 06: 344) Assim, “a razão moral prática pronuncia em nós seu veto irrecusável: não deve haver guerra; nem aquela entre mim e você no estado de natureza, nem aquela entre nós como Estados, (...) pois essa não é a maneira pela qual cada um deve procurar o seu direito.” (MS, AA 06: 354) Também de uma perspectiva pragmática moral, a guerra é um problema, pois como menciona o mote grego: “a guerra é má porque faz mais gente má do que as leva” (ZeF, AA 08:365 / cf. RGV, AA 06:34n.).
  • 8
    Essa separação está atrelada a uma concepção jus positivista presente na filosofia Kantiana. Essa é obviamente uma afirmação bastante contenciosa na literatura, sendo que o próprio Kelsen interpreta a filosofia kantiana do direito como sendo uma das grandes expoentes da posição jusnaturalista (Cf. KELSEN, 2017, nesse sentido também Bobbio (1995, 139f.), Höffe (1995, 72), Byrd/Hruschka (2010, 35f.)). Entretanto, a perspectiva de que Kant poderia ser visto como defendendo um juspositivismo encontra suporte em Waldron (1996) e Hopton (1982), o qual aproxima a posição de Kant daquela defendida por Austin. Ainda que Maus (2018, 241ff.) não utilize essa categorização, ela parece defender uma interpretação semelhante com relação a Kant. Para uma análise detalhada do positivismo jurídico de Kant ver Klein, 2021KLEIN, Joel T. Kant on Legal Positivism and the Juridical State. Kant Yearbook, v. 13, p. 73-105, 2021., p. 73-105.
  • 9
    Nesse sentido: “São leis permissivas da razão conservar a situação de um direito público, viciado pela injustiça até por si mesma estar madura para a transformação plena ou se aproximar da sua maturação por meios pacíficos, pois qualquer constituição jurídica, embora só em grau mínimo seja conforme ao direito, é melhor do que nenhuma; uma reforma precipitada depararia com o seu último destino (a anarquia).” (ZeF, AA 08:373n.) ou ainda, o “motim numa constituição em vigor é uma subversão de todas as relações civis jurídicas, portanto de todo o direito, i. é, não é mera alteração da constituição civil, mas sua dissolução, e a subsequente passagem para a melhor não é metamorfose, mas paligenesia, exigindo um novo contrato social, sobre o qual o anterior (agora suprimido) não tem influência” (MS, AA 06:340). Assim, é importante chamar a atenção para uma distinção entre estado despótico que ainda possui uma constituição jurídica, e um Estado bárbaro, que não a tem. Não é possível analisar esse aspecto em detalhe nesse artigo, mas pode-se dizer brevemente que, mesmo num Estado despótico há direito positivo, enquanto num Estado bárbaro, não há leis, mas meras ordens, tais como aquelas dadas por um ladrão armado. A teoria do direito de Kelsen parece não comportar essa diferença.
  • 10
    A respeito da relação entre moral, direito e política em Kelsen ver CONSANI, 2016CONSANI, C. F. Kelsen leitor de Kant: considerações a respeito da relação entre direito e moral e seus reflexos na política. Principios, v. 23, p. 125-170, 2016., p. 125-170.
  • 11
    Cabe aqui apenas chamar a atenção para o fato de que Direito internacional obriga os indivíduos indiretamente (apenas os Estados são sujeitos do direito internacional) - (1934, p. 142). Porém, a partir dos escritos da década de 40 Kelsen passa a defender que o direito internacional não se dirige diretamente aos Estados, mas também aos indivíduos (KELSEN, 1990, p.486). Nesse caso, também aqui Kelsen se aproxima de Kant, para quem no direito das gentes se considera “não somente uma relação entre um Estado com o outro em seu todo, mas também a de pessoas singulares de um Estado com indivíduos de outro, bem como dos indivíduos com o outro Estado como um todo” (KANT, MS, AA 06: 344).
  • 12
    No seu livro Teoria geral do direito e do Estado, Kelsen retoma esse ponto ao defender que “A norma fundamental do direito internacional deve ser uma norma que aprova o costume como o fato criador de normas e que poderia ser formulada da seguinte maneira: ‘os Estados devem se conduzir como têm se conduzido de costume.’ O direito internacional consuetudinário, desenvolvido com base nessa norma, é o primeiro estágio dentro da ordem jurídica internacional.” (KELSEN, 1990, 525) Nesse caso, o direito produzido pelos tratados com base no pacta sunt servanta constituiria o segundo nível, enquanto o terceiro seria o direito produzido pelos órgãos que foram por sua vez criados por tratados internacionais.
  • 13
    Considerando que a tese monista não sofreu alterações com a publicação da segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), doravante será utilizado o texto da segunda edição.
  • 14
    Para uma crítica à tese monista, ver HART, H.L.A. A Doutrina Kelseniana da Unidade do Direito. In: HART. H.L.A. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010HART, H.L.A. A Doutrina Kelseniana da Unidade do Direito. In: HART, H.L.A. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Tradução José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 348-385., p. 348-385.
  • 15
    Segundo Jochen von Bernstorff, o projeto cosmopolita kelseniano se aproxima mais do conceito de civitas máxima de Christian Wolf do que da proposta kantiana exposta no ensaio sobre a paz perpétua. Segundo ele, isso ocorre porque Kant ainda mantem uma noção forte da soberania estatal substancial (cf. BERNSTORFF, 2010BERNSTORFF, Jochen von. The Public International Law Theory of Hans Kelsen: Believing in Universal Law. Trans. Thomas Dunlap. Cambridge: Cambridge University Press, 2010., p. 243). Entretanto, como se mostrou na seção anterior, a visão kantiana aponta para uma redução progressiva do aspecto substancial da soberania estatal e, também por isso, defende-se aqui que é mais adequado aproximar os projetos de Kant e de Kelsen no âmbito da filosofia do direito internacional.
  • 16
    No caso de Kant, quando Kant rejeita a criação de um Estado mundial na MS, ele está rejeitando monarquia universal, e não de uma república mundial (cf. KLEINGELD, 2004KLEINGELD, Pauline. Approaching Perpetual Peace: Kant’s defense of a league of states and his ideal of a world federation. Journal of European Philosophy, v. 12, p. 304-325, 2004., 2012KLEINGELD, Pauline. Kant and Cosmopolitanism: The Philosophical Ideal of World Citizenship, Cambridge: Cambridge University Press, 2012.; HRUSCHKA;BIRD, 2008). Esse aspecto é muitas vezes desconsiderado pelos intérpretes. A permanência dos Estados no estado de natureza, o qual é um contínuo estado de guerra, ainda seria melhor do que se todos os Estados fossem submetidos um a um por um poderoso Estado, de tal forma que surgisse uma monarquia universal. Isso “por que as leis, com o aumento do âmbito de governação, perdem progressivamente a sua força e também porque um despotismo sem alma acaba por cair na anarquia, depois de ter erradicado os germes do bem.” (ZeF, AA 08:367) Cf. tb.: Na monarquia universal “toda liberdade (e o que é consequência sua), toda a virtude, gosto e ciência se deveriam extinguir.” Além disso “este monstro [a monarquia mundial] (em que as leis perdem, pouco a pouco, a sua força), após ter devorado todos os vizinhos, acaba por dissolver a si próprio e, graças à insurreição e à discórdia, divide-se em muitos Estados mais pequenos, os quais, em vez de tender para uma associação de Estados (república livre de povos aliados), começam cada um por seu lado o mesmo jogo, para não deixar que cesse a guerra (...)”. (RGV, AA 06: 34n.) No caso de Kelsen: “O fato de que o Estado não se originou de um contrato social não é argumento contrário à possibilidade de criar uma ordem garantidora da paz por meio de um tratado internacional. Ainda que a paz garantida pelo Estado nacional sempre e em toda a parte tenha sido consequência de um domínio forçado, não há necessidade de acreditar que essa é a única forma de instaurar a paz internacional e que nossa esperança de um mundo melhor tenha de aguardar até que um Leviatã mundial tenha engolido todos os outros.” (Kelsen, 2011, 08, ver também ver p. 06)
  • 17
    Cf. Kant, ZeF, AA 08: 355. Uma excelente análise desse excerto encontra-se em Kleingeld 2012, 59ss; 2004, 312s.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2021
  • Aceito
    29 Abr 2022
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