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Algumas Reflexões Críticas sobre a Tese da "Abstrativização" do Controle Concreto de Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF)

Some Critical Reflections on the "Abstrativization" Thesis of the Judicial Review in the Brazilian Supreme Court

Resumo

A questão da eficácia das decisões judiciais em sistemas complexos de controle de constitucionalidade, como o brasileiro, é premente. Nem todos os aspectos relevantes relativos à eficácia das decisões da suprema corte brasileira são pacíficos, como questões correlatas à amplitude, entre outras questões. O presente artigo explora a discussão acerca da tese da "abstrativização" da jurisdição do Supremo Tribunal Federal (STF) no controle concreto de constitucionalidade. A partir de um resgate do desenvolvimento histórico do controle brasileiro de constitucionalidade, o artigo procura examinar criticamente as teses sustentadas por alguns Ministros do STF especialmente por ocasião do julgamento da Reclamação n. 4.335/AC. Ao final busca-se demonstrar que é plausível sustentar que a tese referida encontra, ao que parece, alguns limites no Direito Constitucional positivo brasileiro, sendo admissível apenas mediante uma reforma constitucional formal.

Palavras-chave:
Controle de constitucionalidade; STF; Efeitos; Amplitude.

Abstract

The question of the effects of judicial decisions in complex judicial review systems such as the brazilian is pressing. Not all relevant aspects regarding the effects of the decisions of the Brazilian Supreme Court like extension and other issues are peaceful. This article explores the discussion about the thesis of "the abstract character" of the jurisdiction of the Brazilian Supreme Court in incidental judicial review. From a rescue of the historical development of the Brazilian constitutional system, the article seeks to critically examine the thesis held by some judges of the Brazilian Supreme Court especially during the trial of the "Reclamação" process n. 4.335/AC. At the end the study seek to demonstrate that it is plausible to argue that there is some limits in the Brazilian positive constitutional law to the admissibility of the thesis, which adoption requires a formal constitutional modification.

Keywords:
Judicial review; Brazilian Supreme Court; Effects; Extent.

1 Introdução

A introdução e o desenvolvimento de mecanismos de controle judicial de constitucionalidade das leis nos mais variados sistemas jurídicos contemporâneos suscitam diversas questões teóricas e práticas, dada sua complexidade.

O afirmado verifica-se talvez com maior intensidade em sistemas complexos de controle de constitucionalidade, como o brasileiro, nos quais a um modelo básico de controle, como o difuso, agregaram-se ao longo do tempo institutos novos, inspirados em sistemas de controle concentrado e em tese.

O sistemas de controle de constitucionalidade pátrio adota uma miríade de formas de controle, contemplando o controle em concreto em sede incidental ou principal - jurisdição constitucional das liberdades -, em abstrato - ações diretas estaduais e federais -, por órgãos de diversos graus de jurisdição - como Tribunais de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal (STF) -, com eficácia restrita ao caso ou ampla, e com mecanismos de ampliação - resolução suspensiva - ou jurisprudência dotada de eficácia vinculante, embora distinta da geral - súmulas vinculantes -, entre outras.

Entre os diversos temas importantes debatidos na atualidade sobre o controle de constitucionalidade das leis e atos do poder público no Brasil encontra-se a temática da amplitude dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade pronunciada em concreto e/ou pelo Supremo Tribunal Federal.

Como é de amplo conhecimento, o STF debateu a temática no bojo do julgamento da Reclamação n. 4.335, tendo sido objeto de notória divulgação a posição do Ministro Gilmar Mendes, seguida pelo então Ministro Eros Grau, no sentido do reconhecimento de efeitos erga omnes e vinculantes para as decisões proferidas por aquela corte não apenas em sede de controle abstrato, mas igualmente em sede de controle incidental/concreto de constitucionalidade, em marcada ruptura com as teses predominantes acerca da amplitude dos efeitos em sua própria jurisprudência e na doutrina predominante.

O presente artigo propõe-se a examinar a consistência das teses que defendem a ideia de "abstrativização" do controle concreto ou incidental realizado pelo STF a partir de uma breve análise do desenvolvimento histórico dos instrumentos de controle de constitucionalidade no Brasil e de uma análise sistemática das normas e instituições consagradas pela Constituição de 1988, sem pretensão de análise exaustiva de todos os aspectos da questão1 1 Além do objetivo do presente estudo, há uma discussão aprofundada sobre concepções como a teoria da eficácia transcendente da motivação, a teoria da mutação constitucional ou a teoria do estado de exceção de Giorgio Agamben. O escopo do estudo é mais modesto, circunscrevendo-se a examinar a compatibilidade da tese para com normas e institutos do direito constitucional positivo brasileiro vigente. .

Para tanto, o primeiro tópico propõe-se a realizar uma breve incursão no desenvolvimento histórico do controle de constitucionalidade no Brasil, desenvolvido desde uma base difusa inspirada no judicial review estadunidense até um sistema misto que contempla ações diretas e decisões com eficácia geral e vinculante e outros institutos.

O segundo tópico realiza um breve exame da tese da "abstrativização" defendida por alguns ministros no âmbito do julgamento da Reclamação n. 4.335, que basicamente propõe o reconhecimento de eficácia geral para todas as decisões proferidas pelo STF, seja o controle realizado em ação direta e controle abstrato, seja em caráter incidental e em controle concreto.

O terceiro e último tópico realiza um esforço no sentido de demonstrar as dificuldades em se conciliar o vanguardista entendimento referido para com o próprio direito constitucional positivo brasileiro no sistema atualmente vigente de acordo com a literalidade de diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988 e com institutos introduzidos no referido sistema constitucional a partir de 2004, nomeadamente a Súmula Vinculante, indo além, portando, das discussões calcadas exclusivamente na exegese do artigo 52, X e sua possível transformação pela via da mutação constitucional.

A conclusão do artigo, retomando as temáticas abordadas nos diferentes tópicos como premissas, é no sentido da inadmissibilidade da ampliação da jurisdição do STF por via pretoriana conforme pretendido naquele julgamento em face do direito constitucional positivo brasileiro, demonstrando que a jurisdição exigiria, para sua admissibilidade, uma reforma formal de diversos dispositivos do texto constitucional, e não apenas a ressignificação do dispositivo que estatui a resolução suspensiva do Senado Federal.

2 Breve Resgate Histórico do Desenvolvimento do Controle de Constitucionalidade no Brasil

Como é sabido o controle brasileiro de constitucionalidade surge com a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, na modalidade difusa, dada a forte influência norte-americana sobre aquela carta constitucional2 2 A rigor, a origem do controle encontra-se no Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890 (MIRANDA, 2008, p. 125). A despeito das concepções que vislumbram algum tipo de controle de constitucionalidade sob a Constituição imperial de 1824, com base em prerrogativas exercidas pelo monarca com base no Poder Moderador e a pretexto da teoria da separação de poderes de Benjamin Constant que lhe dava fundamento, considera-se mais apropriado conceber que instituições que possam ser apropriadamente consideradas como voltadas ao controle de constitucionalidade em sentido específico somente podem ser detectadas a partir da ordem constitucional republicana no final do século XIX. Sobre o desenvolvimento das instituições jurídicas e constitucionais brasileiras consultem-se, entre outros, Marcos; Mathias; Noronha (2014). . Assim, sob a ordem constitucional ali instaurada inexistiam mecanismos de controle abstrato de constitucionalidade, os quais apenas posteriormente vieram a ser introduzidos (MENDES, 1995MENDES, Gilmar Ferreira. Evolução do Direito Constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 32, n. 126, p. 87-102, abr.-jun. 1995., p. 87).

As instituições precursoras dos atuais mecanismos de controle abstrato de constitucionalidade existentes no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro surgirão apenas sob a Constituição de 1934, que introduzirá, entre outras coisas, o instituto da representação da inconstitucionalidade interventiva (MIRANDA, 2008MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo VI: inconstitucionalidade e garantia da constituição. 3. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra, 2008., p. 126), precursor remoto das futuras ações diretas e do controle de constitucionalidade em via de ação (MENDES, 1995MENDES, Gilmar Ferreira. Evolução do Direito Constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 32, n. 126, p. 87-102, abr.-jun. 1995., p. 89).

Tal ação, cujo exercício sabidamente era monopolizado pelo Procurador Geral da República, prestava-se a realizar o controle de constitucionalidade tendo como parâmetro exclusivamente, em suas origens, os denominados princípios constitucionais sensíveis. Dizendo-se de outro modo, além de ser caracterizado por legitimidade ativa exclusiva, o instituto da representação interventiva possuía parametricidade restrita para a ativação do controle de constitucionalidade em via de ação que proporcionava3 3 Posteriormente, a representação de inconstitucionalidade interventiva teve sua parametricidade ampliada para a hipótese de recusa à execução de lei federal, além dos princípios constitucionais sensíveis expressamente indicados em rol taxativo (CLÈVE, 2008, p. 142-143). .

A representação interventiva, portanto, embora seja o primeiro instituto assemelhado aos atuais mecanismos de fiscalização abstrata de constitucionalidade existentes no Brasil sob a égide da vigente Constituição Federal, pouco se assemelhava com as atuais ações diretas de inconstitucionalidade, podendo ser considerada a precursora, mais diretamente, da Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva4 4 Além da legitimidade exclusiva e da parametricidade restrita, que a distinguem claramente das atuais ações diretas de inconstitucionalidade, a espécie de controle de constitucionalidade que representou encontra-se a meio caminho entre controle concreto e abstrato, como observa Clèmerson Merlin Clève (2008, p. 142). .

A Carta de 1934 teve o mérito, ainda, de introduzir entre nós o instituto segundo o qual a decisão definitiva de mérito do Supremo Tribunal Federal que declarasse da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo dependeria, para obter eficácia geral, da extensão de seus efeitos por meio da edição de resolução do Senado Federal (art. 91, IV, equivalente ao atual art. 52, X) (MENDES, 1995MENDES, Gilmar Ferreira. Evolução do Direito Constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 32, n. 126, p. 87-102, abr.-jun. 1995., p. 90)5 5 A rigor o texto do referido artigo limitava-se a estabelecer que competia ao Senado Federal suspender a execução, total ou parcial, de lei, ato, deliberação ou regulamento declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, art. 91, IV. Tal dispositivo conectava-se com o art. 96 daquela Carta, que previa comunicação pelo Procurador Geral da República ao Senado da decisão do STF que declarasse a inconstitucionalidade incidental. .

Sob a ordem constitucional instaurada pela Constituição de 1946 manteve-se a representação de inconstitucionalidade interventiva, assim como o instituto da resolução do Senado Federal suspensiva da lei declarada inconstitucional pelo STF6 6 O artigo 64 estabelecia competir ao Senado a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais pelo STF, em decisão definitiva. . O mesmo é válido quanto às constituições de 1967 e 1969 (MENDES, 1995MENDES, Gilmar Ferreira. Evolução do Direito Constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 32, n. 126, p. 87-102, abr.-jun. 1995., p. 92)7 7 Na Constituição de 1967 a previsão de tal competência do Senado tinha assento no artigo 45, inciso IV, ao passo que na Constituição de 1969 (Emenda Constitucional n. 1/69), encontrava-se prevista no art. 42, inciso VII. .

A Emenda Constitucional n. 16/1965 teve o condão de criar o instituto precursor das atuais ações diretas de inconstitucionalidade, a denominada representação de inconstitucionalidade. Embora persistisse o sistema da legitimação ativa exclusiva do Procurador Geral da República, ampliou-se o parâmetro de controle para todo o texto constitucional, diferindo sensivelmente o novo instituto da representação interventiva nesse e noutros aspectos (MENDES, 1995MENDES, Gilmar Ferreira. Evolução do Direito Constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 32, n. 126, p. 87-102, abr.-jun. 1995., p. 95 e ss.)8 8 Veja-se ainda (Medina, 2010, p. 84). O artigo 114, inciso I, alínea "l" previa a competência originária do Supremo para processar e julgar a representação de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador Geral da República contra lei ou ato normativo federal ou estadual. A Constituição de 1969, por sua vez, manteve a previsão em seu artigo 119, I, alínea "l". . Tal instituto inaugura o controle abstrato de constitucionalidade no Brasil, tornando claramente misto nosso sistema judicial.

Observe-se que de 1965 a 1977 tanto as decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas pelo STF em controle abstrato - i.e., em sede de representação de inconstitucionalidade - quanto às proferidas em controle concreto necessitavam da suspensão da lei por resolução do Senado Federal para adquirirem efeitos gerais (MENDES, 2008______. Papel do Senado no controle federal de constitucionalidade, o: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 45, n. 179, p. 257-276, jul.-set. 2008. , p. 263).

A partir de 1977, o STF passou a considerar desnecessário o ato do Senado Federal para a perda de eficácia da lei declarada inconstitucional em sede de controle abstrato, passando a comunicar apenas as decisões proferidas incidentalmente àquela Casa do Poder Legislativo (MENDES, 2008______. Papel do Senado no controle federal de constitucionalidade, o: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 45, n. 179, p. 257-276, jul.-set. 2008. , p. 263).

Desde então se instaurou o sistema atualmente vigente, no qual a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF no controle abstrato ostenta efeitos erga omnes, ao passo que a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em sede de controle concreto ostenta efeitos restritos ou interpartes, salvo se, comunicado o Senado Federal, este editar resolução através da qual suspenda a eficácia do ato legislativo fulminado9 9 Consulte-se a literalidade do artigo 102 § 2º e 52, X da Constituição da República de 1988. Ressalve-se que vários aspectos sobre tal sistemática e, particularmente, sobre o instituto da suspensão da lei pelo Senado Federal são controvertidos. Exemplificativamente, debate-se a doutrina sobre o caráter vinculado ou discricionário do ato do Senado Federal, bem como sobre os efeitos irretroativos ou retroativos da suspensão da lei, e a abrangência desses, no último caso, entre outras questões relevantes. Consulte-se, ainda, o artigo 178 do Regimento Interno do STF. .

A Constituição Federal de 1988 passou a prever expressamente o efeito erga omnes e vinculante das decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF em ações declaratórias de constitucionalidade a partir da Emenda Constitucional n. 3/93, que introduziu um parágrafo ao artigo 102. Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 45/2004 estendeu tal expressa previsão de eficácia geral e vinculante às ações diretas de inconstitucionalidade, alterando a redação do dispositivo (atual § 2º).

Observe-se, ainda, que o texto original da Constituição vigente manteve a já tradicional previsão de resolução do Senado para a suspensão da eficácia da lei declarada inconstitucional pelo STF (art. 52, X), texto este que continua intocado pelo poder constituinte derivado reformador (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010., p. 150 e ss.).

O instituto da resolução suspensiva merece algumas considerações mais detidas. Como dito, dispõe o artigo 52, inciso X, da Constituição Federal de 1988, competir privativamente (in recto: exclusivamente) ao Senado Federal suspender, no todo ou em parte, lei declarada inconstitucional, em decisão definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal.

Tal preceito não constitui inovação da Constituição vigente, como já mencionado, tendo sido introduzido no sistema constitucional brasileiro sob a Carta Constitucional de 1934 e repetida, posteriormente, pelas constituições de 1946, de 1967 e de 1969, além daquela10 10 Na Constituição de 1934 o instituto fora previsto no artigo 91, IV, ao passo que na Constituição de 1946 passou a ter seu fundamento no art. 64. Nas constituições de 1967/1969, figurou no artigo 45, IV e 42, VII, respectivamente. Especificamente sobre o tema do desenvolvimento do instituto em nosso ordenamento constitucional veja-se Mendes (2008). .

É de se insistir que, inaugurado o controle judicial de constitucionalidade no Brasil sob a égide da Constituição da República de 1891, adotava-se o modelo exclusivamente difuso de controle de constitucionalidade, com inspiração norte-americana11 11 Adoção criticada por muitos em virtude da possibilidade de decisões conflitantes, dada a ausência, no direito brasileiro, do princípio da stare decisis, ou seja, do precedente vinculante, típico do Common Law. Sobre os inconvenientes do controle difuso em sistemas de Civil Law veja-se Cappelletti (1992, p. 76 e ss. e 80 e ss.). Veja-se, ainda, Kelsen (2001). .

Portanto, a presença do instituto da suspensão da lei inconstitucional pelo Senado Federal haveria de ser combinada com o controle difuso, ficando claro que se tratava de instituto destinado a tornar gerais os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade feita pelo Supremo em controle concreto, em uma decisão complexa do Supremo Tribunal Federal e do Senado (MENDES, 2008______. Papel do Senado no controle federal de constitucionalidade, o: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 45, n. 179, p. 257-276, jul.-set. 2008. ).

Com o advento da Emenda Constitucional 1/65, introduzindo o instituto da representação de inconstitucionalidade, como visto, o instituto da resolução suspensiva do Senado passou a ser o veículo por meio do qual tanto as decisões do STF em sede de controle incidental quanto as decisões proferidas por aquela Corte em sede de controle abstrato adquiriam efeitos gerais.

Com efeito, até 1977, o controle de constitucionalidade brasileiro poderia, s.m.j., ser considerado misto não apenas quanto à combinação da matriz basilar difusa com institutos típicos de controle abstrato, mas também quanto à atuação combinada de órgãos judiciais e políticos no controle de constitucionalidade12 12 Pois as decisões judiciais que declarassem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em concreto e/ou incidentalmente somente adquiririam eficácia para além do caso concreto se expedida a resolução do Senado Federal, bem como na via principal ou em sede de controle abstrato de constitucionalidade igualmente as decisões do STF que declarassem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo dependeriam da resolução para ostentar efeitos gerais. Ou seja, apenas no que diz respeito ao controle no caso concreto, com eficácia inter partes, existia um controle exclusivamente judicial, no que diz respeito às partes do processo, como visto. .

A partir daquele ano, o STF alterou sua posição, passando a entender que as decisões de declaração de inconstitucionalidade por ele proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade ostentariam, por si mesmas, eficácia geral. Doravante, o STF passou a comunicar ao Senado, para fins de edição de resolução suspensiva, apenas as decisões declaratórias de inconstitucionalidade por ele proferidas em controle concreto (MENDES, 2008______. Papel do Senado no controle federal de constitucionalidade, o: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 45, n. 179, p. 257-276, jul.-set. 2008. ).

Desde então se firmou na jurisprudência do STF e na doutrina entendimento no sentido de que as decisões declaratórias de inconstitucionalidade de leis e atos normativos do STF teriam eficácia erga omnes se proferidas em controle abstrato, e restrito às partes se proferidas em controle concreto/incidental, salvo suspensão da eficácia pelo Senado Federal (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010., p. 147 e ss. e 150 e ss.)13 13 Sobre o tema remete-se, ainda, a Marinoni (2013), especialmente p.460 e ss. .

Ou seja, a instituição da resolução suspensiva do Senado ficou doravante restrita ao controle concreto de constitucionalidade realizado pelo Supremo. Como já visto, tal entendimento parece ser razoável à luz do texto atual da Constituição da República, que prevê concomitantemente, a resolução suspensiva do Senado e os efeitos gerais da decisão do STF em sede de controle abstrato, passando-se ao largo de discussões sobre o caráter vinculado ou discricionário do ato do Senado Federal (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010., p. 150 e ss.).

Desse modo, parece plausível sustentar que sob a Constituição Federal de 1988 se manteve a sistemática que distingue a amplitude dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade pelo STF em controle abstrato e concreto.

Acrescente-se, ainda, que inovou a Carta de 1988 em diversos aspectos no sistema de controle de constitucionalidade, introduzindo novos mecanismos de controle, inclusive a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ampliando o rol de legitimados ativos para a deflagração do controle abstrato, estatuindo legitimidade restrita aos órgãos e entidades elencados nos incisos I a IX do artigo 103, em substituição ao anterior sistema de legitimação exclusiva. (CLÈVE, 2008CLÈVE, Clèmerson Merlin. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 45, n. 179, p. 141-154, jul.-set. 2008. , p. 142)14 14 Veja-se ainda Medina (2010, p. 84 e 86). .

Posteriormente o sistema tornou-se ainda mais complexo com a introdução de novos institutos, notadamente com a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADECON) pela Emenda Constitucional n. 3/93 e, ainda, pelas modificações promovidas pela Emenda Constitucional n. 45/2004, entre elas a introdução do instituto da Súmula Vinculante15 15 Súmula vinculante que, segundo a melhor doutrina, possui efeitos vinculantes, mas não gerais, pelo que sua eficácia parece inconfundível com a das ações de controle abstrato de constitucionalidade e com a resolução suspensiva do Senado Federal (MEDINA, 2010, p. 99 e ss.). , fato este relevante para a análise da tese jurisprudencial que é objeto do presente estudo.

3 A Reclamação n. 4.335/AC e a Tese da "Abstrativização" do Controle Incidental Feito pelo STF

No ano de 2014, o STF julgou a Reclamação n. 4.335/AC, ocasião na qual se deu uma célebre discussão sobre a amplitude do alcance da decisão do Supremo declaratória de inconstitucionalidade em controle concreto ou incidental.

Tratava-se de processo movido pela Defensoria Pública da União contra atos do Juiz de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, Estado do Acre, que consistiram em aplicação de dispositivo declarado inconstitucional em decisão definitiva do STF em controle concreto e incidental de constitucionalidade.

O dispositivo em questão consistia no artigo 2º, § 2º, da Lei n. 8.072/90, alcunhada "lei dos crimes hediondos", o qual previa a impossibilidade de progressão de regime naqueles crimes, tendo sido declarado inconstitucional pelo Supremo no bojo do julgamento do Habeas corpus n. 82.959/SP, em controle incidental, portanto.

Para a resolução do mérito da ação fazia-se necessário contornar uma dificuldade, qual seja, a tradicional distinção na jurisprudência daquela Corte entre os efeitos de suas decisões que declaram incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo daquelas proferidas em controle abstrato16 16 Observe-se que o próprio cabimento da reclamação exigia uma revisão da jurisprudência tradicional do STF, que reconhecia a legitimação apenas relativamente às partes originárias do processo, em caso de decisão proferida incidentalmente e, portanto, sem efeitos gerais. .

Por ocasião de tal julgamento, como é sabido, sustentou o Ministro Gilmar Mendes, apoiado pelo então Ministro Eros Grau, que a jurisdição do Supremo Tribunal Federal passara por um processo de "objetivação" ou "abstrativização", não fazendo mais sentido, em seu juízo, a distinção baseada naquele que considera um instituto vetusto e ultrapassado, qual seja, a resolução suspensiva do Senado Federal17 17 Veja-se o voto do Ministro relator, fls. 11 a 61 da Reclamação n. 4.335/AC. .

Sustentava uma revisão e atualização da jurisprudência da corte na matéria, postulando o reconhecimento de uma eficácia ampla das decisões do STF mesmo quer fossem estas proferidas em controle abstrato, em controle concreto ou incidental (MARINONI, 2013MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais , 2013., p. 463).

Assim, o Ministro relator sustentou ter ocorrido uma mudança na significação do artigo 52, X, no sentido de conferir ao mesmo interpretação segundo a qual a resolução suspensiva ostentaria efeitos apenas no sentido de conferir publicidade à decisão do STF. Defendia, portanto, entendimento segundo o qual as decisões daquela corte que declarassem a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, quer proferidas em via abstrata, quer em via difusa, ostentassem efeitos gerais e vinculantes. A discussão no bojo do processo centrou-se, ao que parece, na interpretação adequada a se fazer do artigo 52, X (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010., p. 154), e essa mesma tendência tem sido percebida na doutrina sobre o tema.

Um dos fundamentos de que se valeu o Ministro relator para sustentar suas teses é a conhecida tese da transcendência da eficácia da motivação, a qual, propugna que também os fundamentos jurídicos determinantes da decisão ostentassem transcendência no sentido de sua vinculatividade para além do caso concreto (MARINONI, 2013MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais , 2013.), modificando uma característica associada ao sistema neorromanista no qual se insere o direito brasileiro, de acordo com o qual a vinculatividade da decisão judicial cinge-se ao dispositivo dela.18 18 Sobre o tema, veja-se Mendes (2011, p. 471 e ss.).

O Ministro utilizou-se de uma série de argumentos em reforço de sua tese, como, por exemplo, a alegação do caráter anacrônico do instituto da resolução suspensiva, baseado em concepção da separação dos poderes ou funções por ele reputada superada. Alegou, ainda, a ampliação cada vez maior do controle abstrato de constitucionalidade no sistema jurídico-constitucional brasileiro, a partir de fatos como a ampliação do rol de legitimados, a multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral, entre outros (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010., p. 155)19 19 Sobre a temática da expansão da jurisdição constitucional e da revisão das teorias tradicionais da separação dos poderes veja-se Cambi (2009). .

A adoção ou não da referida teoria é relevante em diversos aspectos e com relação a temas polêmicos, como aquele da eventual vinculação do legislador às decisões proferidas pela Suprema Corte brasileira em sede de controle de normas - não albergada na jurisprudência do STF até hoje -, entre outros aspectos relevantes.

Houve, ainda, o recurso a outras figuras da teoria jurídica e constitucional, tais quais a noção de mutação constitucional, consistente, como é sabido, em procedimento informal de alteração da norma constitucional - significado - sem alteração do texto constitucional - significante - e, inclusive, invocação, pelo Ministro Eros Grau, que acompanhou o relator, da teoria do estado de exceção do teórico italiano Giorgio Agamben, em curiosa interpretação, que aqui não poderá ser examinada, por exorbitar o escopo do estudo.

Como é sabido, os ministros dividiram-se quanto à matéria, alguns perfilhando a orientação proposta pelo Ministro Gilmar Mendes, outro perfilhando orientações distintas - como foi o caso do Ministro Joaquim Barbosa. Independentemente de um aprofundamento nos fundamentos dos votos naquele importante caso, de resto já amplamente discutidas pela literatura, cabe recordar apenas que o STF acabou por resolver a dissensão com a edição da Súmula Vinculante n. 26, sem posicionar-se, definitivamente, em favor ou contra a tese de "abstrativização" de sua jurisdição no controle incidental, ao que parece.

Independentemente da solução adotada pelo STF na resolução do problema que diante dele se colocava, parece imprescindível examinar em maior detalhe a questão da plausibilidade jurídico-constitucional da tese da "abstrativização", à luz, não apenas da interpretação do artigo 52, X, mas de uma interpretação sistemática abrangendo outros dispositivos e institutos de direito constitucional positivo brasileiro20 20 A despeito da importância do tema renunciar-se-á aqui ao exame da plausibilidade da tentativa de justificação da tese com base no fenômeno da mutação constitucional, o que parece, em princípio, indefensável, tendo em vista os limites apontados pela doutrina ao fenômeno. Sobre o tema, remete-se o leitor ao clássico estudo de Jellinek (1991), entre outros. .

Aqui não serão examinados em maior detalhe aspectos correlatos à tese da eficácia transcendente da motivação e outros aspectos correlatos, dados os limites estabelecidos para o estudo e, ainda, a presença de limites decorrentes da literalidade da Constituição brasileira em vigor bastante sérios à adoção da referida visão como fundamento a justificar uma eficácia ampla a toda e qualquer decisão proferida pelo STF, quer em controle abstrato, quer em controle concreto, o que se passará a demonstrar no item sucessivo.

4 Limites à Admissibilidade da Tese da "Abstrativização" do Controle Concreto de Constitucionalidade Feito pelo STF no Direito Constitucional Positivo Brasileiro

A despeito dos argumentos expendidos em defesa da tese que pretende conferir efeitos amplos às decisões proferidas pelo STF em controle concreto de constitucionalidade - alguns problemas parecem assolar tal ponto de vista, tornando-o insustentável.

Procurar-se-á evidenciar o afirmado no presente item, examinando essencialmente três problemas colocados pelo direito constitucional positivo brasileiro: a interpretação do artigo 52, X da Constituição, embora brevemente; os limites da legitimação restrita para a deflagração do controle abstrato e, ainda, a impossibilidade de conciliar a visão sustentada com outros institutos constitucionais, como a Súmula Vinculante. Tais temas serão examinados sucessivamente no presente tópico21 21 Não serão examinados, portanto, aspectos que também poderiam ser bastante relevantes, como aqueles já mencionados e, ainda, o caráter de suprema corte - e não de tribunal constitucional - do STF. Sobre o tema veja-se Cappelletti (1992) e Mendes (2014). .

Inicialmente afigura-se um primeiro óbice à aceitação da releitura que se pretendeu fazer do instituto da suspensão pelo Senado Federal da lei declarada inconstitucional incidentalmente pelo STF no próprio teor do dispositivo.

Parece difícil conceber que, dada a literalidade do dispositivo, segundo o qual compete privativamente (in recto: exclusivamente) ao Senado suspender a eficácia de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, pelo STF (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010., p. 156), possa-se admitir a leitura proposta por ocasião do julgamento mencionado naquela suprema corte.

É pouco verossímil, com efeito, sustentar que a expressão "suspender a eficácia" possa legitimamente ser lida como significando "dar publicidade", conceitos estes que parecem bastante distantes. É importante observar que não obstante todas as inovações hermenêuticas conhecidas pelo Direito Constitucional contemporâneo e a variedade de novas técnicas de decisão adotadas em sede da jurisdição constitucional, existem limites22 22 Um dos limites mais basilares à interpretação jurídica é, evidentemente, é o da literalidade do dispositivo interpretado. Assim, se de um lado a interpretação constitucional não pode limitar-se apenas à técnica ou ao método gramatical, de outro lado, o texto representa um dos limites impostos ao intérprete. O significado eleito deve ser um dos significados possíveis do texto interpretado. Embora as palavras não sejam unívocas, mas antes equívocas e plurívocas, é sabido que não é possível afirmar qualquer coisa sobre qualquer coisa e que, sendo assim, o texto limita, necessariamente, o arbítrio do intérprete. Veja-se Streck (2007). .

Partindo de tal premissa, não parece possível sustentar a legitimidade de tal interpretação a partir das noções de mutação constitucional ou de "estado de exceção" como pretenderam fazer os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau no julgamento da Reclamação n. 4.335/AC23 23 Embora mutação constitucional seja conceito que remete, não raro, a violações da constituição como meio de alterações anômalas na ordem constitucional Jellinek (1991), sua admissão irrestrita pode representar sério risco para o postulado da constitucionalidade. .

Como argumento singelo para sustentar tal conclusão, observe-se que a vedação da interpretação contra legem é um dos limites até mesmo para o princípio da interpretação das leis conforme a constituição. A questão é tanto mais grave quando trata de norma atributiva de competência exclusiva do Senado Federal, indelegável, portanto, segundo concepção doutrinária dominante (SILVA, 2011SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011., p. 521), e associada à independência e autonomia de um dos principais órgãos da república.

Ao que parece, embora seja legítimo sustentar, de um ponto de vista de política legislativa, o anacronismo do instituto da suspensão previsto no artigo 52, inciso X, da atual Constituição, e até mesmo a possível desejabilidade de adoção de um novo sistema, daí não se depreende a possibilidade de ignorar o significado textual do dispositivo. Sua supressão reclamaria, em princípio, a apropriada revisão constitucional formal, revogando ou alterando a redação do artigo 52, X, por meio da edição de emendas nos termos do artigo 60 da Constituição da República de 1988, aprovadas pelo poder competente, o legislativo24 24 Sobre limites à interpretação constitucional e limites às modificações constitucionais consultem-se, entre tantos, Hesse (1998) e Canotilho (2003). .

Desse modo, o primeiro argumento contrário à tese do Ministro Gilmar Mendes aqui expendido, e o mais singelo deles, é o dos próprios limites textuais evidentes impostos ao intérprete, inclusive ao STF25 25 Passa-se ao largo, aqui, da possibilidade de decisões contra legem por parte dos órgãos judiciais e de eventual eficácia modificadora anômala da ordem jurídica delas, especialmente se proferidas por órgão de cuja decisão não caiba recurso. . De resto, tal argumento já foi bastante debatido e, aliás, a discussão principal quanto à temática parece ter sido exatamente a da correta exegese do disposto no inciso X do artigo 52 da Constituição. Mas há outros argumentos, igualmente baseados no direito constitucional positivo brasileiro, que parecem ainda mais relevantes.

Um segundo problema para o reconhecimento da tese de ampliação dos efeitos do controle incidental de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal decorre igualmente da interpretação sistemática da Carta de 1988, preconizada pelo princípio da unidade da Constituição (CANOTILHO, 2003CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional & Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.).

Como é sabido, entre as opções debatidas durante a Assembleia Constituinte de 1986-1988, cogitou-se o abandono do modelo de legitimação exclusiva do Procurador Geral da República com a adoção do sistema de legitimidade restrita ou de legitimidade ampla, tendo havido inclusive propostas no sentido da instituição de ação popular de inconstitucionalidade (MENDES, 1995MENDES, Gilmar Ferreira. Evolução do Direito Constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 32, n. 126, p. 87-102, abr.-jun. 1995., p. 98).

Sabe-se que a última posição restou vencida, tendo prevalecido a solução intermediária, como evidencia o teor do artigo 103 e seus nove incisos, que arrolam taxativamente os legitimados ativos aptos à deflagração do controle abstrato de constitucionalidade federal26 26 Sabe-se também que diante da indeterminação do conceito de entidade de classe de âmbito nacional previsto no inciso IX do artigo 103, e do grande número de ADIs propostas pelos diversos legitimados, que o próprio STF veio a criar jurisprudencialmente filtros de admissibilidade de legitimados, especialmente por meio do requisito da pertinência temática. De se recordar, ainda, as razões do veto presidencial, mantido pelo Congresso Nacional, ao inciso II do artigo 2º da Lei n. 9.882/90, regulamentadora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). .

Do sistema constitucional estatuído em 1988 e emendado em 1993 e em 2004, entre outras oportunidades, resta claro que as decisões que detêm efeitos gerais e vinculantes são aquelas proferidas pelo STF em sede de controle abstrato ou, nos dizeres constitucionais, por ocasião do julgamento das ADIs e ADECONs (BRASIL, 1988, art. 102 § 2º).

A admissão de que todas as decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF, inclusive em sede de controle concreto ou incidental, ostentariam tais amplos efeitos parece não se compatibilizar com o sistema de legitimação restrita, inequivocamente adotado pela Constituição Federal vigente, ferindo, novamente, a literalidade de dispositivos como o § 2º do artigo 102, que condiciona indubitavelmente eficácia geral a decisões definitivas de mérito proferidas em sede de controle abstrato.

Tal tese, de certo modo, fere o sistema de legitimação restrita, deliberadamente adotado pelo constituinte, ao equiparar qualquer parte em processo que tramite perante o STF, seja de competência originária ou recursal, em parte legítima para deflagrar o controle de constitucionalidade com efeitos gerais e vinculantes27 27 A conexão entre a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais denotada por institutos como o Verfassungsbwschwerde alemão, que, ao invalidar ato administrativo ou judicial de aplicação de lei inconstitucional implica a declaração de eficácia da inconstitucionalidade com efeitos gerais, parece vincular-se inexoravelmente ao sistema de direito positivo alemão e ao caráter concentrado do controle de constitucionalidade daquele país, que caracteriza-se como sistema de jurisdição dúplice, completamente distinto do sistema misto brasileiro, de fundamento difuso e claramente caracterizado com sistema de jurisdição una. Sobre o tema da reclamação constitucional alemão, inconfundível com o instituto homônimo brasileiro, consulte-se Cappelletti (1961). .

Parece pouco legítimo simplesmente desconsiderar que para que o Supremo possa proferir decisões com efeitos gerais a provocação de um dos legitimados do artigo 103 da Carta de 1988 é conditio sine qua non para a deflagração do controle abstrato, uma vez que a sistemática de tal controle não admite a atuação ex officio por parte daquela Corte o que, aliás, é típico de sistemas de controle judicial, baseados no princípio da instância (CAPPELLETTI, 1992CAPPELLETTI, Mauro. Controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito Comparado. Trad. Aroldo P. Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992.)28 28 Mauro Cappelletti (1984) recorda que o controle judicial de constitucionalidade observa em regra o princípio da instância, sendo estranho ao referido sistema o controle de ofício, mais comum em sistemas de controle político, como o francês..Veja-se ainda Mendes (2011, p. 123-124). .

Há que se observar, ainda, que manifestação do poder constituinte derivado reformador em 2004, por meio da Emenda Constitucional 45, ratificou o sistema no que diz respeito à legitimação restrita. Referida reforma constitucional limitou-se a tornar idênticos os legitimados à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade, e a constitucionalizar os efeitos vinculantes também para as decisões proferidas em sede de ADI, originalmente reconhecidos no texto constitucional para a ADECON pela Emenda Constitucional n. 3/1993, e previstos quanto às ADIs apenas em nível infraconstitucional a partir de 1999, pela Lei n. 9.868 (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010., p. 287).

Tal emenda à Constituição, a despeito de ter alterado diversos dispositivos constitucionais relativos ao controle abstrato de constitucionalidade, manteve, ademais, inalterada a redação do artigo 52, X, o que parece ser claro caso de silêncio eloquente.

Ou seja, não apenas parece difícil interpretar "suspender a eficácia" como "dar publicidade" mas, também, fica difícil compatibilizar a tese da "abstrativização" com o sistema de legitimação restrita, que condiciona o proferimento de decisão com eficácia geral e vinculante pelo STF a provocação de um dos legitimados do artigo 103 da Constituição brasileira vigente, e por nenhum outro órgão ou ente. A legitimidade ativa contida naquela norma deve ser interpretada, em sistemas de legitimação restrita, como o brasileiro, como condição necessária à deflagração do controle e, portanto, redunda na impossibilidade de decisão com eficácia geral e vinculante sem tal pressuposto, considerando-se serem excepcionais as decisões com tais características em nosso sistema jurídico.

No entanto o limite mais evidente à tese referida decorre de instituto introduzido pela já referida Emenda à Constituição de 2004, como se verá. A alcunhada "reforma do judiciário" trouxe novos institutos para o âmbito das competências do STF, notadamente a edição da denominada Súmula Vinculante, prevista no artigo 103-A da Constituição Federal. Tal instituto, ao invés de constituir argumento favorável à visão ampliativa dos efeitos das decisões proferidas pelo STF em casos concretos, como se pretendeu na Reclamação n. 4.335, constitui, s.m.j., no mais importante argumento de direito positivo contrário a tal tese29 29 Em sentido contrário, entendendo que o advento do instituto corrobora a tese de "abstrativização", veja-se Mendes (2008, p. 272 e ss.). .

O instituto da Súmula Vinculante foi introduzido na ordem jurídico-constitucional brasileira pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Basicamente trata-se de súmula da jurisprudência dominante do STF, para cuja edição são exigidos diversos pressupostos e requisitos, e que, após aprovação por maioria qualificada de Ministros, passa a ostentar efeito vinculante perante a administração pública e o Poder Judiciário (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010.).

Além de reiteradas decisões em matéria constitucional exigidas pelo artigo 103-A da Constituição Federal, pressuposto inarredável para a validade constitucional de qualquer súmula vinculante a ser editada pelos STF, é necessário que maioria de 2/3 dos ministros vote favoravelmente à edição da mesma para que essa seja aprovada, ou seja, oito ministros, tudo nos termos do artigo 103-A, caput. Observe-se, ainda, que a Súmula possui apenas efeitos vinculantes, e não erga omnes, sendo menos amplos os primeiros do que os últimos (MEDINA, 2010MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Direito Processual Constitucional. 4. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010.).

O poder constituinte derivado reformador exercido pelo Congresso Nacional nos termos do artigo 60 e parágrafos da Constituição estabeleceu, ainda, outros requisitos restritivos à edição de súmula vinculante pelo STF, como, por exemplo, a existência de situação de insegurança jurídica ensejada por controvérsia atual sobre a interpretação de dispositivos específicos por órgãos do Poder Judiciário ou entre estes e outros órgãos da Administração Pública, capaz de acarretar relevante multiplicação de processos, entre outros (art. 103-A § 1º) (SIQUEIRA JR., 2010SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2010.).

Desse modo, da criação de tal instituto pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e do regime jurídico a ele conferido pela mesma, parece ser possível extrair algumas conclusões. A mais óbvia é a de, se são necessários todos estes pressupostos e requisitos para que a jurisprudência predominante do STF possua eficácia vinculante, a contrario sensu, as demais decisões geralmente proferidas pelo Supremo Tribunal Federal não possuem efeitos gerais ou erga omnes e tampouco vinculantes. Convém esmiuçar o argumento.

Em primeiro lugar, observe-se que se todas as decisões do STF que declaram a inconstitucionalidade de leis e atos normativos (inclusive incidentalmente) já possuíssem efeitos gerais e vinculantes, o instituto da Súmula Vinculante seria em grande parte redundante, despiciendo ou inútil.

Em muitos casos não haveria qualquer razão para a edição de súmula vinculante, se cada um dos precedentes para sua edição (que eventualmente declarassem inconstitucionalidade incidentalmente) já possuíssem, por si sós, efeitos gerais e vinculantes. Bastaria, por exemplo, que o interessado manejasse reclamação constitucional com base no próprio precedente, dotado, por si só, de eficácia geral e vinculante. O instituto da súmula seria útil apenas se não houvesse declaração de inconstitucionalidade.

Adicionalmente, haveria que se indagar por que razão seria necessária a observância do procedimento de edição das súmulas estatuído no artigo 103-A, especialmente o quórum qualificado de 2/3 dos Ministros (oito ministros), e no Regimento Interno do STF.

Visto que o poder constituinte derivado reformador sujeitou a produção de efeitos vinculantes por súmula representativa da jurisprudência dominante da corte, traduzida na exigência de reiteradas decisões, a aprovação de maioria qualificada de oito ministros, se seria defensável a tese que pretende extrair efeitos mais amplos (erga omnes e vinculantes, e não apenas vinculantes) de decisão que pode ser proferida por mera maioria simples ou absoluta pelo Pleno ou pelas Turmas do STF (i.e., por sete ou menos ministros, podendo ser tomada, nas turmas, por apenas três ou quatro ministros).

Cabe refletir, portanto, se seria defensável interpretar que tendo a Emenda Constitucional n. 45/2004 exigido maioria qualificada de 2/3 dos ministros, além de outros pressupostos restritivos, como condição necessária para a edição de súmula que ostenta "mero" efeito vinculante, seria possível atribuir efeitos gerais e vinculantes a decisões tomadas por maioria simples ou absoluta de ministros, seja do Pleno, seja das Turmas do STF, sem mais, de forma consistente para com o direito constitucional positivo brasileiro vigente.

Assim, ao que parece, a Súmula Vinculante, em lugar de ser um argumento em favor do reconhecimento da tese da "abstravização" da jurisdição do STF e consequente reconhecimento de efeitos gerais e vinculantes às decisões daquela Corte em sede de controle concreto de constitucionalidade, constitui a mais forte evidência da impossibilidade de, em face de nosso sistema atual de direito constitucional positivo, reconhecer tal tese, especialmente por via pretoriana.

5 Conclusão

Em síntese, da discussão sobre a extensão dos efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas em sede de controle incidental ou concreto pelo Supremo Tribunal Federal parece possível inferir algumas conclusões.

Primeiramente deve-se observar que, como apontado por muitos, a pretensão de se chegar àquele efeito por mera construção pretoriana parece inaceitável, desservindo de fundamento a tal pretensão a ideia de mutação constitucional ou outros construtos teóricos invocados com tal intuito.

Além disso, parecem existir fortes argumentos calcados no sistema constitucional positivo brasileiro a indicarem solução diversa para o problema, que vão muito além da exegese do artigo 52, inciso X, da Constituição da República de 1988, tema ao qual tem se cingido muitas vezes a discussão da temática (BRASIL, 1988).

Como argumentos decisivos para a refutação da tese ampliativa da eficácia da jurisdição constitucional do STF, aqui apenas brevemente examinada, encontrar-se-iam o argumento da legitimidade restrita para deflagração do controle abstrato e o argumento da súmula vinculante, como visto.

Considerando-se a adoção deliberada, pela Assembleia Constituinte de 1986-1988, no sentido do sistema de iniciativa restrita no que tange à provocação da jurisdição constitucional abstrata, parece tornar-se mais difícil sustentar aquela teoria denominada pelo neologismo da "abstrativização".

Com efeito, ela opera, como visto, uma equiparação de uma ação especialíssima, capaz de ser deflagrada por rol taxativo de legitimados especiais, com qualquer ação ou recurso, ordinário ou extraordinário, da competência da suprema corte brasileira.

Ademais, partindo-se dos requisitos introduzidos na ordem constitucional brasileira como necessários para dotar a jurisprudência dominante do STF de efeitos meramente vinculantes (e não gerais), notadamente do quórum qualificado, torna-se ainda mais difícil sustentar aquela visão, sob pena de tornar inútil e sem finalidade o instituto introduzido no sistema constitucional em 2004, posto que cada um dos precedentes que são pressuposto de sua criação já ostentariam, por si sós e sem mais, eficácia mais ampla e igualmente vinculante.

Observe-se, por relevante, que a conclusão aqui sustentada é independente da visão no sentido de ser desejável ou não ampliar a eficácia das decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas pelo STF em sede de controle incidental, bem como de qualquer consideração sobre a adequação ou inadequação do instituto da resolução suspensiva do Senado Federal.

Simplesmente parece plausível sustentar que o efeito pretendido com a tese da "abstrativização" não pode ser obtido por outro meio, senão o meio de reforma constitucional, isso é, do exercício regular do poder constituinte derivado reformador.

Sem a alteração do direito constitucional positivo brasileiro e de diversos dispositivos da Constituição de 1988 - pelo menos o artigo 52, X, o artigo 102 § 2º e o artigo 103-A, resolvendo as inconsistências aqui brevemente apontadas, parece impossível sustentar a tese da "abstrativização" sem pregar a violação à literalidade de diversos dispositivos constitucionais expressos e ao processo de revisão constitucional preconizado no artigo 60 da Constituição da República, pois, apesar da indeterminação semântica relativa que acompanha inexoravelmente o direito, é pressuposto da própria noção de juridicidade ser possível distinguir entre a interpretação do direito e sua violação.

Referências

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  • 1
    Além do objetivo do presente estudo, há uma discussão aprofundada sobre concepções como a teoria da eficácia transcendente da motivação, a teoria da mutação constitucional ou a teoria do estado de exceção de Giorgio Agamben. O escopo do estudo é mais modesto, circunscrevendo-se a examinar a compatibilidade da tese para com normas e institutos do direito constitucional positivo brasileiro vigente.
  • 2
    A rigor, a origem do controle encontra-se no Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890 (MIRANDA, 2008, p. 125). A despeito das concepções que vislumbram algum tipo de controle de constitucionalidade sob a Constituição imperial de 1824, com base em prerrogativas exercidas pelo monarca com base no Poder Moderador e a pretexto da teoria da separação de poderes de Benjamin Constant que lhe dava fundamento, considera-se mais apropriado conceber que instituições que possam ser apropriadamente consideradas como voltadas ao controle de constitucionalidade em sentido específico somente podem ser detectadas a partir da ordem constitucional republicana no final do século XIX. Sobre o desenvolvimento das instituições jurídicas e constitucionais brasileiras consultem-se, entre outros, Marcos; Mathias; Noronha (2014).
  • 3
    Posteriormente, a representação de inconstitucionalidade interventiva teve sua parametricidade ampliada para a hipótese de recusa à execução de lei federal, além dos princípios constitucionais sensíveis expressamente indicados em rol taxativo (CLÈVE, 2008, p. 142-143).
  • 4
    Além da legitimidade exclusiva e da parametricidade restrita, que a distinguem claramente das atuais ações diretas de inconstitucionalidade, a espécie de controle de constitucionalidade que representou encontra-se a meio caminho entre controle concreto e abstrato, como observa Clèmerson Merlin Clève (2008, p. 142).
  • 5
    A rigor o texto do referido artigo limitava-se a estabelecer que competia ao Senado Federal suspender a execução, total ou parcial, de lei, ato, deliberação ou regulamento declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, art. 91, IV. Tal dispositivo conectava-se com o art. 96 daquela Carta, que previa comunicação pelo Procurador Geral da República ao Senado da decisão do STF que declarasse a inconstitucionalidade incidental.
  • 6
    O artigo 64 estabelecia competir ao Senado a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais pelo STF, em decisão definitiva.
  • 7
    Na Constituição de 1967 a previsão de tal competência do Senado tinha assento no artigo 45, inciso IV, ao passo que na Constituição de 1969 (Emenda Constitucional n. 1/69), encontrava-se prevista no art. 42, inciso VII.
  • 8
    Veja-se ainda (Medina, 2010, p. 84). O artigo 114, inciso I, alínea "l" previa a competência originária do Supremo para processar e julgar a representação de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador Geral da República contra lei ou ato normativo federal ou estadual. A Constituição de 1969, por sua vez, manteve a previsão em seu artigo 119, I, alínea "l".
  • 9
    Consulte-se a literalidade do artigo 102 § 2º e 52, X da Constituição da República de 1988. Ressalve-se que vários aspectos sobre tal sistemática e, particularmente, sobre o instituto da suspensão da lei pelo Senado Federal são controvertidos. Exemplificativamente, debate-se a doutrina sobre o caráter vinculado ou discricionário do ato do Senado Federal, bem como sobre os efeitos irretroativos ou retroativos da suspensão da lei, e a abrangência desses, no último caso, entre outras questões relevantes. Consulte-se, ainda, o artigo 178 do Regimento Interno do STF.
  • 10
    Na Constituição de 1934 o instituto fora previsto no artigo 91, IV, ao passo que na Constituição de 1946 passou a ter seu fundamento no art. 64. Nas constituições de 1967/1969, figurou no artigo 45, IV e 42, VII, respectivamente. Especificamente sobre o tema do desenvolvimento do instituto em nosso ordenamento constitucional veja-se Mendes (2008).
  • 11
    Adoção criticada por muitos em virtude da possibilidade de decisões conflitantes, dada a ausência, no direito brasileiro, do princípio da stare decisis, ou seja, do precedente vinculante, típico do Common Law. Sobre os inconvenientes do controle difuso em sistemas de Civil Law veja-se Cappelletti (1992, p. 76 e ss. e 80 e ss.). Veja-se, ainda, Kelsen (2001).
  • 12
    Pois as decisões judiciais que declarassem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em concreto e/ou incidentalmente somente adquiririam eficácia para além do caso concreto se expedida a resolução do Senado Federal, bem como na via principal ou em sede de controle abstrato de constitucionalidade igualmente as decisões do STF que declarassem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo dependeriam da resolução para ostentar efeitos gerais. Ou seja, apenas no que diz respeito ao controle no caso concreto, com eficácia inter partes, existia um controle exclusivamente judicial, no que diz respeito às partes do processo, como visto.
  • 13
    Sobre o tema remete-se, ainda, a Marinoni (2013), especialmente p.460 e ss.
  • 14
    Veja-se ainda Medina (2010, p. 84 e 86).
  • 15
    Súmula vinculante que, segundo a melhor doutrina, possui efeitos vinculantes, mas não gerais, pelo que sua eficácia parece inconfundível com a das ações de controle abstrato de constitucionalidade e com a resolução suspensiva do Senado Federal (MEDINA, 2010, p. 99 e ss.).
  • 16
    Observe-se que o próprio cabimento da reclamação exigia uma revisão da jurisprudência tradicional do STF, que reconhecia a legitimação apenas relativamente às partes originárias do processo, em caso de decisão proferida incidentalmente e, portanto, sem efeitos gerais.
  • 17
    Veja-se o voto do Ministro relator, fls. 11 a 61 da Reclamação n. 4.335/AC.
  • 18
    Sobre o tema, veja-se Mendes (2011, p. 471 e ss.).
  • 19
    Sobre a temática da expansão da jurisdição constitucional e da revisão das teorias tradicionais da separação dos poderes veja-se Cambi (2009).
  • 20
    A despeito da importância do tema renunciar-se-á aqui ao exame da plausibilidade da tentativa de justificação da tese com base no fenômeno da mutação constitucional, o que parece, em princípio, indefensável, tendo em vista os limites apontados pela doutrina ao fenômeno. Sobre o tema, remete-se o leitor ao clássico estudo de Jellinek (1991), entre outros.
  • 21
    Não serão examinados, portanto, aspectos que também poderiam ser bastante relevantes, como aqueles já mencionados e, ainda, o caráter de suprema corte - e não de tribunal constitucional - do STF. Sobre o tema veja-se Cappelletti (1992) e Mendes (2014).
  • 22
    Um dos limites mais basilares à interpretação jurídica é, evidentemente, é o da literalidade do dispositivo interpretado. Assim, se de um lado a interpretação constitucional não pode limitar-se apenas à técnica ou ao método gramatical, de outro lado, o texto representa um dos limites impostos ao intérprete. O significado eleito deve ser um dos significados possíveis do texto interpretado. Embora as palavras não sejam unívocas, mas antes equívocas e plurívocas, é sabido que não é possível afirmar qualquer coisa sobre qualquer coisa e que, sendo assim, o texto limita, necessariamente, o arbítrio do intérprete. Veja-se Streck (2007).
  • 23
    Embora mutação constitucional seja conceito que remete, não raro, a violações da constituição como meio de alterações anômalas na ordem constitucional Jellinek (1991), sua admissão irrestrita pode representar sério risco para o postulado da constitucionalidade.
  • 24
    Sobre limites à interpretação constitucional e limites às modificações constitucionais consultem-se, entre tantos, Hesse (1998) e Canotilho (2003).
  • 25
    Passa-se ao largo, aqui, da possibilidade de decisões contra legem por parte dos órgãos judiciais e de eventual eficácia modificadora anômala da ordem jurídica delas, especialmente se proferidas por órgão de cuja decisão não caiba recurso.
  • 26
    Sabe-se também que diante da indeterminação do conceito de entidade de classe de âmbito nacional previsto no inciso IX do artigo 103, e do grande número de ADIs propostas pelos diversos legitimados, que o próprio STF veio a criar jurisprudencialmente filtros de admissibilidade de legitimados, especialmente por meio do requisito da pertinência temática. De se recordar, ainda, as razões do veto presidencial, mantido pelo Congresso Nacional, ao inciso II do artigo 2º da Lei n. 9.882/90, regulamentadora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
  • 27
    A conexão entre a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais denotada por institutos como o Verfassungsbwschwerde alemão, que, ao invalidar ato administrativo ou judicial de aplicação de lei inconstitucional implica a declaração de eficácia da inconstitucionalidade com efeitos gerais, parece vincular-se inexoravelmente ao sistema de direito positivo alemão e ao caráter concentrado do controle de constitucionalidade daquele país, que caracteriza-se como sistema de jurisdição dúplice, completamente distinto do sistema misto brasileiro, de fundamento difuso e claramente caracterizado com sistema de jurisdição una. Sobre o tema da reclamação constitucional alemão, inconfundível com o instituto homônimo brasileiro, consulte-se Cappelletti (1961).
  • 28
    Mauro Cappelletti (1984) recorda que o controle judicial de constitucionalidade observa em regra o princípio da instância, sendo estranho ao referido sistema o controle de ofício, mais comum em sistemas de controle político, como o francês..Veja-se ainda Mendes (2011, p. 123-124).
  • 29
    Em sentido contrário, entendendo que o advento do instituto corrobora a tese de "abstrativização", veja-se Mendes (2008, p. 272 e ss.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2016
  • Revisado
    08 Mar 2017
  • Aceito
    14 Mar 2017
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