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Repensando a democracia desde os horizontes do constitucionalismo na América Latina

Rethinking democracy from the horizons of constitutionalism in Latin America

Resumo:

O problema norteador desta pesquisa consiste em identificar qual o sentido da Democracia Comunitária no constitucionalismo boliviano contemporâneo. Assim, o objetivo geral é o de verificar qual o sentido constituinte da Democracia Comunitária para além da análise do texto constitucional, a partir da reflexão sobre a diversidade de espaços de construção e práticas democráticas de matriz comunitária. A presente investigação compreende três momentos: no primeiro momento, abordaram-se as inovações constitucionais trazidas pelo constitucionalismo contemporâneo latino-americano, especialmente o boliviano. No item seguinte, procurou-se compreender as diferentes concepções de democracia existentes na Bolívia, originadas da diversidade de estruturas sociais comunitárias. Por fim, analisou-se a Democracia Comunitária como uma das inovações do constitucionalismo latino-americano do final do século XX, prevista na nova carta política e materializada nas práticas concretas da Bolívia. Demostrou-se, como resultado, que merecem destaque as novas formas de pensar a relação entre Estado e populações originárias. Contudo, as demandas do poder comunitário foram marginalizadas na medida em que o reconhecimento constitucional oficial tem sido aplicado com a intenção de manter as tradições ancestrais em posição de subordinação. O método de abordagem utilizado foi o hipotético-dedutivo, procedimento histórico e monográfico, com as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.

Palavras-chave:
Constitucionalismo latino-americano; Democracia Comunitária; Demo- diversidade; Constituição da Bolívia

Abstract:

The guiding problem of this research is to identify the meaning of Community Democracy in contemporary Bolivian constitutionalism. Thus, the general objective is to verify the constituent meaning of Community Democracy beyond the analysis of the constitutional text, based on the reflection on the diversity of spaces for construction and democratic practices of a community matrix. The present investigation comprised three moments: in the first moment, it approached the constitutional innovations brought by the contemporary Latin American constitutionalism, especially the Bolivian one. In the next item, an attempt was made to understand the different conceptions of democracy existing in Bolivia, arising from the diversity of community social structures. Finally, Community Democracy was analyzed as one of the innovations of Latin American constitutionalism at the end of the 20th century, foreseen in the new political charter and materialized in the concrete practices of Bolivia. As a result, it was shown that new ways of thinking about the relationship between the State and original populations deserve to be highlighted. However, the demands of community power have been marginalized as official constitutional recognition has been applied with the intention of keeping ancestral traditions in a subordinate position. The approach method used was the hypothetical-deductive, historical and monographic procedure, with bibliographic and documentary research techniques.

Keywords:
Latin American Constitutionalism; Community Democracy; Demo-diversity; Bolivia Constitution

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende apresentar algumas contribuições teóricas sobre a estrutura democrática comunitária andina, com ênfase na Democracia Comunitário-Participativa pautada no constitucionalismo latino-americano no início do século XXI, prevista na Constituição da Bolívia de 2009. O trabalho se concentrou na seguinte questão: Qual o sentido da Democracia Comunitária neste constitucionalismo boliviano contemporâneo?

Para responder ao problema de pesquisa, delineou-se a hipótese: As inovações constitucionais trazidas pelo constitucionalismo boliviano de 2009 avançaram em relação ao sistema político-social moderno, ao preconizar a participação política e a adoção de práticas ancestrais e autonômicas, representadas na formalização da Democracia Comunitário intercultural.

O objetivo geral da investigação é o de verificar o sentido constituinte da Democracia para além da análise do texto constitucional, buscando refletir acerca da possibilidade de consolidação de uma Democracia Comunitária na Bolívia, a partir da reflexão sobre a diversidade de estruturas, espaços de construção e práticas democráticas de matriz comunitária, como formas de estabelecer medições para a convivência de modo consensual.

Na medida em que a incorporação da Democracia Comunitária representa a oportunidade de avançar em relação aos parâmetros do sistema político na Bolívia, têm-se como objetivos específicos, primeiramente, apresentar o constitucionalismo contemporâneo na América Latina a partir das práticas insurgentes populares, abordando os novos textos constitucionais e seus mecanismos de legitimidade e controle sobre o poder constituído. Já o segundo objetivo consiste em analisar as diferentes concepções de democracia existentes na Bolívia, originadas da diversidade de estruturas sociais e de autogoverno que formaram culturas distintas no seio das organizações comunitárias, para além dos espaços e instituições reconhecidas pelo Estado. Nesse sentido, o terceiro intento busca verificar qual o sentido da Democracia Comunitária no constitucionalismo boliviano de 2009, prevista na nova carta política e materializada nas práticas sociais da Bolívia.

A pesquisa proposta mostra-se relevante diante das formulações teóricas que pretende investigar, principalmente o significado da democracia no constitucionalismo latino-americano contemporâneo e na perspectiva da emergência de novas possibilidades teóricas nascidas de um conhecimento local, como contraponto à manutenção do “status quo” que persiste historicamente na América Latina.

No que tange à metodologia, utilizou-se o método de pesquisa hipotético-dedutivo, desenvolvido por Karl Popper, que, partindo de um problema para o qual oferece uma solução provisória, por ele denominada teoria-tentativa, passa depois a criticá-la, visando a eliminação dos equívocos e dando origem, consequentemente, a novos problemas (Lakatos; Marconi, 2010).

Para desenvolver a pesquisa, foi empregado o método de procedimento histórico e monográfico. A investigação utilizou-se de diversas fontes históricas e sua relação com o direito, tratando-se de uma abordagem essencial para o seu resultado, na medida em que se analisaram as mudanças políticas vivenciadas no contexto boliviano, produtos de uma larga acumulação de lutas e de transformações históricas.

Tal método tem como objetivo demonstrar o fenômeno do novo constitucionalismo latino-americano, que se originou alicerçado no conjunto de transformações políticas e atos de emancipação contra as formas de pensamento homogeneizador que desaguaram na construção do Estado Plurinacional Boliviano e na constitucionalização da Democracia Comunitária intercultural. Entende-se como o método mais adequado para investigação do fenômeno constituinte boliviano, uma vez que, após uma análise genérica do “novo” Constitucionalismo latino-americano, buscou-se compreender seus elementos e inovações, especialmente a incorporação da Democracia Comunitária, institucionalizada na Constituição boliviana de 2009.

As técnicas de pesquisa empregadas foram a documental e a bibliográfica. Na pesquisa documental, utilizou-se a Constituição do Estado Plurinacional de 2009, as atas constituintes da Assembleia boliviana entre 2006 e 2007, entre outros, realizada, principalmente, junto às bases de dados da Enciclopedia Histórica Documental del Proceso Constituyente Boliviano, vinculada à Vicepresidencia del Estado Plurinacional. Já no que diz respeito à técnica de pesquisa, realizou-se uma investigação bibliográfica, tendo como base a temática da Democracia Comunitária a partir da experiência constitucional que resultou no texto de 2019.

Isso considerado, a investigação compreendeu três momentos: no primeiro momento, abordou-se o constitucionalismo contemporâneo na América Latina, fruto das experiências de participação popular nos recentes processos políticos no continente, que culminaram nos novos marcos constitucionais, especialmente na Bolívia. Em uma segunda etapa, procurou-se compreender as diferentes concepções de democracia existentes na Bolívia, originadas da diversidade de estruturas sociais e de autogoverno que formaram culturas distintas, fazendo com que a vida política se desenvolvesse no seio das estruturas comunitárias, para além dos espaços e instituições organizadas e reconhecidas pelo Estado. No terceiro e último momento, analisou-se a Democracia Comunitária, pautada no novo constitucionalismo latino-americano, prevista na carta política de 2009 e materializada nas práticas sociais concretas da Bolívia.

2. O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO LATINO-AMERICANO

O desafio inicial consiste em analisar a série de inovações ocorridas na América Latina, em suas duas primeiras décadas do século XXI, fruto das experiências de participação popular nos processos políticos no continente, que culminaram nos novos marcos constitucionais elaborados de baixo para cima, especialmente na Bolívia.

Historicamente, o constitucionalismo latino-americano comprometeu-se com o estabelecimento do sistema capitalista, o qual manteve as velhas relações de poder e dominação, bem como engendrou outras mais novas e mais complexas, adequando, inclusive, os sistemas jurídicos às suas necessidades. Sem qualquer vinculação com a realidade concreta e com a vivência cotidiana de suas sociedades locais, o constitucionalismo latino-americano assegurou benefícios e privilégios a uma elite liberal composta por uma reduzida parcela da população.

Tal constitucionalismo serviu, na maioria dos casos, à formação e ao desenvolvimento do capitalismo, lançando as bases de um Estado em que a soberania do povo deslocou-se para a soberania estatal, convertendo-se em instância dependente da econômica internacional, afastando o povo das decisões de poder da realização de suas reais necessidades fundamentais (Wolkmer; Almeida, 2013)WOLKMER, Antonio Carlos. ALMEIDA, M. C. Elementos para a descolonização do constitucionalismo na América Latina: o Pluralismo Jurídico comunitário-participativo na Constituição boliviana de 2009. Crítica Jurídica, v. 35, p. 23-44, 2013..

A tradição do constitucionalismo liberal oligárquico, como consequência, mostrou-se insuficiente para explicar as sociedades colonizadas, ao que se contrapôs o constitucionalismo “andino, plurinacional e transformador”1 1 Para a identificação das novas cartas constitucionais, Antonio C. Wolkmer utiliza a terminologia “Constitucionalismo Pluralista Andino”, uma vez que a experiência traduz elementos oriundos da Cosmovisão Andina, em convergência com a adoção do Pluralismo Jurídico. (Vide: WOLKMER, Antonio Carlos. Procesos constituyentes desde afuera: acerca del Constitucionalismo Pluralista en los andes. Quito: IAEN, 2013.). , mediante os processos constituintes, das mudanças políticas e dos direitos emergentes nos países latino-americanos (Wolkmer, 2013, p. 29)WOLKMER, Antonio Carlos. ALMEIDA, M. C. Elementos para a descolonização do constitucionalismo na América Latina: o Pluralismo Jurídico comunitário-participativo na Constituição boliviana de 2009. Crítica Jurídica, v. 35, p. 23-44, 2013..

Na história recente da América Latina emerge um novo ciclo sóciopolitico de lutas, a partir da década de 1990, baseado nos saberes e cosmovisões ameríndias e relacionado às “[...] demandas de reconhecimento dos povos e nacionalidades indígenas subsumidos historicamente [...]” (Wolkmer; Wolkmer, 2017, p. 33)WOLKMER, Antonio Carlos. WOLKMER, Maria de Fatima S. Perspectiva do buen vivir na América Latina: o diálogo intercultural para um horizonte pós-capitalista. In: SILVEIRA, Brunna Grasiella Matias; ARAÚJO, Luana Adriano; ANDRADE, Paloma Costa (Orgs.). Direito das minorias no novo ciclo de resistências na América Latina. Coordenação de Raquel Coelho de Freitas e Germana de Oliveira Moraes. Curitiba: CRV, 2017. .

Tais experiências, que são o resultado da mobilização, rebelião e organização popular dos setores historicamente subalternizados pelo estado moderno/colonial, geraram, na regulação do poder constituinte das novas constituições, padrões exigentes de democracia (Medici, 2016, p. 141)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016..

No âmbito da reflexão sobre a eclosão de reivindicações nos países latino-americanos, Wolkmer e Ferrazzo (2014, p. 16)WOLKMER, Antonio Carlos. FERRAZZO, D. Resignificação do conceito de democracia a partir de direitos plurais e comunitários latino-americanos. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, jul/dez. 2014. apontam que tais movimentos implicam a consolidação de novos paradigmas, por meio da reinvenção de instituições colonizadoras como o Estado e a Constituição, “[...] através da intervenção de saberes e práticas populares pré-coloniais”.

Assim sendo, os processos constituintes deste constitucionalismo nascido nos Andes tiveram suas raízes políticas nos movimentos populares e sociais, principalmente, na organização e participação política das diversas nações indígenas, que se envolveram ativamente do momento pré-assembleia.

Considerando a construção do constitucionalismo latino-americano, que seguiu os moldes coloniais vigentes, é possível concluir que este “[...] somente assumiu potencial de instrumento de luta e defesa de direitos do povo após sua reinvenção pela ação do próprio povo, mobilizado e seu estado de rebelião [...]” (Wolkmer; Ferrazzo, 2016, p.16)WOLKMER, Antonio Carlos. FERRAZZO, D. Resignificação do conceito de democracia a partir de direitos plurais e comunitários latino-americanos. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, jul/dez. 2014..

Assim, importa destacar o protagonismo popular no decorrer desses processos constituintes, pautando sua mobilização social na busca pela permanência do poder constituinte. Nesse aspecto, este constitucionalismo de tipo pluralista e descolonial distingue-se substancialmente do constitucionalismo tradicional elitista de matriz eurocêntrica (Wolkmer; Fagundes, 2011)WOLKMER, Antonio Carlos. FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: Estado plurinacional e Pluralismo Jurídico. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011. .

Viciano e Dalmau (2011)VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Fundamentos teóricos y prácticos del nuevo constitucionalismo latinoamericano. Gaceta Constitucional, n. 48, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.gacetaconstitucional.com.pe/sumario-cons/doc-sum . Acesso em: 20 jun. 2018.
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sustentam que o “novo” constitucionalismo latino-americano é um fenômeno produto das reivindicações populares e dos movimentos sociais que, por meio de assembleias constituintes plenamente democráticas, têm traduzido aos textos constitucionais a vontade revolucionária de seus povos ancestrais.

Tais cartas político-constitucionais contemporâneas reconhecem os grupos historicamente negados através da consagração da cosmovisão andina e da construção de mecanismos institucionais para a sua operacionalização. Ademais, tais constituições manifestam, na concepção de Radaelli (2017)RADAELLI, Samuel. Constitucionalismo comunitário da alteridade: a experiência andina na perspectiva do Pluralismo Jurídico e da Filosofia da Libertação. 2017. Tese (Doutorado em Direito) - Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis (SC). , a vontade de reconstruir o modelo democrático, o que implica na reconfiguração do espaço público para além dos espaços formais.

As novas constituições dos Andes representam “[...] a possibilidade de preencher o vazio ideológico ineficaz deixado pela tradição oligárquica e colonizadora atravessada pelos Constitucionalismos de teor liberal e social nas sociedades da região” (Freitas; Wolkmer, 2017, p. 26-27)WOLKMER, Antonio Carlos; FREITAS, Raquel Coelho de. O impacto do novo constitucionalismo nos processos de construção da democracia na América Latina. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 70, p. 595-632, 2017..

Deveras, o constitucionalismo pluralista representado por essas constituições visa materializar a vontade constituinte e estabelecer os mecanismos de relação entre soberania, essência do poder constituinte e a constituição, entendida em seu sentido amplo como a fonte do poder constituído e limitado. Ora, a preocupação do “novo” constitucionalismo latino-americano não é unicamente acerca da dimensão jurídica da Constituição, mas sobre a sua legitimidade democrática (Viciano Pastor; Martínez Dalmau, 2011)VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Fundamentos teóricos y prácticos del nuevo constitucionalismo latinoamericano. Gaceta Constitucional, n. 48, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.gacetaconstitucional.com.pe/sumario-cons/doc-sum . Acesso em: 20 jun. 2018.
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.

O constitucionalismo latino-americano mais recente implica, segundo Medici (2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016., assumir uma nova relação entre democracia e constitucionalismo, marcada pela fórmula política democrática participativa do poder constituinte.

Os movimentos populares, como os que eclodiram o processo constituinte da Bolívia, buscam a adequação da constituição jurídica formal à complexidade socioeconômica dessas sociedades de tradição pluriétnicas. Tais movimentos populares, no contexto da América Latina, têm permitido alternar a relação de forças (constituição real) e adequar as constituições formais à realidade dos países latino-americanos (Medici, 2010)MEDICI, Alejandro. El nuevo constitucionalismo latinoamericano y el giro decolonial: Bolivia y Ecuador. Revista Derecho y Ciencias Sociales. Octubre 2010. n. 3. p. 3-23 Instituto de Cultura Jurídica y Maestría en Sociología Jurídica. .

A ativação do poder constituinte no “novo” constitucionalismo latino-americano resgata, para Martínez Dalmau (2008)MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Asembleas constituyentes e nuevo constitucionalismo en América Latina. Tempo Exterior, n. 17, p. 5-15, jul./dic. 2008., o seu caráter originário, esquecido pelo constitucionalismo tradicional, dando outra forma ao constitucionalismo, denominado pelo autor “constitucionalismo sem pais”, uma vez que, nessa perspectiva, apenas o povo pode sentir-se progenitor da Constituição, através da dinâmica participativa e legitimadora dos processos constituintes.

O poder constituinte, na matriz de colonialidade do poder na América Latina, instalou-se como uma máquina constituinte moderna/colonial, marcada por invasão, conquista, apropriação, opressão e uniformização da pluralidade de formas de organizar a convivência consensual e factível. Assim, a crítica do uso histórico do conceito de poder constituinte deve ser feita desde a exterioridade, a alteridade e a pluralidade.

O constitucionalismo pluralista expresso no Equador e na Bolívia, fruto de assembleias constituintes comprometidas com processos de regeneração social e política, confere legitimidade democrática às novas cartas constitucionais (Viciano Pastor; Martínez Dalmau, 2011)VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Fundamentos teóricos y prácticos del nuevo constitucionalismo latinoamericano. Gaceta Constitucional, n. 48, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.gacetaconstitucional.com.pe/sumario-cons/doc-sum . Acesso em: 20 jun. 2018.
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, possibilitando a construção de um novo paradigma de “Constituição forte, original e vinculante”. Ora, a reivindicação do poder constituinte expressa a fórmula original de democracia ao constitucionalismo (Martínez Dalmau, 2008, p. 5)MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Asembleas constituyentes e nuevo constitucionalismo en América Latina. Tempo Exterior, n. 17, p. 5-15, jul./dic. 2008..

Para Medici (2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016., poder constituinte é a capacidade e o direito de uma comunidade de dar-se uma Constituição jurídica, cujo caráter fundador ou reformador depende da vontade popular, que não deve ser limitada pelos poderes constituídos. Trata-se de um momento de diferenciação institucional que pressupõe a vontade de convivência consensual através da institucionalização de procedimentos democráticos.

O Poder Constituinte é interpretado por Negri (2002, p. 26)NEGRI, Antonio. O poder constituinte. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. como força singular, absoluta e ilimitada, “que dá racionalidade e forma ao direito”. Nos termos do autor, “[...] o poder constituinte manifesta-se como expansão revolucionária da capacidade humana de construir a história, como ato fundamental de inovação e, portanto, de procedimento absoluto”. (Negri, 2002, p. 26)NEGRI, Antonio. O poder constituinte. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. . Nesse aspecto, à constituição formal sobrepõe-se uma constituição material, uma sobreposição de poderes e de interesses (histórica e temporalmente definidos), de limites e de condições, como também de normas de participação e de exclusão (Negri, 2002)NEGRI, Antonio. O poder constituinte. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. .

Repensar o conceito de poder constituinte é, como assinala Medici (2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016., questão central para a compreensão de conceitos teóricos do pensamento crítico contemporâneo, bem como de princípios e direitos que integram o campo semântico jurídico-político do novo constitucionalismo pluralista, como Estado plurinacional, democracia intercultural, demodiversidade, etc. Essas práticas que emergiram nos processos constituintes do constitucionalismo latino-americano vão construindo as mediações de factibilidade para organizar a vontade de convivência de forma democrática consensual (Medici, 2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016..

A constituição assume, no constitucionalismo pluralista andino, portanto, características distintas ao modelo tradicional moderno, alinhando-se ao pensamento de Wolkmer (2013, p.19-20)WOLKMER, Antonio Carlos. ALMEIDA, M. C. Elementos para a descolonização do constitucionalismo na América Latina: o Pluralismo Jurídico comunitário-participativo na Constituição boliviana de 2009. Crítica Jurídica, v. 35, p. 23-44, 2013., segundo o qual, a constituição não deve ser considerada “[...] tão somente uma matriz geradora de processos políticos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade [...]”, materializando uma forma de poder, que se assegura pela convivência e coexistência de concepções diversas, divergentes e participativas.

Igualmente, ao analisar as etapas de reformas constitucionais que irão introduzir os horizontes do constitucionalismo de tipo pluralista, Wolkmer (2013)WOLKMER, Antonio Carlos. ALMEIDA, M. C. Elementos para a descolonização do constitucionalismo na América Latina: o Pluralismo Jurídico comunitário-participativo na Constituição boliviana de 2009. Crítica Jurídica, v. 35, p. 23-44, 2013. aponta, como autêntica precursora do “novo” constitucionalismo, a Constituição da República Bolivariana da Venezuela de 1999, que, de caráter independentista e anticolonial, visava à refundação da sociedade venezuelana, tendo consagrado o pluralismo político como um de seus valores supremos. Tal processo antecede os avanços maiores representados pelas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009)BOLÍVIA. Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia. 2007-2008. Disponível em: Disponível em: https://www.procuraduria.gob.bo/images/docs/marcolegal/cpe.pdf . Acesso em: 10 jan. 2019.
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, cujas redações trazem importantes inovações para o contexto político-constitucional da América latina. Essa consolidação se efetiva na medida em que a Constituição do Equador de 2008 preconiza um momento de grande impacto do constitucionalismo latino-americano, em razão do seu “giro biocêntrico”, fundado nas cosmovisões dos povos indígenas, que assegura direitos próprios à natureza e direitos ao desenvolvimento do “buen vivir(Wolkmer, 2013)WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters (Org.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 19-42. v. 1. .

De todos esses processos constituintes, o que mais potencialidades oferecia para avançar era o boliviano, especialmente no tocante às propostas surgidas dos debates constituintes e do primeiro projeto de Constituição aprovado pela Assembleia Constituinte da Bolívia, em 09 de dezembro de 2007, em Oruro, o qual incorporava uma série de novidades que propiciavam o início de uma reconfiguração promissora, baseada em um modelo multi-organizativo (comunitário) de Estado (Fernández, 2012)FERNÁNDEZ, Albert Noguera. La transformación del Estado después de las nuevas constituciones latinoamericanas. Actas del XV Encuentro de Latinoamericanistas Españoles, Nov 2012, Madrid, España. Trama editorial; CEEIB, p. 594-608, 2013. Disponível em: Disponível em: https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00874639 . Acesso em: 15 dez. 2018.
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Na mesma perspectiva, Wolkmer (2013)WOLKMER, Antonio Carlos. ALMEIDA, M. C. Elementos para a descolonização do constitucionalismo na América Latina: o Pluralismo Jurídico comunitário-participativo na Constituição boliviana de 2009. Crítica Jurídica, v. 35, p. 23-44, 2013. aponta a constituição boliviana de 2009 como um dos mais contundentes exemplos de transformação institucional que se experimentou nos últimos tempos, na medida em que avança para um modelo de Estado plurinacional e estabelece o primeiro Tribunal Constitucional Plurinacional, eleito diretamente pelos cidadãos. As contribuições maiores trazidas pela Constituição boliviana estão formalizadas no plurinacionalismo e na Democracia Comunitária, conectadas com a descentralização administrativa, política e o sistema de autonomias (Alcoreza, 2010).

Com a chegada de Evo Morales na Bolívia, a Revolução Democrática e Cultural boliviana reuniu uma assembleia constituinte com o intuito de instaurar um momento de refundação política, onde as forças progressistas, representadas pelas comunidades indígenas e pelos campesinos ocupariam um lugar para pensar um novo modelo de superação da chamada “la larga noche neoliberal”(Schavelzon, 2015)SCHAVELZON, S. Plurinacionalidad y vivir bien/buen vivir: dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post constituyentes. Quito: CLACSO-CEJIS, 2015..

Consequentemente, os processos desse constitucionalismo pluralista e transformador geraram expectativas que se voltaram à apropriação das constituições e do constitucionalismo como ferramentas de um processo plural, popular, democrático, imbricado na realidade da própria região. Essas novas constituições, entretanto, seguem enfrentando dificuldades e limites no desenvolvimento das inovações de seus sistemas constitucionais, opostas pelo contexto adverso global que promove a ofensiva contra o constitucionalismo democrático e social (Medici, 2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016..

Todavia, há de se atentar para o fato de que, como sintetiza Enzo Bello (2015, p.59)BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucionalismo latino-americano. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, 7(1):49-61, 2015. Disponível em: Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/rechtd.2015.71.05 . Acesso em: 18 jun. 2020.
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, “o novo constitucionalismo latino-americano continua sendo constitucionalismo; logo, um fenômeno originado na Modernidade europeia e transplantado para a América Latina [...]” Ou seja, o resgate das tradições ancestrais e as transformações sociais almejadas estarão sempre condicionadas às condições materiais e coloniais de poder.

Em suma, o aspecto que se quer destacar com relação ao constitucionalismo andino é que essas Constituições nasceram com nítido aspecto descolonial, tendo iniciado processos de transformação em direção à realidade social concreta, apesar de que o potencial emancipatório das Constituições andinas (Equador, 2008 e Bolivia, 2009BOLÍVIA. Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia. 2007-2008. Disponível em: Disponível em: https://www.procuraduria.gob.bo/images/docs/marcolegal/cpe.pdf . Acesso em: 10 jan. 2019.
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) tem sido limitado e de pouco eficácia para uma determinação mais radical. Conforme será demonstrado ao longo do presente estudo, na fase pré-constituinte, a promessa de mudança foi usada por alguns setores políticos tão somente para obterem poder. Buscar-se-á desnudar estas controvérsias e verificar os avanços anunciados na efetiva democratização do poder político.

3. ESTRUTURAS DEMOCRÁTICAS COMUNITÁRIAS E TRADIÇÕES AUTONÔMICAS INDÍGENAS NOS ANDES

As mudanças políticas vivenciadas no contexto boliviano são produto de uma larga acumulação de lutas e resistências. Cabe, portanto, buscar uma perspectiva histórica e um modelo de análise dessas transformações, visando compreender seu alcance em países pluriétnicos como a Bolívia.

O fenômeno da insurgência do constitucionalismo na região se origina alicerçado no conjunto de transformações políticas e atos de emancipação contra as formas de pensamento homogenizador que desaguarão na construção do Estado Plurinacional Boliviano. A partir da compreensão da realidade, “[a] Bolívia iniciou um momento político que não pode ser compreendido com as lentes monoculturais e uninacionais do constitucionalismo liberal, travestido como ‘moderno’” (Chivi Vargas, 2009, p. 155-158)CHIVI VARGAS, Idón Moisés. Os caminhos da descolonização na América Latina: os povos indígenas e o igualitarismo jurisdicional na Bolívia. In: VERDUM; Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e reformas Políticas na américa Latina. Brasília: Instituto de Estudos socioeconômicos, 2009., dando assim, os primeiros passos em direção ao modelo constitucional plurinacional comunitário.

Conforme apontou-se no primeiro momento dessa reflexão, o constitucionalismo tradicional tem sido historicamente insuficiente para explicar sociedades pluriétnicas e colonizadas, pelo que convém deter-se para analisar a trajetória de lutas que precederam a nova Constituição Política da Bolívia (Chivi Vargas, 2009)CHIVI VARGAS, Idón Moisés. Os caminhos da descolonização na América Latina: os povos indígenas e o igualitarismo jurisdicional na Bolívia. In: VERDUM; Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e reformas Políticas na américa Latina. Brasília: Instituto de Estudos socioeconômicos, 2009.. A compreensão da realidade boliviana, contudo, exige a superação da visão reducionista, seja em sua perspectiva exclusivamente de classe ou étnico-cultural (Garcés, 2009)GARCÉS V., Fernando. Os esforços de construção descolonizada de um Estado Plurinacional na Bolívia e os riscos de vestir o mesmo cavalheiro com um novo paletó. In: VERDUM, Ricardo (org.) Constituição e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, 2009. p. 167-192..

Para Garcés (2009)GARCÉS V., Fernando. Os esforços de construção descolonizada de um Estado Plurinacional na Bolívia e os riscos de vestir o mesmo cavalheiro com um novo paletó. In: VERDUM, Ricardo (org.) Constituição e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, 2009. p. 167-192., a autodeterminação, a luta pela recuperação da terra e do território, bem como pela implementação de mecanismos de participação, a partir da construção de uma ferramenta política própria, constituem os três pilares das lutas dos movimentos indígenas, originários e campesinos2 2 O termo campesino será utilizado a partir do pensamento de Silvia Rivera Cusicanqui, considerando-se as relações de dominação tecidas nos distintos setores da sociedade boliviana, com sua heterogeneidade, complexidade e variabilidade histórica. O termo abarca a natureza dupla de tais relações de dominação, em que os trabalhadores eram explorados como produtores e oprimidos colonialmente como sociedade e como cultura. A autora utiliza os termos “campesino-indio”, “campesino-aymara”, “campesino-quechwa”, onde essa dupla natureza é evidente (CUSICANQUI, 2010, p. 73-74). nas últimas duas décadas.

Na Bolívia, persistiu, ao longo dos séculos, uma diversidade de estruturas sociais e de autogoverno que formaram culturas distintas, fazendo com que a vida política se desenvolvesse para além dos espaços e instituições organizadas e reconhecidas pelo Estado.

Trata-se de uma diversidade de estruturas e espaços políticos de autoridade, cujos núcleos não modernos foram ativados politicamente, gerando formas de interatuar com o Estado através de organizações que hoje fazem com que se tenha uma sociedade muito mais multicultural e diversa, o que tem propiciado as mudanças atuais no país (Tapia; León; Chávez, 2009)TAPIA MEALLA, Luis. LEÓN, Patricia Chávez; CHÁVEZ, Dunia Makrani. Democracia, poder y cambio político en Bolívia. In: LASERNA, Roberto; CÓRDOVA, Eduardo; TAPIA, Luis; PRADO, Fernando Prado; VARGAS, Gonzalo; PAZ, Sarela; LINERA, Álvaro Garcia. Poder y cambio en Bolivia: 2003-2007. La Paz: Embajada del Reino de los Países Bajos; Fundación PIEB, 2009.. A Bolívia, conforme os autores, estrutura-se a partir de relações sociais modernas, de matriz comunitária e outras próprias de sociedades nômades, abarcando múltiplas concepções de democracia, tanto as modernas como as comunitárias.

As diferentes concepções de democracia existentes no país originam-se do fato de que há uma grande diversidade cultural que responde à múltiplas experiencias ancestrais. “Na vida política contemporânea existe uma tensão, contradição e interpenetração de concepções de democracia que provém de diferentes matrizes culturais. Umas de raízes modernas e outras de raiz comunitária.” (Tapia; León; Chávez, 2009, p. 121, tradução livre)TAPIA MEALLA, Luis. LEÓN, Patricia Chávez; CHÁVEZ, Dunia Makrani. Democracia, poder y cambio político en Bolívia. In: LASERNA, Roberto; CÓRDOVA, Eduardo; TAPIA, Luis; PRADO, Fernando Prado; VARGAS, Gonzalo; PAZ, Sarela; LINERA, Álvaro Garcia. Poder y cambio en Bolivia: 2003-2007. La Paz: Embajada del Reino de los Países Bajos; Fundación PIEB, 2009..

O país vivenciou, desde vários anos, um processo de questionamento das formas de monopolização do poder político e econômico preexistentes, traço central do processo de democratização: a busca pela abertura dos espaços públicos, pela reforma das instituições que ampliam a cidadania e a condição de igualdade política de todos os cidadãos (Tapia; León; Chávez, 2009)TAPIA MEALLA, Luis. LEÓN, Patricia Chávez; CHÁVEZ, Dunia Makrani. Democracia, poder y cambio político en Bolívia. In: LASERNA, Roberto; CÓRDOVA, Eduardo; TAPIA, Luis; PRADO, Fernando Prado; VARGAS, Gonzalo; PAZ, Sarela; LINERA, Álvaro Garcia. Poder y cambio en Bolivia: 2003-2007. La Paz: Embajada del Reino de los Países Bajos; Fundación PIEB, 2009.. Cabe analisar, portanto, como essas concepções de democracia estão produzindo ou não ampliações nos espaços públicos.

As organizações comunitárias não possuem constituição escrita. Assim, assinalam Tapia, León e Chávez (2009)TAPIA MEALLA, Luis. LEÓN, Patricia Chávez; CHÁVEZ, Dunia Makrani. Democracia, poder y cambio político en Bolívia. In: LASERNA, Roberto; CÓRDOVA, Eduardo; TAPIA, Luis; PRADO, Fernando Prado; VARGAS, Gonzalo; PAZ, Sarela; LINERA, Álvaro Garcia. Poder y cambio en Bolivia: 2003-2007. La Paz: Embajada del Reino de los Países Bajos; Fundación PIEB, 2009. que o momento da assembleia unitária é um momento de interpretação dos próprios valores, fins e normas para aplicá-las a cada caso e deduzir os modos de dirigir a coletividade. Esse conjunto de princípios organiza a vida política de várias coletividades, as quais se reproduzem e desenvolvem com base em estruturas comunitárias.

Tais ideias têm introduzido, no debate político nacional, a percepção de que existem outras formas de democracia, inclusive mais igualitárias e com raízes históricas locais (Tapia; León; Chávez, 2009)TAPIA MEALLA, Luis. LEÓN, Patricia Chávez; CHÁVEZ, Dunia Makrani. Democracia, poder y cambio político en Bolívia. In: LASERNA, Roberto; CÓRDOVA, Eduardo; TAPIA, Luis; PRADO, Fernando Prado; VARGAS, Gonzalo; PAZ, Sarela; LINERA, Álvaro Garcia. Poder y cambio en Bolivia: 2003-2007. La Paz: Embajada del Reino de los Países Bajos; Fundación PIEB, 2009..

O colonialismo eurocêntrico desqualificou todos os saberes deliberativos constituídos fora da esfera da racionalidade democrática moderna, o que implicou a usurpação dos direitos à autodeterminação e ao autogoverno, gerando uma crise organizativa que reduziu toda a complexidade política e saberes democráticos à categoria de saberes locais, bem como um profundo impacto sobre as formas de participação coletivas e diretas das sociedades indígenas (BICAS, 2017)BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017.. Entretanto, existem experiências desenvolvidas no seio das comunidades e dos povos e não traduzidas no marco de reflexão, pautado nos saberes eurocêntricos.

Desbordando da visão tradicional, é possível visualizar múltiplas e variadas experiências e formas de estabelecer medições para a convivência de modo consensual para além da democracia representativa, conforme revela a história do continente latino-americano, pois os povos originários de “Nuestra America” têm experiência de práticas representadas em espaços de deliberação coletiva, autoridade eletiva, rotação nas responsabilidades públicas e na articulação federativa de “abajo-arriba”(Medici, 2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016..

A deliberação é compreendida em âmbitos culturais diversos que buscam o consenso, tendo em conta convenções, símbolos e narrativas das cosmovisões que lhe são próprias. Assim, “[o] consenso que se busca é orientado materialmente, desde o ponto de vista dos conteúdos, pelo poder viver que se realiza comunitariamente como (con)viver”. (Medici, 2016, p. 157-158)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016..

Diante disso, a partir da compreensão de que a concepção eurocêntrica de democracia representativa não é a única forma de concretizar a convivência consensual, cumpre citar algumas experiências dos povos originários latino-americanos.

Os últimos acontecimentos ocorridos em países como Bolívia (fins de 2019) têm provocado um questionamento das habituais interpretações da democracia, a partir da recuperação das vozes e dos conteúdos locais, do particular, de sociedades subalternizadas e silenciadas. Ora, existem outras concepções e práticas geradoras de dignidade que se constituem como ferramentas para descolonizar, desmercantilizar e despatriarcalizar as relações sociais (Zegada Claure, 2017)ZEGADA CLAURE, Maria Teresa. Bolivia: la democracia intercultural como síntesis de las diferencias. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017. .

Segundo Aguiló (2013)AGUILÓ, Antoni. Demodiversidad: las luchas por otras democracias. Diário de Mallorca, 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.diariodemallorca.es/opinion/2013/07/17/demodiversidad-luchas-democracias-3896380/.html . Acesso em: 10 nov. 2018.
https://www.diariodemallorca.es/opinion/...
, por meio de uma ecologia de práticas democráticas concretas dos oprimidos do Sul Global, desde a demodiversidade, se pode pensar e criar alternativas. O Sul Global oferece diversidade epistemológica e práticas sociais que supera a visão reduzida da política imperial do Norte Global (Bicas, 2017BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017.), resistindo à colonização e ao colonialismo interno do modo eurocêntrico de fazer política (Cusicanqui, 2010).

Por meio das lutas levadas a cabo, a democracia tem alcançado o imaginário popular, a partir do reconhecimento da experiência e da potencialidade de outra concepção de poder e da abertura à alteridade, para colocar as mediações de convivência consensual em função da produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana (Aguiló, 2013AGUILÓ, Antoni. Demodiversidad: las luchas por otras democracias. Diário de Mallorca, 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.diariodemallorca.es/opinion/2013/07/17/demodiversidad-luchas-democracias-3896380/.html . Acesso em: 10 nov. 2018.
https://www.diariodemallorca.es/opinion/...
; Medici, 2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016..

A Democracia Comunitária intercultural, portanto, é uma forma de relacionamento entre distintos modos de ser, produzir e organizar universos simbólicos e cosmovisões e se expressa nas relações de poder entre sujeitos coletivos e entre esses e as instituições estatais (Zegada Claure, 2017)ZEGADA CLAURE, Maria Teresa. Bolivia: la democracia intercultural como síntesis de las diferencias. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017. ) e na convivência de sistemas organizativos distintos na sociedade civil, que podem conjugar-se com movimentos indígenas, conformando uma coletividade mais potente (Bicas, 2017)BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017..

A noção de democracia intercultural tem dois fundamentos: primeiro, a interação entre sujeitos e realidades distintas, que se reinventam e se reposicionam no campo político, mediados por relações de poder. Segundo, a base de formatos institucionais que promovem, de acordos que regulam a ação política e que podem ser modificados pela presença e pressão dos atores (Bicas, 2017)BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017..

Ora, a temática indígena na questão nacional surgiu por intermédio dos primeiros intelectuais e líderes de origem indígena, contrários à política indigenista de integração dos índios e expressa na luta dos povos indígenas pelo reconhecimento das comunidades como unidades políticas e pelo direito à autonomia. O irrompimento dos povos indígenas na política colocou em evidência que, em um regime democrático, já não se poderia ignorar as diferentes concepções de fazer política e a vontade dos povos de autogovernar-se (Urquidi, 2017)URQUIDI, Vivian. Repensar la cuestión (Pluri)nacional y el desafío de la democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal , 2017..

Os povos indígenas latino-americanos demonstraram em suas lutas a capacidade política em termos de autodeterminação, base fundamental da democracia (Urquidi, 2017)URQUIDI, Vivian. Repensar la cuestión (Pluri)nacional y el desafío de la democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal , 2017., bem como, estabeleceram as bases que permitem imaginar novas possibilidades e alternativas democráticas, além da renovação e do aprofundamento da democracia (Bicas, 2017_BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017..

A partir dessa reflexão, Santos (2010)SANTOS, Boaventura de Sousa. Enriquecer la democracia construyendo la plurinacionalidad. In: LANG, Miriam; SANTILLANA, Alejandra (comp.). Democracia, participación y socialismo. Quito, Fundación Rosa Luxemburg, 2010. propõe o conceito de demodiversidade. Nas palavras do autor, “[...] a plurinacionalidade demonstra que não há uma única forma de democracia, mas várias. E chamo isso de demodiversidade. Necessitamos dela, assim como necessitamos da biodiversidade” (Santos, 2010, p. 29, tradução nossa)SANTOS, Boaventura de Sousa. Enriquecer la democracia construyendo la plurinacionalidad. In: LANG, Miriam; SANTILLANA, Alejandra (comp.). Democracia, participación y socialismo. Quito, Fundación Rosa Luxemburg, 2010..

Para abarcar tais processos de democratização, aponta que democratizar significa desconstruir, repensar a naturalização da democracia liberal representativa e legitimar outras formas de deliberação democrática (demodiversidade), ou, utilizando as palavras de Santos (2010)SANTOS, Boaventura de Sousa. Enriquecer la democracia construyendo la plurinacionalidad. In: LANG, Miriam; SANTILLANA, Alejandra (comp.). Democracia, participación y socialismo. Quito, Fundación Rosa Luxemburg, 2010., centrar-se no desafio de democratizar a democracia, “[...] porque a democracia, em muitos países, é conduzida por não-democratas. A democracia é, geralmente, uma ilha de democracia em um arquipélago de despotismos: na família, na rua, na fábrica, no campo.” (Santos, 2010, p. 33, tradução livre)SANTOS, Boaventura de Sousa. Enriquecer la democracia construyendo la plurinacionalidad. In: LANG, Miriam; SANTILLANA, Alejandra (comp.). Democracia, participación y socialismo. Quito, Fundación Rosa Luxemburg, 2010..

No âmbito da concepção ampliada de democracia (Zegada Claure, 2017. p. 589)ZEGADA CLAURE, Maria Teresa. Bolivia: la democracia intercultural como síntesis de las diferencias. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017. aponta que esta surge como um discurso construído “[...] desde baixo, desde os subordinados, em nível local, como uma forma de reivindicar sua presença em uma história de exploração econômica, despojo de terras, dominação, racismo, invisibilização [...]” (tradução livre).

Em se tratando da análise da democracia intercultural como uma poderosa mensagem política, esta encontra-se pautada em um acordo constitucional capaz de conferir um novo conteúdo à democracia e, na complementariedade, como uma composição complexa que transforma a totalidade e constrói uma possibilidade distinta, preservando as contradições e diferenças, capaz de recuperar experiências políticas transformadoras (Zegada Claure, 2017)ZEGADA CLAURE, Maria Teresa. Bolivia: la democracia intercultural como síntesis de las diferencias. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017. .

A partir dessa perspectiva, tem-se que a democracia representativa deve ser complementada a partir da convergência de formas democráticas alternativas, as quais se constituem em “[...] ferramentas para novas configurações de governo democrático e cidadania. A implicação disso é que novas formas de participação e deliberação conduzirão, antes ou depois, a formas mais exigentes de representação e responsabilidade para os cidadãos.” (Santos; Mendes, 2017. p. 83, tradução nossa)URQUIDI, Vivian. Repensar la cuestión (Pluri)nacional y el desafío de la democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal , 2017..

Assim, o desafio da demodiversidade plurinacional em exercício, como complementariedade da representação política, implica a participação cidadã, a deliberação pública, além de diferentes expressões da Democracia Comunitária (em especial o autogoverno indígena), em um horizonte de interculturalidade (Exeni Rodriguez, 2017. p. 613-616)EXENI RODRIGUEZ, José Luis. La larga marcha de las autonomías indígenas en Bolivia: demodiversidad plurinacional en ejercicio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Org.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal , 2017..

Tais formas de exercício político de raiz comunitária, no caso das comunidades andinas, têm sido definidas por Rivera Cusicanqui (2010)RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Oprimidos pero no vencidos: luchas del campesinado aymara y qhichwa, 1900-1980. La Paz: La Mirada Salvaje, 2010. , como democracia de ayllu, uma expressão orgânica dos interesses da comunidade, baseada nas autoridades dos povos originários.

Formas de deliberação democrática como a democracia dos ayllus3 3 Forma de organização social pré-colonial do território andino, baseada nas relações étnicas e de parentesco social. Desde a conquista espanhola (desde o século XIX), os ayllus passaram a chamar-se comunidades(BICAS, 2017). Originalmente, eram pequenas extensões de terra, administradas por famílias incas. Atualmente, consistem em uma das formas de Organização Territorial de Base, de caráter indígena (ALCOREZA, 2010). , refletem outras relações entre sujeitos, a partir da incorporação de racionalidades democráticas alternativas que potencializam um diálogo intercultural. Assim, o vínculo entre indivíduo-comunidade passa a expressar um novo tipo de relação entre saberes deliberativos democráticos representativos, participativos e comunitários, possibilitando a sua complementaridade (Bicas, 2017)BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017..

A democracia aymara (thakhi político), como uma das práticas deliberativas democráticas nos ayllus, busca a construção de espaços de diálogos inovadores entre as diferentes culturas democráticas, por meio da complementariedade entre formas de democracia representativa, participativa, direta e comunitária. Os povos aymaras e quéchuas refletem um modelo de convivência e cooperação para articular as diferenças que nos revelam racionalidades de relações democráticas que permitem uma sociabilidade e uma racionalidade de relações de autoridade compartilhada pós-liberal (Bicas, 2017. p. 653-654)BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017..

Nesse horizonte de reflexão, a singularidade da trajetória recente da democracia boliviana brinda uma série de elementos para pensar a riqueza e a projeção desse conceito, intensamente vivido no presente crítico da sociedade e seus atores, inseridos na Constituição política do Estado, conforme abordar-se-á na sequência.

4. A DEMOCRACIA COMUNITÁRIA NA CONSTITUIÇÃO BOLIVIANA DE 2009

A democracia intercultural não se encontra expressa na Constituição, mas está “sugerida em um conjunto de artigos, em especial quando estabelece a plurinacionalidade e a pluralidade, equivalência e igual hierarquia”. Expressa também a relação e a complementaridade entre as três formas de democracia constitucionalizadas: representativa, direta e participativa e comunitária (Zegada Claure, 2017. p. 591, tradução nossa)ZEGADA CLAURE, Maria Teresa. Bolivia: la democracia intercultural como síntesis de las diferencias. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017. .

As transformações políticas e sociais que abriram a possibilidade de pensar a mudança, como um processo de democratização, nasceram do questionamento das formas de monopolização do poder político e econômico preexistente. A democratização tem a ver com a constituição de sujeitos, a configuração de novos espaços políticos, sobretudo, com o tipo de instituições que se vão produzindo e reformando para ampliar o grau de igualdade política (Tapia; León; Chávez, 2009)TAPIA MEALLA, Luis. LEÓN, Patricia Chávez; CHÁVEZ, Dunia Makrani. Democracia, poder y cambio político en Bolívia. In: LASERNA, Roberto; CÓRDOVA, Eduardo; TAPIA, Luis; PRADO, Fernando Prado; VARGAS, Gonzalo; PAZ, Sarela; LINERA, Álvaro Garcia. Poder y cambio en Bolivia: 2003-2007. La Paz: Embajada del Reino de los Países Bajos; Fundación PIEB, 2009..

Conforme demonstrado, o movimento constitucional vivenciado na Bolívia criou elementos para o avanço na perspectiva democrática, trazendo a proposta de um novo modelo que incorpora espaços formais e indispensáveis aos povos indígenas, camponeses e comunidades tradicionais.

Assim, é possível afirmar que as modificações institucionais observadas no período constituíram um intento de “democratização da democracia”, que pode ser entendido como um processo de revalorização da soberania popular, impulsionado pelos movimentos sociais que questionam a configuração do sistema.

A sequência de reformas incrementais foi seguida por uma ruptura clara, expressa na quebra do sistema de partidos e no processo constituinte. A chegada de um indígena à presidência limitaria, adiante, a exclusão racial e, a adoção de estatutos autonômicos, afirmaria o caminho para a autonomia departamental (Tapia; León; Chávez, 2009)TAPIA MEALLA, Luis. LEÓN, Patricia Chávez; CHÁVEZ, Dunia Makrani. Democracia, poder y cambio político en Bolívia. In: LASERNA, Roberto; CÓRDOVA, Eduardo; TAPIA, Luis; PRADO, Fernando Prado; VARGAS, Gonzalo; PAZ, Sarela; LINERA, Álvaro Garcia. Poder y cambio en Bolivia: 2003-2007. La Paz: Embajada del Reino de los Países Bajos; Fundación PIEB, 2009..

Assim, diante da crise do modelo de democracia representativa e do empoderamento que emana da tomada de consciência pelos povos latino-americanos, é que se criou a possibilidade de instaurar-se uma nova condição de ser e de fazer.

É possível vislumbrar, nesse cenário, a partir da experiência política vivenciada na América Latina, uma nova democracia que procede de tradições distintas à ocidental e emerge a partir de um processo de lutas de insurgência popular. Nesse contexto, irrompe um novo paradigma político, para além dos limites da racionalidade liberal- burguesa eurocêntrica.

Trata-se da Democracia Comunitária, pautada no constitucionalismo pluralista latino-americano contemporâneo, previsto nas cartas políticas e materializado nas práticas sociais históricas de países como a Bolívia e o Equador, que estão vivenciando este modelo de constitucionalismo pluralista (Wolkmer; Ferrazo, 2014)WOLKMER, Antonio Carlos. FERRAZZO, D. Resignificação do conceito de democracia a partir de direitos plurais e comunitários latino-americanos. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, jul/dez. 2014..

A Bolívia, especificamente, atravessa um período de transição paradigmática, em que não prevalece hegemonicamente nenhum modelo político. O Estado, através de sua Carta Constitucional, reconhece as formas de democracia representativa, participativa e comunitária.

A crise do processo democrático clássico, portanto, abriu a possibilidade para uma nova democracia, fruto das tradições dos povos colonizados e associada a uma forma de organização política própria dos povos originários, baseada em hábitos, práticas e modos comunitários que efetivam-se a partir de associações, assembleias em âmbito local e regional (Linera, 2018. p. 6)LINERA, Alvaro García. Democracia liberal vs. democracia comunitária. Red Voltaire. 2004. Disponível em: Disponível em: http://www.voltairenet.org/article122845.html . Acesso em: 27 jul. 2018.
http://www.voltairenet.org/article122845...
.

A democracia resulta da ação política e da forma fundamental de deliberação: a assembleia, rompendo com o monopólio da classe política, descentraliza o seu exercício em todos os âmbitos da gestão social. Nesse sentido, afirma-se que “[a] democracia já não é de poucos, mas de todos. Os muitos exercem sua maioria na dialética com as minorias, dialética na qual se põe em cena a trama dos interesses e das perspectivas, lugar onde se dá a ocasião da síntese política” (Prada, 2010. p. 75-76)PRADA, Raul. Análise da nova constituição política do estado. Lugar Comum, n. 25-26, p. 73-86, 2010. .

Tendo em conta o aporte anterior, em janeiro de 2009, a Bolívia aprovou, em referendo nacional, uma nova Constituição Política do Estado, dando início a uma série de mudanças profundas, que buscam a refundação de um novo Estado de essência plurinacional, assentado em autonomias. Essas autonomias indígenas “[...] constituem a essência da plurinacionalidade do Estado e, nessa condição, planteiam importantes inovações locais a respeito do sistema de governo, com base no exercício diverso da Democracia Comunitária” (Exeni Rodriguez, 2017. p. 606, tradução livre)EXENI RODRIGUEZ, José Luis. La larga marcha de las autonomías indígenas en Bolivia: demodiversidad plurinacional en ejercicio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Org.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal , 2017..

A Constituição boliviana de 2009 expressa em seu preâmbulo, ser o corolário da refundação democrática conduzida pela vontade popular, resultado das relações com o habitat natural, com cosmovisões culturais existentes e o grau de consenso moral em torno de concepções de dignidade humana (Medici, 2016)MEDICI, Alejandro. Otros nomos: teoría del nuevo constitucionalismo latino-americano. Aguascalientes, San Luis Potosí: CENEJUS-UASLP, 2016..

Uma das inovações fundamentais da Constituição boliviana de 2009 consistiu no reconhecimento do princípio da demodiversidade. No dizer de Zegada Claure (2017. p. 593)ZEGADA CLAURE, Maria Teresa. Bolivia: la democracia intercultural como síntesis de las diferencias. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017. a nova Constituição tem traçado um horizonte de possibilidades muito importantes para a Democracia Comunitária intercultural, ao permitir avançar na consolidação de novas estruturas institucionais.

Já nas palavras de Exeni Rodríguez (2017, p. 606)EXENI RODRIGUEZ, José Luis. La larga marcha de las autonomías indígenas en Bolivia: demodiversidad plurinacional en ejercicio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Org.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal , 2017. a demodiversidade, “[...] no âmbito do processo instituinte de autonomia indígena na Bolívia, relaciona-se com a maneira pela qual as nações e povos concebem seus sistemas de autogoverno no marco do exercício da Democracia Comunitária”.

A demodiversidade, portanto, confere novo conteúdo à democracia e se apresenta como “[...] resposta inovadora às tensões históricas, abrindo a possibilidade de transformar a qualidade das relações democráticas, outorgando-lhes um sentido intercultural e expressando um novo acordo político que possa projetar-se a âmbitos mais amplos” (Zegada Claure, 2017. p. 592, tradução livre)ZEGADA CLAURE, Maria Teresa. Bolivia: la democracia intercultural como síntesis de las diferencias. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (Orgs.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017. .

Conforme Chivi Vargas (2009, p. 160)CHIVI VARGAS, Idón Moisés. Os caminhos da descolonização na América Latina: os povos indígenas e o igualitarismo jurisdicional na Bolívia. In: VERDUM; Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e reformas Políticas na américa Latina. Brasília: Instituto de Estudos socioeconômicos, 2009. a democracia em seu caráter igualitário, compreendida como “um passo qualitativamente superior à democracia participativa e tendo na nova Constituição Política seu correlato legal de primeira ordem”, constitui um dos principais eixos de referência da Constituição Política boliviana de 2009.

Tal modelo igualitário e horizontal, para lembrar Villoro (2006)VILLORO, Luis. Democracia comunitária. 2006. Conferencia dictada en 21 de novembro del 2006 em el Auditorio Raúl Bailleres del ITAM. não visa a extinção do modo democrático representativo. Contudo, diversamente do modelo liberal, busca construir um processo coletivo por meio do diálogo e através da participação de todos os membros da comunidade.

Na mesma perspectiva, segundo Paco (2013. p. 80-81)PACO,Félix Patzi. Modelo comunal: propuesta alternativa para salir del capitalismo y del socialismo. La Paz: All Press, 2013. a “gestão política comum” é exercida pela coletividade, por meio da “deliberação coletiva”, tomada como “fonte do poder”. Assim, a coletividade reveste-se do poder de decisão sobre assuntos que dizem respeito à população e os mecanismos de gestão do “comum” se constroem a partir de acordos entre subjetividades concretas, que compartilham a mesma realidade. Trata-se de um modelo em que o poder é administrado diretamente pela coletividade e a soberania é indelegável.

Na Bolívia, a unidade de deliberação corresponde às circunscrições eleitorais, com a participação de autoridades e representantes territoriais e setoriais ou ainda, de associações coorporativas funcionais, sejam elas de zonas, bairros ou distritos na cidade ou autoridades originárias campesinas e indígenas de cada comunidade nas áreas rurais (Paco, 2013)PACO,Félix Patzi. Modelo comunal: propuesta alternativa para salir del capitalismo y del socialismo. La Paz: All Press, 2013. .

No âmbito da Democracia Comunitária, a representação não monopoliza o direito de decidir e o representante limita-se a expressar e operacionalizar a decisão adotada pela coletividade. Nesse sentido, aquele que manda, “[...] ‘manda porque ele obedece’, porque se sujeita ao que é a decisão comum ou é o resultado da deliberação coletiva; e, é só nesse sentido, adquire sua qualidade de representante” (Paco, 2013, p.83, tradução livre)PACO,Félix Patzi. Modelo comunal: propuesta alternativa para salir del capitalismo y del socialismo. La Paz: All Press, 2013. .

Nesse sentido, a autoridade política é um modo de dever ou responsabilidade para além de um direito, ou seja, um cargo pelo qual não deve haver competição. Trata-se de uma configuração baseada na rotação de cargos, distinta do modelo moderno ocidental como forma de eleição e renovação dos sujeitos para a composição do governo (Tápia, 2007)TAPIA MEALLA, Luis. Una reflexión sobre la idea de Estado plurinacional. OSAL (Buenos Aires: CLACSO), año VIII, n. 22, sept. 2007. Disponivel em: Disponivel em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/libros/osal/osal22/D22Tapia.pdf . Acesso em: 23 dez. 2018.
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.

A política, por sua vez, busca de modo concreto o equilíbrio entre as capacidades e as necessidades sociais e expressa o dever e o serviço à comunidade. Tem-se, assim, a “posse” do poder e não a sua “propriedade” e esse, diversamente do modelo de democracia liberal, não se concentra em determinados indivíduos ou grupos, tampouco se adquire por faculdades próprias dos sujeitos (Paco, 2013)PACO,Félix Patzi. Modelo comunal: propuesta alternativa para salir del capitalismo y del socialismo. La Paz: All Press, 2013. .

Destacam-se, no texto constitucional da Bolívia, mecanismos de democracia direta, de revogação de mandato, assembleias, conselhos e consultas, institutos vinculados à Democracia Comunitária que prevê a eleição, nomeação ou designação de autoridades representantes, tendo por base as regras e os procedimentos das nações indígenas e comunidades tradicionais (Wolkmer; Freitas, 2017, p. 14)WOLKMER, Antonio Carlos; FREITAS, Raquel Coelho de. O impacto do novo constitucionalismo nos processos de construção da democracia na América Latina. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 70, p. 595-632, 2017..

Naturalmente, o processo de consolidação da Democracia Comunitária na Bolívia enfrenta desafios na medida em que se opõe à lógica dominante. Desse modo, “[...] é preciso uma aposta radical na reconstrução do aparato estatal por elementos para-estatais, com isso a democracia representativa é oxigenada pela democracia direta, mas especialmente pela Democracia Comunitária” (Radaelli, 2017, p. 180)RADAELLI, Samuel. Constitucionalismo comunitário da alteridade: a experiência andina na perspectiva do Pluralismo Jurídico e da Filosofia da Libertação. 2017. Tese (Doutorado em Direito) - Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis (SC). .

A partir de uma análise panorâmica do conjunto de disposições constitucionais, visualiza-se que “[...] o potencial epistemológico da Nova Constituição não se esgota naquilo que foi literalmente exposto, mas sim na programação política da mesma.” (Chivi Vargas, 2009. p. 165, tradução nossa)CHIVI VARGAS, Idón Moisés. Os caminhos da descolonização na América Latina: os povos indígenas e o igualitarismo jurisdicional na Bolívia. In: VERDUM; Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e reformas Políticas na américa Latina. Brasília: Instituto de Estudos socioeconômicos, 2009..

O primeiro ponto a ser reforçado consiste, então, na reconstituição dos laços comunitários, como forma institucional plural ancestral dos povos originários, autóctones ou campesinos nos países andinos, que compreende outros projetos culturais e civilizatórios, em associação coletiva no núcleo das comunidades, cujas experiências e práticas convergem para a construção de uma outra cultura jurídica (Prada, 2010, p. 75)PRADA, Raul. Análise da nova constituição política do estado. Lugar Comum, n. 25-26, p. 73-86, 2010. .

A comunidade, concebida no sentido andino - ayllu -, implica a integração, a união dos opostos, o valor da solidariedade e a compreensão de que todos são iguais e igualmente importantes na sociedade. Nessa perspectiva manifestou-se o constituinte Cesar Cocarico do MAS, na sexta seção de 7 de março de 2007, quando afirmou que “Nós agimos de maneira coletiva em todos os aspectos; nos ajudamos uns aos outros e é isso que também queremos para essa pátria Bolívia” (Plurinacional, 2009b, p. 65)PLURINACIONAL, Vicepresidencia del Estado. Enciclopedia Histórica Documental del Proceso Constituyente Boliviano: Visión de País: Exposición de las Representaciones Políticas. Volume 1. Tomo II. Disponível em: Disponível em: https://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/ pdf/tomoii_v1.pdf . Acesso em: 20 ago. 2018. 2018b.
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Na ótica de Prada (2010)PRADA, Raul. Análise da nova constituição política do estado. Lugar Comum, n. 25-26, p. 73-86, 2010. a nova relação estabelecida entre Estado e sociedade se efetiva a partir da emergência participativa dos sujeitos coletivos e sua relação com as instituições estatais. Essa abertura ao reconhecimento das demandas dos povos originários, portanto, viabiliza a aproximação entre a realidade popular e o sistema político e jurídico formal, conexão entre a “democratização social” e a “forma estatal”, contribuindo para a formação das possibilidades, no dizer de Zavaleta Mercado, de um real processo “nacional-popular” (2008)ZAVALETA MERCADO, Rene. Lo Nacional-Popular en Bolivia. 2ºed. La Paz: Plural Editores, 2008. .

Entretanto, conforme Shavelzon (2015, p.15)SCHAVELZON, S. Plurinacionalidad y vivir bien/buen vivir: dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post constituyentes. Quito: CLACSO-CEJIS, 2015., os últimos acontecimentos revelam uma forte tendência de afastamento entre as práticas concretas dos governos e o conteúdo de renovação dessas demandas. Depois de aprovadas as novas constituições “[...] Começou a se perceber que os conceitos cunhados no calor das lutas políticas de muitos anos foram se convertendo em termos que já não significavam nada e se diluíam em burocracias estatais ou nostálgicos discursos militantes.” (2015, p.15, tradução nossa)SCHAVELZON, S. Plurinacionalidad y vivir bien/buen vivir: dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post constituyentes. Quito: CLACSO-CEJIS, 2015..

O governo, marcado por mudanças e continuidades, abriria caminho para discussões baseadas na ruptura entre a condução do Estado Plurinacional e as organizações indígenas que estiveram nas bases da Revolução Democrática e Cultural, instaurada no país. Igualmente, os intelectuais desempenharam um importante papel como aliados dos administradores políticos durante o processo de redação dos novos textos constitucionais (Schavelzon, 2015)SCHAVELZON, S. Plurinacionalidad y vivir bien/buen vivir: dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post constituyentes. Quito: CLACSO-CEJIS, 2015..

A crítica baseia-se principalmente na aproximação entre o MAS-IPSP (Movimiento al Socialismo-Instrumento de los Pueblos por la Soberanía Popular) de Evo Morales e a promoção de um modelo econômico que impactou negativamente os direitos comunitários sustentados pelas organizações indígenas (Schavelzon, 2015)SCHAVELZON, S. Plurinacionalidad y vivir bien/buen vivir: dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post constituyentes. Quito: CLACSO-CEJIS, 2015..

De acordo com Copa Pabón (2017, p. 47)COPA PABÓN, Magali. Dispositivos de Ocultamiento en tiempos de pluralismo jurídico en Bolívia. 2017. Tesis. (Maestría en Derechos Humanos). Universidade Autónoma de San Luis Potosí. existe uma tensão profunda entre as demandas dos sujeitos que protagonizaram as lutas históricas frente ao Estado Colonial e os diferentes modos de inclusão de suas demandas, considerando o sistema político e jurídico formal. Segundo a autora, existe uma distinção entre o processo constituinte que incorpora o “indígena originário campesino”, e o exercício do sistema político e jurídico formal (leis, procedimentos e institucionalidades) que diz respeito ao indígena.

Nesse contexto, não se pode deixar de mencionar a crise política que se instaurou na Bolívia ao final de 2019, que coloca a própria democracia e os avanços das últimas décadas em risco, chegando à renúncia de Evo Morales, do Movimiento Al Socialismo (MAS), reeleito nas últimas eleições, de diversos de seus sucessores e à autoproclamação de uma Senadora de oposição como presidenta interina.

O tema não se constitui objeto da presente análise, mas apresenta correlação com elementos apontados ao longo desse texto, revelando a tensão existente entre as demandas dos sujeitos que protagonizaram as lutas históricas e o modo de inclusão dessas demandas, bloqueadas pelos interesses extrativistas e capitalistas das elites regionais.

Finalmente, surge uma nova possibilidade de questionamento sobre os avanços e limites da autodeterminação e da luta histórica autonômica indígena nos horizontes do constitucionalismo da américa latina, ou, nas palavras de Copa Pabón (2017, P. 47)COPA PABÓN, Magali. Dispositivos de Ocultamiento en tiempos de pluralismo jurídico en Bolívia. 2017. Tesis. (Maestría en Derechos Humanos). Universidade Autónoma de San Luis Potosí. surge ao novo aymara a oportunidade de ser crítico com o que, até agora, tem construído, refletindo sobre como irá a superar os próprios limites, para então, emergir novamente.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente discussão objetivou examinar o conjunto de mudanças políticas inovadoras, produto do “movimento” do constitucionalismo latino-americano contemporâneo. Esse movimento constitucional acolheu os anseios políticos de lutas e resistências, apresentando, por sua vez, novas demandas e novas possibilidades teóricas. Com isso, apontou para um novo horizonte teórico com a inserção de elementos do conhecimento local, possibilitando a configuração de novas categorias jurídico-políticas, que expressem os anseios e as necessidades sociais da realidade concreta da região.

Assim sendo, a pesquisa buscou responder o questionamento acerca do sentido da Democracia Comunitária institucionalizada na Bolívia, a partir da ótica de um dos atores centrais do processo constituinte boliviano, ou seja, as organizações e povos indígenas, originários e campesinos, com uma larga trajetória de lutas e resistência.

Demostrou-se, como resultado, ao abordar as novidades trazidas pelo constitucionalismo latino-americano, que merecem destaque as novas formas de pensar a relação entre Estado e populações originárias, camponesas e populares, com destaque para a democracia que procede de tradições distintas à ocidental e emerge a partir de um processo de lutas de insurgência popular ocorrida no país.

A Constituição boliviana de 2009 expressa em seu preâmbulo, ser o corolário da refundação democrática conduzida pela vontade popular. Uma das inovações fundamentais consistiu no reconhecimento constitucional do princípio de demodiversidade, vale dizer, o direito a participar através da democracia representativa, direta ou comunitária, reconhecendo como inerente ao Estado Plurinacional às formas de participação e construção de consenso dos povos e nações originárias.

Nesse sentido, visualizou-se que a Democracia Comunitária, enquanto forma de organização social e de institucionalidade política extra-institucional, permite a abertura democrática em direção à satisfação de aspirações e necessidades fundamentais, como resultado das lutas e conquistas emancipatórias. Essa abertura ao reconhecimento das demandas dos povos originários viabiliza a aproximação entre a realidade popular e o sistema jurídico formal, que, por seu conteúdo comunitário, reflete de forma satisfatória a cultura ancestral das sociedades latino-americanas.

As classes dominantes tentaram durante todo o processo constituinte bloquear a elaboração da nova Constituição, buscando desestabilizar e frustrar o projeto de refundação da Bolívia como reação à ameaça da perda da hegemonia. Nesse contexto, o MAS acabou abrindo mão de mudanças profundas e as demandas e reivindicações populares foram subsumidas em decorrência da estratégia de estabelecer um diálogo e firmar acordos com as alas mais moderadas da oposição, a fim de obter o apoio necessário para aprovação do seu projeto de Constituição.

Ou seja, demonstrou-se que a reivindicação do poder constituinte, expressão da fórmula original da democracia, foi suplantada pela vontade do representante, que por meio do jogo político institucional e visando a manutenção do poder, sufocou as forças populares, que cederam espaço para as instituições. Portanto, as ideias em torno da temática da Democracia Comunitária, como forma de organização política e social e sua pluralidade normativa, cederam espaço, no âmbito da política, para as instituições oficiais.

Assim, as demandas e as ideias do poder comunitário que historicamente têm praticado a Democracia Comunitária foram marginalizadas, na medida em que o reconhecimento constitucional oficial tem sido aplicado com a intenção de manter as culturas e tradições ancestrais em uma posição de inferioridade e subordinação, condicionada pelas condições materiais e coloniais de poder.

O resultado é um modelo de democracia controlada e subordinada, pautada em discursos de inclusão que não coincide com o conceito autêntica de Democracia Comunitária, baseada em formas de enunciação e construções teóricas alternativas, a partir de um pensamento crítico da realidade do país. Ou seja, o constitucionalismo latino-americano mais recente continua sendo um fenômeno moderno transplantado para a América Latina.

Entretanto, a presente investigação demonstrou e afirmou as modificações institucionais observadas na Bolívia que constituíram um intento de “democratização da democracia” e que podem ser entendidas como um processo de revalorização da soberania popular, impulsionado pelos movimentos sociais que questionam a configuração tradicional do sistema elitista.

Nesse sentido, este espaço constituinte foi resultado de um encontro excepcional, que jamais chegou a ser realizado. Contudo, foi marcado pela dificuldade de se conjugar direitos indígenas com a integração, desenvolvimento e crescimento promovidos pelo aparato estatal e em prol da manutenção do “status quo”. Como consequência, caminhos diferentes foram abertos frente às coletividades indígenas minoritárias em busca de autonomia e insatisfeitas com a limitação e os bloqueios à concretização das normas jurídicas voltadas à transformação, mas obstaculizadas pelos intentos de produtores rurais na defesa de salvaguardar seus interesses no mercado.

No final de 2019, foram colocadas à prova os avanços e aspirações dos ciclos políticos nas democracias da região, o que reforça a ideia de que não houve uma efetiva democratização das instituições e dos espaços estatais, mas apenas uma abertura à participação política.

Contudo, ainda que a Constituição boliviana de 2009 não traduza as aspirações e as demandas das lutas autonômicas dos povos originários e campesinos historicamente e não tenha logrado instaurar uma nova ordem política, busca a sua factibilidade.

No presente trabalho, portanto, obteve-se a confirmação da hipótese. Ou seja, a pesquisa demonstrou que as inovações constitucionais trazidas pelo constitucionalismo latino-americano contemporâneo, especialmente, na Bolívia, representam a oportunidade de transformar o sistema político moderno, através da reconfiguração fundamentada nos elementos constitutivos e na constitucionalização da Democracia Comunitária. Em suma, para transformar é preciso avançar, em termos de resistência e enfrentamento às estruturas do sistema político e jurídico formal.

Contudo, para isso, faz-se necessário superar os bloqueios impostos pelos poderes constituídos e formalizados, presentes na Constituição boliviana, propondo um pensamento jurídico critico-descolonial para potencializar o exercício de uma prática comunitária intercultural, favorecendo a convivência interativa e dialógica entre os núcleos e nações étnicas, possibilitando o reconhecimento plural da justa satisfação das necessidades das comunidades indígenas neste cenário insurgente de nuestra América.

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Notas

  • 1
    Para a identificação das novas cartas constitucionais, Antonio C. Wolkmer utiliza a terminologia “Constitucionalismo Pluralista Andino”, uma vez que a experiência traduz elementos oriundos da Cosmovisão Andina, em convergência com a adoção do Pluralismo Jurídico. (Vide: WOLKMER, Antonio Carlos. Procesos constituyentes desde afuera: acerca del Constitucionalismo Pluralista en los andes. Quito: IAEN, 2013.).
  • 2
    O termo campesino será utilizado a partir do pensamento de Silvia Rivera Cusicanqui, considerando-se as relações de dominação tecidas nos distintos setores da sociedade boliviana, com sua heterogeneidade, complexidade e variabilidade histórica. O termo abarca a natureza dupla de tais relações de dominação, em que os trabalhadores eram explorados como produtores e oprimidos colonialmente como sociedade e como cultura. A autora utiliza os termos “campesino-indio”, “campesino-aymara”, “campesino-quechwa”, onde essa dupla natureza é evidente (CUSICANQUI, 2010, p. 73-74).
  • 3
    Forma de organização social pré-colonial do território andino, baseada nas relações étnicas e de parentesco social. Desde a conquista espanhola (desde o século XIX), os ayllus passaram a chamar-se comunidades(BICAS, 2017)BICAS, Mara. Democracia aymara andina: Taypi y diversidad deliberativa para una democracia intercultural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel (eds.). Demodiversidad: imaginar nuevas posibilidades democráticas. Ciudad del México: Akal, 2017.. Originalmente, eram pequenas extensões de terra, administradas por famílias incas. Atualmente, consistem em uma das formas de Organização Territorial de Base, de caráter indígena (ALCOREZA, 2010).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2021
  • Aceito
    15 Jun 2022
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas, Sala 216, 2º andar, Campus Universitário Trindade, CEP: 88036-970, Tel.: (48) 3233-0390 Ramal 209 - Florianópolis - SC - Brazil
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