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O que constitui uma República?

What constitutes a Republic?

Resumo

O objetivo deste artigo é retornar ao acervo histórico do constitucionalismo moderno para pensar as relações entre república, violência e emoção. O momento revolucionário francês é retomado, a partir de uma pesquisa teórica de caráter genealógico, por localizar no centro da vida republicana a necessidade de uma economia afetiva, isto é, de uma organização das paixões. A hipótese aqui testada é a de que o destino de toda república, enquanto projeto comum de superação das relações típicas do Antigo Regime, depende não apenas de direitos fundamentais e de limitação de poderes, senão também daquilo que os revolucionários conheciam como institucionalização de afecções recíprocas.

Palavras-chave:
República; Violência; Afetos

Abstract

This article aims at returning to the historical archive of modern constitutionalism in order to reflect on the relations between republic, violence and emotions. The French revolutionary moment is revisited, based on a theoretical research of a genealogical nature, as it locates at the center of republican life the need for an affective economy. The hypothesis tested here is that the fate of every republic, understood as the common project to overcome social relations typical of the ancien régime, depends not only on fundamental rights and limitation of powers, but also on what the revolutionaries knew as the institutionalization of reciprocal affections.

Keywords:
Republic; Violence; Affects

1 INTRODUÇÃO

“O que constitui uma república?” Na história do pensamento político ocidental, há poucas perguntas mais semanticamente carregadas que esta. Muitos leitores (Mommsen, 1963MOMMSEN, Theodor. Römisches Staatsrecht. Tomo 3, parte 2. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1888]; Girardet, 2007GIRARDET, K. M. Rom auf dem Weg von der Republik zum Prinzipat. Bonn: Habelt, 2007. ; Turcan, 2011TURCAN, Robert. Notions romaines de l’État: de la ‘Res Publica’ au ‘Status Romanus”. Latomus, v. 70, nº 3, 621-41, 2011.) insistiram sobre o fato de que o sintagma “res publica” fora não raro o objeto direto do verbo “constituere”. A República, para os romanos, era aquilo para o qual era preciso retornar: dar a alguma coisa sua forma primeira correspondia, como afirma Frédéric Hurlet, ao retorno a uma “inspiração original” (2014, p. 16)HURLET, Frédéric. Les métamorphoses de l’imperium de la République au Principat. Pallas, nº 96, 13-33, 2014., ao desfazimento dos efeitos de um tempo corrompido.

Ao refazer essa mesma pergunta, movimentamo-nos, certamente, no interior dessa linhagem de pensamento. Os elementos que compõem, no entanto, a indagação são em partes desconhecidos para os antigos. Nosso propósito é avançar na compreensão da relação entre o constitucionalismo moderno e a noção de “república”. Em lugar de tentar oferecer uma visão global destes dois relata, quer-se, neste artigo, percorrer as possibilidades abertas por uma perspectiva historicamente localizada.

Afinal, a oração “o que constitui uma república?” possui também várias histórias modernas. Podemos imaginá-la como uma pergunta endereçada ao revolucionário Louis Antoine de Saint-Just, que responderia, a seu turno: “O que constitui uma República é a destruição total daquilo que a ela se opõe” (Saint-Just, 1988, p. 117-18SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Discours et rapports. 1789-1989. Paris: Messidor, 1988.). Ao problema republicano soma-se, agora, um outro. A República não é somente a identidade conceitual entre “fundar” e “retornar”, ela é também uma economia da violência. “Constituir” e “constituição” se ligariam a um índice de destruição da oposição.

Aos constitucionalistas treinados no acervo teórico desenvolvido na segunda metade do séc. XX, a ideia de que a República possa envolver a ligação entre constituição e violência soará suspeita. Eles se acostumaram a pensar que o contrário seria verdadeiro, isto é, a constituição deveria funcionar como retenção da violência e salvaguarda contra a destruição da oposição.

A partir de uma pesquisa de natureza teórica e de uma metodologia de cariz genealógico, pretendemos mostrar que as fontes do constitucionalismo moderno possibilitam leituras alternativas. Retornaremos ao momento revolucionário francês não para negar as raízes dos direitos fundamentais e da limitação dos poderes, mas para sugerir que a tradição constitucional é também o lugar de uma espécie de psicologia política, sensuElster (1993ELSTER, Jon. Political Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.), ou ainda de uma economia afetiva onde violências e paixões por vezes se confundem.

Embora a noção de polarização tenha adquirido centralidade no debate contemporâneo - e, com ela, também as interpretações que concluem pela necessidade de um esforço de refreamento, uma fleuma social generalizada -, as relações entre constituição, violência e afeto ainda podem sugerir uma solução diversa. A hipótese a ser testada, neste artigo, é a de que a república, isto é, a democracia constitucional depende de agitação ou, em outras palavras, da manutenção de espaços institucionais que organizem os afetos sociais.

O texto que se segue está dividido em três momentos. No primeiro deles, estuda-se a versão contemporânea do discurso da polarização como uma variante de um termidorianismo constitucional.

Em uma segunda secção, reconstrói-se o que se pode considerar como a transformação episódica, durante o período revolucionário, do conceito de república. Mais do que uma simples identificação oposicional, o republicanismo albergará uma visão do risco de retorno ao antigo regime.

Na terceira e última parte, propõe-se uma leitura da obra de Louis Antoine de Saint-Just, pensador e artífice da Revolução, para quem o problema da violência era extensivo a dois outros: o problema da fragmentação do corpo político e o problema do congelamento dos afetos. A partir desses pontos de apoio, conclui-se que a “república” é a possibilidade infinita de reler e expurgar os laços de coerção das relações sociais do Antigo Regime. A política dos afetos aparece como antídoto contra a diástase do social, realizando, assim, uma das mais clássicas funções do constitucionalismo.

2 O DISCURSO DA POLARIZAÇÃO

Ao final de seu artigo A revolução democrática e o momento lefortiano da democracia brasileira, o professor Juarez Guimarães escreve:

Não se pode vencer as chamadas paixões tristes - o ódio, a intolerância, o racismo, o machismo, o desejo de anatemizar, excluir, violentar e até exterminar - com as paixões conformadas e desbotadas por uma vontade política incapaz de ir à raiz de seu fundamento democrático, como apontava Lefort. Mais do que nunca, a esquerda brasileira precisa da inteligência, da vontade, das paixões e de todas as cores da revolução democrática (Guimarães, 2018, p. 136GUIMARÃES, Juarez. A Revolução democrática e o momento Lefortiano da democracia brasileira. Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 1, n. 32, p. 123-139, 27 ago. 2018.).

Essa passagem, espinosiana1 1 A doutrina dos “afetos” é objeto da terceira parte da Ética, e desenvolve-se ainda nas partes IV e V (ESPINOSA, 2020). em larga medida, coloca os desafios políticos contemporâneos sob a insígnia das paixões. Há uma “política dos afetos” a ser disputada, e nosso destino comum republicano - isto é, o destino do comum em geral - dela depende. É preciso, segundo Guimarães, tanto politizar as paixões quanto afetar a política em sua condição anímica.

Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição de 1988, a questão pode parecer, para muitos, pouco intuitiva. Afinal, disseminou-se tanto na literatura especializada quanto no debate popular o diagnóstico de que a sociedade brasileira teria se polarizado excessivamente. Assim como seus colegas americanos (Wyszomirski, 1995WYSZOMIRSKI, Margaret Jane. From Accord to Discord: Arts Policy During and After the Culture Wars. In: America’s commitment to culture : government and the arts, 1-46. Boulder: Westview Press, 1995.), alguns cientistas sociais brasileiros têm entendido que houve uma profunda segmentação do corpo social, caracterizada por uma dinâmica de identificação oposicional segundo a qual: “a própria identidade se define a partir do oposto, da negação da identidade alheia” (Moretto; Ortellado; Solano, 2017, p. 5MORETTO, M.; ORTELLADO, P.; SOLANO, E. 2016: o ano da polarização? Análise, nº 22, p. 1-20, 2017. ). Por se referir ao grau em que “opiniões sobre determinado assunto se opõem em relação a um máximo teórico”2 2 No original: “(...) opinions on an issue are opposed in relation to some theoretical maximum”. , esse discurso pressupõe que a polarização “milita contra a estabilidade político-social (...) ao aumentar a probabilidade de formação de grupos com preferências políticas distintas, irreconciliáveis” (Bryson; Dimaggio; Evans, 1996, p. 693DIMAGGIO, Paul; EVANS, John; e BRYSON, Bethany. Have American’s Social Attitudes Become More Polarized?. American Journal of Sociology, v. 102, n. 3, p. 690-755, 1996.)3 3 No original: “(…) attitude polarization militates against social and political stability (…) by increasing the likelihood of the formation of groups with distinctive, irreconcilable policy preferences”. . O esgarçamento dos laços societários seria, então, a consequência de uma política excessivamente apaixonada. Porque as bases da comunicação racional se encontrariam bloqueadas, restaria apenas um espectro dividido de opiniões embotadas por sentimentos acalorados. Segundo parte importante dos defensores dessa posição, precisaríamos de menos, e não de mais paixões.

Se conduzirmos às últimas consequências o diagnóstico da polarização, encontraremos uma proposta substancialmente distinta da política dos afetos de Guimarães. Chamemo-la de “constitucionalismo madisoniano 2.0”. À diferença do constitucionalismo madisoniano original, essa versão renovada acredita que o sistema democrático de freios e contrapesos necessita de um suplemento institucional baseado em regras não-escritas. No famoso Paper nº 51, James Madison limitava a solução da divisão dos poderes (partition of powers) à sua “relação mútua”: meio pelo qual cada poder poderia ser mantido “em seu lugar próprio” (Haminton; Madison; Jay, 2008, p. 256HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. The Federalist Papers. Oxford: Oxford University Press, 2008.). Essa é uma solução eminentemente arquitetural do problema institucional. O constitucionalismo madisoniano 2.0, contudo, entende que o sucesso das instituições não depende apenas de seu desenho, mas também de compromissos de fundo cristalizados em regras não escritas.

Segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores de Como as democracias morrem, as condições de felicidade da democracia norte-americana sempre estiveram ligadas a duas dessas normas implícitas: a tolerância mútua e a abstenção institucional (institutional forbearance) (2018, p. 204). Por “tolerância mútua” deve-se entender a propensão dos concidadãos a enxergarem em seus pares concorrentes legítimos na busca pelo poder. A abstenção institucional, a seu turno, indica uma tendência a não esgotar os limites institucionais constitucionalmente expressos. Em outras palavras, trata-se de subutilizar os recursos formais das instituições no interesse de manter uma competição política justa (fair play). Quando falham essas duas regras, dizem os autores, rui também a qualidade do ambiente democrático.

O constitucionalismo madisoniano 2.0, que se pretende remédio para o mal da polarização, não é apenas um exercício de centrismo político. Afinal, ao problema constitucional da limitação dos poderes ele ajunta um outro, o da limitação das paixões. Se uma sociedade polarizada é aquela que conhece uma “intensidade emocional” (Fehrenbacher apud Levitsky; Ziblatt, 2018, p. 121LEVITSKY, S.; D. ZIBLATT. How Democracies Die. New York: Crown, 2018. ) renovada, é de se supor que qualquer solução adequada deva passar por um decréscimo passional. Neste sentido, os defensores do diagnóstico da polarização são, em verdade, termidorianos por excelência. Eles acreditam que o bom funcionamento das instituições constitucionais depende de sua capacidade de frear o conteúdo afetivo da política, notadamente os influxos emocionais vindos de um povo demasiadamente agitado.

A fim de oferecer um contraponto a essa perspectiva, avançaremos um princípio de resposta em linha com o horizonte da política dos afetos proposta por Guimarães. Retomaremos o momento revolucionário francês, notadamente os episódios que gravitam ao redor da luta de facções do ano II, por entender que eles oferecem acesso a uma tradição constitucional republicana muitas vezes menosprezada, e cujo foco foi uma articulação fundamental entre constituição e paixões. Segundo essa tradição, o regime constitucional democrático depende de agitação política e canalização dos afetos.

O problema é que, ao invocar essa tradição, atraímos igualmente um outro conjunto enorme de dificuldades. Afinal, o período revolucionário conhecido como “Terror” passou à história como uma degenerescência inscrita no projeto constitucional republicano. Popularizou-se a ideia de que um constitucionalismo excessivamente apaixonado seria, na verdade, fruto da pulsão de morte: um desejo de eliminação dos adversários políticos justificado em nome de um ideal abstrato de virtude. Em outras palavras - assim segue o argumento -, essa seria a “matriz do totalitarismo” (Furet, 1985, p. 282FURET, François. Penser la révolution française. Paris: Gallimard, 1985.), ou a coincidência entre um povo ficcional e uma visão mítica do poder alheia a direitos individuais. Critica-se, então, a origem daquilo que seria uma noção eminentemente autoritária de “constituição” amparada pela mobilização irracional das paixões do povo.

Tenta-se, nas linhas que se seguem, questionar esses predicados sem, contudo, descurar do risco da regressão autoritária e do desencadeamento de pulsões de morte. Sob o conceito de “república” articulam-se as linhas gerais de uma problemática de fundo sobre as relações entre afetos, divergência política e violência. Ao reativar as fontes da tradição constitucional republicana, encontraremos o conflito como elemento constitutivo da experiência democrática. Os caminhos e descaminhos históricos da Revolução Francesa oferecem um lugar privilegiado para pensar a conflitualidade para além da lógica da polarização.

3 QUAL REPÚBLICA?

Para melhor localizar a problemática deste artigo, recorreremos a duas outras citações. A primeira delas é retirada de um famoso texto de Florestan Fernandes, publicado na Folha de São Paulo no dia 15 de julho de 1985, intitulado Que tipo de república? O cenário é o da transição democrática que se acelera. Poucos meses antes da Emenda Constitucional n. 26, que convocou assembleia nacional constituinte, Fernandes escrevia:

No Brasil, nunca existiu uma República - e nunca existirá alguma, que mereça o nome, enquanto as “classes dirigentes” ficarem tão rentes a essa barbárie que se rotula civilização e toma ares de “democracia à brasileira”. Na verdade, tal “classe dirigente” é irmã siamesa dos que nos exploram a partir de fora e que não têm nenhuma razão especial, além da continuidade e do crescimento do botim, para desejar a vigência de uma República democrática; e compartilha com eles a responsabilidade pelo neocolonialismo imperante.

Neste pequeno excerto, Fernandes inscreve seu pensamento em uma linhagem que remonta ao período do constitucionalismo revolucionário. A seus olhos, uma assembleia nacional constituinte, seguida de uma constituição efetivamente democrática, representava a “maior urgência nacional” (Fernandes, 2014, p. 215FERNANDES, Florestan. Que tipo de República? Rio de Janeiro: Globo Livros, 2014. ). Esse diagnóstico, segundo ele, não deveria ser acompanhado de grandes ilusões que exagerassem o “significado da Constituição como um valor em si” (p. 89); a constituição deveria, antes, fomentar uma concepção realista da legitimação do poder e dos caminhos de uma revolução democrática. É neste ponto que o drama do constitucionalismo republicano se instala: como construir o comum no seio do dissenso absoluto? Ou, ainda de forma mais específica: como construir uma constituição que proteja “a liberdade intocável de todas as minorias” se há dentre elas uma - no caso, para Fernandes, a “massa reacionária da burguesia” (p. 42)FERNANDES, Florestan. Que tipo de República? Rio de Janeiro: Globo Livros, 2014. - cujo propósito é o de subverter a ordem constitucional?

A segunda citação prometida é, talvez, a mais conhecida frase de Saint-Just: “O que constitui uma República é a destruição total daquilo que a ela se opõe” (Saint-Just, 1988, p. 117-18SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Discours et rapports. 1789-1989. Paris: Messidor, 1988.). Muitos identificaram aí a essência do totalitarismo (Godin, 1997GODIN, C. La totalité. La totalité réalisée, vol. 6. Paris: Champ Vallon, 1997. , p. 81) por entenderem que se tratava de um elogio aberto à eliminação física dos opositores políticos do regime. O Terror, segundo essa análise, nada mais faria do que confirmar a linguagem fria e direta de Saint-Just.

Antes, contudo, de descartarmos a questão como simples evidência de uma deriva totalitária ante litteram, retomemos o trecho para pensar se não haveria ali uma maneira de inscrever o problema republicano da oposição recalcitrante. A dificuldade central assim expressa, como mais tarde fora também a dificuldade de Florestan Fernandes, é a de reconhecer, no interior do corpo político, a existência de uma oposição - neste aspecto diferente das demais - cujo projeto é o de se opor à república.

Em seu discurso de oito ventoso do ano II, de onde se retira a referida citação, Saint-Just aborda o problema da generalização das prisões políticas e os meios mais eficazes de se distinguir os culpados dos inocentes. Em lugar de oferecer uma resposta orientada pelo ponto de vista do juiz ou do acusador, ele procede por meio de uma análise essencialmente política. Ora, o desafio de toda república é a construção de um espaço comum. Se, tradicionalmente, julgamos as instituições republicanas por sua capacidade de absorver níveis mais ou menos elevados de dissidência interna, aqui, para Saint-Just, as dificuldades são de outra natureza: a oposição não estaria interessada em propor uma outra partilha do público, mas sim em minar a própria ideia de partilha. A essência contrarrevolucionária, identificada por Saint-Just à figura do “inimigo estrangeiro”, residiria, por um lado, na destruição do anteparo institucional da vida em comum e, por outro, na instituição do egoísmo e da “avarícia” (Saint-Just, 1988, p. 116SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Discours et rapports. 1789-1989. Paris: Messidor, 1988.) como medidas únicas do político. Ernest Hamel, em seu Histoire de Saint-Just, traduz a questão nos seguintes termos: “por que a França não deveria tratar os partidários da tirania como são tratados, alhures, os partidários da liberdade” (1860, p. 115HAMEL, E. Histoire de Saint-Just: député à la convention nationale. Paris: Poulet-Malassis et de Broise, 1860. )4 4 No original: “(...) pourquoi la France ne traiterait pas les partisans de la tyrannie comme on traite, ailleurs, les partisans de la liberté”. ?

Há nessa pergunta, sem dúvida, uma pista importante a ser seguida. Ao condicionar a existência republicana ao triunfo sobre seus adversários, Saint-Just está enunciando algo mais que uma simples lei geral de conservação do corpo político. Ele está, ao mesmo tempo, afirmando que o esforço revolucionário precisa se cristalizar em um arcabouço institucional. Não é possível destruir aquilo que se opõe à República com o esforço individual de um “belo espírito”, ou a moralidade de paixões dissimuladas. É preciso conceber instituições republicanas que encarnem efetivamente a razão prática.

3.1 Variação do conceito de “república”

Em La longue patience du peuple, e nos estudos que gravitam ao seu redor, a historiadora francesa Sophie Wahnich mostrou que essa dinâmica de encarnação conteve um marcado processo de variação diacrônica. Segunda ela, o conceito de “república” foi de tal modo alterado pela prática revolucionária, que seu advento precisaria ser visto como “consequência imediata da vitória popular” (Wahnich, 2008, p. 465WAHNICH, S. La longue patience du peuple: 1792, naissance de la République. Paris: Payot , 2008. )5 5 No original: “l’avénement de la République a été la conséquence immédiate de la victoire populaire”. . Wahnich fala, portanto, de repúblicas - no plural -, para marcar um conflito pela determinação do conceito. Seriam três os principais núcleos semânticos em concorrência, cada um deles assumindo preponderância em determinado momento da Revolução.

3.1.1 A República como governo da lei

O primeiro núcleo semântico a ser isolado residiria na concepção de república compartilhada pelos atores revolucionários entre 1789 e a Fuga de Varennes. Se hoje a palavra “república” é empregada muitas vezes para significar o antônimo de “monarquia”, isto é, a forma de governo em que não existe um monarca, essa não era a situação no momento em que eclode a Revolução. Ali, como mostra Wahnich, a república se referia a algo próximo do que expressava Jean Bodin na frase de abertura de seu Seis livros da república: “República é o reto governo, com poder soberano, sobre diversas famílias e sobre aquilo que lhes é comum” (Bodin, 1629, p. 1BODIN, Jean. Les six livres de la république. Genebra: Etienne Gamonet, 1629.)6 6 No original: “République est un droit gouvernement de plusieurs ménages, et de ce qui leur est commun, avec puissance souveraine”. . Em outras palavras, seu contrário não é a monarquia, mas o governo arbitrário que não respeita as leis. Não causa surpresa, portanto, que a primeira constituição francesa, de 1791, institua uma monarquia constitucional; e que o foco do pensamento político do período seja a ideia de “lei”. A filosofia republicana está consolidada ao redor da necessidade de impor a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão ao rei, assegurando-se continuamente de que ela não se transforme em letra morta. Segundo Wahnich, uma parte importante dos atores revolucionários acredita que a universalidade dos direitos e a particularidade do espaço público, da cité, exigem o acréscimo de um componente popular à equação. Dito de outro modo, a república se constitui em república através da superposição da vontade do povo, mediada pela Lei, à vontade do monarca.

3.1.2 A República como verdade, justiça e conflito

O segundo momento, nessa transformação do conceito de república durante o período revolucionário, segue-se ao episódio da Fuga de Varennes. A tentativa frustrada de Louis Capet de se evadir do território francês para se juntar a exércitos estrangeiros ocorre alguns meses antes da adoção do texto constitucional de 1791. Para uma parcela importante dos atores políticos, esse ato configurava não apenas crime de alta tradição, mas também um claro limite à toda conciliação possível com a Coroa. O problema é que a Constituição revolucionária representava, justamente, essa conciliação. Havia ali um princípio geral de estabilização da vida pública mediado por uma reacomodação dos interesses dos diversos estamentos. Para não inviabilizar a Constituição, as elites políticas entram em acordo para descrever a “fuga” como um sequestro; essa será a posição oficial. Pouco a pouco, no entanto, este esforço de teatralização vai perdendo força, e um grupo cada vez maior de pessoas perde definitivamente a esperança de que a monarquia se adeque ao esforço revolucionário. Do ponto de vista das transformações conceituais, esse é o momento em que a ideia dominante de república passa a ser a dissociação completa entre “poder executivo” e “monarquia”.

Em sua mais incisiva tentativa de sinalizar a concórdia pública, em 14 de setembro do mesmo ano de 1791, a Assembleia Constituinte produz um décret anistiando os chamados “fatos de revolução”. Em princípio, todas as persecuções penais relativas a atos revolucionários ou de guerra praticados após o dia 1º de junho de 1789 seriam interrompidas, produzindo uma anistia geral que aproveitaria tanto aos atores da revolução quanto aos contrarrevolucionários. Quer-se com isso evacuar completamente do espaço público a noção de conflito. A palavra “anistia” significa aqui, em toda sua extensão, esquecimento: “O imperativo de esquecimento se torna um imperativo de recalque da Revolução como acontecimento revolucionário” (2008, p. 62).

De forma bastante inovadora, Sophie Wahnich vai deslocar o vocabulário que se universaliza com a justiça transicional do final do séc. XX para tentar entender as nuances deste episódio. Segundo ela, se as disputas ao redor da Fuga de Varennes são recalcadas pela lei política de anistia, a conflitualidade reaparecerá com toda sua violência durante a jornada do 10 de agosto de 1792, quando o povo insurrecto coloca fim à monarquia em meio a um banho de sangue. Para além das circunstâncias históricas que conduzem a esse momento de uma “segunda revolução”, Wahnich anota que a concepção de república ali manejada envolvia três elementos: pretensões de verdade, pois o povo exigia um desmentido da tese do sequestro do rei; pretensões de justiça porque os culpados de traição deveriam ser punidos pela lei; e, por fim, pretensões de conflito, termo que se substitui a “paz”, para designar o desejo popular de revolta contra seus inimigos.

Esse enredo político vê acrescido à sua intriga um interessante cruzamento entre teoria constitucional e lutas populares. Se pensarmos que o próprio Robespierre, ferrenho opositor da constituição monárquica durante os debates constituintes, fundará em 1792 um jornal chamado O defensor da constituição, veremos que a insurreição que coloca fim à monarquia não representava, simplesmente, uma revolta contra o quadro institucional constituído. Robespierre, por exemplo, entendia que a constituição de 1791, a despeito de todos seus problemas, deveria ser lida a partir dos princípios políticos da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão: e, dessa forma, ela forneceria um poderoso aparato normativo para o aprofundamento das demandas populares. O combate republicano que culmina com a jornada do 10 de agosto não se faz simplesmente contra a constituição, mas em favor do aprofundamento de seus princípios, notadamente a resistência à opressão inscrita no art. 2º da Declaração:

No centro tanto das emoções quanto dos argumentos, encontra-se o objeto que constitui a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Sem dúvida, pode-se enunciar uma hipótese que precisará ainda ser desenvolvida: essas instituições produzem um modo de politização que, finalmente, gera a violência inerente ao conflito que brota do confronto entre a esperança dos direitos humanos e o medo de vê-los desaparecer do horizonte político. A esse título, elas se destinam a se substituírem ao Estado pacificador (Wahnich, 2008, p. 52WAHNICH, Sophie. Retenue de la violence et amour des droits de l’homme et du citoyen (1789-1792). Anthropologie et Sociétés, v. 32, n. 3, p. 39-55, 2008.)7 7 No original: “Au centre des émotions comme des arguments, on trouve l’objet que constitue la Déclaration des droits de l’homme et du citoyen. Sans doute peut-on émettre une hypothèse qui reste à creuser : ces institutions produisent un mode de politisation qui finalement gère la violence inhérente au conflit qui jaillit de la confrontation entre l’espérance des droits de l’homme et la peur de les voir disparaître de l’horizon politique. À ce titre, elles sont vouées à pouvoir se substituer à l’État pacificateur”. .

Tudo isso acarretará um sem-número de consequências, que vão desde a contestação de uma ideia liberal de liberdade formal, até o projeto de redação de uma nova Declaração que esclarecesse os direitos de natureza social implicitamente inscritos no texto de 1789. Do ponto de vista da noção de “república”, que nos ocupa aqui, dá-se então a passagem a uma imagem fundamentalmente conflituosa da vida republicana. É essa imagem que será adensada de forma decisiva ao longo do ano II.

3.1.3 A República como destruição daquilo que a ela se opõe

Em 1793, no terceiro dos momentos individuados por Sophie Wahnich, encontra-se uma ideia de “república” que abraça a conflitualidade em um nível superior. Já não se trata simplesmente de assumir o conflito endereçando-o à dissociação entre monarquia e poder executivo, senão antes de abraçar o dever de proteção das instituições republicanas contra a opressão dos inimigos internos e externos.

A citada frase de Saint-Just, que identifica a República à destruição de tudo aquilo que a ela se opõe, opera nesse contexto. Wahnich enxerga aí a confluência de dois fatores importantes. Por um lado, a vitória, no imaginário popular, da ideia de que a luta contra a opressão envolvia também exigir do Estado prestações sociais, os chamados direitos-crédito. Para ela, há um princípio de contestação do liberalismo econômico de 1791 que se dá pelas vias de uma defesa incondicional das instituições republicanas. Por outro lado, diz a autora de La liberté ou la mort, surge o Terror interpretado como uma retenção da violência ou - em outros termos - como uma economia política da violência na qual se exercia a força para evitar um massacre generalizado: “A ordem para evitar a carnificina, a ordem para controlar o poder soberano” (Wahnich, 2016, p. 46)8 8 No original: “L’ordre pour éviter le carnage, l’ordre pour contrôler la puissance souveraine”. .

Para melhor entender esse terceiro deslocamento do conceito de “república”, reconstruiremos sua extensão conflituosa na próxima seção. Isso nos permitirá recolocar o problema republicano a partir de uma lógica da organização dos afetos políticos.

4 O RISCO DA DISPERSÃO TOTAL

Assumindo como ponto de partida para o início do período do Terror os massacres de setembro de 1792, já na primavera do ano II (março de 1794) ficava evidente que o esforço revolucionário tinha cedido lugar a uma melancolia política generalizada. Em seus Fragmentos sobre as instituições republicanas, livro que será publicado postumamente e reunirá textos e notas deixados pelo autor, Saint-Just traduz conceitualmente a questão em uma fórmula que entrará para a história: “A Revolução está congelada” (1831, p. 46SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Fragments sur les institutions républicaines: ouvrage posthume. Paris: Libr. Techener, 1831. ). Apesar da maneira enérgica com que agiu o Tribunal Revolucionário, a tragédia humana do Terror não foi vista como um sucesso por seus artífices. Se é bem verdade que seus atores principais, dentre os quais Saint-Just, jamais se arrependerão das posições adotadas, e justificarão até o fim a necessidade da violência política, é também certo que, para eles, a Revolução tinha falhado na tarefa de criar aquilo que seria seu verdadeiro objetivo: laços de confiança civil que se substituiriam as relações de dominação do Antigo Regime.

Por que a Revolução estaria congelada? E, mais do que isso, o que significa essa metáfora do congelamento? Tanto os escritos de Saint-Just como sua atividade política pressupunham que a oposição recalcitrante à República aspirava a Guerra Civil. E essa guerra opunha não necessariamente dois campos facilmente identificáveis, mas dois vetores de força: um primeiro que visava instaurar a confiança civil e outro que buscava desfazê-la. Entre os revolucionários, é constante a dúvida sobre se viviam de fato uma revolução ou apenas uma luta fratricida. O corpo social permanecia esgarçado e atravessado por laços sociais de pura coerção.

A expressão “confiança civil” é bastante significativa, permitindo-nos entender por que o pensamento revolucionário em geral, e o pensamento de Saint-Just em particular centravam-se sobre uma economia afetiva. A constituição de um novo corpo político desfeito do Antigo Regime deveria ser a consequência de uma nova organização dos afetos. Como bem anota Sophie Wahnich: “O que determina o cidadão da cité revolucionada são as qualidades do coração pertencentes hoje à esfera privada, mas que fundavam então a possibilidade de uma ‘confiança civil’, uma ‘moral pública’” (1997, p. 11WAHNICH, Sophie. L’hospitalité et la Révolution française. In: FASSIN, D. Les Lois de l’inhospitalité. Paris: La Découverte, 1997, p. 9-27. )9 9 No original: “Ce qui determine le citoyen de la cité révolutionéé sont des qualités du coeur ressortissant aujourd’hui à la sphère privée, mais qui fondent alors la possibilite d’une “confiance civile”, d’une “morale publique”. . Há algo portanto maior que um simples laço de solidariedade social, pois estão aí imbricados tanto uma moralidade compartilhada racionalmente quanto uma afetividade comum. Só há cité, só há pólis ou civitas, se houver um espaço público de organização afetiva, uma confiança civil. Em mais uma de suas fórmulas tornadas clássicas, Saint-Just dizia: “A pátria não é o solo, ela é a comunidade dos afetos” (1831, p. 41SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Fragments sur les institutions républicaines: ouvrage posthume. Paris: Libr. Techener, 1831. ).

Em outros termos, a guerra civil representa o desfazimento destes laços. Neste sentido, ela é o exato oposto da Revolução, confundindo-se mesmo com a noção de “contrarrevolução”. A melancolia revolucionária da primavera do ano II não era apenas um sentimento de insucesso compartilhado pelos líderes do movimento, senão também a constatação de que o esforço contrarrevolucionário para destruir as novas relações sociais - aquelas baseadas em uma ideia de liberdade como reciprocidade - fora exitoso. O estado de guerra permanente só poderia conduzir a relações de dependência, e a revolução congelada é sinônimo de uma sociedade em que os laços entre os cidadãos são análogos ao do Antigo Regime. Quando Saint-Just emprega o termo “guerra civil” nos Fragmentos, ele refere um conceito mais amplo que aquele de conflito armado. Está em questão o risco do que, na linguagem do período, chamava-se “federalismo”, isto é, um regime de total fragmentação do corpo social, de interdição dos intercâmbios entre cidades e comunidades, de esboroo da res publica.

Ao contrário do que crê certa narrativa histórica que se tornou preponderante, a revolução não é, para Saint-Just, a tentativa de instaurar a guerra civil, mas sim a tentativa de impedi-la a todo custo. É bastante significativo que a palavra “contrarrevolucionário” tenha adentrado o vocabulário político antes mesmo daquelas de “revolução” e “revolucionário”, como bem assinala Jean-Clément Martin (1998MARTIN, J. C. Contre-révolution, révolution et nation en France: 1789-1799. Paris: Éditions du Seuil, 1998.). A anterioridade da contrarrevolução indica que, desde o princípio, o uso da força e o recurso à guerra fratricida funcionam como expediente para a dissolução do corpo político. Impedir a revolução equivale a interromper a formação de uma comunidade de afetos.

Bastaria ler um dos mais destacados contrarrevolucionários do período, o Conde de Montlosier, para se entender que a guerra civil, em seu sentido clássico, é o expediente contrarrevolucionário por excelência:

Acabo de falar de força. Pronunciei uma palavra terrível, pois a força, destinada a agir contra a força, logo estabelece um estado de guerra; e é a uma guerra, a uma guerra civil que eu apelaria em socorro de minha pátria! Aqui, não quero dissimular o fato de que os republicanos buscam, com todas as suas forças, evitá-la (Montlosier, 1791, p. 10MONTLOSIER, F. D. DE R. COMTE DE. Des moyens d’opérer la contre-révolution. Paris: [s.n.], 1791. )10 10 No original: “Je viens de parler de force. J’ai prononcé là un mot terrible, car la force, destinée à agir contre la force, établit aussi-tôt un état de guerre ; et c’est une guerre, une guerre civile que j’appellerois au secours de ma patrie ! Ici je ne veux pas dissimuler que les républicains cherchent de toutes forces à l’éviter”. .

Após os episódios da chamada “luta de facções”, fica claro para Saint-Just que o campo contrarrevolucionário havia, de certo modo, atingido o fim que buscara, a saber a criação de uma total apatia. A “revolução congelada” é a perda de energia anímica, a destruição da economia afetiva. Ao elã revolucionário substitui-se a fadiga de um povo brutalizado por guerras intestinas. Saint-Just constata que, a despeito da unidade do governo, instalou-se na França um “federalismo de fato”: “cada cidade, cada comuna” se isola (1831, p. 41SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Fragments sur les institutions républicaines: ouvrage posthume. Paris: Libr. Techener, 1831. ). O comércio se retrai tanto em seu sentido econômico quanto em seu sentido social, notadamente com a diminuição dos casamentos entre comunidades distantes. Para Saint-Just, o federalismo é “mais repugnante mesmo que a guerra civil” (Saint-Just, 1968, p. 256SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Œuvres choisies: discours, rapports, institutions républicaines, proclamations, lettres. Paris: Gallimard , 1968. ) porque revela a destruição do comum, ou a “dissolução da República” (1968, p. 256SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Œuvres choisies: discours, rapports, institutions républicaines, proclamations, lettres. Paris: Gallimard , 1968. ).

É possível identificar neste discurso uma contradição que permanecerá sem resposta pelos republicanos do período: o emprego da força durante o terror, termina por efetivar o plano revolucionário de congelamento dos afetos. A reação termidoriana, iniciada em 1794, nada mais é do que a captura, em termos políticos, de uma apatia generalizada que resulta do constante recurso às leis de coação e à violência física. A guerra de facções e o Terror fracassam como solução política. Tanto a melancolia revolucionária quanto a apatia do povo comprovam-no.

É curioso notar como o tema da lei e da legislação, antes o tópico primordial da produção intelectual revolucionária, vai aos poucos cedendo espaço àquele da “instituição”. E a razão para isso é simples: “As instituições têm por objeto o estabelecer de fato das garantias sociais e individuais para evitar dissensões e violências; de substituir a influência dos homens pela influência da moral” (Saint-Just, 1831, p. 30-31SAINT-JUST, Louis-Antoine-Léon. Fragments sur les institutions républicaines: ouvrage posthume. Paris: Libr. Techener, 1831. )11 11 No original: “Les institutions ont pour objet d’établir de fait toutes les garanties sociales et individuelles, pour éviter les dissensions et les violences; de substituer l’ascendant des moeurs à l’ascendant des hommes”. . Se a República significa destruir tudo aquilo que a ela se opõe, vai ficando claro no discurso de Saint-Just que a tarefa revolucionária não se confunde com a aniquilação da monarquia e da aristocracia. A eliminação física dos adversários é insuficiente para revolucionar os laços sociais e a economia afetiva do Antigo Regime.

Para isso, seriam necessárias instituições: esses agregados de moralidade pública e moralidade privada destinados a perdurar no tempo. Em Saint-Just, as instituições não se resumem àquilo que, no séc. XX, costumou-se definir como “ordem e formação concreta” (Schmitt, 2006, p. 7SCHMITT, C. Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens. Berlin: Duncker & Humblot, 1993. ). Ao defender que as instituições sejam múltiplas e que seus membros sejam sempre poucos, Saint-Just acena precisamente para sua ideia de multiplicar os pontos de afecção recíproca dos indivíduos. Ao contrário da “violência” - termo que designa, também, uma meramente coercitiva da lei -, as instituições revolucionam a moralidade ao constituir espaços de integração e deliberação.

Em uma entrada de sua agenda pessoal, datada do 9 Termidor do ano II, Saint-Just expressa aquilo que é, provavelmente, o sinal máximo da melancolia revolucionária, mas também a conclusão mais cristalina de suas reflexões sobre violência política, institucionalização e política dos afetos. Fica evidente, no trecho a seguir, que a república só destrói aquilo que a ela se opõe quando ela é capaz de multiplicar os espaços de deliberação; quando uma política dos afetos rompe com as visões de mundo do antigo regime, isto é, a violência contrarrevolucionária. Segundo Saint-Just:

Quando as autoridades públicas forem impotentes contra a mobilização armada e a violência do povo, uma bandeira será levantada ao meio da praça pública e imporá a paz; e será o sinal de que o povo delibera. O povo se reunirá pacificamente e comunicará sua deliberação às autoridades. Ela será transmitida ao poder legislativo. Se alguém importuna a paz e a deliberação do povo, o povo o prenderá e o entregará às autoridades (Saint-Just, 1828, p. 263SAINT-JUST, L. A. L. et al. Papiers inédits trouvés chez Robespierre, Saint-Just, Payan, etc., supprimés ou omis par Courtois; précédés du rapport de ce député à la Convention nationale; avec un grand nombre de fac-simile et les signatures des principaux personnages de la Révolution. Tomo segundo. Paris: Frères Badouin, 1828. )12 12 No original: “Lorsque les autorités publiques seront impuissantes contre l’attroupement et la violence du peuple, un drapeau déployé au milieu de la place publique imposera la paix et sera le signal que le peuple va délibérer. Le peuple s’assemblera paisiblement, et fera parvenir sa délibération aux autorités. Elle sera transmise au pouvoir législatif. Si quelqu’un trouble la paix de la délibération du peuple, le peuple le fera arrêter et le livrera aux autorités”. .

5 CONCLUSÃO

Em A cidade dividia, um dos mais conhecidos estudos da historiadora francesa Nicole Loraux, a noção de grega de “democracia” é lida a partir do seguinte fragmento de Heráclito: “Mesmo o kukeon se decompõe quando não agitado”. Kukeon era o nome dado a uma bebida utilizada nos Mistérios de Elêusis, e que consistia em uma mistura de água, cevada, ervas e outros ingredientes. Agitado, o kukeon aparentava ser uma mistura homogênea. Em descanso, suas partículas decantavam e ele assumia um caráter bifásico.

Para entender o que está em jogo nesse fragmento a um só tempo claro e obscuro, Loraux retoma uma história contada por Plutarco. O autor de Morália refere episódio no qual Heráclito teria sido chamado a dar seu aviso sobre a noção de homonoía, a concórdia cívica, diante de uma assembleia. Sem dizer uma só palavra, Heráclito se levanta, pega uma taça de água, mistura farinha de cevada e ervas, agita o composto, bebe-o, e se retira. Ao contrário de Plutarco, que enfatiza no episódio certa lição de modéstia e contentamento, Loraux privilegia uma leitura alegórica do sentido mesmo de democracia: para evitar a diástase, a separação completa do corpo civil, é preciso movimento. Neste sentido: “se não há agitação, há divisão. Ou ainda: sem conflito, ocorre a divisão. Eis-nos diante de uma bela contradição em termos, o que, em matéria de heraclitismo, não é necessariamente um mau sinal” (Loraux, 1997, p. 108LORAUX, Nicole. La cité divisée: l’oubli dans la mémoire d’Athènes. Paris: Payot, 1997. )13 13 No original: “S’il n’y a pas agitation, il y a division. Ou encore: sans conflit, c’est la division. Nous voila parvenus a une belle contradiction dans les termes, ce qui, en matiere d’heraclitisme, n’est pas necessairement un mauvais signe”. .

Ao retomar as ideias de Saint-Just para pensar uma economia política dos afetos, resgatamos uma outra via disponível no acervo histórico e conceitual do constitucionalismo, para a qual o conflito significava parte decisiva da integração republicana.

Como vimos, essa economia afetiva da agitação convive, entretanto, com o problema da violência. Há uma ambiguidade não resolvida no discurso de Saint-Just a respeito da necessidade de eliminar a oposição à República. A violência dirigida contra aquela oposição contrarrevolucionária, que recalcitra a vida comum e tem a guerra civil como só horizonte, parece mais reafirmar os laços de dominação e a diástase do Antigo Regime do que colocar a Revolução no estado civil.

Neste caso, talvez a República seja exatamente aquela imagem que se apresenta ao fim do percurso intelectual de Saint-Just: a infinita necessidade de erguer em praça pública uma bandeira, indicando que o povo delibera. Em outras palavras, uma economia da violência que se ajunta à economia dos afetos e incorpora, como tarefa republicana por excelência, o trabalho sempre inconcluso de contraposição ao Antigo Regime. Aquilo que constitui a República não é nem a violência da guerra civil, nem o torpor termidoriano, mas a multiplicação dos espaços institucionais de afecção recíproca.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    A doutrina dos “afetos” é objeto da terceira parte da Ética, e desenvolve-se ainda nas partes IV e V (ESPINOSA, 2020ESPINOSA, Baruch. Ética, tradução: Tomaz Tadeu, Belo Horizonte: Autêntica editora, 2007.).
  • 2
    No original: “(...) opinions on an issue are opposed in relation to some theoretical maximum”.
  • 3
    No original: “(…) attitude polarization militates against social and political stability (…) by increasing the likelihood of the formation of groups with distinctive, irreconcilable policy preferences”.
  • 4
    No original: “(...) pourquoi la France ne traiterait pas les partisans de la tyrannie comme on traite, ailleurs, les partisans de la liberté”.
  • 5
    No original: “l’avénement de la République a été la conséquence immédiate de la victoire populaire”.
  • 6
    No original: “République est un droit gouvernement de plusieurs ménages, et de ce qui leur est commun, avec puissance souveraine”.
  • 7
    No original: “Au centre des émotions comme des arguments, on trouve l’objet que constitue la Déclaration des droits de l’homme et du citoyen. Sans doute peut-on émettre une hypothèse qui reste à creuser : ces institutions produisent un mode de politisation qui finalement gère la violence inhérente au conflit qui jaillit de la confrontation entre l’espérance des droits de l’homme et la peur de les voir disparaître de l’horizon politique. À ce titre, elles sont vouées à pouvoir se substituer à l’État pacificateur”.
  • 8
    No original: “L’ordre pour éviter le carnage, l’ordre pour contrôler la puissance souveraine”.
  • 9
    No original: “Ce qui determine le citoyen de la cité révolutionéé sont des qualités du coeur ressortissant aujourd’hui à la sphère privée, mais qui fondent alors la possibilite d’une “confiance civile”, d’une “morale publique”.
  • 10
    No original: “Je viens de parler de force. J’ai prononcé là un mot terrible, car la force, destinée à agir contre la force, établit aussi-tôt un état de guerre ; et c’est une guerre, une guerre civile que j’appellerois au secours de ma patrie ! Ici je ne veux pas dissimuler que les républicains cherchent de toutes forces à l’éviter”.
  • 11
    No original: “Les institutions ont pour objet d’établir de fait toutes les garanties sociales et individuelles, pour éviter les dissensions et les violences; de substituer l’ascendant des moeurs à l’ascendant des hommes”.
  • 12
    No original: “Lorsque les autorités publiques seront impuissantes contre l’attroupement et la violence du peuple, un drapeau déployé au milieu de la place publique imposera la paix et sera le signal que le peuple va délibérer. Le peuple s’assemblera paisiblement, et fera parvenir sa délibération aux autorités. Elle sera transmise au pouvoir législatif. Si quelqu’un trouble la paix de la délibération du peuple, le peuple le fera arrêter et le livrera aux autorités”.
  • 13
    No original: “S’il n’y a pas agitation, il y a division. Ou encore: sans conflit, c’est la division. Nous voila parvenus a une belle contradiction dans les termes, ce qui, en matiere d’heraclitisme, n’est pas necessairement un mauvais signe”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2020
  • Aceito
    08 Mar 2021
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