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Monitoração Eletrônica de infratores em uma cultura de vigilância

DAEMS, Tom. Electronic monitoring tagging offenders in a culture of surveillance. Leuven: Palgrave Macmillan, 2020

T om Daems é professor de criminologia no Instituto de Criminologia de Leuven (Linc), na Bélgica. Daems foca sua trajetória acadêmica nas questões sociológicas, jurídicas e normativas relacionadas à punição. O autor produziu vários artigos sobre a monitoração eletrônica na Europa e, em 2020, publicou o livro ora resenhado.

Trata-se de um livro sucinto, de 93 páginas e quatro capítulos. No Capítulo 1, o autor trata da história, do desenvolvimento e da disseminação da monitoração eletrônica como parte de uma cultura contemporânea de vigilância, com ênfase no caso belga, em que a monitoração eletrônica foi introduzida em 1998, destinada aos reclusos que estavam próximos ao final do cumprimento da pena. Desde então ocorreu um aumento da monitoração eletrônica naquele país, tendo sido autorizada sua utilização na fase de pré-julgamento como alternativa à prisão preventiva, em 2014.

Para Daems, a monitoração eletrônica deve ser entendida como forma de controle remoto de vigilância, uma forma de conduzir, de forma flexível, o espaço, o tempo e a agenda de um infrator.

Dadas as conexões intrínsecas da monitoração eletrônica com a tecnologia de vigilância é natural relacionar seu surgimento e sua implementação crescente às transformações que vêm ocorrendo nas sociedades contemporâneas, transformando-as em sociedades de segurança máxima, de controle e de vigilância , nas quais a vida está cada vez mais cerceada pelo mundo digital, cingida pelo ciberespaço. Observar a si mesmo tornou-se um modo de vida e edificou uma cultura na qual a vigilância deixou de ser algo externo, para transformar-se em resultado de uma decisão voluntária e intencional. Neste contexto, inventariar infratores tornou-se trivial, uma vez que as práticas de vigilância estão onipresentes.

No Capítulo 2, o autor apresenta 12 funções diferentes da monitoração eletrônica. A função de ação lembra que sanções comunitárias não têm arquitetura física óbvia. Aqueles que as administram tendem a não usar uniformes e aqueles que as decretam não geram imagens ou ocupam qualquer espaço significativo no imaginário público. A imagem da monitoração eletrônica é mais fácil porque a tornozeleira é “fotogênica”, mostra que alguma medida está sendo tomada.

Aplicações recentes da monitoração eletrônica permitem controlar o comportamento, particularmente nos casos de abuso de substâncias ilícitas, por meio da obrigatoriedade da pessoa monitorada soprar em dispositivo semelhante a um teste de bafômetro usado no tráfego rodoviário, ou por meio de um “detector de álcool transdérmico” acoplado a tornozeleira.

A função de automação representa a eliminação da decisão humana discricionária. A legislação belga estipula meticulosamente o que deve acontecer em caso de descumprimento do cronograma estabelecido para a pessoa monitorada.

Outra função é a redução de custos. A monitoração eletrônica é mais barata do que o aprisionamento, sendo contudo questionável que seja mais econômica, já que efeitos positivos nas finanças públicas dependem da redução do aprisionamento, do combate à superlotação e do desencarceramento. No caso belga, 20 anos de monitoração eletrônica não levaram ao fechamento de prisões.

A redução e o controle do crime constituem geralmente um dos propósitos da punição. A monitoração eletrônica pode disponibilizar informações a serem utilizadas para localizar, provar ou excluir a possibilidade de que uma pessoa monitorada estava na cena de um crime. O autor chama ainda atenção para empresas que oferecem hardware e software que permitiriam antecipar o comportamento, a partir de pontuações de risco calculado através da análise de dados do infrator. A produção, coleta, armazenamento e exploração de grandes quantidades de dados sensíveis de infratores por empresas privadas coloca em questão tópicos éticos, garantia de confidencialidade e privacidade.

Outro efeito da monitoração eletrônica seria o desencarceramento, desde que integrada a uma estratégia de redução efetiva do encarceramento. Até o momento, não existem evidências de que a monitoração eletrônica tenha este efeito, ademais, pensar a monitoração eletrônica como desencarceradora implica em considerá-la em relação à prisão, obscurecendo como novas formas de “e-encarceramento” são criadas.

Para alguns, uma das funções da punição é a degradação, entendida como minoração do status de uma pessoa. Assim, punir significaria tratar o outro como inferior. Isso ocorreria também com a monitoração eletrônica, cuja supervisão coloca a pessoa monitorada em posição subordinada à tecnologia, ao cronograma e às instruções dos agentes da fiscalização.

A função de detecção, além de verificação, constitui a forma efetivamente ativa de supervisão: ao enviar um sinal ininterrupto e proporcionar um contato contínuo e em tempo real entre a pessoa monitorada e o posto de controle, particularmente pelo Global Positioning System (GPS).

A dissuasão é um dos mais antigos propósitos da punição. Embora a experiência da monitoração eletrônica não seja agradável, é preferida pelas pessoas monitoradas quando comparada com a alternativa da prisão. Contudo, a monitoração eletrônica é muitas vezes retratada e percebida como resposta branda ao crime, com baixo poder dissuasório. Isso ocorre quando celebridades são fotografadas ou filmadas em circunstâncias que não aparentam embaraçosas, exibem suas tornozeleiras, e parece gostarem da atenção que recebem por parte da mídia ao usar tais imagens. Ambivalência semelhante ocorre às vezes entre os jovens: usar uma etiqueta visível pode ser degradante e estigmatizante, mas também pode ser um símbolo de status em algumas subculturas juvenis (Brasil, 2021).

Pensar na monitoração eletrônica em termos de redução de danos implica em que ela seja considerada em relação à prisão, frente à qual ela de fato reduz ou evita danos. Esta função implica em questionar os danos da própria monitoração eletrônica. O reconhecimento desses danos ocorre também em estudos brasileiros, sob a forma de estigma, problemas de saúde, dificuldades inserção no mercado de trabalho etc. (Souza, 2019SOUZA, Rafaelle Lopes. Controle e punição: a monitoração eletrônica em minas gerais. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.; Pimenta & Zackseski, 2018PIMENTA, Vitor M.; ZACKSESKI, Cristina M. Corpo delito: monitoração eletrônica para além da (des)ilusão. In: MACHADO, Bruno Amaral et al. (org.). Criminologia e cinema: semânticas do castigo, v. 1, p. 142-164. São Paulo: Marcial Pons, 2018.; Pimenta, Pimenta & Doneda, 2019 ).

Se as dimensões restritivas da monitoração eletrônica sobre a liberdade não forem subestimadas (a pessoa monitorada não pode estar onde quer, tem de responsabilizar-se sobre como gasta o seu tempo e emocionalmente se sente punida), pode-se considerar o potencial de punição da monitoração eletrônica como um tratamento duro. Na Bélgica, a monitoração eletrônica foi inicialmente aplicada como alternativa “backdoor”, ou seja, na fase final da execução de uma pena de prisão, sendo, em certa medida, considerada um “favor” a ser concedido. Posteriormente, teve o uso estendido para pessoas condenadas a penas de prisão curtas, ou seja, para aplicação no “front door”, situação que ensejou debates por não ser percebida como tratamento suficientemente duro. Isso ilustra a dificuldade que o monitoramento eletrônico tem em “provar” a si mesmo superioridade em relação à pena de privação de liberdade. O monitoramento eletrônico parece cair entre dois extremos: por um lado, não é um “prazer”, mas um “castigo severo”; por outro, o castigo tem vantagens inegáveis para a pessoa condenada e a punição caracteriza-se por seu caráter “um pouco humano”.

Dado o seu uso relativamente recente, a monitoração eletrônica por vezes é apresentada como forma de humanização da punição. Nos dizeres do Daems, da mesma forma que a moderna prisão oferecia uma alternativa mais humana que a forca, a tornozeleira oferece uma alternativa mais humana que a prisão. No entanto, se a monitoração eletrônica pode oferecer uma alternativa mais humana à pena de prisão, por reduzir os efeitos prejudiciais da pena privativa de liberdade sobre o preso e sua família, o mesmo não poderia ser dito se fosse comparada a uma multa monetária ou ao serviço comunitário.

No Capítulo 3, o autor se debruça sobre novo conjunto de funções da monitoração eletrônica, começando pela incapacitação. A prisão, torna impossível para os infratores quebrarem a lei novamente, detendo-os dentro de quatro paredes. Ao descrever a monitoração eletrônica como “prisão virtual”, dá-se a impressão de que a monitoração eletrônica pode ser a contrapartida da prisão em termos de incapacitação. Na prática, a pessoa que está monitorada pode ignorar os horários, entrar em zonas de exclusão, adulterar o equipamento ou cometer novas infrações, embora as sanções contra tais violações sempre ocorram após as ocorrências.

Quando a punição é abordada de uma perspectiva monetária, deve-se lembrar que nas mãos de empresários a punição também se torna uma fonte de maximização do lucro. Nessa perspectiva, a monitoração eletrônica aparece não apenas como um meio relativamente barato de controle, mas ainda como um atrativo produto comercial. Trata-se de um mercado bilionário nos Estados Unidos e na Europa, onde as empresas envolvidas patrocinam encontros profissionais e científicos.

No caso de monitoração eletrônica bilateral, utilizada notadamente nos casos de violência doméstica, o dispositivo receptor é usado para determinar se a pessoa sob supervisão (monitorada eletronicamente) está a uma certa distância do local de residência da vítima. As violações são comunicadas às centrais de controle e a vítima tem um botão de alarme para solicitar ajuda se desejar. Quando a monitoração eletrônica é usada para proteger vítimas, o local de residência da vítima transforma-se em abrigo virtual, conferindo à monitoração eletrônica a função de proteção das vítimas.

Desde a introdução da monitoração eletrônica na Bélgica, a reintegração foi enfatizada, pois, ao ser realizada na comunidade, espera-se que a pessoa monitorada trabalhe nos horários em que não deve estar em casa. A monitoração eletrônica ajuda ainda a aguçar a responsabilização. Na prisão os internos tenderiam a se infantilizar, já que todas as tarefas e responsabilidades lhes são retiradas. As pessoas monitoradas estão aprisionadas invisivelmente, e a única coisa que exerce coerção sobre elas é o entendimento, a compreensão de que serão devolvidas à prisão se não cumprirem o protocolo prescrito. Essa ameaça e o cronograma rigoroso exigem autodisciplina e interiorização do monitoramento. A monitoração eletrônica seria o ponto final de um processo civilizatório da punição, continuidade de uma evolução em que a violência da prisão ou punição corporal é substituída por formas de punição mais civilizadas, abstratas e invisíveis.

As opiniões estão divididas sobre como a monitoração eletrônica pode ser útil dentro de uma filosofia de justiça restaurativa. Argumenta-se que a contribuição financeira tem um impacto positivo na legitimidade da monitoração eletrônica entre o público em geral. Na Bélgica existem projetos de lei destinados a introduzir monitoração eletrônica como sanção autônoma, na suposição de que isso aumentaria as possibilidades de as vítimas serem indenizadas, uma vez que os condenados podem continuar suas atividades profissionais - o que é questionável -, já que a monitoração eletrônica como variante diluída da privação de liberdade, dispensa pouca atenção à vítima.

O autor aponta que, na Bélgica, a monitoração eletrônica falhou na luta contra a superlotação das prisões. A despeito de o número de pessoas monitoradas ter aumentado ao longo do tempo, a utilização do dispositivo não reduziu o encarceramento.

A monitoração eletrônica possibilita integrar espaços que cumprem, na origem, outras funções (residências por exemplo) ao sistema de justiça criminal. O processo pelo qual domicílios tornam-se desprivatizados quando os infratores se movem monitorados de uma prisão para o seu interior, o autor chama transcarceração. Por ela ocorre a descentralização do controle social: os domicílios se tornam prisões e os parentes se tornam funcionalmente guardas prisionais.

O termo “ampliação da rede” metaforicamente se refere a capturar mais peixes em uma rede na qual os buracos, cada vez menores, tornam gradativamente mais difícil escapar e chama atenção para o risco de expansão do sistema de justiça criminal. A monitoração eletrônica não deve ser mais restritiva do que a sentença normalmente imposta para um determinado delito. Por ser relativamente barata, facilmente expansível e multifuncional a monitoração eletrônica pode facilmente dispersar o controle social e ao invés de atuar como alternativa à prisão, substituir outras sanções menos drásticas, ou ser utilizada como um excedente para sanções e medidas comunitárias existentes.

O autor termina por concluir que a monitoração eletrônica existe há quatro décadas, tempo suficiente para algumas reflexões de como seguir em frente. No médio e longo prazo a monitoração eletrônica pode ser um verdadeiro substituto para as penas de prisão. Contudo, isto pode levar tanto tempo quanto as pessoas levaram para se acostumar à prisão. Para os críticos, existe uma longa lista de riscos e preocupações como a expansão impulsionada pelo mercado da monitoração eletrônica. Os lucros gerariam um comportamento antiético, com a eliminação da intervenção humana e a morte de um ethos de liberdade condicional. Nesta lógica, a monitoração eletrônica seria um Cavalo de Tróia que não reduz o uso da prisão, mas recrutaria lares, parceiros e pais em uma estratégia de controle cada vez mais sinistra; uma tecnologia estigmatizante e desumanizante, e um dispositivo a serviço da retórica populista.

Embora o texto de Daems seja motivado por um cenário criminal, legal e político distinto do brasileiro, este autor sintetiza e organiza sob a forma de “funções” problemas e possibilidades que frequentam as discussões e a literatura brasileira que tratam o tema da monitoração eletrônica. Visualizada quando de sua implementação no Brasil, em 2010, como alternativa para redução da superlotação do sistema prisional, fato ainda não evidenciado (Brasil, 2021), sua utilização disseminou-se rapidamente por todo o país para chegarmos ao final de 2022 com 80 mil pessoas monitoradas. Esta magnitude, por si só, justifica o aprofundamento da discussão sobre esta política pública. O livro de Tom Daems é uma bela contribuição a esta reflexão.

Referências

  • BRASIL. Monitoração eletrônica criminal [recurso eletrônico]: evidências e leituras sobre a política no Brasil. Conselho Nacional de Justiça ... [et al.] ; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi ... [et al.]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2021. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/diagnostico-politica-monitoracao-eletronica.pdf>.
    » https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/diagnostico-politica-monitoracao-eletronica.pdf
  • PIMENTA, Victor M.; PIMENTA, Izabella L.; DONEDA, Danilo C. M. Onde eles estavam na hora do crime? Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 13, n. 1, p. 59-75, 2019. Disponível em: <https://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/891>.
    » https://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/891
  • PIMENTA, Vitor M.; ZACKSESKI, Cristina M. Corpo delito: monitoração eletrônica para além da (des)ilusão. In: MACHADO, Bruno Amaral et al. (org.). Criminologia e cinema: semânticas do castigo, v. 1, p. 142-164. São Paulo: Marcial Pons, 2018.
  • SOUZA, Rafaelle Lopes. Controle e punição: a monitoração eletrônica em minas gerais. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2023
  • Aceito
    01 Maio 2023
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