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Dez anos da Lei de cotas e vinte anos de ações afirmativas na sexagenária UnB: escrevivências de mulheres negras cotistas

MOURA, Dione Oliveira; SANTOS, Débora Silva. Vá no seu tempo e vá até o final: mulheres negras cotistas no marco dos 60 anos da UnB. BrasíliaEditora Universidade de Brasília2022

Fazer parte da primeira turma de cotas da UnB me trouxe um pertencimento racial bastante distinto: agora eu não era apenas negra, mas tinha uma história e fazia parte de um povo, o povo negro.

Aline Pereira da Costa

Graduada e mestra em relações étnico-raciais.

A coletânea organizada pelas professoras doutoras Dione Oliveira Moura (Faculdade de Comunicação, UnB) e Deborah Silva Santos (Museologia, UnB) reúne 23 textos de autoria de mulheres negras cotistas e 22 ilustrações do artista negro amazonense Petchó Silveira. Na página 11, as organizadoras declaram que a obra objetiva visibilizar a “existência de mulheres amefricanas1 1 Cunhado por Leyla Gonzalez (2018, p. 329-330), o termo Améfrica “nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A América como um todo (Sul, Central, Norte e Insular)”. Para além de seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Assim, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria de Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas de Pan-africanismo, ‘Negritude’, ‘Afrocentricity’” etc. e suas lutas para conquistar um diploma de ensino superior”. Também busca reconhecer a importância histórica das cotas raciais na trajetória de mulheres cotistas que, em sua maioria, foram pioneiras no âmbito familiar em conquistar uma titulação universitária.

A obra foi publicada na conjuntura demarcada pelas comemorações de dez anos da Lei de cotas, de duas décadas de Ações afirmativas e dos 60 anos da UnB. No debate sobre ações afirmativas, é relativamente consensual que essa noção se refira a mecanismos compensatórios diante da crônica exclusão histórica e das desigualdades sociais. Sua concepção dialoga com a filosofia dos instrumentos internacionais de direitos humanos que defende um tratamento diferenciado para grupos étnico-raciais e culturais que enfrentam a discriminação social. A genealogia da implementação de políticas de ação afirmativa nos países da América Latina e Caribe remonta às últimas décadas do século XX, com destaque para a reivindicação dos movimentos afro-brasileiros por cotas no funcionalismo estatal e no ensino superior público brasileiro.

A literatura especializada ratifica a eficácia dessas políticas e seu impacto na diversificação do perfil dos universitários, especialmente no que diz respeito às dimensões de classe social e de raça-etnia. A presença dessa pluralidade de sujeitos contemplados pelas ações afirmativas tensiona o trabalho acadêmico ao confrontá-lo com seus próprios limites. Também repercute ao visibilizar a marginalização nas epistemologias e ao promover a ampliação dos espaços democráticos e das instâncias de representação universitária. Esses impactos são positivos tanto para as instituições de ensino superior como para a sociedade como um todo.

É de amplo conhecimento o pioneirismo da Universidade de Brasília na implementação de cotas, formalizado em junho de 2003, mediante 24 votos favoráveis e um voto contrário no Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (Cepe) da Universidade de Brasília. A decisão foi consequência de um

processo de quatro anos ininterruptos de discussões, de diálogo com vários segmentos sociais, de embates político-acadêmicos dentro e fora da universidade, de envolvimento de vários setores da sociedade civil, e de mobilização universitária (Siqueira, 2004SIQUEIRA, Carlos . O processo de implementação das ações afirmativas na Universidade de Brasília (1999-2004). O Público e o Privado, v. 2, n. 3, p. 165-188, jan./jun. 2004., p. 170).

Após duas décadas desse importante momento histórico, a coletânea organizada por Dione Moura e Deborah Santos (p. 10 e 11) aproxima-nos às “existências [e] relatos de trajetórias de 21 jovens mulheres amefricanas1 1 Cunhado por Leyla Gonzalez (2018, p. 329-330), o termo Améfrica “nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A América como um todo (Sul, Central, Norte e Insular)”. Para além de seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Assim, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria de Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas de Pan-africanismo, ‘Negritude’, ‘Afrocentricity’” etc. que ingressaram pelo sistema de cotas raciais na graduação e na pós-graduação”. Trata-se de salientar as especificidades de mulheres negras cotistas a partir de “memórias e sensações que, plasmadas na vida cotidiana, revelam as artes de vivência e sobrevivência, mesclando-as com as formas de sustentar e orientar” a corporeidade negra. A invisibilidade e o silenciamento históricos das “vivências, trabalhos profissionais, memórias, invenções e práticas culturais e religiosas, patrimônios e produção de conhecimento das mulheres negras” denotam a pertinência e relevância da coletânea.

O conjunto da obra remete-nos também aos conceitos de “escrevivências” de Conceição Evaristo (2005, 2011) e de “nó” de Helena Saffioti (2015SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015.). O primeiro salienta a genealogia das ideias de autoria de mulheres negras, o como e onde nascem e as ligações com experiências étnico-raciais, de gênero e classe social. Carrega a vivência da coletividade, diferentemente da escrita de si que se esgota no próprio sujeito. “Traz a força motriz de mulheres negras escravizadas que nos antecederam” (Evaristo, 2005, p. 224).

Em relação ao segundo,

O nó (Saffioti, 1985_____. Movimentos sociais: face feminina. In: CARVALHO, Nanci Valadares de (org.). A condição feminina, p. 143-178. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais/Vértice, 1985., 1996) formado por estas três contradições apresenta uma qualidade distinta das determinações que o integram. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade compósita e nova que resulta desta fusão. [...] Uma pessoa não é discriminada por ser mulher, trabalhadora e negra. Efetivamente, uma mulher não é duplamente discriminada, porque, além de mulher, é ainda uma trabalhadora assalariada. Ou, ainda, não é triplamente discriminada. Não se trata de variáveis quantitativas, mensuráveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa (Saffioti, 2015, p. 115).

As vivências de 23 autoras negras cotistas denotam origens geográficas múltiplas e o compartilhamento da identidade étnico-racial e da classe social. Os trechos priorizados a seguir dão conta da fusão - raça, gênero e classe social - e da complexidade situacional explicita na escrivivência. Aida Feitosa (p. 29), graduada, mestra e doutoranda em comunicação se descreve como “mulher negra vinda do sertão urbano de Goiás”. Andressa Marques da Silva (p. 43), graduada em letras, mestra e doutora em literatura, declara: “meus pais enfrentaram as dificuldades políticas e econômicas presentes nas vidas de negros e pobres que cresceram em meio à ditadura civil-militar”. Deborah Carolina Silva Duarte (p. 59), graduada em biotecnologia, é “a terceira filha de um casal birracial [...] uma mulher preta e de família pobre, nascida em São Paulo”.

A jornalista Iara de Jesus dos Santos (p. 80) declara “vir de família humilde, formada por pessoas que nunca estiveram nesse espaço antes, fazia com que a universidade fosse um ideal distante, pois eu não sabia como chegar até lá, só sabia que queria”. Na página 81, as diferenças de classe social escancaradas no convívio universitário são apresentadas. Segundo afirma, “nunca havia conhecido tanta gente de condição financeira tão elevada, foi um choque de realidade perceber que o que minha mãe ganhava de salário mensal algumas pessoas ganhavam como mesada”. É nesse contexto que reconhece, “além de ser uma estudante negra, também sou uma estudante pobre” (p. 86).

Keila Meireles dos Santos (p. 98), graduada em museologia e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, declara: “minha condição de mulher negra, nascida em 30 de agosto de 1985 no seio de uma família empobrecida na região oeste da Bahia”. Letícia Bispo (p. 102), bacharela em comunicação social/audiovisual e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) diz: “minha família, como tantas de Brasília, é de origem nordestina - do Maranhão e do Piauí -, pobre e majoritariamente negra”.

Vitória Carolina Silva Duarte (p. 128), graduada, mestra e doutoranda em engenharia mecânica, pondera:

Ao contrário do que muitas pessoas acham, [ingressar pelo sistema de cotas] não é o caminho mais fácil. Tive que cumprir todos os requisitos seguidos por meus concorrentes do sistema universal, apenas concorri com menos pessoas.

Essa afirmativa é contundente pois aponta ao cerne das falácias que buscam deslegitimar as políticas de ação afirmativa.

A escrevivência de mulheres negras cotistas salienta que as cotas ou reserva de vagas requerem da complementariedade de ações afirmativas de cunho financeiro. Keila Meireles dos Santos (p. 86), graduada em biblioteconomia e mestra em sociologia, afirma:

Minha permanência na UnB só aconteceu graças à política de assistência estudantil da universidade, que, além de me oferecer moradia na Casa do Estudante por um semestre, também me forneceu bolsas para auxiliar com os gastos escolares.

Maria Lúcia Martins Gudinho (p. 136), licenciada em educação do campo (LedoC), salienta o Programa Bolsa Permanência, aprovado em 2014, que concede auxílio financeiro a discentes quilombolas, indígenas e negros de Instituições Federais de Ensino Superior em situação de vulnerabilidade socioeconômica. “Essa bolsa contribuiu para a permanência e a diplomação, permitiu pagar passagens interestaduais entre Cavalcante e Planaltina, materiais e outras despesas”. Dalila Noleto Torres (p. 55), graduada em ciência política e mestra em estudos latino-americanos, reforça a importância desse auxilio, dadas as “dificuldades relativas à falta de dinheiro para livros, cópias e demais custos”.

A implementação da LedoC salienta a pertinência de ações afirmativas com incidência na transformação pedagógico-curricular. Segundo Maria Lúcia Martins Gudinho (p. 135), esse

curso pensado para moradores de comunidades tradicionais e quilombolas, assentamentos e acampamentos da reforma agrária e funciona em regime de alternância. [...] a turma ficava, a cada semestre, de 45 a 60 dias na universidade e o restante em suas respectivas comunidades.

Isto é, esse curso possibilita a inclusão de pessoas sem possibilidade de acesso aos cursos convencionais.

A transformação da universidade se faz necessária porque, segundo Kátia Silene Souza de Brito (p. 94),

o corpo docente ainda é formado majoritariamente por pessoas brancas, os autores das disciplinas são brancos. [Nesse contexto,] pude perceber o quanto era importante me manter firme na conclusão da graduação.

A permanência é incentivada pela presença de “professoras negras e antirracistas, dos projetos de extensão e iniciação científica, de seminários, cursos, debates, discussões, encontros, congressos e exposições”, complementa.

Nessa perspectiva, Aida Feitosa (p. 30-31) afirma que o coletivo EnegreSer, criado por discentes negras(os), em setembro de 2001, visa construir “uma voz ativa de questionamento e proposição”. Surgiu depois de um episódio de racismo na UnB como “nossa forma de dizer que nosso trabalho de tornar a universidade mais negra seria feito a partir de nós, como sujeitos de nossa história”. Dalila Noleto Torres (p. 55) destaca “ter entrado pelo sistema de cotas para negros e ter o companheirismo de colegas em situações semelhantes à minha certamente contribuiu para minha permanência na universidade”. Esses depoimentos remetem à relevância da promoção de associações estudantis e do componente motivacional e fortalecimento da autoestima enquanto ações afirmativas para incidir na permanência de estudantes cotistas.

Mariana Paiva Soares (p. 116), formanda em comunicação organizacional, relembra:

Durante os meus primeiros anos na UnB, tive a oportunidade de conviver com outros estudantes negros e alguns poucos professores negros por conta do Centro de Convivência Negra (CCN) e das disciplinas sobre questão racial. Tive acesso a produções acadêmicas de intelectuais negros, o que me fortaleceu como mulher negra, e passei a enxergar potencial em mim para me tornar uma intelectual.

Essa memória permite inferir a importância da espacialidade na permanência de discentes cotistas. Nesse sentido, salienta-se além do CCN, criado em 2006, o Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas ou Maloca, criado em 2008, e o Centro de Convivência de Mulheres (CCM), criado em 2017.

Ao concluir a escrevivência, as professoras Dione Oliveira Moura e Deborah Silva Santos (p. 26) ponderam que as políticas de ação afirmativa “possibilitam uma vida melhor, com condições de romper o ciclo vicioso de trabalhos subalternos, de pobreza e exclusão”. A política de cotas incidiu na formação cidadã e profissional de professoras, pedagogas, bibliotecárias, cineastas, cientistas políticas, museólogas, comunicólogas, engenheiras, jornalistas, biotécnicas, publicitárias, bacharelas, mestras e doutoras negras que passaram a fazer história, no primeiro momento enegrecendo com seus corpos o campus universitário e trazendo outros olhares, novos temas e insólitos problemas para a produção do conhecimento acadêmico.

Essas mulheres negras cotistas são “pioneiras enegrecendo e feminizando o mercado de trabalho e enfrentando o racismo estrutural que nega às mulheres negras” a inserção em empregos dignos “para além dos trabalhos de servidão” (Moura e Santos, 2023 p. 26).

Referências

  • EVARISTO, Conceição. Poemas malungos, cânticos irmãos. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, 2011.
  • _____. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MORERIA, L.; SCHNEIDER, N. (Org.). Mulheres no mundo. Etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: UFPB/Ideia editora universitária. 2005, pp. 219-229.
  • GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… São Paulo: Diáspora Africana, 2018.
  • MOURA, Dione Oliveira; SANTOS, Débora Silva (orgs.). Vá no seu tempo e vá até o final: mulheres negras cotistas no marco dos 60 anos da UnB. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2022. E-book disponível em: <https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/303>. Acesso em: 08 dez. 2022.
    » https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/303
  • SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015.
  • _____. Violência de gênero - lugar da práxis na construção da subjetividade. Lutas Sociais, v. 2, p. 59-79, São Paulo, PUC-SP, 1996.
  • _____. Movimentos sociais: face feminina. In: CARVALHO, Nanci Valadares de (org.). A condição feminina, p. 143-178. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais/Vértice, 1985.
  • SIQUEIRA, Carlos . O processo de implementação das ações afirmativas na Universidade de Brasília (1999-2004). O Público e o Privado, v. 2, n. 3, p. 165-188, jan./jun. 2004.
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    Cunhado por Leyla Gonzalez (2018, p. 329-330), o termo Améfrica “nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A América como um todo (Sul, Central, Norte e Insular)”. Para além de seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Assim, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria de Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas de Pan-africanismo, ‘Negritude’, ‘Afrocentricity’” etc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2023
  • Aceito
    14 Jul 2023
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