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Exclusão, insegurança, vulnerabilidades: incluir com o acesso à saúde?

EDITORIAL ESPECIAL

Exclusão, insegurança, vulnerabilidades: incluir com o acesso à saúde?

Rubens de Camargo Ferreira Adorno

Faculdade de Saúde Pública da USP, membro da Comissão Editorial da Saúde e Sociedade

A revista Saúde e Sociedade inicia um ciclo de temas em debates que apontam a problematização das diferenças e iniqüidades sociais vistas a partir da emergência da discussão de temáticas como as apresentadas hoje por construções conceituais, como as de raça/etnia, gênero, situação geracional, sexualidades, identidades e sua relação com a dinâmica da população, distribuição das doenças, acesso aos serviços e às políticas de eqüidade, atenção especial e empoderamento. O enfoque que vem sendo dado às diferentes clivagens na sociedade por parte de políticas de Estado ou pelas agências internacionais de intervenção ou de pesquisa vem ganhando destaque no campo da Saúde Pública/ Saúde Coletiva.

Se a noção de eqüidade aparece como preocupação nas políticas públicas no aspecto governamental e na agenda das agências internacionais, uma tendência à focalização tem presidido a discussão sobre a saúde pública, em estudos fragmentários, específicos, que sem dúvida agregam uma economia de recomendações técnicas, as quais realizam uma vinculação também parcial dos contextos sociais nos quais se encontram.

Para iniciar esse debate, esse número da revista apresenta a discussão a respeito do tema "exclusão social", que também vem sendo largamente utilizado e aplicado a variadas situações e lugares.

O início dessa discussão possibilita um primeiro passo nesse ciclo de temas em debate, visitando situações e processos sociais a partir dos quais se pode pensar, de maneira contextualizada e dinâmica, a descrição de processos políticos e sociais; o cotidiano da relação de trabalho que envolve situações de precariedades, desagregação, intervenção e conquistas na vida de grupos de populações que se encontram distantes do centro dos mecanismos de decisão.

Pensando na temática da "exclusão social", em uma perspectiva de leitura crítica da história da relação das intervenções feitas em nome da Saúde Pública pelo Estado e da situação de constituição das relações entre Estado e força de trabalho no sistema capitalista em desenvolvimento desde o século XIX, pode-se situar a discussão do tema em duas vertentes: primeiro, a relação histórica da saúde pública com as situações de pobreza e de dominação; segundo, o processo histórico que se dá com a economia capitalista de mercado e o conflito de classes dentro do qual se constitui também o conflito e a construção da noção dos direitos.

Em termos da relação histórica da saúde pública e os Estados Nacionais, assiste-se em um primeiro momento a articulação do poder de Estado sobre as populações no sentido de controlar a sua "saúde", em nome da saúde do Estado. Essa construção não se opera sem a exclusão de parte da população, através do reconhecimento das doenças, que representavam uma ameaça à saúde pública.

Três formas desse processo de exclusão são relatadas, fazendo a referência clássica a Foucault: a exclusão em nome do saneamento urbano; o esquadrinhamento social e a divisão de doentes e sãos; e o modelo de confinamento ao trabalho.

Existem vários registros de exclusão durante a história do século XX, inclusive o modelo de confinamento e internação em colônias de isolamento e a construção de um imaginário social no qual parcelas da população, imigrantes, passaram a representar ameaça. Da mesma maneira que nos dias de hoje entre os freqüentadores dos albergues e moradores de rua da cidade de São Paulo a tuberculose é um mal cujo nome sequer se pronuncia.

Os movimentos sociais foram os que historicamente se colocaram no sentido de buscar a inclusão das classes trabalhadoras. Partindo do pressuposto da mudança, da transformação social ou do reconhecimento e da conquista de diretos, apresentavam estratégias de superação da pobreza. A saúde/doença ganhou destaque a partir do lugar onde se erigiram as lutas. O trabalho e as reivindicações da força de trabalho, a redução do desgaste físico a partir da redução da jornada de trabalho, a proteção do trabalho para mulheres e crianças, e a reivindicação de um sistema de aposentadorias, seguro e pensão fazem parte dessa contraposição à exclusão dos pobres como força de trabalho, desenvolvendo um sistema compensatório ao desgaste da classe trabalhadora. A noção e o resgate do corpo como instrumento produtivo, a partir do qual se obtinha os meios de subsistência, demandavam um sistema de proteção para as situações em que ele se tornasse improdutivo: doença, idade, seqüelas, estendendo-se os benefícios à unidade familiar, quando na impossibilidade do uso produtivo do corpo do chefe da família. Esse universo também se compunha de um sentido ideológico e moral, alicerçando-se, então, relações tradicionais de gênero, por exemplo, que passaram a ser questionadas pelo movimento das mulheres e o movimento feminista, durante o século XX.

Para as populações que não se encontrassem no centro desse conflito – capital e trabalho, operários e proprietários de indústrias e corporações industriais – a construção de redes de solidariedade, de apoio, de denúncia, cumpriam um papel. Organizava-se, assim, socialmente a discussão sobre a pobreza em torno do movimento sindical e operário. As conquistas alcançadas ao longo do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX, juntamente com as situações guerra e pós-guerra, encontram-se na origem do estado do bem-estar social.

A discussão da exclusão inicia-se quase no momento de inflexão e de ruptura desse processo. Como destaca o artigo sobre conceito de exclusão social desse número da revista, essa discussão tem sua origem na França e começou a ser problematizada a partir da situação de precariedade da habitação. Interessante destacar que a noção de exclusão social passa a dirigir para o Estado a demanda por um sistema compensatório, que historicamente se dirigia – mesmo com a mediação do Estado – às grandes corporações capitalistas . É a partir do Estado que as políticas "inclusivas", passam a ser demandadas. A manutenção de uma agenda de direitos inclusivos tem por finalidade a governabilidade, frente aos movimentos sociais e à população.

Por sua vez a trajetória do conflito de classes, como que representado nos movimentos sociais do século XX dá corpo a toda a discussão que revisita as ordens classificatórias as quais colocavam o homem empreendedor europeu/norte-americano e os outros, os imigrantes, os pobres dentro desses países. O sistema classificatório que dividiu, por exemplo, brancos, negros, latinos. A extensão dos direitos por meio do Estado não ocorreu sem um "jogo de braço" entre as concepções moralizadoras e os movimentos sociais. O desenvolvimento da discussão teórica sobre a noção pretendeu mostrar as limitações dessas visões.

Por sua vez, os movimentos sociais vêm se colocando diante desse sistema classificatório, buscando, a partir da lógica da desigualdade e da diferença, inscrever direitos como antídotos ao que consideram um lugar de exclusão nas posições e lugares que ocupam nessas ordens classificatórias. Essas reivindicações, pelo menos em sua lógica de conquista de direitos, não se travam contra corporações internacionais ou contra processos econômicos de exploração da força de trabalho; elas se dirigem ao Estado, que, em função da governabilidade, passa a ser sensível ao desenvolvimento de políticas "inclusivas", que podem ter seu limite na própria relação com o "mercado" do qual o Estado é credor/devedor; e regulam os meios econômicos e a disponibilidade de recursos. A lógica política das "elites do poder" ou do "meio político" orienta a programação, a especulação e a operacionalização desses recursos.

A exclusão, como nos mostra o artigo de Zioni, cita sua fraqueza conceitual na sua generalização e na falta de sua articulação com uma teoria mais ampla e consistente da sociedade. Observa-se que é justamente na crise do modelo das reivindicações de classe e do estado do bem-estar social que a questão da exclusão se coloca, focalizando como processo social a crise das redes de solidariedades e a relação das populações "excluídas" do sistema do trabalho com as políticas compensatórias estatais.

Os artigos apresentados neste número da revista mostram que ao mesmo tempo em que o Estado promove desagregação e insegurança, movimentos de assentados procuram construir novas redes de solidariedade. Trata-se de exclusão ou de uma inclusão perversa aos sistemas de produção regidos por uma economia capitalista intensificada pelas trocas de mercadorias e bens financeiros em termos mundiais.

Os trabalhadores da indústria canavieira, em sua maioria migrantes atraídos pela inclusão no mercado a partir de uma relação de trabalho assalariado, continuam em lugar de exclusão de autonomia sobre sua saúde. Os serviços de saúde, ao colocarem à sua disposição cuidados paliativos para a reparação cotidiana de um processo de intenso desgaste físico, participam do processo de trabalho excludente de saúde e agregam valor ao capital, representando a descrição clássica dos trabalhos que, nos anos 1970, relacionavam capitalismo a serviços de saúde. O relato dessa lógica capitalista na produção da cana coloca em foco um processo que tem ficado cada vez mais distante de toda a discussão sobre economia e sociedades contemporâneas.

Na África, a epidemia de Aids não pode ser considerada um fenômeno descontextualizado da integração da produção de bens primários à economia de mercado mundializada. A promoção do "desenvolvimento" pelo Estado, como é apontado no caso da Costa do Marfim, mostra os conflitos que a doença traz para as redes de solidariedade tradicionais, com a intensificação dos deslocamentos, das imigrações, e das mudanças nas unidades familiares extensas. Certamente, fala-se em produção da exclusão pela desorganização das formas familiares de integração e produção, pelo aumento da circulação de pessoas, que por sua vez disseminam a Aids, como outro fator de impacto sobre a sociedade.

Como foi descrito no artigo de Soares, o assentamento rural em território conquistado pelo Movimento dos Sem Terra representa um movimento no sentido da inclusão, do reconhecimento de direitos. Nesse caso, verifica-se que as estratégias de inclusão, por meio de um movimento coletivo, acionam a formação de uma rede que articula organizações civis, governamentais, religiosas, universidades. A pauta de questões necessárias para a implantação desse projeto em um espaço conquistado também necessita do provimento de várias ordens: água, saneamento, atendimento médico em Unidades Básicas de Saúde (UBS), segurança alimentar, etc, que são de responsabilidade do Estado. Nesse caso, evidencia-se também a questão ambiental e suas conseqüências mais diretas sobre os grupos que procuram ser "incluídos". Interessante nesse processo de cooperação é também a problematização da própria ordem de atendimento à saúde por um modelo biomédico e o resgate do uso de ervas e plantas medicinais, remetendo a um conhecimento tradicional.

A análise das inseguranças feita por Parry Scott procura mostrar os riscos da relação com as políticas e intervenções estatais e os limites das redes de solidariedades no momento da intervenção ou do projeto estatal. Se a presença cotidiana do estado traz uma insegurança estrutural, ou seja, a situação de "exclusão" de grandes parcelas da população brasileira é um fato histórico, a intervenção traz novas ordens de expectativas e demandas que geram novas "inseguranças".

O artigo de Carneiro Jr. e col. descreve uma experiência de atendimento à saúde de diferentes grupos urbanos considerados excluídos: profissionais do sexo, população de rua, moradores de favela e imigrantes bolivianos, pontuando o tema da eqüidade perseguido na atenção primária a esses grupos e apontando o desafio da integralidade das ações.

Os artigos desse número da revista representam também o que no campo da Saúde Pública se chamaria hoje, de estudos qualitativos, que vem sendo incorporados à pesquisa. Destaca-se que esses estudos têm sido feitos de forma fragmentária e descontextualizada. A etnografia, por outro lado, como demonstram artigos dessa revista, cria um instrumento de âncora metodológica, pois nesse contexto se travam os conflitos entre atores dos serviços de Estado e grupos da população: conflitos de classe, geracionais, étnicos. Esses lugares, por sua vez não estão desligados entre si, por isso também não se deve atribuir a eles a idéia de casos especiais ou isolados ou estudos de caso – que na sua concepção metodológica clássica apresenta-se como caso a ser analisado a partir de um tipo ideal, remetendo-o a processos sociais históricos. Assim as lógicas dos processos aqui apresentados, se chamados de exclusão, estão dentro da história do mercado, da produção, da especulação financeira no processo mundializado capitalista e das elites políticas no poder do Estado.

Classes sociais, gênero, situação geracional, raça/etnia, identidades têm participado não apenas como categorias transversais na análise da distribuição da doença-saúde, mas como demandas dos serviços e das políticas no sentido de favorecer a eqüidade e o reconhecimento dos direitos, fato que se reflete no campo da pesquisa e que se representa também na perspectiva da democracia e dos conflitos sociais contemporâneos.

Movimentos sociais apontam para a questão de governabilidade, daí a necessidade das agendas inclusivas na ordem das políticas. Do ponto de vista da saúde pública, os princípios de inclusão podem ganhar uma dimensão técnica e medir a universalização, a eqüidade, a integralidade ou a participação. Também permite discutir, por meio de um conceito de saúde ampliado, o conflito entre a capacidade e os limites do Estado e as demandas do grande contingente da população, que busca estratégias de se incluir em um sistema extremamente desigual de distribuição de renda e de recursos do Estado, que refletem lugares e visões diferentes da sociedade, pelas posições e pelas visões político-ideológicas.

Trabalhar com a diversidade é uma forma de reconhecer uma outra relação na saúde, por meio da promoção de cidadania? da melhoria do acolhimento? do reconhecimento das diferenças étnicas e culturais? da inclusão dos que estão fora do sistema? Sem dúvida essas e outras questões têm sido parte da discussão prática cotidiana de uma infinidade de grupos e atores sociais da Saúde Pública e de experiências que procuram fazer desse campo espaços de inclusão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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