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A VERTIGEM DO MOVIMENTO E A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO EM ETNOMUSICOLOGIA* * Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT- Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P., no âmbito do projeto UIDB/00472/2020.

THE VERTIGO OF MOVEMENT AND THE PRODUCTION OF KNOWLEDGE IN ETHNOMUSICOLOGY

Resumo

Este texto procura oferecer uma viagem pelas diferentes condições de movimento a que estamos expostos e expostas enquanto representantes de um domínio de estudo que (ainda) designamos por etnomusicologia. O texto baseia-se nos conceitos de movência (teorizado por Paul Zumthor) e de movimento (associado à proposta de desclassificação do conhecimento de António García Gutiérrez) para pensar a itinerância, o trânsito e a mobilidade enquanto instâncias constituintes: 1) de todos os fenómenos de interesse etnomusicológico; 2) do posicionamento teórico da disciplina; 3) das suas opções metodológicas; e 4) do modo como etnomusicólogos e etnomusicólogas têm vindo a adotar práticas de investigação partilhada no sentido de uma etnomusicologia progressista. Advogo que esta condição de movimento da etnomusicologia se entrelaça com o seu universo de estudo (música e som) e inscreve uma portabilidade intrínseca, importantes ações de agencialidade e uma condição de permeabilidade capazes de transformar o conhecimento numa força heurística de reedificação disciplinar.

Palavras-chave:
Etnomusicologia; Desclassificação; Movência; Conhecimento disciplinar; Práticas de investigação partilhada

Abstract

This text seeks to offer a journey through the different conditions of movement to which we are exposed as representatives of a field of study that we (still) call ethnomusicology. The text is based on the concepts of movance (theorized by Paul Zumthor) and movement (associated with the proposal of declassification of knowledge by António García Gutiérrez) to think about itinerancy, transit, and mobility as structural constituents: 1) of all phenomena of ethnomusicological interest; 2) of the theoretical positioning of the discipline; 3) of its methodological options; and 4) of the way in which ethnomusicologists have been adopting shared research practices towards a disciplinary progressive ethnomusicology. I argue that this condition of movement intertwines with the universe of study of ethnomusicology (music and sound) and inscribes an intrinsic portability, important agency actions and a permeability condition capable of transforming knowledge into a heuristic force of disciplinary re-edification.

Keywords:
Ethnomusicology; Declassification; Movance; Disciplinary knowledge; Shared research practices

As etnomusicólogas e os etnomusicólogos1 1 Dado que não temos ainda normalizada uma regra lexical para a escrita totalmente inclusiva em língua portuguesa, opto pelo uso do masculino e do feminino sempre que não implicar alterações substantivas no texto ou repetições exaustivas que dificultem a leitura. são sujeitos em permanente estado de movimento. Movem-se porque costumam estudar (também) música alheia ao seu universo doméstico, porque viajam (também) por outras disciplinas em busca de teorias externas para fundamentar os seus estudos e porque ousam (também) transmutar a sua própria identidade ao adotar práticas de investigação partilhada como método para a produção de conhecimento. Neste último caso, os etnomusicólogos e as etnomusicólogas arriscam compartilhar pesquisas sobre músicas de interesse comum com sujeitos não académicos, promovendo o mimetismo entre diferentes identidades pessoais e, assim, defendendo uma produção de conhecimento que entendem ser mais democrática, mais ecológica e socialmente transformadora. Os etnomusicólogos e as etnomusicólogas habitam, portanto, um espaço de permanente impermanência, em função do objeto que estudam, das teorias que adotam e dos métodos que praticam. É sobre este estado de movência - que nos coloca num lugar instável, transitório e itinerante, e cuja elasticidade nos conduz frequentemente a questionar o próprio nome sob o qual nos identificamos, a etnomusicologia - que este artigo procura refletir2 2 Este texto é uma versão revista e ampliada da conferência de abertura que proferi no XIV Congresso da Sociedad de Etnomusicologia (SIBE), que decorreu em Madrid a 9 de outubro de 2016. Na altura, tal como hoje, vivia já uma profunda inquietação em relação ao modo como debaixo da classificação “etnomusicologia” se guarda uma multiplicidade de realidades em permanente movimento que, de alguma forma, tornam quase obsoleto o nome da disciplina com o qual nos fazemos representar. Também por essa razão, entendi que seria oportuno publicar este texto num número de homenagem a Steven Feld, cujos textos mais recentes oferecem alternativas pertinentes ao que designa por pós-etnomusicologia. .

Este texto foi organizado em quatro partes. Na primeira, que denomino por “movimento conceptual”, procuro partilhar as minhas próprias inquietações e as minhas viagens de interlocução com os textos para pensar os conceitos de movimento e de movência aplicados à produção de conhecimento em etnomusicologia. Coloco em diálogo o princípio da desclassificação, proposto por Antonio García Gutiérrez (2007García Gutiérrez, Antonio. (2007). Desclasificados: pluralismo lógico y violencia de la clasificación. Barcelona: Anthropos.), com o conceito de movência, de Paul Zumthor (1972Zumthor, Paul. (1972). Essai de poétique médiévale. Paris: Édictions du Seuil., 1977Zumthor, Paul. (1977). Médiéviste ou pas. Poétique, 31, p. 306-321. ). Na segunda parte, “movimento do objeto”, e na terceira, “movimento da teoria”, concentro-me em discutir a maneira como as músicas e os sons que estudamos nos fazem sair do nosso próprio território disciplinar e invadir os dos outros. Nestas duas partes, utilizarei a minha própria experiência de trabalho de campo com a música em Goa, Índia, a que me dedico desde 1987. A quarta parte refere-se ao “movimento da prática” e tentarei mostrar como as práticas de investigação partilhada (Sardo, 2018Sardo, Susana. (2018). Shared research practices on and about music: toward decolonising colonial ethnomusicology. In: Martí, Josep & Revilla Gútiez, Sara (eds.). Making music, making society. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, p. 217-238., 2020Sardo, Susana. (2020). Práticas de investigação partilhada ou como interpelar as fronteiras disciplinares em música. A perspetiva da etnomusicologia face ao ensino e à educação. In: Boal-Palheiros, Graça & Boia, Pedro S. (orgs.). Desafios em educação musical. Porto: CIPEM/INET-md / ESE-P.PORTO, p. 143-159.), cada vez mais disseminadas pela disciplina, contribuem para aumentar a nossa condição de sujeitos itinerantes e, consequentemente, como podem propiciar a nossa própria extinção, já preconizada por Steven Feld quando sugere a fundação da acustemologia como alternativa disciplinar (e disciplinante) à etnomusicologia (Feld, 2020Feld, Steven. (2020). Alternativas pós-etnomusicológicas: a acustemologia. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10/2, p. 193-210.).

Quero ainda clarificar que sempre que uso o termo etnomusicologia me refiro a uma designação disciplinar cuja história está sintetizada em trabalhos publicados por Bruno Nettl e Philip Bohlman (1991Nettl, Bruno & Bohlman, Philip V. (1991). Comparative musicology and anthropology of music: essays on the history of ethnomusicology. Chicago: University of Chicago Press .), Helen Myers (1992Myers, Helen (ed.). (1992). Ethnomusicology: an introduction. Nova York: WW Norton & Company. (The Norton/Grove Handbooks in Music).) e Timoty Rice (2014Rice, Timothy. (2014). Ethnomusicology in times of trouble. Yearbook for Traditional Music, 46, p. 191-209.), entre outros, ou documentada através de textos matriciais na coletânea de fac-símiles reunida por Kay Kaufman Shelemay (1992Shelemay, Kay Kaufman. (1992). Ethnomusicology: history, definitions, and scope: a core collection of scholarly articles. Nova York: Routledge.). Todos reiteram uma história unilinear e totalizante que parece conferir legitimidade apenas a uma linhagem disciplinar, aquela cujo nome, etnomusicologia, terá sido atribuído pela primeira vez pelo holandês Japp Junst em 1950, embora saibamos que já em 1928 o musicólogo e etnógrafo ucraniano Klyment Kvitka (1880-1953) o utilizou e teorizou numa perspetiva disciplinar e diferenciadora, referindo-se a um campo de estudos “dedicado às obras musicais da oralidade (canções folclóricas em si mesmas, obras instrumentais em si mesmas), em contraste com a etnografia musical, que analisa a tradição oral no seu contexto cultural, e em contraste com a musicologia, que estuda a música escrita-composta” (Dahlig, 2009Dahlig, Piotr. (2009). The use of the term “ethnomusicology” in Ukraine and Poland between 1928 and 1939. Muzyka, 54/1(212), p. 51-56.: 51, tradução nossa)3 3 No original: “devoted to oral musical works (folk songs by themselves, instrumental works by themselves), in contrast to music ethnography, which examines the oral tradition in its cultural context, and in contrast to musicology, which studies written-composed music”. . Outras fontes demonstram que até à década de 1950 o termo se tornou extremamente comum em diferentes países da Europa Central, sempre numa perspetiva distintiva em relação aos estudos de folclore, por um lado, e à musicologia histórica, por outro (Lukaniuk, 2010Lukaniuk, Bohdan. (2010). On the history of the term “ethnomusicology”. FOLKLORICA, 15, p. 129-154.).

Este detalhe sobre a história do termo etnomusicologia é bem demonstrativo do modo como continuamos a historiografar a disciplina, reiterando as condições de privilégio institucional a que apenas alguns protagonistas conseguiram aceder4 4 Refiro-me ao facto de Jaap Kunst ter sido membro do Executive Board do IFMC (International Folk Music Council, hoje International Council for Traditional Music) de 1947 até 1958, quando se tornou presidente. Foi neste papel de grande relevância institucional e internacional que publicou, em 1950, pelo Indisch Institut de Amesterdão, o texto Musicologica: A study of the nature of ethno-musicology, its problems, methods and representative personalities que lhe viria a dar o ónus da autoria do designativo “etno-musicologia”. No livro comemorativo dos 70 anos do ICTM, Wim van Zanten (2022: 76, tradução nossa) refere-se a este texto como “a primeira vez que o campo de estudo foi descrito numa grande publicação como ‘etno-musicologia’, mais tarde escrito como etnomusicologia” (no original: “the first time that the field of study was described in a major publication as ‘ethno-musicology’, later spelled as ethnomusicology”). . Revela, ainda, que existem seguramente outras histórias, cujos caminhos, embora tenham permanecido nas margens das narrativas hegemónicas, fecundaram outros universos igualmente válidos. É provável que a singularidade da etnomusicologia esteja justamente na sua pluralidade e nos modos diversos como diferentes sujeitos, escolas e orientações produziram e produzem conhecimento em seu nome5 5 No Brasil, e noutros países da América do Sul - em alguns contextos já designada por “Améfrica”, vide a este propósito o livro póstumo de Lélia Gonzalez (2020), organizado por Flávia Rios e Márcia Lima -, temos vindo a assistir desde a década de 2000 ao crescimento de outras formas de entender a etnomusicologia que divergem da linha matricial acima identificada. Trata-se de uma etnomusicologia engajada, militante, politicamente comprometida que pugna pelo repensar do posicionamento académico convencional em favor de princípios de desvinculação epistemológica e de pendor contra-hegemónico. Frequentemente, a música e/ou o som ficam reduzidos a argumentos fugazes em prol de causas maiores de intervenção social, embora não abandonem a sua filiação à etnomusicologia. Este dado é revelador da elasticidade do termo e das suas fronteiras disciplinares. . É igualmente provável que a etnomusicologia se defina pelo seu permanente estado pré-paradigmático ou revolucionário de crise, como diria Thomas Kuhn (1970Kuhn, Thomas S. (1970). The structure of scientific revolutions. Chicago: University of Chicago Press.), e, nesse sentido, nunca chegará a ser uma verdadeira disciplina; ou que estejamos já, como sustenta Steven Feld (2020Feld, Steven. (2020). Alternativas pós-etnomusicológicas: a acustemologia. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10/2, p. 193-210.), na era pós-etnomusicologia. Talvez esta condição de inconstância constitua o efetivo motor da sua vitalidade, essa busca incessante por um verdadeiro perfil científico que a obriga a um estado de permanente movimento e, frequentemente, de contradição. É com base nestes pressupostos que proponho uma viagem pelas diferentes condições de movimento a que estamos expostos e expostas enquanto representantes deste domínio de estudo que (ainda) designamos por etnomusicologia.

MOVIMENTO CONCEPTUAL

Começo com uma pergunta: quais as ameaças e as vantagens do movimento quando se trata de pensar uma disciplina como a etnomusicologia?

Uma preocupação dominante que acompanhou a consolidação disciplinar da etnomusicologia ocidental foi a busca do rigor conceptual. Embora este rigor seja mais um desejo do que uma meta alcançada, o exercício de busca conduziu a um clima académico muito saudável e fecundo, alicerçado na dúvida, no diálogo interdisciplinar e na procura incessante por um lugar digno para a disciplina no seio da academia e, ao mesmo tempo, na sociedade. Porém, a incapacidade de produzir classificações objetivas e estáveis para os objetos e processos de interesse etnomusicológico tem gerado um desconforto visível, por exemplo, nas tentativas de substituir o designativo “música” por outros, como os de comportamento expressivo, prática performativa ou mesmo som. Este desconforto é também visível na adoção de outras formas de nomear os fenómenos através do uso de uma infinita constelação de palavras prefixadas, que, em todos os casos, são sintomas de profunda instabilidade e de um permanente estado de mudança. Prefixos como “re”, “des”, “in”, “trans”, “pós”, frequentemente articulados com os sufixos “ção” ou “ade” - como ressignificação, recontextualização, despolitização, desterritorialização, transvocalização, pós-colonialidade ou pós-disciplinaridade -, têm vindo a conquistar um lugar cada vez mais forte nos nossos discursos.

Estou ciente de que este processo não é exclusivo da etnomusicologia. No entanto, este uso da criatividade aplicado à construção lexical convém-nos particularmente e baseia-se na convicção, demonstrada ao longo de anos de pesquisa, segundo a qual a itinerância, o trânsito e a mobilidade são comuns aos fenómenos de interesse etnomusicológico. Talvez por essa razão tenhamos aprendido muito cedo que o exercício de classificar a música é complexo. Confrontamo-nos permanentemente com a dificuldade de definir designativos sem os quais não podemos operar, como os de género musical, musicalidade, estilo musical ou dança. E percebemos que sempre que tentamos organizar o nosso sistema de classificação, duas coisas podem acontecer: 1) optamos por definições tão genéricas que perdem a especificidade - como é o caso da expressão “comportamento expressivo” para substituir a complexa palavra música - ou 2) ocultamos conhecimento.

A proposta de entender a classificação como um mecanismo de ocultação de conhecimento está presente em toda a obra de António García Gutiérrez e foi sintetizada nas primeiras linhas de seu livro: Desclasificados: Pluralismo Lógico y la violencia de la clasificación (García Gutiérrez, 2007García Gutiérrez, Antonio. (2007). Desclasificados: pluralismo lógico y violencia de la clasificación. Barcelona: Anthropos.). García Gutiérrez foi professor de comunicação da Universidade de Sevilha e crítico transdisciplinar em áreas como a epistemologia da documentação, comunicação, memória e conhecimento e entende a classificação como uma “operação aparentemente neutral e totalmente quotidiana mediante a qual deciframos o mundo, localizamos os outros e nos relacionamos com eles” (García Gutiérrez, 2007García Gutiérrez, Antonio. (2007). Desclasificados: pluralismo lógico y violencia de la clasificación. Barcelona: Anthropos.: 8, tradução nossa)6 6 No original: “operación aparentemente neutral y plenamente cotidiana mediante la cual desciframos el mundo, ubicamos a los demás y nos relacionamos con ellos”. . Explica esta operação a partir das seguintes premissas:

[…] conhecemos mediante uma ação classificatória. O mundo sob esta premissa não seria mais do que o resultado de uma operação de ordenação urdida, em primeira instância, pela cultura e pela linguagem. Classificar tem, de entre muitas acepções, uma aparentemente perversa e paradoxal: a de ocultar conhecimento. O seu contrário, a desclassificação, significaria, consequentemente, o seu desvelamento (García Gutiérrez, 2007García Gutiérrez, Antonio. (2007). Desclasificados: pluralismo lógico y violencia de la clasificación. Barcelona: Anthropos.: 5, tradução nossa)7 7 No original: “[…] conocemos mediante una acción clasificatoria. El mundo bajo esta premisa no sería más que el resultado de una operación de ordenación urdida, en primera instancia, por la cultura y el lenguaje. Clasificar tiene, entre sus muchas acepciones, una perversa y de apariencia paradójica: ocultar conocimiento. Su contraria, la desclasificación, significaría, consecuentemente, su desvelamiento”. .

Porém, o exercício de desclassificação conduz-nos inevitavelmente à reclassificação, e, consequentemente, faz-nos incorrer numa contradição: para desclassificar é preciso classificar. A superação deste exercício helicoidal, aparentemente infinito e de perigosa tendência essencialista, só é possível se pensarmos que cada entidade é mais do que uma coisa. García Gutiérrez refere-se a esta última ideia como uma estratégia de extensão ontológica ou identitária. Nas suas palavras: “uma instância não somente é, ela é também” (no original: “una instancia no solo es, es también”) ( García Gutiérrez, 2013García Gutiérrez, Antonio. (2013). La organización del conocimiento desde la perspectiva poscolonial: itinerarios de la paraconsistencia. Perspectivas em Ciência da Informação, 18/4, p. 93-111.: 107, tradução nossa). A elasticidade dessa ambivalência é tanto maior quanto mais variáveis forem incorporadas ao mecanismo de classificação. O lugar de enunciação, por exemplo, a partir do qual o conhecimento é questionado e classificado, pode - in extremis - transformar o ser em não ser e, assim, anular o direito de existir. Por exemplo, todos nós estamos familiarizados com a maneira pela qual a recitação do Corão desclassifica o que é classificado como música. A recitação das palavras de Alá, reveladas a Maomé e contidas no Corão, recorre a tipos melódicos designados por “maqam” e que estão na base teórica da al-musiqa al-‘arabiya (a música árabe). Todavia, a conotação a comportamentos violadores dos princípios religiosos a que a música está associada em países islâmicos e, em particular, naqueles de perfil fundamentalista, onde está inclusivamente proibida, faz com que a recitação do Corão, apesar do uso das mesmas estruturas da música árabe, não seja considerada música. Neste caso, como argumentaria García Gutiérrez, a mesma instância é e não é música.

No que diz respeito aos processos que estudamos, a procura do rigor conceptual faz-nos frequentemente deslizar para proposições essencialistas - que tanto criticamos -, quando nos refugiamos em conceitos que aparentam explicar os fenómenos. Categorias classificatórias como hibridismo, sincretismo, ambivalência, transplante e circulação - às quais voltarei mais adiante - são hoje frequentes nos discursos em etnomusicologia porque tendemos a observamos os fenómenos a partir de um lugar fixo, imaginando que só eles se movem e que o seu movimento pode ser igualmente fixado, estabilizado no tempo. Por essa razão, a ideia de movimento (mouvance), proposta e teorizada sobretudo por Paul Zumthor (1972Zumthor, Paul. (1972). Essai de poétique médiévale. Paris: Édictions du Seuil.), é tão estimulante para avaliar a nossa condição de etnomusicólogos e etnomusicólogas e a forma como nos situamos enquanto agentes de produção de conhecimento.

Zumthor (1972Zumthor, Paul. (1972). Essai de poétique médiévale. Paris: Édictions du Seuil.) explica o conceito de mouvance através do que designa por “intervocalidade da poesia medieval” (em contraste com a intertextualidade) e a instabilidade intrínseca dos textos escritos, em relação à sua enunciação oral. De acordo com sua proposta, a rede de vocalidades gerada pela performance e pela transmissão oral de textos não produz mudanças apenas nas novas formas escritas desses mesmos textos, mas também gera “incessantes variações recriadoras” (Zumthor, 2007Zumthor, Paul. (2007). Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify.: 65). Ao invés de ser entendido como uma mudança na norma, este fenómeno é um processo dinâmico, voluntário e desejável: a tradição estipula, neste caso, que a transmissão seja um ato efetivo de performance, tatilidade e copresença das diferentes vozes, corpos e sonoridades, onde “aquele que diz e quem escuta estão igualmente associados” (Zumthor, 1972Zumthor, Paul. (1972). Essai de poétique médiévale. Paris: Édictions du Seuil.: 70). O evento da performance dilui o autor e confere autoridade aos agentes da transmissão. Nesse momento, ocorre uma espécie de suspensão do presente e a memória invoca o que precisa ser vocalizado ou incorporado para que possa ser transmitido/enunciado em ação. Embora esse processo seja mediado por um texto escrito, ele apenas fixa os signos cuja existência está cativa da sua vocalização. O texto é movência em si mesmo: “O texto é movência: fragmento de si mesmo, mutabilidade fundamental que apenas dissimula uma máscara de organicidade” (Zumthor, 1977Zumthor, Paul. (1977). Médiéviste ou pas. Poétique, 31, p. 306-321. : 319, tradução nossa)8 8 No original: “Le texte est mouvance: fragment de soi et jamais le même, mutabilité fondamental que camoufle à peine un masque d’organicité”. . A movência, portanto, nunca pode ser nula.

Como pensar a etnomusicologia a partir da intersecção entre o princípio da desclassificação (uma instância é e também pode não ser) com o conceito de movência (uma instância é sempre movimento)?

A etnomusicologia foi e continua a ser uma disciplina em permanente movimento, embora, ao longo da sua história, vários autores e teóricos tenham produzido diferentes tentativas de a definir, o que em sentido estrito significa torná-la finita (definitiva) ou (de)terminada. No entanto, todas as tentativas de definição da etnomusicologia geraram sucessivos e fecundos debates que conduziram à sua reclassificação e, consequentemente, ampliaram o seu espectro de interesse, os seus modos de ação e os seus agentes de interlocução. Vivemos, portanto, num estado permanentemente provisório, porque conseguimos gerar uma disciplina que é também o meio de sua própria transformação. Consequentemente, a etnomusicologia é movência e, nesse sentido, a sua existência define-se por um permanente refazer. Seria muito arriscado pensar que essa condição está diretamente associada às particularidades dos objetos/universos estudados?

MOVIMENTO DO OBJETO

Como sustenta Elizabeth Travassos (2008Travassos, Elizabeth. (2008). Um objecto fugidio: voz e “musicologias”. In: Matos, Claudia Neiva de; Travassos, Elizabeth & Medeiros, Fernanda Teixeira de (orgs.). Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 99-123.), quando se refere à voz, trabalhamos com uma matéria fugidia: a música. A sua presença, de perfil eminentemente oral e temporário, está cativa do acontecimento e, por isso, tem uma existência evasiva e intermitente. Quando o acontecimento cessa, a realidade vivida nunca pode ser replicada, embora possa gerar novos acontecimentos. Essa condição oral e temporal da música conduziu a tentativas desesperadas de a capturar, utilizando diversos dispositivos de gravação, ou seja, de fixação do acontecimento. Tentamos com a transcrição partitográfica - que até hoje continua a gerar múltiplos debates -, com a gravação do som em suportes cada vez mais sofisticados e supostamente confiáveis, com a etnografia e com a videografia. De facto, todas estas operações encerram um verdadeiro paradoxo: tentamos fixar o objeto como forma de o tornar evidente (literalmente visível) e, no entanto, defendemos que o movimento é a condição da sua existência. O objeto, no caso da música, é infixável, porque, ao tornar-se imóvel (sem movimento), deixa de existir, ou, como diria García Gutiérrez (2013García Gutiérrez, Antonio. (2013). La organización del conocimiento desde la perspectiva poscolonial: itinerarios de la paraconsistencia. Perspectivas em Ciência da Informação, 18/4, p. 93-111.) fica “esclerosado”.

O que podemos fazer, então, para validar o movimento das músicas como conhecimento efetivo, sem as esclerosar? A minha proposta consiste em compreender que a aparente fragilidade da característica movente do que designamos como música é, na realidade, uma virtude. Se analisarmos a importância dessa característica das músicas na organização de alguns processos sociais, talvez possamos libertá-las do status de saber ingénuo, ilegítimo ou irrelevante, como apontaram Foucault (1969Foucault, Michel. (1969). L’archéologie du Savoir. Paris: Gallimard.) Conquergood (2002Conquergood, Dwight. (2002). Performance studies: interventions and radical research. The Drama Review, 46/2, p. 145-156.) ou Boaventura de Sousa Santos (2007Santos, Boaventura de Sousa. (2007). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, p. 3-46.), respetivamente, quando se referem ao modo como a visão racionalista e fragmentária do conhecimento, de base escriptocêntrica, hierarquizou os diferentes saberes.

Sustento este argumento em algumas evidências acumuladas ao longo de mais de 30 anos de investigação sobre música, pós-colonialismo e pós-memória, em particular sobre a relação entre Portugal e a Índia. A primeira evidência está associada à extrema portabilidade da música. Por exemplo, se pensarmos na palavra cantada, fica claro que o movimento da música é inerente ao movimento do arquivo individual de cada sujeito. A música não ocupa espaço na bagagem, ela viaja com os seus detentores, e para isso a memória e a capacidade de a invocar e reproduzir são mais do que suficientes para a transportar e a manter viva. Isso explica, por exemplo, o modo como alguns repertórios cantados em português ou relacionados com práticas registadas em Portugal desde o século XVI foram incorporados noutros repertórios que encontramos em todos os enclaves de base colonial portuguesa na Índia, em Macau, ou em Malaca, entre muitos outros lugares do mundo onde a desastrosa história colonial deixou o seu rasto. O contexto ou os processos que explicam a viagem desses repertórios, embora sejam de elevada pertinência, não são importantes para o meu argumento. O importante, neste caso, é constatar que, apesar da distância geográfica e temporal, foi possível fazer viajar modos de cantar e de musicar que hoje fazem parte de repertórios locais, distribuídos por diferentes territórios da Ásia e pelas suas diásporas (Sardo, 2010Sardo, Susana. (2010). Guerras de Jasmim e Mogarim: música, identidade e emoções em Goa. Alfragide: Texto. (Músicas, vol.º2)., 2011Sardo, Susana. (2011). “Proud to be a Goan”. Colonial memories, post-colonial identities: music and goan diaspora. In: Migrações: Revista do Observatório Nacional para a Imigração, 7, p. 57-72.).

Os corpos que construíram os impérios não são os mesmos que agora devolvem às ex-metrópoles os repertórios que se consolidaram a partir desse movimento ancestral das músicas e dos modos de musicar. Nem os motivos pelos quais as músicas acompanham hoje os circuitos de torna-viagem são os mesmos. Em muitos casos - como é o de Goa -, a música foi usada pelo colonizador como um dispositivo de catequização, de conversão e de transformação dos outros em sujeitos parecidos consigo. Esse processo, porém, não ocorreu sem resistências e conduziu à criação de repertórios semelhantes aos do colonizador, mas que, no entanto, não são os mesmos. Eles guardam a história desse jogo de opressão e resistência e, por isso, são tão importantes nos modos de identificação das comunidades que os reclamam como seus e que se sentem representadas por eles. Talvez por isso não seja surpreendente que num quadro de pós-memória - descrito por Marianne Hirsch (2008Hirsch, Marianne. (2008). The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. Nova York: Columbia University Press.: 106) como a relação que os sujeitos estabelecem com a memória dos seus antepassados, incorporando experiências emocionalmente marcantes que não viveram, mas que lhes foram contadas - esses repertórios se mantenham vivos e que protagonizem hoje, em Goa e na diáspora, formas de identificação que, supostamente, deveriam ser abandonadas como expressão do ressentimento colonial. No entanto, eles não só definem parte da cena musical em Goa como acompanham os fluxos diaspóricos, desenhando um rasto sonoro em permanente movimento e movência.

Esse tipo de movimento necessita de pouquíssimos recursos: apenas a memória, a experiência e a capacidade performativa dos sujeitos em trânsito. Mas o que importa salientar é o valor da música como bagagem voluntária, ou seja, algo que se transporta deliberadamente. Dificilmente alguém inclui na bagagem algo que não tenha um efetivo valor de uso (seja ele opressivo ou libertador). A música como acervo, ou seja, como repositório de memórias, adquire frequentemente o valor de superação das ausências quando os corpos que as armazenam e transportam enfrentam a violência da deslocalização. Invocar o catálogo musical armazenado na memória individual dos sujeitos deslocados - genericamente designados por migrantes - não é apenas uma forma de rememorar o que foi vivido por si ou pelos seus antepassados, mas também uma forma de regular a sua reprodução intergeracional, de demarcação contra a hostilidade do lugar que lhes é estranho e, como Ana Cristina Almeida (2013Almeida, Ana Cristina de Oliveira. (2013). Nós há de morrer… Óss tem de cantar! Música, memória e imaginação em Damão. Trânsitos pós-coloniais. Tese de Doutorado. Departamento de Comunicação e Arte/Universidade de Aveiro.) refere em relação à situação dos imigrantes de Damão em Inglaterra, de construção de um lugar que “soa a casa”.

Nenhum destes processos - reprodução, demarcação e construção - é possível sem o acontecimento musical e a capacidade de entendimento intersubjetivo. E aqui invoco a segunda evidência sobre o valor da característica movente da música: a sua agencialidade. Na verdade, o acontecimento musical não existe per se, ou seja, ele é sempre convencionado e materializado por sujeitos que o endereçam a outros sujeitos. Interessa-me, neste caso, os itinerários da música quando o titular do acervo aciona a performance musical, pública e intencionalmente, para demonstrar a sua existência e a sua diferença em situação de deslocalização. Sabemos que esse tipo de uso da música é arriscado. Nesse sentido, quando os sujeitos ou grupos deslocados recorrem a ele, muitas vezes o fazem como estratégia de sedução, com a finalidade de chegar a um acordo de entendimento estético com os outros e, assim, garantir um lugar para a sua diferença. A música (e a dança) são geralmente as instâncias mais bem equipadas para este tipo de agenciamento. Ambas podem fazer coincidir sensibilidades e consumar a interlocução sem que o conhecimento sobre elas seja necessariamente comum9 9 Retomo um exemplo ao qual recorro frequentemente para explicar este argumento: brasileiros e portugueses podem deliciar-se durante 40 minutos a escutar e desfrutar de um concerto de música vocal hindustânica, mas seria uma verdadeira provação escutar o mesmo texto cantado se fosse recitado em hindi. . Este argumento converge com a proposta de Steven Feld, quando advoga a importância da copresença e da coexperiência na ontologia relacional dos atos de soar e escutar para explicar a acustemologia. De acordo com Feld (2020Feld, Steven. (2020). Alternativas pós-etnomusicológicas: a acustemologia. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10/2, p. 193-210.: 197), a ontologia relacional assenta no princípio conceptual segundo o qual “a existência substantiva nunca precede a relacionalidade”. E embora sustente a acustemologia com base numa experiência de relacionalidade com entidades não humanas ou mesmo não viventes, a sua proposta é ainda mais instigante quando, ao definir o ato de soar como “maneiras de co-habitar escutando” (Feld, 2020Feld, Steven. (2020). Alternativas pós-etnomusicológicas: a acustemologia. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10/2, p. 193-210.: 199), permite a sua aplicação a situações nas quais o som é entendido como música, quer por aqueles que a performam, quer por quem a recebe e a quem os primeiros intencionalmente a dirigem. Diz-nos Feld (2020Feld, Steven. (2020). Alternativas pós-etnomusicológicas: a acustemologia. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10/2, p. 193-210.: 199) que “A acustemologia prioriza histórias de escuta e sintonização através das práticas relacionais (e reflexivas) de escutar e soar”.

Ora, a minha experiência na análise de situações de performance musical de repertórios itinerantes, transportados desde o lugar de origem por grupos de migrantes em situação de deslocamento, demonstra a importância vital dessas performances na promoção de ações de relacionalidade e de entendimento das diferenças, bem como garante do direito à existência dos seus performers. Mas isto só acontece quando o ato de soar e escutar promove uma “sintonização através de práticas relacionais” (Feld, 2020Feld, Steven. (2020). Alternativas pós-etnomusicológicas: a acustemologia. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10/2, p. 193-210.), o que justifica o modo como práticas musicais performadas por músicos indianos, cabo-verdianos, brasileiros e goeses, entre muitos outros, entraram no nosso quotidiano e são hoje desempenhadas por portugueses, brasileiros, ingleses e outros músicos e musicistas que as adotam como suas.

Quando as músicas conseguem gerar esse tipo de entendimento intersubjetivo - literalmente se estendem -, é possível que a terceira evidência da característica movente da música seja ativada: a sua permeabilidade. Há muito tempo que a etnomusicologia alertou sobre a impossibilidade de classificar a música com base numa cartografia geográfica ou numa eventual “essência morfológica” que separa e define distintas ontologias. De facto, apesar das diferentes teorias sobre as quais as músicas aparentemente distintas são construídas, há uma dimensão osmótica que subverte a teoria em favor de uma prática de transvocalidade. As teorias das diferentes músicas são formas de organização cosmética da mesma matéria, ordenadas pelo modo como diferentes sujeitos, em lugares e momentos da história igualmente diferentes, lhes conferem sentido. Por isso, conceitos como hibridismo, sincretismo, fusão ou world music nada mais fazem do que replicar uma visão profundamente essencialista, porque concebem implicitamente a existência de formas não contaminadas de música. E na realidade, a contaminação é, no caso da música, a condição inerente à sua vitalidade, ou seja, à sua movência. A música é contaminação e gera contaminação.

Como podemos entender estes processos a partir da etnomusicologia? Podemos explicar o movimento da música a partir da disciplina com a qual nos identificamos e que representamos? Neste ponto, interpelo a nossa orientação teórica em direção a uma questão que, creio, nos preocupa a todos e a todas: será a etnomusicologia um domínio independente de conhecimento?

MOVIMENTO DA TEORIA

A etnomusicologia, como muitos e muitas de nós já sinalizámos em algum momento, não tem uma teoria própria. Construímos uma disciplina sem realmente a disciplinar - no sentido em que não lhe conferimos uma capacidade recursiva. O que fazemos é transitar pelas propostas teóricas de outras disciplinas e aplicá-las ou adaptá-las aos nossos universos de interesse. Esse processo consolidou-se ao longo da nossa história disciplinar e, de alguma forma, naturalizou-se como uma rotina. Timothy Rice (2010Rice, Timothy. (2010). Disciplining ethnomusicology: a call for a new approach. Ethnomusicology, 54/2, p. 318-325. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.5406/ethnomusicology.54.2.0318 >. Acesso em 16 nov. 2022.
https://doi.org/10.5406/ethnomusicology....
) refere-se a ele de forma muito amarga quando, em 2010, assinala a pouca atenção dada pelos etnomusicólogos e pelas etnomusicólogas aos textos produzidos no seio da própria disciplina, quando se trata de discutir questões conceptuais. Rice destaca que, de entre os 16 artigos que analisou sobre música e identidade, publicados na revista Ethnomusicology entre 1982 e 2010, nenhum recorreu a referenciais teóricos da etnomusicologia, e retoma o argumento sobre a fraqueza estrutural da disciplina, “[…] uma fraqueza estrutural na nossa disciplina que diminui a eficácia da nossa pesquisa em geral e limita o potencial da etnomusicologia, pelo menos na sua versão americana, enquanto contribuição poderosa para os estudos em música” (Rice, 2007Rice, Timothy. (2007). Reflections on music and identity in ethnomusicology. Muzikologija, 7, p. 17-38.: 37, tradução nossa)10 10 No original: “[…] a structural weakness in our discipline that diminishes the efficacy of our research in general and limits the potential of ethnomusicology, at least in its American form, to make a powerful contribution to scholarship on music”. .

É certo que a etnomusicologia transporta uma herança transdisciplinar. Como sabemos, os seus fundadores provêm de outros domínios do saber, em certa medida alheios à etnomusicologia e filiados, sobretudo, às ciências exatas ou naturais. Essa transdisciplinaridade foi ampliada com a aproximação da etnomusicologia às ciências humanas, incrementando a nossa capacidade de diálogo. Mas, de certa forma, essa aproximação dissolveu a nossa especificidade: hoje não sabemos mais distinguir a etnomusicologia da antropologia da música, ou se a condição de músico ou musicista é previamente determinante para que um investigador ou uma investigadora se possa dedicar à etnomusicologia. Sabemos, porém, que nenhum de nós iniciou a sua vida académica sabendo que queria dedicar-se à etnomusicologia. Todos nós descobrimos a etnomusicologia no meio de nossos estudos de música, musicologia, antropologia, sociologia, linguística, história, psicologia ou engenharia. E decidimos fazer parte da cena etnomusicológica porque de alguma forma ela nos permite defender algo em que todos e todas acreditamos verdadeiramente: a importância social da música. Por outras palavras, a nossa história individual como etnomusicólogos e etnomusicólogas reitera de alguma forma a história da disciplina que buscamos representar e reforçar: uma história construída sobre uma forte interceção de saberes e consolidada a partir de contribuições teóricas emanadas de outras disciplinas. Identificamo-nos como etnomusicólogos e etnomusicólogas mas, na verdade, não é fácil saber o que nos distingue de outros investigadores e investigadoras igualmente interessados/as na música.

Também é verdade que, no interior da cena etnomusicológica, nos lamentamos frequentemente, reclamando que o conhecimento que produzimos se esgota no interior da própria etnomusicologia. Por outras palavras, embora sejamos altamente permeáveis a outras disciplinas, não conseguimos contaminá-las através da nossa produção. A que se deve essa assimetria? Sobretudo ao facto - insisto - de não produzirmos a nossa própria teoria. O que realmente alimenta o nosso movimento interdisciplinar - ou o nosso diálogo transdisciplinar - é a busca por suportes teóricos que tomamos emprestados para sustentar o nosso conhecimento. Pela mesma razão, outras disciplinas também se dedicam ao estudo da música sem a necessidade de contato com a etnomusicologia.

Esta situação é frequentemente incomodativa. De alguma forma, ela faz-nos sentir que os outros invadem o nosso território e nos roubam o nosso objeto como se apenas os etnomusicólogos e as etnomusicólogas tivessem legitimidade para estudar a música. Além disso, ampliámos o nosso espectro de interesse de tal forma que passámos a estudar todas as músicas, e não conseguimos distinguir que tipos de música são específicos do nosso domínio de estudo - como fizeram Eric von Hornbostel, Charles Seeger ou Jaap Kunst (ver Shelemay, 1992Shelemay, Kay Kaufman. (1992). Ethnomusicology: history, definitions, and scope: a core collection of scholarly articles. Nova York: Routledge.) nas suas propostas para a definição de etnomusicologia. Em certo sentido, a etnomusicologia desde Merriam (1964Merriam, Alan P. (1964). The anthropology of music. Evanston: Northwestern University Press.) desclassificou a música que estudamos ao defini-la como cultura. Hoje já não a organizamos em categorias particulares pois consideramo-la uma instância global, presente em todas as comunidades, lugares e não lugares. Essa abertura de alguma forma criou um novo problema: estamos realmente a estudar a música? A verdade é que progressivamente deixamos de estudar música para nos dedicarmos a estudar os processos que a geram ou que são gerados por ela, sob o argumento de que música é tudo.

Como sugere Bruno Nettl (1983Nettl, Bruno. (1983). The study of ethnomusicology: twenty-nine issues and concepts. Champaign: University of Illinois Press.), o etnomusicólogo é um glutão: tende a estudar tudo o que envolve música sob as mais diversas perspetivas. Mas o etnomusicólogo também é um glutão, acrescento eu, porque se reconhece como autoridade para decidir sobre a relevância ou não dos diferentes fenómenos relacionados com a música. A consciência desse excesso de autoridade - de perfil claramente hegemónico e egocêntrico - fez-nos repensar as nossas práticas de pesquisa sensivelmente desde a viragem do milénio e, em particular, o nosso lugar como académicos, investigadores e agentes sociais. Esse processo gerou um novo tipo de movimento, agora associado à nossa condição de investigadores e investigadoras e ao nosso compromisso político e social. E assim me aproximo do último ponto deste texto: o movimento da prática.

O MOVIMENTO DA PRÁTICA OU A ETNOMUSICOLOGIA PROGRESSISTA

Assistimos, desde o início do novo milénio, a mudanças significativas nos modos de fazer etnomusicologia, ou seja, nas suas práticas. Essas mudanças resultam fundamentalmente de duas circunstâncias. A primeira é consequência do esgotamento dos lugares académicos para milhares de etnomusicólogos e etnomusicólogas, cuja formação universitária está invariavelmente orientada para uma carreira de investigação. Este fenómeno obrigou a etnomusicologia a adaptar-se a outros perfis profissionais que não priorizam a investigação, o que Klisala Harrison (2014Harrison, Klisala. (2014). The second wave of applied ethnomusicology. MUSICultures: Journal of the Canadian Society for Traditional Music, 41/2, p. 15-33.) designa por “a segunda onda da etnomusicologia”. A segunda decorre de uma preocupação por parte dos etnomusicólogos e das etnomusicólogas - seguindo a tendência de outras ciências sociais e humanas - de oferecer ao seu trabalho uma importância social e humanitária. É neste aspeto que agora me detenho.

Para os etnomusicólogos e as etnomusicólogas que se dedicam à investigação académica, duas questões são agora centrais na procura de um novo sentido para a disciplina:

  • (1) Que tipo de benefício retiram os músicos, ou outros sujeitos constituídos como objetos de estudo em pesquisas etnomusicológicas, dos trabalhos que produzimos?

  • (2) Até quando podemos continuar a usar o conhecimento sobre a música dos outros para legitimar a nossa posição como profissionais e para legitimar a própria disciplina?

Na tentativa de superar estas questões, várias versões de etnomusicologia - que tenho vindo a designar por etnomusicologia adjetivada - surgiram nos últimos anos. Refiro-me à Etnomusicologia Aplicada, à Etnomusicologia Participativa, à Etnomusicologia Colaborativa, à Etnomusicologia Dialógica, à Etnomusicologia Advocativa, à Etnomusicologia Engajada ou à Etnomusicologia Pública. As diferenças entre essas etnomusicologias não são óbvias. O que fica evidente é que todas têm em comum o uso de novas práticas de pesquisa que denomino por práticas de investigação partilhada. Essas práticas - desenvolvidas especialmente no Sul global a partir das propostas e experiências de antropólogos e educadores como o colombiano Orlando Fals-Borda ou o brasileiro Paulo Freire - refletem uma nova consciência por parte dos etnomusicólogos e etnomusicólogas de que não são seres invisíveis ou neutros durante a sua prática de investigação, como propunha a clássica etnomusicologia, mas que devem atuar ao lado de seus conselheiros/interlocutores, com os quais desenvolvem os seus estudos. E, também, que o uso da música alheia para justificar o seu lugar no mundo exige compromissos éticos que intercedam em favor dos autores e dos detentores dos saberes musicais em detrimento dos autores e dos detentores dos saberes académicos. Neste contexto, instalou-se uma nova práxis etnomusicológica (Araújo, 2008Araújo, Samuel. (2008). From neutrality to praxis: the shifting politics of ethnomusicology in the contemporary world. Musicological Annual, 44 /1, p. 13-30.) que advoga uma ação disciplinar que seja transformadora, no sentido de beneficiar os primeiros e não apenas os investigadores profissionais. A etnomusicologia adquire agora um forte sentido dialógico, ao promover uma investigação lado a lado, ou seja, com os músicos ou outros sujeitos não académicos interessados pela música, ao invés do posicionamento extrativista em que o investigador ou a investigadora se dedica a produzir conhecimento académico sobre a música dos outros11 11 No Brasil, esta forma de fazer etnomusicologia foi inaugurada em 2003 pelo grupo Musicultura, na comunidade da Maré, por iniciativa de Samuel Araújo. O trabalho do Musicultura tem inspirado muitos outros projetos em diferentes lugares do mundo, designadamente em Portugal, através do projeto Skopeofonia (Miguel et al., 2020) ou do projeto SOMA: Sons e Memórias de Aveiro (https://soma-ua.pt/). .

Frequentemente, este tipo de atuação conduz à criação de equipas de investigação que incorporam sujeitos sem experiência académica e que, juntamente com os investigadores profissionais, tomam decisões sobre os processos de investigação ou sobre a escolha dos temas de trabalho, apresentam comunicações conjuntas em conferências académicas e não académicas e escrevem coletivamente os artigos publicados em revistas da especialidade. Trata-se, portanto, de um processo progressivo de fusão dos diferentes papéis dos sujeitos envolvidos na pesquisa que gera uma verdadeira transformação em cada um deles e, idealmente, no seu contexto de atuação. Gradualmente, ocorre uma espécie de desclassificação do/a etnomusicólogo/a, e para que as assimetrias entre os sujeitos envolvidos na pesquisa possam ser diluídas, todos/as são classificados/as como investigadores/as. Em contextos socialmente mais frágeis, é cada vez mais comum a transformação do etnomusicólogo ou da etnomusicóloga numa espécie de militante/ativista/advogado/a, redirecionando as suas pesquisas em prol de causas humanitárias ou de educação política e secundarizando a música enquanto enfoque da pesquisa.

Este tipo de movimento é quase radical. Embora não seja exclusivo da etnomusicologia, os etnomusicólogos e as etnomusicólogas têm vindo a adotá-lo como forma de superar não apenas a crise dos tempos e dos lugares - como sugere Timothy Rice (2014Rice, Timothy. (2014). Ethnomusicology in times of trouble. Yearbook for Traditional Music, 46, p. 191-209.) -, mas também a crise das ciências humanas e da própria etnomusicologia. In extremis, esse tipo de movimento da prática é também um caminho para o desaparecimento dos próprios e das próprias etnomusicólogos/as e, consequentemente, da etnomusicologia, já que, ao contrário dos/as investigadores/as profissionais que nunca se poderão transformar nas pessoas que estudam - porque não têm a sua experiência incorporada e os seus saberes musicais -, estes podem, se quiserem, transformar-se em investigadores/as profissionais e, portanto, em etnomusicólogos ou etnomusicólogas. Consequentemente, parece óbvio que nos questionemos sobre o verdadeiro futuro da etnomusicologia ou, pelo menos, de uma etnomusicologia clássica, em que o investigador ou a investigadora se dedica a estudar de forma isolada e unilateral a música alheia.

MOVIMENTO FINAL

Tentei registar neste texto algumas das preocupações relacionadas com uma espécie de vertigem que sinto quando me posiciono no mundo como etnomusicóloga. Desde 1987, quando comecei a minha pesquisa para o doutoramento, tive de aprender a conviver com a presença do movimento. O tema que escolhi - estudar música em Goa - obrigou-me a transitar entre Portugal e a Índia, convidou-me a viajar no tempo para tentar compreender o incompreensível - o nosso doloroso legado colonial -, instigou-me a procurar apoio teórico noutras disciplinas para tentar solucionar os meus problemas de pesquisa, proporcionou-me o encontro com uma música ao mesmo tempo estranha e próxima de mim - a música goesa (Sardo, 2011Sardo, Susana. (2011). “Proud to be a Goan”. Colonial memories, post-colonial identities: music and goan diaspora. In: Migrações: Revista do Observatório Nacional para a Imigração, 7, p. 57-72.) - e fez-me entender que, sempre que eu aprofundava a minha pesquisa, os dados do meu arquivo conceptual, teórico e metodológico, mudavam de orientação e significado. Hoje olho para os textos que publiquei e vejo-os como uma espécie de repositórios de ausências: tudo o que dizem e tentam explicar também era verdade, mas nunca expressam a verdade total. Já não sou a mesma etnomusicóloga, ouço música de uma forma diferente, dialogo com outras disciplinas e outros autores, olho os textos com outros interesses e vou para o campo com uma atitude distinta. A etnomusicologia que faço hoje não é, com toda a certeza, a mesma que eu fazia antes. E frequentemente me pergunto se continuo de facto a fazer investigação em etnomusicologia.

Este estado de movimento é inerente à nossa condição de pessoas, e isso replica-se no conhecimento que produzimos - embora, por vezes, alimentemos a ilusão de que o conhecimento que produzimos em determinado momento é imutável. Isso só seria possível se conseguíssemos por momentos fixar o movimento, o que também nos permitiria classificar objetivamente o conhecimento. Como sustenta Antonio García Gutiérrez (2011García Gutiérrez, Antonio. (2011). Pensar en la transcultura. Madrid: Plaza y Valdés.: 82, tradução nossa):

Se para pensar necessitamos de um lugar fixo a partir do qual observamos objetos fixos, estaremos a classificar de acordo com a ordem convencional da classificação, esclerosando o mundo a partir de uma posição esclerosada. A desclassificação proporia, no entanto, uma visão tão dinámica quanto incómoda, uma vez que os objetos deveriam ser permanentemente questionados na sua quietude tal como os sujeitos que os observam12 12 No original: “Si para pensar necesitamos un lugar fijo desde el que observar objetos fijos, estaremos clasificando de acuerdo al orden convencional de la clasificación, esclerotizando el mundo desde una posición esclerotizada. La desclasificación propondría, sin embargo, una visión tan dinámica como incómoda, ya que los objetos habrían de ser tan permanentemente cuestionados en su quietud como los sujetos que los observan”. .

O movimento é, portanto, um valor acrescentado do nosso domínio de estudo e atuação. Embora seja vertiginoso, porque afeta/intercepta o objeto, a teoria e a prática, incita à desclassificação e, portanto, convida a desvelar conhecimento, convida à pluritopia e à ecologia dos saberes (Santos, 2007Santos, Boaventura de Sousa. (2007). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, p. 3-46.). Por isso, hoje alguns e algumas de nós se referem à etnomusicologia no plural - etnomusicologias -, reconhecendo que não se trata de uma situação exclusivamente contemporânea, mas de uma realidade que sempre foi plural. É possível que essa pluralidade seja um verdadeiro caminho para a emergência da pós-etnomusicologia, como advoga Steven Feld (2020Feld, Steven. (2020). Alternativas pós-etnomusicológicas: a acustemologia. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10/2, p. 193-210.) marcada pela fragmentação do nosso universo de estudo e das nossas práticas de investigação. A desvinculação de domínios disciplinares, como os Estudos de Música Popular, os Estudos de Som ou os Estudos de Música na Comunidade, é um sinal claro desse novo movimento ao qual a disciplina parece estar exposta. Importa agora saber até quando a etnomusicologia, apesar da sua estrutural condição de movência, resistirá a este processo de atomização.

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NOTAS

  • 1
    Dado que não temos ainda normalizada uma regra lexical para a escrita totalmente inclusiva em língua portuguesa, opto pelo uso do masculino e do feminino sempre que não implicar alterações substantivas no texto ou repetições exaustivas que dificultem a leitura.
  • 2
    Este texto é uma versão revista e ampliada da conferência de abertura que proferi no XIV Congresso da Sociedad de Etnomusicologia (SIBE), que decorreu em Madrid a 9 de outubro de 2016. Na altura, tal como hoje, vivia já uma profunda inquietação em relação ao modo como debaixo da classificação “etnomusicologia” se guarda uma multiplicidade de realidades em permanente movimento que, de alguma forma, tornam quase obsoleto o nome da disciplina com o qual nos fazemos representar. Também por essa razão, entendi que seria oportuno publicar este texto num número de homenagem a Steven Feld, cujos textos mais recentes oferecem alternativas pertinentes ao que designa por pós-etnomusicologia.
  • 3
    No original: “devoted to oral musical works (folk songs by themselves, instrumental works by themselves), in contrast to music ethnography, which examines the oral tradition in its cultural context, and in contrast to musicology, which studies written-composed music”.
  • 4
    Refiro-me ao facto de Jaap Kunst ter sido membro do Executive Board do IFMC (International Folk Music Council, hoje International Council for Traditional Music) de 1947 até 1958, quando se tornou presidente. Foi neste papel de grande relevância institucional e internacional que publicou, em 1950, pelo Indisch Institut de Amesterdão, o texto Musicologica: A study of the nature of ethno-musicology, its problems, methods and representative personalities que lhe viria a dar o ónus da autoria do designativo “etno-musicologia”. No livro comemorativo dos 70 anos do ICTM, Wim van Zanten (2022Zanten, Wim van. (2022). Jaap Kunst: IFMC President, 1959-1960. In: Pettan, Svanibor; Ceribašić, Naila & Niles, Don (eds.). Celebrating the International Council for Traditional Music: reflections on the first seven decades. Liubliana: University of Ljubljana Press/Berlim: ICTM, p. 76-78.: 76, tradução nossa) refere-se a este texto como “a primeira vez que o campo de estudo foi descrito numa grande publicação como ‘etno-musicologia’, mais tarde escrito como etnomusicologia” (no original: “the first time that the field of study was described in a major publication as ‘ethno-musicology’, later spelled as ethnomusicology”).
  • 5
    No Brasil, e noutros países da América do Sul - em alguns contextos já designada por “Améfrica”, vide a este propósito o livro póstumo de Lélia Gonzalez (2020)Gonzalez, Lélia. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Organização de Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar., organizado por Flávia Rios e Márcia Lima -, temos vindo a assistir desde a década de 2000 ao crescimento de outras formas de entender a etnomusicologia que divergem da linha matricial acima identificada. Trata-se de uma etnomusicologia engajada, militante, politicamente comprometida que pugna pelo repensar do posicionamento académico convencional em favor de princípios de desvinculação epistemológica e de pendor contra-hegemónico. Frequentemente, a música e/ou o som ficam reduzidos a argumentos fugazes em prol de causas maiores de intervenção social, embora não abandonem a sua filiação à etnomusicologia. Este dado é revelador da elasticidade do termo e das suas fronteiras disciplinares.
  • 6
    No original: “operación aparentemente neutral y plenamente cotidiana mediante la cual desciframos el mundo, ubicamos a los demás y nos relacionamos con ellos”.
  • 7
    No original: “[…] conocemos mediante una acción clasificatoria. El mundo bajo esta premisa no sería más que el resultado de una operación de ordenación urdida, en primera instancia, por la cultura y el lenguaje. Clasificar tiene, entre sus muchas acepciones, una perversa y de apariencia paradójica: ocultar conocimiento. Su contraria, la desclasificación, significaría, consecuentemente, su desvelamiento”.
  • 8
    No original: “Le texte est mouvance: fragment de soi et jamais le même, mutabilité fondamental que camoufle à peine un masque d’organicité”.
  • 9
    Retomo um exemplo ao qual recorro frequentemente para explicar este argumento: brasileiros e portugueses podem deliciar-se durante 40 minutos a escutar e desfrutar de um concerto de música vocal hindustânica, mas seria uma verdadeira provação escutar o mesmo texto cantado se fosse recitado em hindi.
  • 10
    No original: “[…] a structural weakness in our discipline that diminishes the efficacy of our research in general and limits the potential of ethnomusicology, at least in its American form, to make a powerful contribution to scholarship on music”.
  • 11
    No Brasil, esta forma de fazer etnomusicologia foi inaugurada em 2003 pelo grupo Musicultura, na comunidade da Maré, por iniciativa de Samuel Araújo. O trabalho do Musicultura tem inspirado muitos outros projetos em diferentes lugares do mundo, designadamente em Portugal, através do projeto Skopeofonia (Miguel et al., 2020Miguel, Ana Flávia et al. (2020). Prácticas de investigación compartida en música: tentativas y desafíos desde Portugal. AIBR: Revista de Antropología Iberoamericana, 15/2, p. 357-382.) ou do projeto SOMA: Sons e Memórias de Aveiro (https://soma-ua.pt/).
  • 12
    No original: “Si para pensar necesitamos un lugar fijo desde el que observar objetos fijos, estaremos clasificando de acuerdo al orden convencional de la clasificación, esclerotizando el mundo desde una posición esclerotizada. La desclasificación propondría, sin embargo, una visión tan dinámica como incómoda, ya que los objetos habrían de ser tan permanentemente cuestionados en su quietud como los sujetos que los observan”.
  • *
    Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT- Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P., no âmbito do projeto UIDB/00472/2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2022
  • Revisado
    08 Out 2022
  • Aceito
    03 Nov 2022
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