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Diário de campo. Um primo diferente na família das ciências sociais 1 1 Este artigo parte de um conjunto de reflexões teórico-metodológicas elaboradas para sessões formativas de graduação e pós-graduação sobre diário de campo. Agradeço os comentários iniciais feitos por Magda Nico, Patrícia Pereira, Sónia Vespeira de Almeida e Telmo Caria, à versão anterior à submissão à revista Sociologia & Antropologia, bem como os comentários posteriores dos/as avaliadores/as do artigo e o trabalho de edição final. Cabe ainda referir o âmbito da sua produção - Iscte, Cies-IUL e FCT (4, 5 e 6 art. 23 DL57/2016 de 29 ago., lei 57/2017 de 19 jul.).

Filednotes. A different cousin in the social sciences family

Resumo

O diário de campo é ferramenta praticamente incontornável nas práticas etnográficas; entretanto, nas publicações resultantes das pesquisas qualitativas que incorporam etnografia nem sempre se evidencia como foi utilizado.Conhecer aprofundadamente as potencialidades do diário de campo contribui para que os praticantes de etnografia saibam defender melhor seu método, sem cair nas críticas comuns à sua subjetividade.Neste artigo argumentoque o esclarecimento das condições de utilização do diário de campo nos resultados da etnografia fortalece a etnografia enquanto prática metodológica. Essa prática, normativa na antropologia, vem sendo cada vez mais utilizada na sociologia e demais ciências sociais.O diário de campo surge aqui como espaço central de acumulação de dados etnográficos, uma ideia de senso comum na antropologia que, um século depois de Malinowski, carece ainda de segurança epistemológica.

Palavras-chave
Diário de campo; etnografia; observação participante; dados etnográficos; metodologia

Abstract

Fieldnotes are inescapable tools in ethnographic practice; in publications resulting from qualitative research that include ethnography, not often it’s clear how it was used. To know in depth fieldnotes’ potentialities will contribute to a better defence of the method by ethnography practitioners, without falling prey to common criticisms of its subjectivity. In this paper I argue that clarifying the conditions of field diary use in ethnography’s results strengthens ethnography as a methodological practice. This practice, although a rule in anthropology, became to be used more and more by sociology and by other social sciences. Fieldnotes, here, emerge as having a central role in ethnographic data accumulation, a common-sense idea in anthropology but, one century after Malinowski, continues to lack epistemological confidence.

Keywords
Fieldnotes; ethnography; participant observation; ethnographic data; methodology

No poema “Aniversário”, do heterônimo de Fernando Pessoa Álvaro de Campos, o poeta fala do tempo em que seu aniversário era comemorado como um tempo longínquo, quando, entre outras situações rituais, vinham a sua casa os “primos diferentes”, aqueles que mal conhecemos, mas que sempre surgem em ocasiões festivas. Como se verá neste artigo, falamos da entrevista e do diário de campo como primos, em que aquela ganha centralidade, e este se encontra numa posição ritual; existe, mas só aparece quando é chamado, quase sempre como instrumento de coleta de materiais etnográficos, mas menos como objeto de análise.

Por que trazer à reflexão o diário de campo num conjunto de disciplinas (antropologia e ciências sociais) em que ele é supostamente entendido como parte da norma nas pesquisas que envolvem etnografia? Essa pode ser a pergunta de alguém que abre um documento com o título “diário de campo” nesta revista. Além da óbvia necessidade de reflexão teórico-metodológica sobre métodos qualitativos, há outras razões: por um lado, os pesquisadores que utilizam diário de campo o fazem de várias formas; não há um formato malinowskiano que possamos aplicar a todas as coletas etnográficas e a todos os materiais que daí resultam. Por outro lado, apesar de a antropologia continuar a ter o monopólio do uso do diário de campo como recurso central em suas coletas empíricas, outras ciências sociais o usam para registrar aquilo que observam em seus campos, mesmo após duras críticas, como a de Hammersley (1990)Hammersley, Martyn. (1990). What’s wrong with ethnography? The myth of theoretical description. Sociology, 24/4, p. 597-615., vinda, nesse caso, da sociologia. Aqui temos um problema, ponderado, por exemplo, por Marisa Peirano (2008)Peirano, Mariza. (2008). Etnografia, ou a teoria vivida, Ponto Urbe [online], 2, Disponível em: http://pontourbe.revues.org/1890 Acesso em 28 set. 2018.
http://pontourbe.revues.org/1890...
, sobre a “boa” etnografia ou sobre a ambiguidade de o método etnográfico se constituir como aquilo que diferencia a antropologia de outras ciências (Descola, 2005Descola, Philippe. (2005). On anthropological knowledge. Social Anthropology, 13/1, p. 65-73.: 66, 72), e mais recentemente por Tim Ingold (2014)Ingold, Tim. (2014). That’s enough about ethnography. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 4/1, p. 383-395. no artigo ‘That’s enough about ethnography’, em que se refere, entre outras coisas, aos limites do uso da etnografia.2 2 No campo da sociologia, o registro de crítica à forma como se utiliza especificamente a entrevista como material empírico qualitativo pode, por exemplo, ser encontrado em Silverman (2017).

Na exposição do método etnográfico, muitas vezes encontramos etnografia usada como sinônimo, ora de observação participante, ora de resultado das coletas e produção de materiais etnográficos enquanto metodologia de coleta empírica. Não sendo sinônimos na antropologia, importa neste artigo utilizar a expressão observação participante como parte integrante da etnografia. Não querendo defender uma postura mais do que outra, é certo que o diário de campo é usado enquanto espaço de junção dos materiais etnográficos, no decorrer das démarches etnográficas, e o seu uso consciente e sistemático contribui para que a observação participante seja de fato útil a uma pesquisa qualitativa. Mediante olhar detalhado para o diário de campo, este artigo confronta-se, assim, com o problema sobre se há razões para a antropologia se preocupar com a capacidade de outras disciplinas usarem a etnografia e a observação participante, em que o diário de campo é de uso indispensável.

Retomando Descola (2005: 73), não é a duração mais ou menos longa do método etnográfico que faz distinguir a antropologia de outras ciências, mas sim transformar a intersubjetividade “num tipo de conhecimento que todos possam manter e tornar produtivo”; daí que, além de a praticar, é preciso, ao publicar, esclarecer como se faz e como se analisam os materiais etnográficos para chegar a determinada interpretação - tal como, de resto, não é a entrevista ou o questionário por si que definem a sociologia. Os métodos são independentes, até mesmo das disciplinas que os sustentam; não deverão, portanto, ser considerados propriedade disciplinar, nem a sua validação apropriada por apenas uma disciplina.

Esse problema está, todavia, perto da sua superação em alguns meios: nos centros de pesquisa interdisciplinares; por intermédio de campos disciplinares, cursos de graduação e area studies que promovem metodologias mistas;3 3 Importa dizer que o campo dos Estudos Urbanos tem sido em parte responsável pela prática etnográfica realizada por pesquisadores que provêm de outras ciências que não a antropologia. Veja-se o caso da Escola de Chicago, que promoveu um conjunto de estudos ímpares sobre a cidade, adotando a etnografia como método de recolha central (Eames & Goode, 1977). em pesquisadores com percursos profissionais que buscam o diálogo entre disciplinas. Ao mesmo tempo, há quem, ao defender a prática da observação participante e outras formas de coleta etnográfica de longo curso, acuse veladamente as práticas etnográficas de curto curso como incapazes de levar a cabo uma verdadeira pesquisa etnográfica de campo e de, com ela, tecer interpretações úteis às ciências sociais e humanas.

Apesar de a antropologia ser mãe, dando continuidade à metáfora familiar, da etnografia e da observação participante, o que vemos nos trabalhos de outras ciências sociais é a utilização cada vez mais frequente dessa metodologia. Na antropologia, ela tende classicamente a surgir como condição sine qua non. Nas demais ciências sociais e humanas - da sociologia à literatura, passando por psicologia, serviço social, geografia, entre outras -, a observação participante pode constituir prática metodológica central ou complementar a outras técnicas de coleta em pesquisas empíricas de âmbito qualitativo. Em ambos os casos, ela é considerada importante, quase sempre destacada, quando praticada por outros cientistas que não antropólogos, como mais-valia em suas pesquisas.

No seguimento desta introdução, verificaremos um conjunto de reflexões metodológicas de outros autores, procurando dar uma visão plural com base em formatos de explicitação metodológica. Nos deteremos depois no próprio diário de campo não só como óbvio instrumento de coleta de materiais, mas como espaço em que, após organização, encontramos a etnografia ou o resultado da observação participante como um todo. Para isso, analisamos as principais contribuições de obras clássicas e aportes contemporâneos sobre diário de campo. As conclusões retomam a importância na atualidade de esclarecer esses processos.

Reflexões metodológicas

Os esforços pedagógicos para as metodologias utilizadas pela antropologia estão apresentados em relevante bibliografia que sugere formas de utilização do diário de campo, tanto no âmbito do registro4 4 Se aqui se fala sobretudo em diário de campo, há que lembrar outras formas de registro, como o desenho etnográfico, realização de mapas, fotografia, os registros áudio e vídeo não necessariamente associados a entrevistas. Uma vasta bibliografia que não cabe aqui sistematizar dedica-se a estas formas de coleta (técnicas, ética específica, potencialidades metodológicas); destacamos, no entanto, exemplos internacionais clássicos na antropologia visual, Pink (2001), no desenho etnográfico, Taussig (2011) e, em língua portuguesa, Kuschnir (2014). e, por conseguinte, espaço em que se acumula parte significativa dos materiais etnográficos, como no de sua análise e interpretação, mas o faz sobretudo nesse ambiente concreto, ligado às obras metodológicas, formativas, publicações que discorrem sobre trabalho narrativo da etnografia (Atkinson et al., 2001Atkinson, Paul et al. (eds.). (2001). Handbook of ethnography. London/New Delhi: Thousand Oaks/Sage.; Lofland & Lofland, 1995Lofland, John & Lofland, Lyn H. (1995). Analysing social settings. A guide to qualitative observation and analysis. Belmont, CA: Wadsworth Publishing Company.) ou como o diário poderia ser mais utilizado como base para interpretações.

Outros campos disciplinares como a literatura, a linguística, o serviço social procuram nos manuais de etnografia fórmulas para aceder melhor a seus campos, mas ao buscar nas publicações de antropologia, resultados de etnografias, deparam-se com uma escrita que tende a tomar o processo etnográfico como implícito. Salvo honrosas exceções - muito citadas e frequentemente associadas ao pós-modernismo e sua característica reflexividade, mas com apontamentos ilustrativos e sugestivos sobre a prática etnográfica (Capranzano, 1980Capranzano, Vincent. (1980). Tuhami. Portrait of a Moroccan. Chicago: University of Chicago Press.; Caplan, 1997Caplan, Pat. (1997). African voices, African lives. Personal narratives from a Swahili village. London/New York: Routledge. etc.) -, muitos antropólogos não se distendem sobre o processo etnográfico nas publicações que resultam de etnografia, e os textos sobre a produção, registro e análise dos dados etnográficos acontecem, tal como neste artigo, separados dos primeiros. De resto, todos os métodos, quantitativos ou qualitativos, têm múltiplos formatos, mas essa condição plural não retira de seus produtores responsabilidade quanto à apresentação do contexto e das condições de pesquisa. Pat Caplan (1997: 18-19), num esforço para explicar suas condições de pesquisa, não só descreve como decorreram as estadas em campo, como explica a forma como dali resultou o trabalho publicado.5 5 De enfatizar que a sociologia parece produzir a discussão em espelho, igualmente útil, de que os processos de interação entre os pesquisadores e os interlocutores não se devem antepor à análise e compreensão das realidades estudadas (McLeod & Thomson, 2009; Atkinson, 2005). Sem esse tipo de explicitação, dificilmente poderemos confirmar como trabalhavam os antropólogos nas gerações anteriores, mesmo que tenhamos acesso a seus arquivos (Marcus, 1998Marcus, George. (1998). The once and future ethnographic archive. History of the Human Sciences, 11/4, p. 49-63.; Caplan, 2010Caplan, Pat. (2010). Something for posterity or hostage to fortune? Archiving anthropological field material. Anthropology Today, 26/4, p. 13-17.).

Assim, temos uma literatura antropológica para antropólogos e uma literatura metodológica na antropologia um pouco mais abrangente, bem como, nas outras ciências sociais, uma literatura metodológica que se debruça sobre a etnografia (Silva & Pinto, 1990Silva, Augusto Santos & Pinto, José Madureira. (1990) [1986]. Metodologia das ciências sociais. Porto: Afrontamento.; Bryman, 2008Bryman, Alan. (2008). Social research methods. Oxford: Oxford University Press.; McLeod & Thomson, 2009McLeod, Julie & Thomson, Rachel. (2009). Researching social change. London: Sage.). Além disso, temos os clássicos que são apreciados geração após geração, desde logo o apêndice de Foote-Whyte (1981)Foote-Whyte, William. (1981) [1943]. Street corner society. The social structure of an Italian slum. 3rd ed., rev. and exp. Chicago/London: University of Chicago Press. sobre as condições de pesquisa e a forma como acedeu ao seu interlocutor principal, bem como as consequências analíticas dos passos metodológicos que deu na sua etnografia. Importa lembrar que Foote-Whyte não se propunha como antropólogo no início do seu trabalho de campo. Sua utilíssima reflexão para qualquer candidato a etnógrafo concorre para a ideia de que os mais claros cientistas a falar sobre como realizaram o método etnográfico não são necessariamente antropólogos. Importa ainda notar, a propósito, que depois de Foote-Whyte, outros autores incluíram profícuos apêndices metodológicos (Liebow, 1967Liebow, Elliot. (1967). Tally’s corner: a study of negro streetcorner men (legacies of social thought). Boston: Little, Brown & Company.; Finnegan, 1989Finnegan, Ruth. (1989). The hidden musicians: music-making in an English town. Cambridge: Cambridge University Press., entre outros).

Por que não contribuir para uma literatura metodológica que parte da antropologia, mas que se oferece a outros cientistas sociais, sabendo que esses também fazem, podem fazer etnografia (Caria, 2002Caria, Telmo. (2002) [1986]. A construção etnográfica do conhecimento em ciências sociais. In: Caria, Telmo (org.). Experiência etnográfica em ciências sociais. Porto: Afrontamento, p. 9-20.)? Tipicamente, os antropólogos descrevem como fazem a coleta, referem que utilizam o diário de campo como instrumento com o qual coligem seus materiais, mas uma reflexão, em cada trabalho publicado, sobre esse meio de pesquisa e a exposição das condições de pesquisa etnográfica é muito menos sistemática do que esperaríamos. Encontramos por um lado, referências que convocam o diário de campo como espaço de uma visão mais acertada sobre a realidade, num patamar acima das reflexões etnográficas publicadas, como no caso de Darcy Ribeiro, que, referido por Peirano (2000Peirano, Mariza. (2000). A antropologia como ciência social no Brasil. Etnográfica, 4/2, p. 219-232.: 5), considerou os diários de campo o que de mais importante havia produzido.

Por que não têm os antropólogos o hábito de explicitar melhor ou pelo menos mais claramente, as condições de pesquisa, concretamente, a utilização continuada do diário de campo como lócus de registro de dados etnográficos, em que, “o que é registrado constitui, de fato, os dados” (Lofland & Lofland, 1995Lofland, John & Lofland, Lyn H. (1995). Analysing social settings. A guide to qualitative observation and analysis. Belmont, CA: Wadsworth Publishing Company.: 82, itálicos dos autores).6 6 Nessa e nas demais citações em idioma estrangeiro, a tradução é livre. No original, “the logging record actually constitutes the data”. Não é o diário de campo o objeto que concentra o idealizado presente etnográfico ou, pelo menos, um presente irreplicável (Descola, 2005Descola, Philippe. (2005). On anthropological knowledge. Social Anthropology, 13/1, p. 65-73.: 69)?

Uma justificativa para essa falta de esclarecimento mais consistente reside na força dos outros instrumentos de pesquisa empírica de âmbito qualitativo. A entrevista gravada cedo entrou no campo da análise da realidade social como elemento seguro, com qualidades objetivas, constituindo-se também como central na pesquisa etnográfica. É com certeza o recurso mais utilizado para reforçar argumentos nas publicações de resultados na antropologia. Além disso, o número elevado de entrevistas, apesar dos avisos metodológicos sobre a saturação (Bertaux & Bertaux-Wiaume, 1980Bertaux, Daniel & Bertaux-Wiaume, Isabelle. (1980). Une enquête sur la boulangerie artisanale en France par l’approche biographique. Rapport final, v.1. CORDES 43/76.), continua a ser o ícone de um trabalho aprofundado. Cabe notar também, no entanto, que a entrevista sofre do fato de as metodologias explicarem os métodos, mas não explicarem aprofundadamente os contextos em que nascem e se desenvolvem as tradições metodológicas (Edwards & Holland, 2013Edwards, Rosalind & Holland, Janet. (2013). What is qualitative interviewing? London/ New Dehli/New York/Sydney: Bloomsbury.; Staples & Smith, 2015Staples, James & Smith, Katherine. (2015). The interview as analytical category. In: Smith, Katherine; Staples, James & Rapport, Nigel (eds.). Extraordinary encounters. Authenticity and the interview. New York/Oxford: Bergham Books, p. 1-18.). Mesmo sendo fácil identificar a centralidade da entrevista entre os meios de coleta empírica, “a entrevista em si teve relativamente pouco impacto teórico sobre as formas como os métodos antropológicos desempenham um papel na representação dos detalhes etnográficos” (Staples & Smith, 2015Staples, James & Smith, Katherine. (2015). The interview as analytical category. In: Smith, Katherine; Staples, James & Rapport, Nigel (eds.). Extraordinary encounters. Authenticity and the interview. New York/Oxford: Bergham Books, p. 1-18.: 1).7 7 No original, “the interview itself has made relatively little theoretical impact on the ways in which anthropological methods play a part in the representation of ethnographic details”. Se, porém, isso acontece com a entrevista na antropologia (na sociologia o contexto é diverso), também acontece com o diário de campo. Ou seja, apesar de o diário de campo ser referido e de haver reflexões teórico-metodológicas sobre sua utilização, ele é por vezes tomado como dado adquirido pelos praticantes de etnografia, omitindo-se a sua elaboração e fazendo com que uma etnografia, ao ser lida por potenciais etnógrafos não antropólogos, não obedeça ao necessário esclarecimento a respeito das condições de pesquisa.

Talvez o diário de campo provoque mais inseguranças do que a sua prima entrevista, que se apresenta assertiva no campo das metodologias qualitativas, segura, com possibilidades supostamente mais objetivas de análise de conteúdo, embora também receba críticas, sobretudo quanto à forma de as analisar (Silverman, 2017Silverman, David. (2017). How was it for you? The interview society and the irresistible rise of the (poorly analysed) interview. Qualitative Research, 17/2, p. 144-158.). Uma forma de contestar essa ideia é olhar para textos metodológicos que acompanham o ensino da preparação e aplicação de um questionário (por exemplo, Ghiglione & Matalon, 1996Ghiglione, Rodolphe & Matalon, Benjamin. (1996). O inquérito. Teoria e prática. Oeiras: Celta Editora.; Muijs, 2004Muijs, Daniel. (2004). Doing quantitative research in education with SPSS. London: Sage Publications.). De fato, os questionários representam (ou se autorrepresentam como tendo) mais objetividade, a começar pelo tipo de resultados mais comumente divulgados, as percentagens e, também por isso, criando maior hábito de confronto com essa metodologia, tanto por parte dos pesquisadores como do cidadão comum. Dito de outra forma, no senso comum parece valer mais um estudo que apresente números - independentemente da qualidade das condições de pesquisa quantitativa; muitos apresentam mesmo estatísticas como fatos (McLeod & Thomson, 2009McLeod, Julie & Thomson, Rachel. (2009). Researching social change. London: Sage.) - do que um estudo, como é o caso da etnografia, que procura fazer a desconstrução de uma realidade a partir de representações descritivas, fornecidas por pessoas singulares (muitas ou poucas) e que resulta frequentemente de conversas informais e registros em diário de campo.

Ou seja, a representatividade tem um peso social central, e essa vantagem repercute no meio acadêmico, levando os estudantes e também os pesquisadores a tender a confiar mais em resultados provindos de uma análise estatística, aprofundada ou não (v. Bernardi, Chakhaia & Leopold, 2017Bernardi, Fabrizio; Chakhaia, Lela & Leopold, Lilyia. (2017). ‘Sing me a song with social significance’: the (mis)use of statistical significance testing in European sociological research. European Sociological Review, 33/1, p. 1-15.), do que em resultados parciais analisados com base em interpretações que são significativas, mas não representativas.

Nesse sentido, os métodos mistos têm um papel importante, uma vez que procuram procedimentos metodológicos adequados especificamente a suas pesquisas e não adotam um deles pelo fato de sua disciplina base ser sociologia ou antropologia (Mason, 2006Mason, Jennifer. (2006). Mixing methods in a qualitatively driven way. Qualitative Research, 6/1, p. 9-25.; Pelto, 2017Pelto, Pertti J. (2017). Mixed methods in ethnographic research. Historical perspectives. New York: Routledge.). Florence Weber (2001)Weber, Florence. (2001). Settings, interactions and things. A plea of multi-integrative ethnography. Ethnography, 2/4, p. 475-499. sugere mesmo uma etnografia multi-integrativa nas ferramentas metodológicas qualitativas, sem, contudo, a relacionar apenas à antropologia. Além disso, não é de crer que Edmund Leach mantivesse atualmente a sua posição, quando dizia que a mistura entre métodos sociológicos e antropológicos não poderia produzir materiais válidos (Leach, 1989Leach, Edmund. (1989) [1982]. A diversidade da antropologia. Lisboa: Edições 70.: 31).

Ainda assim, o diário de campo e o seu lado pessoal, de reflexividade metodológica, de partilha do que resultou bem ou mal no campo, representam para muitos antropólogos a garantia de que passaram por um rito de passagem profissional - a etnografia com observação participante de longo curso - constituindo-se como símbolo, bem guardado ou, pelo contrário, esquecido nos sótãos, de garantia da profissionalização (Jackson, 1990Jackson, Jean E. (1990). “I am a fieldnote”: fieldnotes as a symbol of professional identity. In: Sanjek, Roger (ed.). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 3-33.: 15). Mesmo após a desconstrução da ideia do antropólogo como herói (Dias, 1997Dias, Jill. (1997). Entre arte e ciência, ou o etnógrafo como herói romântico: Bronislaw Malinowski e o trabalho do campo antropológico. Ethnologia, 6-8, p. 39-54.; Sardan, 2008Sardan, Jean-Pierre Olivier. (2008). La rigueur du qualitatif. Les contraintes empiriques de l’interpretation sócio-anthropologique. Louvain: Academia Bruylant, p.7-38.: 20), os antropólogos continuam a rever-se na etnografia com observação participante de longo curso como algo que os singulariza.

Os antropólogos que desconfiam do tempo curto das etnografias praticadas por outros, têm vindo a ter condições de pesquisa que muitas vezes também os impele a curtas estadas no campo; por isso talvez essa seja uma desconfiança desatualizada. Outros cientistas praticam a etnografia como complemento em pesquisa de âmbito qualitativo e, por isso, fazem etnografias curtas, no final. Se a etnografia de curta duração ou utilizada como complemento questionar o ritmo e a duração inevitáveis nas etnografias de longa duração (Descola, 2005Descola, Philippe. (2005). On anthropological knowledge. Social Anthropology, 13/1, p. 65-73.: 69), a metodologia central irá certamente suprir essa lacuna. Para realizar seriamente uma observação participante de curta duração e, por que não?, também as de longa, devemos deixar de hierarquizar os meios e os tempos disponíveis de coleta de dados.

Nos trabalhos de praticantes de etnografia de longo curso, em que os antropólogos continuam a ser os atletas de fundo, identificamos um conjunto de situações em que não se recorreu a entrevistas gravadas: conversas informais, participação ativa em rituais e situações quotidianas, acompanhamento de pessoas a diversos locais, entre outras possibilidades etnográficas, que não requerem necessariamente um gravador. Esse dispositivo, cuja tecnologia é cada vez mais ágil, e lembrando que as experiências individuais poderão ser muito diferenciadas, aparece muitas vezes ou passa a ser mais utilizado depois de conhecer os interlocutores e/ou quando precisamos recolher dados que têm a ver com modos de produção, uso de tecnologias, relato de histórias coletivas, relato das suas histórias. Também por isso, nas publicações resultantes de etnografias, encontramos frequentemente excertos de entrevistas, tal como em outras pesquisas qualitativas que não utilizam a etnografia, não excluindo o fato de que as entrevistas podem justapor as informações do diário de campo, e vice-versa. Por seu lado, o diário de campo, embora seja citado por uns, tende a ser relegado a segundo plano por outros, sobretudo por ter cunho pessoal e raramente poder reproduzir exatamente aquilo que nossos interlocutores dizem. A paráfrase e as descrições feitas pelos etnógrafos no campo, entretanto, parecem valer menos do que as citações e as descrições feitas in loco pelos interlocutores atestadas pelo gravador. Não estaremos com isso retirando importância da presença do antropólogo na situação em que um(a) interlocutor(a) partilhou conosco algo que faria como no seu dia a dia sem nossa presença?

Não é muito claro, contudo, se há ou não muitos etnógrafos que reproduzam nas suas publicações excertos de seus diários quando eles têm caráter interpretativo, como no caso de João Leal (2016)Leal, João. (2016). Diários de campo: modos de fazer, modos de usar. In: Almeida, Sónia Vespeira de & Cachado, Rita. Os arquivos dos antropólogos. Caldas da Rainha: Editora Palavrão, p. 143-154., que, inspirado em Sanjek (1990a)Sanjek, Roger (ed). (1990a). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press., sugere uma subdivisão do conceito de diário de campo em apontamentos, cadernos de terreno e diário de campo, e atribui a este último um sentido quase acabado. De certa forma, Leal está perto de fazer equivaler etnografia a diário de campo, mais como resultado, após análise, e menos como coleta, antes da análise. É uma minúcia metodológica que pode ser um recurso útil para analisar dados primários a que nos referiremos adiante; mas será que uma parte importante do que vemos publicado como resultado de etnografias estava já elaborado nesse tipo de diários de campo?8 8 Não existem dúvidas sobre a relação íntima entre etnografia, diários de campo e literatura de viagem, em que um dos símbolos reside em Tristes trópicos, de Lévi-Strauss (1993). Então, se muitos o fazem, se utilizam o diário como fonte direta para a publicação, isso nem sempre é claro nas próprias publicações. Edmund Leach terá perdido todas as suas notas e rescrito a sua tese de memória (Sanjek, 1990bSanjek, Roger. (1990b). Fire, loss, and the sorcerer’s apprentice. In: Sanjek, Roger (ed). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 34-44.: 37). Será essa uma forma de escrita etnográfica usual atualmente? Não perdendo os cadernos, mas usando o diário como resultado mais do que como espaço de registro de dados primários (Almeida & Cachado 2019Almeida, Sónia Vespeira de & Cachado, Rita. Os arquivos dos antropólogos. Caldas da Rainha: Editora Palavrão.)? Será que Leach teria conseguido escrever Sistemas políticos da Alta Birmânia sem ter escrito inicialmente o seu diário?

No já citado livro de Sanjek (1990a)Sanjek, Roger (ed). (1990a). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press., Fieldnotes. The makings of anthropology, encontramos por um lado o registro reflexivo dos significados atribuídos por antropólogos ao objeto diário de campo nos seus percursos profissionais (Jackson, 1990Jackson, Jean E. (1990). “I am a fieldnote”: fieldnotes as a symbol of professional identity. In: Sanjek, Roger (ed.). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 3-33.); as potencialidades heurísticas do diário de campo; tentativas de conceitualizar diferentes formas de registro (Clifford, 1990Clifford, James. (1990). Notes on (field)notes. In: Roger Sanjek (ed). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 47-70.; Sanjek, 1990bSanjek, Roger. (1990b). Fire, loss, and the sorcerer’s apprentice. In: Sanjek, Roger (ed). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 34-44.); e por outro lado, a defesa do diário de campo contendo dados primários que devem ser organizados, indexados e sistematizados para bom uso nos resultados de uma etnografia (Johnson, 1990; Ottenberg, 1990Ottenberg, Simon. (1990). Thirty years of fieldnotes: changing relationships to the text. In: Sanjek, Roger (ed.). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 139-160.). Essas perspetivas podem guiar-nos no sentido de produzir textos e explicações metodológicas mais claros para os nossos leitores. O leque de equivalências e diferenças conceituais, no entanto, é tão vasto quanto as proximidades e distâncias entre práticas empíricas. Por isso, voltemos ao diário como espaço material de registro da observação participante, deixando brevemente de lado as sobreposições.

Afinal, para que serve um diário de campo?

Mais do que tentar responder a uma questão de caráter pedagógico, este segmento pretende enfrentar a insegurança que o diário de campo pode ainda provocar. O principal domínio desse instrumento é constituir-se como espaço em que se registra grande parte dos materiais etnográficos e, nesse sentido, ser a base documental central de muitas etnografias.9 9 Importa notar que nem todas as etnografias fazem coincidir a maioria dos seus registros em um ou mais cadernos. Cada pesquisador(a) terá a sua singularidade em termos de registro escrito, que pode ocorrer por meio da componente visual (desenhos, fotografias, imagens em movimento) ou áudio; podendo os escritos ter suportes diversificados (caderno, celular, computador pessoal) e variados formatos (narrativo, descritivo, pontual, sistemático). É uma base sólida, talvez a mais sólida, de registro do dia a dia de um universo populacional, seja ele de que dimensão for. Essa é a sua força enquanto material empírico. Nele encontramos, objetivamente, o modo como são construídas as intersubjetividades nos terrenos etnográficos. Sabemos pelo menos desde Devereux (1967)Devereux, George. (1967). From anxiety to method in the behavioral sciences. Paris: Mouton que o diário é útil ao pesquisador que está trabalhando entre pessoas; e, no mesmo sentido, é importante para partilhar num lugar seguro os dilemas éticos com que nos vamos deparando, os cansaços e entusiasmos no campo. Enquanto espaço de reflexão, contém ainda a possibilidade de registrar avanços e recuos, o acesso a cada vez mais camadas de percepção sobre a realidade social em estudo. Potencialmente, encerra uma riqueza metodológica para a história da etnografia, porque há uma evolução nas suas práticas (Stocking, 1983Stocking, George. (1983). Observers observed: Essays on ethnographic fieldwork. Madison: University of Winsconsin Press.). Por exemplo, é diferente ter sido Malinowski, branco, a estudar junto de uma população num país colonizado, relativamente a Elijah Anderson (1990)Anderson, Elijah. (1990). Streetwise: race, class, and change in an urban community. Chicago: University of Chicago Press., negro, a realizar trabalho de campo na periferia de Nova York nos anos 1980. De resto, a história dos departamentos e dos ramos disciplinares deve muito ao contexto histórico em que se desenvolveu. Basta pensar na Escola de Chicago e no crescimento dos estudos urbanos (Eames & Goode, 1977Eames, Edwin & Goode, Judith Granich. (1977). Anthropology of the city. An introduction to urban anthropology. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, Inc..; Topalov, 2015Topalov, Christian. (2015). Introduction. Une histoire des savoirs et des savants. In:Topalov, Christian (org.). Histoires d’enquêtes. Londres, Paris, Chicago (1880-1930).Paris:Classiques Garnier, p. 11-47.) que se deu contemporaneamente a uma descrença nos regimes coloniais (Hannerz, 1983Hannerz, Ulf. (1983). Explorer la ville, éléments d’anthropologie urbaine. Paris: Les éditions de Minuit.: 207).

Finalmente, a principal vantagem é epistemológica, uma vez que o diário de campo, ao ser analisado, pode levar-nos a melhorar perguntas de pesquisa, a tecer conclusões e a gerar melhores hipóteses.

O diário de campo enquanto conceito, contudo, não é estável. Um etnógrafo que se disponibilize a ler obras metodológicas para aprender o método etnográfico e conhecer os procedimentos da observação participante, incluindo seu registro em diário de campo (e outros suportes), encontra na literatura uma variedade vocabular que leva qualquer não antropólogo a subir pelas paredes. Mais uma vez recorrendo à prima entrevista, ela se apresenta como semidirigida, aberta, estruturada etc., num vocabulário mais unificado, apesar de estar igualmente sujeita a variações linguísticas e conceituais, enquanto o diário de campo se mantém como aquele que se conhece ao longe, todos sabem quem é, mas poucos interagem com ele de forma epistemológica.

A que se refere a expressão portuguesa diário de campo? Quantos antropólogos se reveem no conceito de diário de campo como tradução de field notes? A utilização de diferentes conceitos dependerá de pelo menos três fatores: a escolha das obras metodológicas lidas pelos etnógrafos; os idiomas em que essas obras são escritas - e traduzidas; a sua relação com o diário de campo. É diário porquanto compreende uma tônica de registro pessoal? É diário enquanto sinônimo de caderno (cahiers em francês)?

Em português enumeramos alguns sinônimos frequentes, como diário de terreno, caderno de campo e diário de campo. Entre os termos que os acompanham, encontramos notas de terreno, apontamentos, anotações, notas mentais, notas de campo, notas etnográficas. Esses termos são ora traduções, ora adaptações. Seria mais útil para os pesquisadores não antropólogos saber de que falam quando se referem a notas mentais e a apontamentos e anotações. Como os fazem? Em que consistiu o seu diário de campo - registro de dados empíricos ou registro reflexivo? Ou ambos?

Sabendo que não há apenas uma forma de utilizar o diário de campo, destacamos aqui duas visões sobre sua organização que se complementam e que poderão ajudar a compreender, precisamente, a pluralidade de seus usos. Roger Sanjek distingue, cronologicamente, a realização de notas mentais, sobretudo para os momentos em que não é possível anotar num caderno o que está acontecendo no campo, e apontamentos, ambos prévios à escrita do diário de campo. João Leal (2016)Leal, João. (2016). Diários de campo: modos de fazer, modos de usar. In: Almeida, Sónia Vespeira de & Cachado, Rita. Os arquivos dos antropólogos. Caldas da Rainha: Editora Palavrão, p. 143-154. distingue entre cadernos de campo, o espaço dos registros da informação de campo; diários de campo como espaço em que aquela informação é sistematizada, portanto um produto mais acabado, em que cabem interpelações teóricas, quase o registro final da etnografia, ou a própria etnografia; menciona ainda outros registros escritos, que podem ser as fichas elaboradas especificamente para uma dada pesquisa, e ainda um tipo de registro, que funciona sobretudo para a escrita do diário de campo, que passa pelas tentativas gráficas de organização e balanço do material. Mas como escolher, em cada área, uma atitude de registro etnográfico em detrimento de outra?

Parece óbvio desde Malinowski (1992)Malinowski, Bronislav. (1992) [1922]. Argonauts of the Western Pacific. An account of native enterprise and adventure in the archipelagoes of Malanesian New Guinea. London: Routledge & Kegan Paul Ltd. que a observação participante implica deixar o caderno em casa e retomá-lo no fim do dia, por assim dizer. A desvantagem classicamente anunciada referente a levar o caderno para o campo é que retira visibilidade ao que está ocorrendo e compromete o potencial de interação, posto que a atenção está dirigida para o suporte do registro (o mesmo se aplica à utilização do computador em entrevista, situação cada vez mais recorrente). Ao contrário, deixar o caderno em casa faculta mais tempo para observar diretamente e também para participar dos acontecimentos, de mãos livres (Malinowski, 1992Malinowski, Bronislav. (1992) [1922]. Argonauts of the Western Pacific. An account of native enterprise and adventure in the archipelagoes of Malanesian New Guinea. London: Routledge & Kegan Paul Ltd.: 21).

E se formos confrontados em campo com a situação de, sem caderno, não sermos reconhecidos como pesquisadores, como é tão comum em campos menos “clássicos” (Rial, 2003Rial, Carmen. (2003). Pesquisando em uma grande metrópole: fast-foods e studios em Paris. In: Velho, Gilberto & Kuschnir, Karina (orgs.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 69-98.)? Essa ambiguidade relativa ao papel do pesquisador em campo pode levá-lo a reafirmar continuadamente o motivo por que está naquele campo. No entanto, não ajuda olhar para isso negativamente; ao contrário, no nível dos desafios éticos podemos encontrar uma oportunidade para sublinhar as intenções de pesquisa junto de interlocutores. Escrever depois do dia observado obriga a um trabalho constante com a confiança no campo, com a mutualidade, se quisermos (Pina-Cabral, 2013Pina-Cabral, João. (2013). The two faces of mutuality: contemporary themes in anthropology. Anthropological Quaterly, 86/1, p. 257-286.).

Escrever depois da situação observada, contudo, tem a dificuldade da memorização, sendo essa, talvez, a maior desvantagem de não usar cotidianamente o caderno no trabalho de campo etnográfico de longo termo. E por que no trabalho de longo termo e não no de curto? Porque uma etnografia de longo termo implica um número imprevisível de situações repetidas, que tendem a ser negligenciadas nas descrições dos diários de campo (muito embora a repetição, a recorrência, seja um caminho útil para a segurança sobre o que se passa em dada área), enquanto num trabalho de campo etnográfico de curta duração, tendemos a assistir menos vezes a situações repetidas e, por isso, mais fáceis de memorizar e de ser descritas a posteriori.

Servindo-me dos tipos de registro continuado de Sanjek, primeiro as notas mentais, depois os apontamentos ou anotações, depois o diário de campo, talvez os apontamentos e as anotações façam a ponte entre o deixar o caderno em casa ou levá-lo para o terreno, “não há observação sem anotação” (Beaud & Weber, 2007Beaud, Stéphane & Weber, Florence. (2007) [1998]. Guia para pesquisa de campo. Produzir e analisar dados etnográficos. Petrópolis: Vozes.: 97). Muitos antropólogos referem esse momento em suas áreas, a chegada ao carro, aos transportes ou mesmo a uma casa de banho, para fazer anotações.10 10 Ao contrário da regra, por exemplo, Luís Fernandes (1998) preferiu escrever pela manhã, tal como Dan Rose (1990), em quem se inspirou para as reflexões que faz sobre a narrativa etnográfica. Ambos os autores, tendo enfrentado longas noites de observação em campo, dispensaram a escrita no momento de regresso à casa, adiando-a para a manhã seguinte, sem questionar a memória dos acontecimentos observados.

Finalmente, o diário de campo é tipicamente descritivo, com pormenores reflexivos, tanto metodológicos quanto teóricos, e inclui idealmente o todo observado.11 11 Importa notar que a posteriori nem sempre encontramos no diário, mesmo que sistematizado, o que havíamos encontrado na primeira análise (Lederman, 1990: 80-81). Essa sua qualidade heurística está, contudo, associada a um risco, sobretudo para os menos preparados metodologicamente. É que ao englobar o todo observado em primeira mão podemos cair na armadilha de crer que estamos mais perto da realidade social do que outras formas de compilação empírica. É claro que o pesquisador escolhe a etnografia para estar “de perto e de dentro” (Magnani, 2002Magnani, José Guilherme Cantor. (2002). De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17/49, p. 11-29.), e a identidade antropológica recai ainda nessa capacidade, mas a tautologia de Berger e Luckman (2005)Berger, Peter L. & Luckmann, Thomas. (2005) [1966]. A construção social da realidade. Tratado da sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes. sobre a impossibilidade de atingir a realidade social no seu todo continua a fazer sentido; quando muito, como referem os autores, poderemos tecer hipóteses realistas sobre a realidade social.

O diário de campo, entendido assim como o espaço em que se encontra o todo observado, contém por isso, no mínimo, bastante material empírico, com situações recorrentes; podem surgir situações singulares, de serendipity, situações inesperadas, mas significativas (Merton apud Yakub, 2018Yakub, Ohid. (2018). Serendipity: towards a taxonomy and a theory. Research Policy, 47, p. 169-179.: 169; Rivoal & Salazar, 2013Rivoal, Isabelle & Salazar, Noel B. (2013). Introduction. Contemporary ethnography practice and the value of serendipity. Social Anthropology, 21/2, p. 178-185.). Dessas situações pode ocorrer a necessidade de reformular determinada hipótese enunciada previamente ao campo, em última análise questionando uma parte do quadro conceitual estruturado antes da ida a campo (Glaser & Strauss, 1967Glaser, Barney & Strauss, Anselm. (1967). The discovery of grounded theory. Chicago: Aldine Publishing Co.) e, ou ao mesmo tempo, levar a novas hipóteses, mesmo que não atestem totalmente quadros anteriores. Talvez resida aqui a singularidade da etnografia, pois nela a análise e a coleta estão sempre ligadas (Appadurai, 1986Appadurai, Arjun. (1986). Theory in anthropology: center and periphery. Comparative Studies in Society and History, 28, p. 356-361.). As descobertas são feitas ainda na área ou na análise sistemática dos dados etnográficos, antes da interpretação analítica e da escrita dos resultados. Por isso se discute tanto, nos textos sobre etnografia, se a etnografia é uma metodologia ou se é um resultado (Gubrium & Holstein, 2008Gubrium, Jaber F. & Holstein, James A. (2008). Narrative ethnography. In: Hesse-Biber, Sharlene & Leavy, Patricia. Handbook of Emergent Methods. New York: Guilford Publications, p. 240-264.; Maanen, 2011Maanen, John Van. (2011). Tales of the field: on writing ethnography. 2nd ed. Chicago: Chicago University Press.), e se, como resultado, é mais comum à antropologia, e, como metodologia, mais comum às demais ciências sociais e humanas.

Uma etnografia pode, contudo, ser realizada sem a sensação de que se está atestando um quadro teórico, ou sem situações que nos levem a mudar, ainda que ligeiramente, o objeto de estudo. Ela continua a conter dados primários, passíveis de ser sistematizados a partir de uma indexação ao diário de campo (e a outros instrumentos de coleta). A questão problemática na indexação do diário de campo é a escolha dos temas (v. Ottenberg, 1990Ottenberg, Simon. (1990). Thirty years of fieldnotes: changing relationships to the text. In: Sanjek, Roger (ed.). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 139-160.). Se, num trabalho de campo etnográfico clássico, monográfico, era “fácil” proceder a uma indexação com base em temáticas como família e parentesco, religião, gênero e outras categorizações gerais e potencialmente explicadoras da sociedade analisada, as categorias estão agora sobrepostas, se relacionam, e intersectam com outras realidades exteriores ao campo escolhido (mesmo que multissituado), tornando mais complexa a decisão de escolher categorias analíticas ao indexar o diário de campo. Essa situação não fica facilitada com os programas informáticos para análise de materiais qualitativos, o que melhora com eles são as buscas de situações específicas do campo, bem como as possibilidades de cruzamento analítico entre situações e entre categorias.

É virtualmente impossível decidir antecipadamente sobre as categorias para analisar um diário de campo. Se, porém, ele integra de início um conjunto de situações com um determinado assunto, esse assunto pode transformar-se em categoria. O interessante da indexação de um diário é que no fim de contas descobrimos mais situações para determinadas categorias e menos para outras; e é essa descoberta, de forma surpreendente ou não, que contém notas conclusivas e novas hipóteses de trabalho. A primeira tentação do etnógrafo que faz indexação, no entanto, é fazer uma percentagem. Mas, se é verdade que os trabalhos de análise quantitativa não se limitam à exposição e explicação da existência de determinadas percentagens (Vala, 1986Vala, Jorge. (1986). A análise de conteúdo. In: Silva, Augusto Santos & Pinto, José Madureira (orgs). Metodologia das ciências sociais. Porto: Edições Afrontamento, p. 101-128.: 103), também é verdade que os trabalhos de análise qualitativa, depois de sujeitos a contagens sistemáticas para efeitos analíticos, não se transformam em materiais quantitativos. Como avisam Johnson & Johnson (1990)Johnson, Allen & Johnson, Orna R. (1990). Quality into quantity: on the measurement potential of ethnographic fieldnotes. In: Sanjek, Roger (ed.). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 161-186. no citado livro de Sanjek, um trabalho que escolhe uma abordagem qualitativa continua qualitativo após a análise dos materiais qualitativos.

Em suma, um diário de campo indexado permite encontrar facilmente a informação nele contida; as outras fontes - teóricas e empíricas que não etnográficas - ficam mais equilibradas com a etnografia, permitindo que esta esteja à altura das demais componentes de um trabalho acadêmico; podemos utilizar o diário de campo como fonte de dados primários; no fundo, é uma base de dados organizada. Além disso, impede seriamente que se negligencie material e torna mais úteis os materiais etnográficos nele reunidos.

Democratizar a etnografia e a observação participante por meio do diário de campo

As dúvidas existenciais da antropologia, importantes para os seus praticantes, pelo menos desde Clifford & Marcus (1986)Clifford, James & Marcus, George (ed.). (1986). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press., não servem para garantir o método. A incompreensão do método científico da antropologia, no entanto, tem-se revelado recentemente em situações que questionam seus resultados, seja por sistemas políticos ou outros atores. Veja-se, por exemplo, o caso do atual governo brasileiro, que desconsidera os estudos da Funai (http://www.apantropologia.org/apa/newsletter-apa/editoriais/#n31) ou o aproveitamento indevido dos resultados de um trabalho de longo curso no norte da Índia por Edward Simpson (2016Simpson, Edward. (2016). Is anthropology legal? Earthquakes, blitzkrieg, and ethical futures. Foocal, Journal of Global and Historical Anthropology, 74, p. 113-128.: 114), que se viu arguido de um processo de difamação por suas interpretações, sendo mesmo acusado de ter escrito uma ficção, como ele diz, não no bom sentido da palavra. Essas situações, diferentes, mas concomitantes na forma depreciativa de um método científico com mais de um século, revelam que a subjetividade é tomada por vezes como apanágio da falta de ciência, ignorando os meandros do processo científico. Ao mesmo tempo, reforçam-se receios antigos de associação entre etnografia e compromissos políticos ou econômicos, com a proliferação de empresas que aplicam o método etnográfico para responder às necessidades dos seus clientes (Kedia & Van Willigen, 2005Kedia, Satish & Van Willigen, John. (2005). Applied anthropology: domains of application. Westport: Praeger.: 9-10). Saber fazer etnografia e utilizar o diário de campo não deve ser competência exclusiva de antropólogos. Não é pelo fato de outros profissionais saberem usá-lo que impediremos que o método leve a usos menos científicos. Quando a etnografia era quase apenas utilizada por antropólogos, o mesmo problema se pôs, como na época da Segunda Guerra Mundial em que, segundo Margaret Mead, a maior parte dos antropólogos americanos (e não apenas ela, como veio a ser senso comum) foi chamada a apoiar a guerra com o seu trabalho (Kedia & Van Willigen, 2005Kedia, Satish & Van Willigen, John. (2005). Applied anthropology: domains of application. Westport: Praeger.: 7).

Este artigo procurou, tomando como cerne o diário de campo, resgatar discussões que, juntas, fortalecem a etnografia como metodologia e a observação participante como prática etnográfica, quer nas suas versões de longo curso, classicamente mais praticadas por antropólogos, quer nas suas versões curtas, feitas por muitos cientistas sociais formados em várias disciplinas, e também por antropólogos sujeitos à pressão acadêmica da publicação. Não podemos, enquanto antropólogos, obrigar os não antropólogos a não utilizar etnografia e usar apenas a expressão “observação participante”, mas podemos ser mais claros sobre os procedimentos metodológicos não só em artigos como este, mas em qualquer tipo de resultado publicado.

Colocar-se no lugar do outro, condição para a etnografia, é tarefa que pode parecer fácil para muitos antropólogos, mas à medida que se ganha acesso no campo, surgem cada vez mais camadas - e possibilidades de nos colocar no lugar do outro. Nesse sentido, as etnografias curtas e as longas produzem diferentes tipos de resultados no que diz respeito à interação e à intersubjetividade, mas ambos os tipos são passíveis de aproveitamento enquanto matéria-prima de um esforço empírico para perceber um dado aspecto humano.

Na história da antropologia, assim que a tecnologia o permitiu, mesmo sabendo que a etnografia privilegia a conversa informal e a observação participante com recurso a diário de campo, foi a entrevista gravada que se tornou rainha dos dados empíricos - para trajetórias de vida, para coletar técnicas de trabalho etc. E mesmo que o gravador não seja muito utilizado, os resultados tendem a apresentar excertos das entrevistas como prova de argumento, interpretações nossas e representações dos interlocutores.

Como se faz então, quando se tem uma maioria de dados empíricos coletada por observação participante e apenas uma pequena parte de entrevistas gravadas? A resposta é clássica e simples, mas muitas vezes esquecida: podemos recorrer à indexação e fazer análise de conteúdo do diário de campo. E no fim relata-se aos leitores como foi o processo.

Esse procedimento tanto pode ser feito com uma etnografia de longa como de curta duração. Caso contrário, para que fazer observação participante se ela não é mais aproveitada para fundamentar argumentos? O “pouco campo” parece uma ameaça à antropologia enquanto mãe do método etnográfico, mas muitos sociólogos e outros cientistas sociais, e cada vez mais antropólogos, muitas vezes devido à falta de financiamento, fazem etnografias curtas. Aquilo que distingue a antropologia não deve ser necessariamente a etnografia prolongada; se assim fosse, depressa os antropólogos que se veem na situação de realizar etnografias curtas veriam seu trabalho questionado. O que poderá, sim, distinguir a antropologia está no lado pouco comentado do artigo referido de Ingold (2014)Ingold, Tim. (2014). That’s enough about ethnography. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 4/1, p. 383-395., ou seja, a antropologia é um tipo de educação; somos (in)formados pelos nossos interlocutores. Em outras palavras, a centralidade da etnografia (longa ou curta) promove a humildade científica, ou seja, a perceção de que as análises são temporárias e decorrem de contextos acadêmicos, políticos e sociais específicos.

Quando um aluno entra num curso de antropologia e se dá conta da necessidade de ler etnografias extensivas, encontramos três possibilidades de sucesso na leitura: por haver etnógrafos que escrevem ou que escreveram como grandes escritores, com exemplos tão distintos como Lévi-Strauss (1993)Lévi-Strauss, Claude. (1993) [1955]. Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70., Capranzano (1980)Capranzano, Vincent. (1980). Tuhami. Portrait of a Moroccan. Chicago: University of Chicago Press., ou acrescentando humor, como Nigel Barley (1996)Barley, Nigel. (1996) [1983]. O antropólogo inocente. Notas vindas de uma cabana de lama. Lisboa: Fenda Edições.; pela obrigatoriedade da leitura; e finalmente pela curiosidade sobre determinados contextos. Se esse aluno pretender realizar etnografia, quererá saber como aconteceu. Começa por ler Malinowski, e a expetativa aumenta com relação às etnografias posteriores, mas a partilha de condições de pesquisa e as razões que baseiam as opções metodológicas concretas são menos sistemáticas do que se esperaria, e muitas vezes sujeitas a dramatismos na história da disciplina, como o papel que teve a publicação póstuma dos diários de Malinowski, ou a escrita de memória da etnografia de Leach, depois de perder seus materiais primários. Sobre diário, encontramos aqui e ali apontamentos de difícil reunião, excetuando esforços, como os de Sanjek (1990a)Sanjek, Roger (ed). (1990a). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press., na sequência de uma grande conferência (1985) dedicada ao tema.

É responsabilidade das e dos antropólogos transmitir esse saber (Silverman, 1995Silverman, Sydel. (1995). Introduction. In: Silverman, Sydel & Parezo, Nancy (ed.). Preserving the anthropological record. Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research. Disponível em: www.copar.org/par/ Acesso em 07 maio 2018.
www.copar.org/par/...
). Serve para muito pouco passar muitas horas falando com pessoas que concordam em participar de nossos projetos se não soubermos o que fazer com essas interlocuções, interações, essa tão afamada intersubjetividade.

NOTAS

  • 1
    Este artigo parte de um conjunto de reflexões teórico-metodológicas elaboradas para sessões formativas de graduação e pós-graduação sobre diário de campo. Agradeço os comentários iniciais feitos por Magda Nico, Patrícia Pereira, Sónia Vespeira de Almeida e Telmo Caria, à versão anterior à submissão à revista Sociologia & Antropologia, bem como os comentários posteriores dos/as avaliadores/as do artigo e o trabalho de edição final. Cabe ainda referir o âmbito da sua produção - Iscte, Cies-IUL e FCT (4, 5 e 6 art. 23 DL57/2016 de 29 ago., lei 57/2017 de 19 jul.).
  • 2
    No campo da sociologia, o registro de crítica à forma como se utiliza especificamente a entrevista como material empírico qualitativo pode, por exemplo, ser encontrado em Silverman (2017)Silverman, David. (2017). How was it for you? The interview society and the irresistible rise of the (poorly analysed) interview. Qualitative Research, 17/2, p. 144-158..
  • 3
    Importa dizer que o campo dos Estudos Urbanos tem sido em parte responsável pela prática etnográfica realizada por pesquisadores que provêm de outras ciências que não a antropologia. Veja-se o caso da Escola de Chicago, que promoveu um conjunto de estudos ímpares sobre a cidade, adotando a etnografia como método de recolha central (Eames & Goode, 1977Eames, Edwin & Goode, Judith Granich. (1977). Anthropology of the city. An introduction to urban anthropology. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, Inc..).
  • 4
    Se aqui se fala sobretudo em diário de campo, há que lembrar outras formas de registro, como o desenho etnográfico, realização de mapas, fotografia, os registros áudio e vídeo não necessariamente associados a entrevistas. Uma vasta bibliografia que não cabe aqui sistematizar dedica-se a estas formas de coleta (técnicas, ética específica, potencialidades metodológicas); destacamos, no entanto, exemplos internacionais clássicos na antropologia visual, Pink (2001)Pink, Sarah. (2001). Doing visual ethnography; images, media and representation in research. London: Sage., no desenho etnográfico, Taussig (2011)Taussig, Michael. (2011). I swear I saw this. Drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago: The University of Chicago Press. e, em língua portuguesa, Kuschnir (2014)Kuschnir, Karina. (2014). Ensinando antropólogos a desenhar: uma experiência didática e de pesquisa. Cadernos de Arte e Antropologia, 3/2, p. 23-46..
  • 5
    De enfatizar que a sociologia parece produzir a discussão em espelho, igualmente útil, de que os processos de interação entre os pesquisadores e os interlocutores não se devem antepor à análise e compreensão das realidades estudadas (McLeod & Thomson, 2009McLeod, Julie & Thomson, Rachel. (2009). Researching social change. London: Sage.; Atkinson, 2005Atkinson, Paul. (2005). Qualitative research - unity and diversity. Forum: qualitative social research, 6/3.).
  • 6
    Nessa e nas demais citações em idioma estrangeiro, a tradução é livre. No original, “the logging record actually constitutes the data”.
  • 7
    No original, “the interview itself has made relatively little theoretical impact on the ways in which anthropological methods play a part in the representation of ethnographic details”.
  • 8
    Não existem dúvidas sobre a relação íntima entre etnografia, diários de campo e literatura de viagem, em que um dos símbolos reside em Tristes trópicos, de Lévi-Strauss (1993)Lévi-Strauss, Claude. (1993) [1955]. Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70..
  • 9
    Importa notar que nem todas as etnografias fazem coincidir a maioria dos seus registros em um ou mais cadernos. Cada pesquisador(a) terá a sua singularidade em termos de registro escrito, que pode ocorrer por meio da componente visual (desenhos, fotografias, imagens em movimento) ou áudio; podendo os escritos ter suportes diversificados (caderno, celular, computador pessoal) e variados formatos (narrativo, descritivo, pontual, sistemático).
  • 10
    Ao contrário da regra, por exemplo, Luís Fernandes (1998)Fernandes, Luís. (1998). O sítio das drogas. Etnografia das drogas numa periferia urbana. Porto: Editorial Notícias. preferiu escrever pela manhã, tal como Dan Rose (1990)Rose, Dan. (1990). Living the ethnographic life. Newbury Park: Sage Publications., em quem se inspirou para as reflexões que faz sobre a narrativa etnográfica. Ambos os autores, tendo enfrentado longas noites de observação em campo, dispensaram a escrita no momento de regresso à casa, adiando-a para a manhã seguinte, sem questionar a memória dos acontecimentos observados.
  • 11
    Importa notar que a posteriori nem sempre encontramos no diário, mesmo que sistematizado, o que havíamos encontrado na primeira análise (Lederman, 1990Lederman, Rena. (1990). Pretexts for ethnography: on reading fieldnotes. In: Sanjek, Roger (ed). Fieldnotes. The makings of anthropology. Ithaca/London: Cornell University Press, p. 71-91.: 80-81).

Referências

  • Almeida, Sónia Vespeira de & Cachado, Rita. Os arquivos dos antropólogos Caldas da Rainha: Editora Palavrão.
  • Anderson, Elijah. (1990). Streetwise: race, class, and change in an urban community Chicago: University of Chicago Press.
  • Appadurai, Arjun. (1986). Theory in anthropology: center and periphery. Comparative Studies in Society and History, 28, p. 356-361.
  • Atkinson, Paul. (2005). Qualitative research - unity and diversity. Forum: qualitative social research, 6/3.
  • Atkinson, Paul et al. (eds.). (2001). Handbook of ethnography London/New Delhi: Thousand Oaks/Sage.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2019
  • Revisado
    11 Set 2020
  • Aceito
    16 Set 2020
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