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TEORIA PÓS-COLONIAL E PENSAMENTO BRASILEIRO NA OBRA DE GUERREIRO RAMOS: O PENSAMENTO POLÍTICO (1955-1958)

POST-COLONIAL THEORY AND BRAZILIAN THOUGHT IN THE WORK OF GUERREIRO RAMOS: POLITICAL THOUGHT (1955-1958)

Resumo

O artigo analisa os textos produzidos por Guerreiro Ramos entre 1955 e 1958; período no qual ele se volta para o estudo do pensamento político brasileiro. Tratou-se de uma segunda etapa do projeto de pesquisa do autor, voltado para a elaboração de uma ciência social de caráter pós-colonial aplicada ao Brasil. Esse projeto começara no Ibesp, quando ele formulara estudos críticos sobre o pensamento social brasileiro. Uma vez vinculado ao Iseb, ele redirecionou sua pesquisa para a história do pensamento político brasileiro, no intuito de completar sua teoria da sociedade brasileira com uma ideologia do desenvolvimento nacional. A adoção de um método histórico-sistemático para analisar os textos permitiu apreender os elementos de continuidade entre as duas fases da pesquisa. Essa perspectiva diacrônica de análise contempla a dimensão sistemática da obra do autor não perceptível em análises focalizadas unicamente na reconstituição lógica de sua teoria.

Palavras-chave
Guerreiro Ramos; pensamento político brasileiro; ideologia

Abstract

The article analyzes the texts produced by Guerreiro Ramos between 1955 and 1958; period in which he turns his efforts to the study of the Brazilian political thought. It was a second stage of the author’s research project, focused on the elaboration of a post-colonial social science applied to Brazil. This project had started at IBESP, where he had elaborated critical studies on Brazilian social thought. Once he joined the ISEB, he redirected his research to the history of Brazilian political thought, in order to complete his theory of Brazilian society with an ideology of national development. The adoption of a historical-systematic method to analyze the texts allowed us to apprehend the elements of continuity between the two phases of the research. This diachronic perspective of analysis contemplates the systematic dimension of the author’s work, what is not perceptible in analyzes focused solely on the logical reconstruction of his theory.

Keywords
Guerreiro Ramos; Brazilian political thought; Ideology

A nova perspectiva teórica e epistemológica que emergiu ao longo das últimas duas décadas no âmbito acadêmico do chamado Sul Global (América Latina, África, Ásia e Oceania), relativa à necessidade de uma ciência social depurada do eurocentrismo, repercutiu no modo de considerar a obra de Guerreiro Ramos nos últimos anos. Compreende-se aqui como pós-colonial o campo de estudos dedicado a uma compreensão crítica do processo de construção e difusão do conhecimento a partir do centro global, no sentido de depurá-lo do eurocentrismo que o caracterizou em seu processo de expansão colonial ou imperialista para a periferia mundial. Sintonizado com os esforços de intelectuais periféricos de língua francesa, como Anta Diop, Mohamad Labadi e Aimé Césare, voltados para a elaboração de uma sociologia periférica, Guerreiro Ramos produziu nas décadas de 1950 e 1960 uma teoria capaz de adaptar criticamente a sociologia dita cosmopolita às circunstâncias específicas das nações periféricas - no caso, o Brasil (Maia, 2011Maia, João Marcelo Ehlert. (2011). Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro. Sociedade e Estado, 26/2., 2012Maia, João Marcelo Ehlert. (2012). Reputações à brasileira: o caso de Guerreiro Ramos. Sociologia & Antropologia, 2/4, p. 265-291., 2015Maia, João Marcelo Ehlert. (2015). A sociologia periférica de Guerreiro Ramos. Caderno CRH, 28/73, p. 47-58.; Lynch, 2015Lynch, Christian Edward Cyril. (2015). Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH [online], 28/73, p. 27-45.). É verdade que o campo de estudos ganharia mais força na década de 1970, com escritos de Edward Said, em torno dos quais se estruturou um cânone reconhecido de autores como Gayatri Chakravorty Spivak, Dipesh Chakrabarty e Partha Catterjee. Fato é que, se antes desse período ainda não havia o nome ou a palavra que hoje designa aquele campo, nem por isso deixava de existir o estudo do fato ou fenômeno social nos escritos de intelectuais a respeito do processo de descolonização africana, como Frantz Fanon e Aimeé Césaire, e de alguns escritores latino-americanos, como Edmundo O’Gorman e Leopoldo Zea. Artigos recentes abordaram a obra de Guerreiro sob perspectiva análoga, debruçando-se mais especificamente sobre o debate perpetrado pelo autor no plano da teoria sociológica no Brasil (cf. Lynch, 2015Lynch, Christian Edward Cyril. (2015). Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH [online], 28/73, p. 27-45.; Maia, 2015Maia, João Marcelo Ehlert. (2015). A sociologia periférica de Guerreiro Ramos. Caderno CRH, 28/73, p. 47-58.; Bringel & Domingues, 2015Bringel, Breno & Domingues, José Maurício. (2015). Teoria social, extroversão e autonomia: impasses e horizontes da sociologia (semi)periférica contemporânea. Caderno CRH [online], 28/73, p. 59-76. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-49792015000100005 ISSN 1983-8239. https://doi.org/10.1590/S0103-49792015000100005 Acesso em 27 nov. 2021.
https://doi.org/10.1590/S0103-4979201500...
). O propósito de Guerreiro Ramos (1996: 79)Ramos, Alberto Guerreiro. (1996) [1958]. A redução sociológica. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. de elaborar uma “teoria da sociedade brasileira”, sistematizada em um “Tratado brasileiro de sociologia”, está manifesto ao longo do período. Ele salientava que seus trabalhos deveriam ser lidos como “momentos de uma teoria da sociedade brasileira, cuja apresentação em obra especial, na base de notas, observações e pesquisas que há alguns anos venho fazendo, as circunstâncias ainda não me permitiram” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 17-18).1 1 Com o golpe de Estado de 1964, a oportunidade para a redação daquela obra se perdeu. Até então, Guerreiro somente sistematizara a parte epistemológica de seu projeto em A redução sociológica (1958). O material que guardava acabou aproveitado para o Tratado nos capítulos 4, 5 e 6 de Administração pública e estratégia do desenvolvimento (1966), obra produzida a pedido da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape-FGV) e alguns artigos publicados na sequência. Daí que, em entrevista no fim da vida, ele lamentasse o aspecto fragmentário de sua produção: “Nada foi acabado” (Oliveira, 1995: 160). Isso não significa, entretanto, que sua teoria da sociedade brasileira já não estivesse suficientemente esboçada nos diversos textos publicados no período. Esse havia sido o tema da própria A redução sociológica, abordado diversas vezes antes de sistematizá-lo no livro de 1958. Em outras palavras, a não publicação do Tratado de Guerreiro Ramos não impede o estudioso de recuperar e reconstituir, pelo exame de seus textos, a teoria que ele deixou de sistematizar.

Tratava-se de um projeto de pesquisa voltado para três conjuntos de questões. O primeiro dizia respeito à substituição da sociologia baseada no positivismo e na Escola de Chicago por outra, calçada na sociologia do conhecimento de Weber e Mannheim. O reconhecimento do caráter culturalista, relativista e historicista da ciência social impunha pensá-la à luz das necessidades e particularidades do contexto latino-americano, onde grassava o semicolonialismo e a dependência cultural. Os textos mais ilustrativos dessa discussão são Cartilha do aprendiz de sociólogo, de 1953; Notas para o estudo crítico da sociologia no Brasil, de 1954; Sobre a crise brasileira e a sociologia no Brasil, de 1956; Caracteres da intelligentsia, de 1957; Situação atual da sociologia, de 1958; e A redução sociológica, de 1958. Definidos os contornos da teoria sociológica que o orientava e o modo de adaptá-la à periferia, Guerreiro passava ao segundo conjunto de problemas, que tinham por finalidade “utilizar a ciência social como instrumento de organização da sociedade brasileira” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 14). Urgia aqui separar a parte considerada útil do nosso pensamento sociológico, comprometida com a autonomia nacional, daquela que, supostamente alienada, naturalizava a condição semicolonial do país. Os principais produtos dessa primeira fase, destinada a organizar o seu pensamento sociológico, foram elaborados quando Guerreiro esteve vinculado ao Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (Ibesp): O processo da sociologia brasileira, de 1953Ramos, Alberto Guerreiro. (1953). O processo da sociologia brasileira. Rio de Janeiro: [s.n.]., O problema do negro na sociologia brasileira, de 1954, e O tema da transplantação na sociedade brasileira, de 1954. A consolidação da crítica da sociologia brasileira efetuada afinal nas suas Notas para um estudo crítico da sociologia no Brasil [1954] serviria de base para sua primeira interpretação geral denominada A problemática da realidade brasileira, de 1955.

Guerreiro, porém, entenderia que semelhante interpretação informava mais sobre o que o Brasil havia sido - uma sociedade semicolonial, com consciência ingênua acerca de si - do que sobre o que ele estava em vias de se tornar: uma sociedade autônoma, com consciência crítica de si, graças à industrialização em curso e à formação de um mercado interno nacional. Ele então passou a um terceiro conjunto de tarefas, com o objetivo de municiar sua teoria com um pensamento político que servisse “de suporte à estruturação efetiva das tendências de autodeterminação vigentes hoje em nosso país” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 60). Uma vez que a transformação das condições materiais do país impunha uma tomada de consciência crítica pelos intelectuais, compreendendo a questão do desenvolvimento como um problema político e epistemológico, Guerreiro buscava no pensamento político brasileiro subsídios para uma ideologia orgânica, que naquele momento servisse de “suporte à estruturação efetiva das tendências de autodeterminação vigentes no país” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 60). Seus textos do período do Iseb refletem esse deslocamento de seus estudos, do pensamento sociológico para o político: A problemática da realidade brasileira, de 1955, A dinâmica da sociedade política no Brasil, de 1955, Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados de 1870 aos nossos dias, de 1955, A ideologia da jeunesse dorée, de 1955, O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil, na década de 1930, de 1956, Nacionalismo e xenofobia, de 1956, Ideologias e segurança nacional, de 1957, Caracteres da intelligentsia, de 1957, e Condições sociais do poder nacional, de 1957. Tendo em vista a preexistência de artigo dedicado ao estudo do período ibespiano (Lynch, 2015Lynch, Christian Edward Cyril. (2015). Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH [online], 28/73, p. 27-45.), durante o qual Guerreiro se debruçou sobre o pensamento sociológico brasileiro para elaborar sua teoria da sociedade brasileira (1953-1955), o presente artigo contemplará esse segundo momento ou fase de sua pesquisa, ao longo do qual, no seu período isebiano, Guerreiro se debruçou sobre a história do pensamento político brasileiro, no intuito de lastrear sua ideologia nacional-desenvolvimentista (1955-1958).

O presente artigo também busca elucidar as motivações de Guerreiro em semelhante projeto de pesquisa no período. A crise política que resultou no suicídio de Vargas afetou profundamente os membros do Ibesp, que passaram a reivindicar a sustentação ideológica do processo de desenvolvimento em oposição às ideologias liberais por eles julgadas conservadoras. Atuando junto ao Ministério da Educação e Cultura, Hélio Jaguaribe conseguiu estatizar o Ibesp, sob o nome de Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Convidado a assumir o Departamento de Sociologia do recém-fundado instituto, Guerreiro passou a argumentar que a industrialização, a urbanização e o crescimento do mercado interno viabilizavam a superação da condição semicolonial denunciada em seus escritos anteriores. O presente artigo pretende, assim, recortar o período histórico de produção dos textos isebiano (1955-1958) e examiná-los cronologicamente, a fim de descobrir a lógica de sua produção e o itinerário íntimo do autor na tentativa de elaborar sua teoria da sociedade brasileira. Uma análise organizada dos textos do período, acredita-se, permite identificar os elementos de continuidade entre os trabalhos do período anterior, dedicado ao estudo do pensamento sociológico brasileiro, no intuito de elaborar os fundamentos de uma teoria sociológica brasileira, e os escritos do período seguinte, dedicados ao estudo do pensamento político brasileiro, com vistas à elaboração de uma teoria ou ideologia política brasileira, voltada para o esforço desenvolvimentista. Ao fim, será possível desenvolver a hipótese de que, já armado, na prática, de sua teoria da sociedade brasileira e da ideologia do nacional-desenvolvimentismo, Guerreiro pôde se lançar de modo mais desembaraçado à atividade política como intelectual do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) depois de sua saída do Iseb em 1958.

POR UMA TEORIA GLOBAL DA SOCIEDADE LOCAL: FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E ORIENTAÇÃO POLÍTICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA PERIFERIA

Nesta primeira seção analisaremos A problemática da realidade brasileira (1955) e A dinâmica da sociedade política no Brasil (1955). Neles se encontra a culminância da discussão elaborada por Guerreiro no contexto do Ibesp, sobre as especificidades do fazer sociológico na periferia mundial e a formulação de uma teoria sociológica de corte pós-colonial. No primeiro texto, elaborado como conferência inaugural do curso extraordinário oferecido pelo Iseb, Guerreiro criticava as insuficiências e incorreções das formulações sociológicas então utilizadas para a compreensão do tema das sociedades nacionais. A sociologia positivista era criticada como inadequada para compreender a realidade nacional posto que admitia “uma noção empírica da realidade social, considerando-a como algo ‘coisificado’, objetivado, exterior ao homem” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 80). Por outro lado, a tentativa “americana” de compreender a sociedade nacional limitava-se a colecionar fatos, estudando comunidades ou fazendo surveys locais. Também essa perspectiva empirista tornava impossível a formulação de categorias compreensivas da totalidade; afinal, para o autor, “a teoria global de uma sociedade é requisito prévio para a compreensão de suas partes” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 83). No lugar do proclamado dogmatismo e do empirismo da escola sociológica positivista, Guerreiro propunha uma teoria global da sociedade local, historicamente orientada e politicamente motivada (práxis), capaz de apreender o caráter dinâmico da realidade, que compreenderia a liberdade humana e os ingredientes peculiares de cada nação como elementos condicionantes do pensar sociológico: “Não deveríamos partir para estudos de pormenor antes de termos consciência crítica da realidade social do país. Aqui também é a visão do todo que condiciona a compreensão das partes” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 85). Guerreiro também criticava as interpretações sociológicas que, aspirando à condição de teoria global da sociedade nacional, interpretavam-na a partir de fatores como a raça, o clima, a economia, a cultura, a alma ou o caráter nacional. O sujeito da realidade era o homem e este, por mediação, a efetivava conforme as possibilidades do seu contexto. O pensamento deveria partir dos fatos não considerados em si mesmos, mas como elementos de um processo histórico e social. A sociologia teria surgido da aspiração de homens empenhados em solucionar os problemas de sua época e de sua sociedade, e era esse engajamento que dava sentido e imaginação à atividade intelectual: “A sociologia sem práxis é um non-sens. Apenas professores de sociologia e literatos a admitem” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 85).

Guerreiro concluía com um primeiro esboço interpretativo do processo sociopolítico brasileiro, no qual identificava as características da sociedade brasileira destinadas a desaparecer com o processo de desenvolvimento. A primeira dessas categorias, de caráter estutural, era a dualidade. Tratava-se de uma característica global do país. Éramos atravessados pela “contemporaneidade do não coetâneo”: contando sempre um repertório de posturas e instituições transplantadas para satisfazer as exigências decorrentes de nossa organização como país independente. Ao contrário do que acreditava Oliveira Vianna, o dualismo não constituía patologia causada por uma deficiência psicológica das elites. Ela resultava da conexão histórico-universal de que o Brasil participava e tendia a ser superada desde que houvesse condições objetivas geradas pela industrialização, pela urbanização e por um mercado interno integrador do território nacional. A segunda característica da sociedade brasileira, de caráter cultural, era a heteronomia. Nos países sem tradição cultural, o processo colonizador suscitava a adesão aos moldes culturais a tecnológicos das metrópoles. O mimetismo resultante amortecia “a capacidade de avaliação crítica dos produtos culturais e tecnológicos importados” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 91). No Brasil, os critérios civilizacionais vigentes não seriam induzidos da realidade nacional, mas da realidade de outros países. A terceira característica sociológica da sociedade brasileira era a alienação, sinônima de dependência cultural. Dada a ausência de condições materiais, a sociedade alienada se percebia por uma perspectiva emprestada e se modelava à imagem dos países cêntricos. Não se percebia como sujeito, mas como objeto. A quarta característica global da sociedade brasileira residia no amorfismo, entendido como dispersão dos esforços intelectuais. Na América Latina, as energias psíquicas do homem se dispersavam sem acúmulo ou acabavam por se introverter, pela ausência de formas que as organizassem. Esse fato resultava da inorganicidade das instituições, que se alteravam conforme as influências do exterior. A colonialidade impedia “os processos de forma a forma que assegurariam e canalizariam a produção de um contínuo vital, dando origem a uma verdadeira evolução, conforme um jogo bipolar de potência e resistência”. A última característica da sociedade brasileira, que sintetizava as demais, era a inautenticidade, que se referia a toda espécie de “existência falsificada ou perdida, em mera aparência”. O país era guiado por normas que não permitiam “a atualização de suas possibilidades e que vigoram à custa de continuo deficit do seu ser”. Os valores vigentes não correspondiam a “uma apropriação racional e simpática dos acidentes de nossa imediata moldura natural e histórica”. A consciência crescente dessa inautenticidade, porém, testemunhava a difusão de uma consciência crítica até então restrita a umas poucas personalidades, como Uruguai, Mauá, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Pandiá Calógeras.

Em síntese, para Guerreiro, a dimensão fundamental da problemática brasileira consistia na duradoura e aguda tensão existente, ao longo da história nacional, entre forças centrípetas (unitárias ou integradoras) e centrífugas. Até 1930, por falta de “suportes objetivos”, teriam prevalecido estas últimas, não tendo passado os antecedentes centrípetos de “episódios singulares”. Depois de 1930, a tendência centrípeta teria se tornado preponderante, condicionada pela expansão da produção para o mercado interno. Em meados da década de 1950, aquela oposição primordial se materializava no embate entre uma sociedade velha, comprometida com o passado e as forças centrífugas, e uma sociedade recente, implicando um novo estilo de vida ainda por criar ou apenas ensaiado. As condições objetivas ou materiais postas pela industrialização e pela urbanização encaminhavam o impasse para uma solução política. A grande crise em que se debatia a sociedade brasileira naquela época deveria ser aproveitada intelectualmente: “[é] vivendo profundamente a crise brasileira que podemos ganhar em lucidez e compreendê-la” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 88).

Para conhecer suas tendências futuras, Guerreiro deslocou o foco de seus estudos para a compreensão da dinâmica política. Não por acaso, seu texto seguinte, apresentado em dezembro de 1955 no Instituto de Altos Estudos da América Latina da Universidade de Paris, chamava-se A dinâmica da sociedade política no Brasil (1955). Ele interpretava agora o desenvolvimento político-social brasileiro, tentando vincular seus grupos sociais e ideologias políticas às mudanças estruturais ao longo de sua história. Mas era preciso aqui proceder com objetividade, distinguindo teorização ideológica e teorização científica. A primeira teria cunho político-partidário, visando à justificação dos interesses particulares de um grupo ou classe social. Tal caráter não a impedia de eventualmente atingir alto grau de sofisticação, assumindo a aparência de ciência. Já a teorização sociológica ou científica se aplicava à compreensão global da sociedade e transcendia o caráter ideológico. Embora a teorização científica também fosse condicionada social e historicamente, a consciência desse condicionamento lhe permitia transcender a dimensão puramente ideológica. Era esse “radicalismo empírico-dialético” que impedia o cientista social de se confundir com o ideólogo de partido, permitindo-lhe indagar as “situações existenciais de que decorrem, que classe ou grupo as representa e em que momento elas aparecem. O que ilumina as correntes políticas é a posição na estrutura econômico-social dos que as representam e a época em que eles vivem” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 62).

Munido dessa precaução metodológica, Guerreiro avançava a tese de que, na atual etapa capitalista do Ocidente, as posições dos grupos podiam ser reduzidas a três: ascendente (progressista), dominante (conservadora) e decadente (reacionária). Cada uma produzia formas específicas de pensamento. Uma vez que as classes ou grupos ascendentes focalizavam sua ação no futuro, suas ideologias exprimiam “um impulso renovador de libertação” e uma atitude crítica baseada em valores como razão, progresso e liberdade. Orientadas por uma visão teleológica da história, elas perdiam de vista em sua cadeia de normatividade “a dialética infinita da realidade social” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 63). Por suas vezes, as classes e os grupos dominantes consideravam definitivo o estádio atual da estrutura social, admitindo a mudança apenas na chave de atualização do existente. Enfatizando o valor da ordem e da hierarquia, as classes dominantes acreditavam na naturalidade ou eternidade das leis de funcionamento da realidade. Já as classes e os grupos declinantes, “aposentados da eficácia histórica” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 64), desejavam retornar ao período em que dominavam, clamando pela restauração do passado. As posições de ascensão, dominação e declínio, com suas respectivas ideologias, seriam também posições de coexistência e sucessão: elas existiriam simultaneamente, brandidas classe a classe, conforme as posições por elas ocupadas em cada período histórico. O modelo elaborado por Guerreiro concluía que, somente quando se acentuassem as contradições decorrentes das transformações materiais, as classes dominadas romperiam a alienação e assumiriam posição de autonomia no processo político.

Segundo sua interpretação, ascendente até 1822, a “classe latifundiária” teria dominado a cena brasileira até 1930, cedendo então paulatinamente sua hegemonia à “burguesia industrial” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 72), que dominaria depois de 1945, em uma aliança conflituosa com a classe latifundiária decadente, materializada partidariamente no Partido Social Democrático (PSD). A expansão da produção para o mercado interno e o incremento da produção de bens de capital teriam determinado “o declínio da burguesia latifúndio-mercantil como classe dominante” em benefício da “burguesia industrial”. Entre 1930 e 1945, uma situação de equilíbrio de poder teria se conformado, diante da necessidade de expansão da capacidade regulatória do Estado. Por isso, Guerreiro explicava o intervalo bonapartista do Estado Novo como uma “ditadura da híbrida burguesia nacional” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 74). A posterior exacerbação dessa polaridade decorria do aprofundamento da industrialização, considerada fator determinante da dinâmica social e política, ainda que não exclusivo. No intervalo crucial de 1870 a 1930 destacara-se a classe média, que sempre atuara como uma “espécie de vanguarda” progressista, responsável por todas as mudanças sociais (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 72). Após 1930, com a emergência do proletariado e da burguesia industrial, essa “pequena burguesia” viria adotando tendências direitistas, abraçando sucessivamente o integralismo e a UDN (União Democrática Nacional). Depois de 1945, a classe média tinha se tornado “uma força reacionária domesticada por uma ideologia reformista e moralista” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 75). Por sua vez, nascida de elementos oriundos da massa de ex-escravos e da plebe rural em torno das fazendas, a “classe proletária”, ascenderia desde a década de 1880 de sua primitiva irrelevância, ganhando acelerado protagonismo desde 1930. Ela encontrava sua tradução partidária no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Se até 1930 era na classe média que se manifestavam “as tendências dominantes do processo de desenvolvimento da sociedade brasileira”, era nas suas ideologias que Guerreiro buscava antecedentes para formular sua ideologia orgânica de uma sociedade brasileira em processo de mutação. A campanha civilista (1909-1910), a reação republicana (1922), o movimento tenentista (1922-1930), movimentos puramente liberais, eram marcos “da revolução da classe média contra as oligarquias latifúndio-mercantis” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 72).

O DESENVOLVIMENTO SOCIOPOLÍTICO NO PENSAMENTO POLÍTICO: EM BUSCA DE UMA IDEOLOGIA ORGÂNICA DA SOCIEDADE BRASILEIRAL

A partir dessa interpretação da dinâmica brasileira, que extraía das diferentes classes sociais suas respectivas ideologias em cada contexto do desenvolvimento histórico, Guerreiro procederia de modo análogo ao que procedera, no Ibesp, para formular sua teoria da sociedade brasileira. Tendo já partido do estudo crítico do pensamento sociológico brasileiro, entendido como ferramenta para a elaboração de uma ciência social pós-colonial, Guerreiro enveredava agora para um estudo crítico do pensamento político brasileiro, no intuito de formular uma ideologia orgânica da sociedade nacional. Foi o que fez em seus textos posteriores. Em vez de estudadas como simples transposições dos países cêntricos, Guerreiro (1995: 76) sustentava que a trajetória das ideias políticas no Brasil deveria ser explicada à luz da sua funcionalidade no desenrolar concreto do seu desenvolvimento político: “As doutrinas, na luta partidária do Brasil, têm servido para camuflar as intenções e os propósitos, e a compreensão do seu sentido existencial e não meramente lógico requer que o analista as transcenda, apreciando as conexões objetivas dos que dela se utilizam”. As ideologias deveriam ser avaliadas não em si mesmas, mas em sua interação com os interesses dos grupos que as brandiam. Entendida como um conjunto de ideologias, a cultura política deveria ser considerada no quadro do processo de progressiva tomada de consciência da condição colonial e da viabilidade de sua superação. Foi o que ele fez em três textos produzidos em 1955 e 1956: Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados de 1870 aos nossos dias (1955), A ideologia da jeunesse dorée (1955) e O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil, na década de 1930 (1956). Nesses textos, ele transpôs para o político sua antiga categorização do pensamento sociológico brasileiro entre autêntico ou orgânico, de um lado, e inautêntico e alienado, de outro. Do ponto de vista ideológico o primeiro passava a ser considerado progressista; e o segundo, conservador.

Em Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados de 1870 aos nossos dias (1955), Guerreiro vasculhava a literatura política produzida desde 1870 pela classe média, no intuito de averiguar como os grupos progressistas haviam teorizado as mudanças políticas. Ele queria saber se tais grupos haviam agido com base em uma teoria da sociedade brasileira. Continuava, então, a se afastar de certas premissas de Oliveira Vianna, para quem a ação dominante de nossas elites teria sido sempre caracterizada pela crença na “eficácia imanente de teorias europeias e norte-americanas” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 79). Apesar do elogio a Viana, que, “na parte que diz respeito às nossas elites, é, certamente, o máximo de objetividade que, até agora, os estudos sociológicos atingiram, entre nós” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 79), Guerreiro reelaborava a crítica que já lhe havia dirigido ao cuidar do pensamento sociológico brasileiro, devido ao modo como encarava a funcionalidade dos mecanismos de transplantação institucional. Tendo em vista a inevitabilidade da transplantação em um contexto colonizado e dependente, o idealismo utópico deveria ser compreendido como “um expediente pragmático a que tiveram imperativamente de recorrer a fim de racionalizar ou justificar interesses e reivindicações de grupos e facções atrelados a tendências nem sempre legítimas da sociedade nacional” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 80). Mannheim e Lukács o levaram a crer que, “no Brasil, as práticas idealístico-utópicas estiveram quase sempre aliadas às tendências positivas da evolução da sociedade”, representando “várias tentativas de teorização da realidade nacional, orientadas no sentido de possibilitar sua melhor conformação ou de dominar o processo de crescimento da sociedade nacional” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 80). Guerreiro reabilitava assim o “idealismo utópico” da classe média, ou seja, o liberalismo, da condenação em que havia sido relegado por Oliveira Viana, tendo como objetivo “focalizar os esforços e, registrando o momento em que surgiram, ganhar maior compreensão ou de dominar o processo de crescimento da sociedade nacional” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 80).

O argumento de Guerreiro era o de que, desde 1870, haveria uma contradição entre as instituições monárquicas vigentes, apoiadoras do latifúndio escravista, e as novas forças produtivas, que aspiravam à superação daquela infraestrutura. Haveria um embrião de industrialização, cujas consequências se faziam sentir no plano institucional. Sua posição a respeito do pensamento político brasileiro pretérito era assim antes compreensiva do que puramente crítica ou apologética. O manifesto republicano de 1870 era por ele considerado expressivo das profissões liberais, que almejavam por mudanças políticas, e refletia a consciência possível dos quadros da classe média emergente (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 83). O manifesto dos positivistas, por seu turno, teria sido o primeiro documento a apontar a necessidade de uma “teoria da sociedade brasileira como fundamento da ação política e social” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 83). Embora seu mais destacado representante, Teixeira Mendes, tivesse falhado em adaptar Comte ao meio brasileiro, seu programa conseguira exprimir “genuínas tendências da sociedade nacional e contribuiu para a superação das contradições nelas vigentes” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 85). Durante a Primeira República, Guerreiro destacava a sociologia política de Sílvio Romero como a mais bem sucedida na tentativa de orientar a política conforme uma teoria da sociedade brasileira. Ele já se dera conta da dualidade da cultura nacional, premida entre, de um lado, a necessidade de atender às exigências exógenas impostas à adaptação do Brasil ao mundo e, de outro, restringir aquele atendimento aos limites impostos pelo atrofiado desenvolvimento nacional. Romero também já interpretava as ideologias a partir dos partidos políticos, tarefa que Guerreiro renovava em seu próprio tempo. Outra valiosa contribuição sua residiria em sua crítica das oligarquias nacionais, que o levava à caracterização do Brasil como uma vasta feitoria, verdadeira colônia. Infelizmente Romero não sistematizara sua teoria, deixando questões contraditórias (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 86).

O terceiro momento dos esforços de teorização política brasileira estava identificado com os ideólogos da ordem e progresso, que nas décadas de 1910 e 1920 teriam exprimido “em larga margem, mais por intuição do que por pura intelectualização, tendências reais da sociedade brasileira, naquele momento” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 92). Radicalizado pelas revoltas tenentistas, o movimento revelara autores como Oliveira Viana, que refletiam “de modo mais ou menos ingênuo as tendências centrípetas de autodeterminação atuantes na sociedade brasileira naquela época”, em “uma concepção psicologística do processo histórico-social, a qual admite a possibilidade de transformação da sociedade pelo esclarecimento mental, intelectual e moral e muitas vezes uma certa crença na salvação pelas elites” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 94-95). Tais limitações não os teriam impedido de diagnosticar acertadamente muitos males brasileiros. Guerreiro voltava à tese lukacsiana da “consciência possível” para afirmar que, pela ausência de condições objetivas para uma revolução de classe média, ainda não era possível naquele tempo uma “concepção configurada da sociedade brasileira”. As forças políticas e intelectuais ainda não dispunham de elementos para compreender a relação entre mudança política e contexto socioeconômico. Ao abrir lugar nos quadros dirigentes à classe média, institucionalizar as forças econômicas pela sindicalização, liquidar a hegemonia dos grandes Estados e firmar a intervenção estatal na economia, a Revolução de 1930 criaria as condições para a estruturação ideológica do país. Desde então, elevara-se o grau de diferenciação entre as classes sociais, com a ascensão da burguesia industrial, a decadência do latifúndio e o surgimento do operariado.

Para Guerreiro, a conformação do problema político contemporâneo do país - o da liquidação da política de clientela, por meio da estruturação ideológica dos interesses das classes sociais - se delinearia na literatura do período entre 1930 e 1937. O esforço ali desenvolvido de “teorização política da realidade nacional” apontava três diferentes direções. A primeira era a normativo-acadêmica, pautada “por uma concepção psicológica do processo social, na linha que acreditava possível a salvação da sociedade através da tutela das massas exercida pelos mais esclarecidos, ou através da transformação do caráter do povo, pela educação” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 96). A segunda era a indutiva, cujos intelectuais, a despeito da falta de metodologias rigorosamente científicas, “conseguiram, apesar disto, captar alguns aspectos essenciais dos acontecimentos” - entre eles Martins de Almeida, Oliveira Viana, Azevedo Amaral e Virgínio Santa Rosa. Por fim, havia a direção pragmático-partidária, impressa por Plínio Salgado à frente do Ação Integralista Brasileira (1932) e por Luís Carlos Prestes à frente do Partido Comunista do Brasil (1935). Esta última já não o interessava, porque suas linhas teriam mimetizado aquela o fascismo e esta o bolchevismo. A conclusão indicava que a “diferenciação social das classes pela expansão industrial e a reorientação da economia brasileira no sentido de um amplo mercado interno e, portanto, anticolonial” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 97) vinham se acelerando sob o impulso da crise do imperialismo (colonialismo). Nenhuma, no entanto, teria produzido “a formulação de uma ideologia orgânica da realidade nacional que refletisse a direção dominante do processo de desenvolvimento da sociedade brasileira” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 97). Daí a crise da organização político-partidária, cujas premissas ideológicas estavam em descompasso com as mudanças sofridas desde 1930. A superação dessa crise dependia de uma teoria que sustentasse um pensamento político (isto é, uma ideologia) que encaminhasse “as forças políticas no sentido da tendência dominante do processo de desenvolvimento do país” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 97).

Em busca de contribuições para a sua projetada teoria, Guerreiro voltouse se de modo mais detalhado para o pensamento político da década de 1930, apontando as tendências conservadoras e progressistas da sociedade brasileira em três textos na sequência. O primeiro, dedicado à linhagem de autores classificados antes como responsáveis pela “direção normativo-acadêmica”, chamava-se A ideologia da jeunesse dorée (1955). Tratava-se de uma orientação de tendência conservadora, própria “de um grupo de escritores, oriundos de famílias tradicionais e abastadas, afastados das lutas partidárias e preocupados quase exclusivamente com a vida intelectual” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 152). Diante da investida da classe média e do proletariado, seus representantes - como Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Afonso Arinos de Mello Franco e Otávio de Faria - interpretavam os acontecimentos recentes na chave da decadência, saudosista da boa e velha ordem do Império, época em que sua classe social prevalecia na política brasileira. As mudanças eram explicadas como decorrentes da “indisciplina mental, desordem intelectual e consequentemente só poderão ser erradicadas por operações psicológicas: recristianização, primado das elites letradas, melhoria do caráter nacional” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 153-154). Cultivando uma noção livresca de cultura, os conservadores eram “induzidos a um certo esteticismo diante de si mesmos e da vida, tentando a perfeição anterior pela autoanálise, pelo esclarecimento, pelo exercício do domínio da vontade e, além disso, pela concepção do homem e da sociedade em termos preponderantemente psicológicos” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 153). Por isso, eles tenderiam “a conceber o mundo como uma ordem ideal, por excelência, de que seria reflexo o mundo material. Guerreiro interpretava que, por suas condições de classe, esses autores permaneciam distantes das “questões práticas da vida” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 160). A tese da salvação do país pelos intelectuais e pelas elites explicitava o elevado conceito que esses escritores tinham de si, o seu temor das novas classes emergentes e seu inconformismo com a perda da hegemonia: “A estrutura econômica e social, na qual a classe dirigente era constituída de grandes proprietários de terras, devia conservar-se imutável, sendo imorais e satânicas as tendências que laboravam por sua transformação qualitativa” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 167). Amparados parasitariamente pelo Estado, esses escritores estavam descomprometidos com “o esclarecimento mesmo da essência da estrutura social vigente e sempre de modo a evitar a total ociosidade de cidadãos que, de outra forma, poderiam converter-se em fermentos de influências subversivas” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 138). A produção da jeunesse dorée ilustrava o tipo de literatura classista e alienada fabricada pelas elites dominantes até 1930.

Guerreiro pretendia assim empregar o instrumental das ciências sociais para desqualificar como inautênticos, decadentes e alienados autores que continuavam gozando de prestígio na década de 1950. E os atacava pelo fato de eles apostarem em chaves explicativas anticientíficas. A redução do problema político a um problema moral seria consequência de uma concepção intelectualista do processo histórico e social. A recristianização pregada por Amoroso Lima revelava uma completa incompreensão dos fatos sociais na sua concretude. Ele nunca argumentava no plano prático, tratando a política sempre no plano normativo da generalidade e da abstração (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 155). A defesa feita por Afonso Arinos de um governo de intelectuais, entendidos como publicadores de livros que possuíam o grau de doutor, era de uma ingenuidade completa. A interpretação dos problemas nacionais em termos de psicologia nacional, bem como a atribuição de aspectos das vidas dos povos a tais entidades místicas, tomava “um estádio transitório da psicologia coletiva como definitivo; ou confundia uma condição faseológica de um povo com sua própria natureza” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 162). A admissão tão somente, por parte dos dorés, da mudança operada pelo reformismo era descartada por Guerreiro como quimérica, pois seria “da essência do processo histórico-social a ocorrência intermitente de alterações qualitativas, no domínio do costume e da tradição (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 156). Uma vez que o teste de validade de qualquer pensamento não se operava pelo confronto de teses doutrinárias, mas por sua funcionalidade em relação ao real, a literatura daqueles autores era inútil para conhecer a realidade. Ela só merecia ser estudada “como material subsidiário, por dizer clínico”, “para estudar a psicologia específica de um estrato específico da sociedade, num dado período” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 164). A autoridade intelectual daqueles autores só se explicava pela “incultura geral do nosso público e pelo despoliciamento crítico dominante em nossos meios literários e científicos” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 160).

O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil, na década de 1930 (1956) foi o segundo estudo de história do pensamento político brasileiro desenvolvido por Guerreiro Ramos no intuito de haurir subsídios para a formulação de sua ideologia orgânica da sociedade brasileira. Se A ideologia da jeunesse dorée buscava compreender criticamente os antecedentes do conservadorismo de seu próprio tempo para descartá-lo, o novo estudo descrevia os antecedentes da tendência progressista de seu tempo, permitindo a superação da perspectiva alienada da “juventude dourada”. Ele se dedicava aos autores da década de 1930 responsáveis pela segunda direção apontada em Esforços de teorização, por ele ali classificada “indutiva”, e que compreendia um conjunto de reflexões, reconhecendo positivamente os processos de complexificação das classes, decadência do latifúndio, industrialização e o surgimento do proletariado. A emergência da sociologia deslocava aqui de sua antiga centralidade o parasitário intelectual beletrista, substituindo-o por uma moderno intelectual saído da classe média e voltado para “investigações realmente relacionadas com as necessidades de desenvolvimento do país” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 138). Aqui, Guerreiro atacava a perspectiva positivista da sociologia de Florestan Fernandes que, a título de “inventar a roda”, teria desqualificado todas as contribuições pretéritas de José Maria dos Santos, Azevedo Amaral, Virgínio Santa Rosa, Martins de Almeida, Caio Prado Jr. e até o mais importante sociólogo brasileiro, Oliveira Viana. Mas Guerreiro também atacava a suposta esterilidade da sociologia de Gilberto Freyre, que se limitava a produzir uma literatura de tipo “sorriso da sociedade” para edulcorar o passado. Esses “sociólogos” e “antropólogos” que timbravam em desprezar seus antecessores não passariam, ao seu juízo, de “literatos ou beletristas, disfarçados em homens de ciência” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 178).

Em contraste, Guerreiro elogiava os expoentes da “sociologia inconsciente” da década de 1930: “Quanta objetividade, em larga margem, nos estudos de um Azevedo Amaral, de um Virgínio Santa Rosa, de um Martins de Almeida”, que teriam conseguido, a despeito de seus erros, apontar “as tendências objetivas do momento em que viviam” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 169). Martins de Almeida já teria destacado em 1932 a necessidade que tinha o Brasil de integrar seu território pela formação de um mercado interno, superando o conflito entre o velho domínio oligárquico e a emergência de novas classes, que pressionavam por reformas (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 172). Virgínio Santa Rosa, por sua vez, seria autor de “um dos livros mais lúcidos sobre a Revolução e documento importante de nossa sociologia política”. Enquanto os escritores da jeunesse dorée “embaralhavam- se no subjetivismo e se deixavam obnubilar pela nostalgia dos ‘velhos tempos’”, ele vira o futuro melhor que o passado e o presente, diagnosticando corretamente a diferenciação de classes e demandas que se operavam com a ascensão da pequena burguesia (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 172). Entre todos, porém, era Azevedo Amaral “o mais complexo e completo” escritor da época, por sua fidelidade ao tema da realidade nacional, igualando-se a Alberto Torres e superando Oliveira Vianna. Ele explicara com clareza sociológica o Estado Novo como uma imposição da trajetória econômica da nação em direção à ampliação da intervenção da atuação estatal, de formação de um mercado interno e de uma dinâmica econômica endógena, na forma de uma “ditadura da burguesia nacional” num movimento, ainda incompleto, de transição do poder entre setores da burguesia (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 180). Era aquela tradição emancipatória dos autores do “inconsciente sociológico”, que produzira “o mais bem-sucedido esforço de teorização dos fatos ocorridos naquela faixa de tempo”, que deveria ser aproveitada para a elaboração de uma “teoria da sociedade brasileira” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 182).

TEORIA E PRÁTICA: A IDEOLOGIA NACIONAL-DESENVOLVIMENTISTA E O PAPEL DO INTELECTUAL MILITANTE

Os estudos sobre o pensamento político brasileiro foram fundamentais para esclarecer Guerreiro Ramos sobre a forma por que as ideologias se articulavam com a dinâmica da mudança social e política e o papel de suporte exercido por aquelas de cunho progressista. Mas deixaram tambem clara a sua própria posição naquela quadra histórica. Eles lhe permitiram se perceber como um intelectual de novo tipo, extraído das classes emergentes, identificado com as ciências sociais e dedicado ao trabalho de explicar e apoiar uma política nacionalista progressista voltada para o desenvolvimento. O material recolhido ao longo de suas pesquisas sobre o pensamento político brasileiro, bem como as lições por ele hauridas nesse processo, serviu a Guerreiro de insumos indispensáveis para o passo seguinte no seu projeto: elaborar uma ideologia orgânica da sociedade brasileira. Preliminarmente, ele precisava definir seu conceito de nacionalismo e o de ideologia, o que ele fez em Nacionalismo e xenofobia, de 1956, e Ideologia e segurança nacional, de 1957. Voltou-se depois para o conceito de inteligentsia, a fim de definir a relação entre o intelectual e o militante político, apresentando finalmente, em Condições sociais do poder nacional (1957), sua ideologia nacional-desenvolvimentista, que partia de uma interpretação teórica da realidade brasileira para justificar os esforços modernizadores do nacionalismo. Em Nacionalismo e xenofobia (1956) Guerreiro diferenciava o nacionalismo brasileiro, destacando sua positividade em contraste com o violento e retrógrado nacionalismo europeu. Naquela fase da vida brasileira, nacionalismo significava, antes de tudo, uma “expressão da emergência do ser nacional” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 55). Até pouco antes, a nação não passava de uma ficção jurídico-constitucional. Uma vez porém, alcançadas as condições materiais para o desenvolvimento do mercado interno e a integração do território nacional, surgiam as condições para transformar a superestrutura no país. As condições materiais e a realidade sociológica demandavam uma ideologia nacionalista capaz de promover o desenvolvimento do país baseado na autodeterminação. A “nova teoria sociológica” brasileira, formulada pelos “profissionais de vanguarda” do Iseb, era a grande expressão teórica das mudanças em curso: “Pela primeira vez, na história das ideias em nosso país, aparece uma teoria sociológica autêntica em cujas categorias se reconhecem aqueles que estão vivendo o que é novo no Brasil” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 57).

Em Ideologia e segurança nacional (1957), Guerreiro reconhecia que qualquer política era ideologicamente condicionada, refletindo sempre a posição dos atores na estrutura social (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 46). O capitalismo sempre se caracterizara pela organização do conflito ideológico entre esquerda e direita: “Onde quer que se forme um grupo social surgirão, necessariamente, uma esquerda e uma direita” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 66). E definia os dois polos nos seguintes termos: “A direita é principalmente uma posição de compromisso com a tradição ou o status quo e, por isso, é restauradora ou imobilista. A esquerda é eminentemente uma posição de compromisso com uma possibilidade ainda não efetivada no domínio social” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 66). Em vez de descartar a primeira, todavia, coerente com sua sociologia compreensiva, Guerreiro avançava que uma política de segurança nacional deveria ser elaborada conforme as contribuições de ambas as posições em seus contextos históricos específicos. A contribuição dos cientistas sociais passava por recomendar a formulação de políticas públicas mais adequadas a cada circunstância histórica, a fim de lhe assegurar o máximo de funcionalidade. Naquele momento, uma política de segurança nacional passava necessariamente por apoiar os esforços de industrialização e de autonomia no plano internacional. Para Guerreiro, as tentativas de neoliberais como Eugênio Gudin de condenar o planejamento econômico como tendente ao totalitarismo não passavam de “parnasianismo econômico. Seu cienticificismo não passava de retórica para tentar o impossível, que era esvaziar a economia de seu conteúdo político.2 2 “Aparentemente rigorosa, a atitude do economista parnasiano é comodista e primária. De um lado, porque desobriga o economista a pensar em termos nacionais, o que seria penoso; do outro, porque essa atitude supõe que o pensamento econômico possa ser ideologicamente neutro. Ora, a economia é economia política, sempre se elaborou, nos países líderes da cultura, tendo em vista defender e incrementar o poder nacional. ‘O grande objetivo da política econômica de qualquer país - dizia Adam Smith - é aumentar suas riquezas e a potência nacional” (Ramos, 1960: 76). E assim defendia a regulação do comércio e a aproximação “principalmente com os países latino-americanos, embora sem exclusão de outros que sofrem as mesmas dificuldades que as nossas” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 72).

A elaboração de uma ideologia nacionalista adequada ao momento seria tarefa de um estrato intelectual específico, a intelligentsia, que reunia o “tipo de intelectual interessado na produção e difusão de ideias essencialmente enquanto contribuem para a reforma social ou para o processo revolucionário” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 185). Aderindo à definição de Mannheim, segundo a qual o intelectual tentava escapar às condicionantes de sua classe social, Guerreiro afirma que suas marcas modernas eram a militância política e o pensar independente. Era preciso modificar a anacrônica concepção aristocrática do intelectual como pessoa culta e desinteressada: “Num país como o Brasil, o intelectual que viva profundamente a ética da inteligência terá de ser deliberadamente, intencionalmente político”, sendo sua tarefa primeira “configurar politicamente o povo brasileiro” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 190) que emergia na cena política daquele momento. Recorrendo ao exemplo do círculo weberiano, ele afirmava que por mais universais que fossem as reflexões de homens como Rickert, Treitschke, Mommsen, Dilthey, Jellinek, Troeltsch ou Jaspers, todos estavam afetados “pela consciência da especificidade do destino alemão”, e que o próprio Weber era “um pensador militante” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 187). A preocupação de Weber relativa à falta de uma classe capaz de substituir os decadentes proprietários de terra alemães à frente da política era idêntica à sua, pois que em ambos os casos as classes média e proletária ainda não haviam preenchido o vazio intelectual “que decorre da perda de exemplaridade das ideias, por meio das quais justificava sua dominação uma classe há quase duas décadas em processo de aposentadoria histórica” (Ramos, 1961Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 190).

Clarificados os referentes conceituais centrais relativos à ideologia, do nacionalismo e da intelligentsia, Guerreiro já estava em condições de apresentar sua proposta de uma ideologia nacional-desenvolvimentista. Ela viria na aula inaugural do curso regular do Iseb para 1957, “Condições sociais do poder nacional”. O poder nacional era “o conjunto de todos os grupos e indivíduos dirigentes que desempenham papel ativo na organização de um país, de todos os elementos políticos por excelência que concentram em suas mãos a direção econômico-social, o poder militar e as funções administrativas” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 18). O Brasil teria sido até 1930 um enorme território de economia agrária e população ganglionar, governada por oligarquias agrárias e sujeita ao imperialismo inglês. Esse arranjo lhe rendera uma posição periférica e complementar perante as nações desenvolvidas, impedindo a emergência de um povo e de um poder nacional. A complementariedade típica dos países periféricos era um “fato social total” que “permeava todos os níveis de nossa existência” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 22). Daí o caráter hegemonicamente alienado de sua cultura, impedindo a emergência da consciência crítica necessária à autodeterminação. Guerreiro, porém, não era fatalista ou pessimista como Alberto Torres. Para o Brasil, “não havia outra maneira de integrar-se na história universal, senão começando por ser uma região periférica do Ocidente” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 20). Como Oliveira Viana, ele também reconhecia que a antiga classe dominante teria desempenhado com rara competência o seu papel político dirigente: “Desde a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808, até a década de 1920, essa classe cumpriu a sua missão, não raro com admirável senso de oportunidade” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 20). Havia sido graças à “sua capacidade empreendedora e à sua imaginação que um espaço historicamente vazio como o nosso adquiriu um simulacro de personalidade nacional, o que o habilitou a comparecer ao mundo na mais egrégia forma a seu alcance” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 20-21). Seguindo a linha de seus predecessores do “inconsciente sociológico”, Guerreiro argumentava que, nos países periféricos, era inevitável que o Estado precedesse a sociedade, exercendo, enquanto esta não se formasse, o papel de protagonista do processo histórico: “Em nosso país, o Estado foi uma espécie de artefacto sociológico, montado sobre o nosso poder pela antiga classe dominante a lhe permitir o desempenho de funções tutelares” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 28).

A situação estrutural em que o Brasil se encontrava começara a se modificar desde 1930, graças à formação de um mercado interno que imprimia sentido centrípeto à vida nacional. Os fazendeiros cederam a hegemonia a uma burguesia empreendedora, mas dependente de uma população trabalhadora: “A nação, de forma jurídica fictícia que era, passa a ser uma realidade concreta, lastreada numa experiência popular coletiva. O Estado já não opera num vazio histórico. Agora é condicionado pela sociedade (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 29). A emergência do povo como ator histórico, trazendo consigo uma política ideológica própria da sociedade de massas, explicava a crise do poder ao longo da década de 1950, decorrente do seu desajuste às velhas instituições e práticas herdadas da Primeira República. Era o que explicava fenômenos como o fortalecimento do Congresso diante do Executivo; a inédita derrota eleitoral do governo federal nas eleições presidenciais de 1950; a falta de representatividade dos partidos políticos; a estrutura sindical parasitária do país e o papel de poder moderador exercido pelo Exército, obrigado a intervir periodicamente no processo político. A crise do sistema representativo só poderia ser conjurada “quando o Congresso coincidir ideologicamente com o mandato que o instaurou e os partidos, o aparelho sindical e demais instrumentos de expressão da vontade do povo se penetrar do novo sentido da evolução brasileira” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 25). Em termos de classes, a superação da crise política exigia a assunção definitiva da liderança política pela burguesia industrial em aliança com os trabalhadores urbanos, tal como desejado pelos nacionalistas do polo progressista (PTB). Já a continuidade do esquema subalterno, colonial e oligárquico era defendida pelos liberais do polo conservador (UDN), herdeiros da juventude dourada dos anos 1930, que consideravam “infame e diabólica qualquer tentativa de modificar a composição das forças atuantes em nosso país”. Defendiam por isso o alinhamento automático com os EUA; a identidade cultural com a civilização cristã-europeia; e o predomínio do liberalismo econômico. A ideologia “neoliberal”, baseada no liberalismo econômico, só era científica e universalista na retórica, porque ignorava “o condicionamento histórico-cultural das interpretações econômicas, do a priori existencial que inevitavelmente preside a toda a produção de ideias” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 31). Guerreiro destacava mais uma vez a dimensão política do desenvolvimento econômico: em um país periférico como o Brasil, o desenvolvimento se constituía em “uma opção radical” relativo a “um projeto de país, e que encontra a sua expressão em um gesto eminentemente político”, dotado, naquele momento, de um relevante senso de urgência e imperiosidade “ao qual a ciência econômica é, por natureza, insensível” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 31).

A democratização da vida política brasileira pelo advento do povo exigia a superação da posição periférica e subalterna do país no quadro da divisão internacional do trabalho, pela “conquista de um desempenho histórico independente” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 31). O meio de alcançá-lo era o nacionalismo, entendido principalmente como um “projeto de elevar uma comunidade à apropriação total de si mesma, isto é, de torná-la o que a filosofia da existência chama um ‘ser para si’” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 32). Esse projeto, que já estava em andamento, não poderia ser cumprido pela emergência de um líder providencial, mas pela conversão da maior parte da classe política ao programa nacionalista, essencial à segurança nacional dentro da nova configuração social e econômica imposta pela industrialização e pela urbanização. Era aqui que Guerreiro mobilizava pela primeira vez o conceito de revolução nacional, que se tornaria central na produção do período posterior à sua saída do Iseb. Desassociando-o dos “eventos dramáticos que constituem o cortejo habitual das insurreições e quarteladas”, ela era explicada como “a mudança qualitativa que se opera numa coletividade humana, quando passa de uma fase histórica para outra superior (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 37). Para Guerreiro, já estavam presentes todos os elementos objetivos para a concretização daquela “revolução”, da qual deveria resultar “a conquista de um desempenho histórico independente”. Faltava o elemento subjetivo: a vontade política. A possibilidade de uma terceira via entre os campos hegemônicos americano e soviético abria uma janela de oportunidade para aquela afirmação brasileira também no plano internacional:

Carecemos, neste particular, de um esforço de sistematização da norma já inserida na comunidade nacional, da sua transposição da vivência punctiforme do interesse imediato, para a esfera de reflexão sistemática. Tal operação permitiria livrar o nosso processo emancipatório de obstáculos que o levam a descrever uma linha tortuosa e não em linha reta (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 36).

CONCLUSÃO

Este artigo procurou comprovar duas hipóteses gerais. A primeira delas é a de que, partindo de uma perspectiva que hoje se denominaria pós-colonial, Guerreiro Ramos pretendia elaborar uma teoria social brasileira, crítica da sociologia positivista. A hipótese era desafiadora, haja vista que seus livros publicados entre 1953 e 1961, com a exceção de A redução sociológica, não apresentam caráter sistemático. Em vez de ler cada um dos livros pressupondo a sua unidade cronológica ou lógica, a investigação adotou um método “histórico-sistemático”, que os decompôs em seus diversos textos, a fim de os ler na ordem em que foram orginalmente publicados em revistas e jornais da época. Assim procedendo, seria possível verificar se Guerreiro seguia ou não um plano deliberado de pesquisa, voltado para a produção da sua tantas vezes enunciada teoria social. Outra hipótese era a de que os estudos publicados no período pelo sociólogo baiano não poderiam ser compreendidos de modo desvinculado de seu contexto geral de produção, voltado para a elaboração daquela “teoria da sociedade brasileira” de natureza pós-colonial. Para perseguir de modo consequente o próprio itinerário seguido na Alemanha por Weber para a construção de sua sociologia, ou por Durkheim no caso francês, Guerreiro acreditava ser preciso, como naqueles dois países, incorporar criticamente a produção local anterior à ciência institucionalizada. Daí a importância, para a formulação de uma sociologia brasileira, de resgatar e sistematizar um conjunto de reflexões sociais e políticas a que pouquíssimos brasileiros davam importância, especialmente na academia.

A pesquisa exposta neste artigo acredita ter comprovado ambas as hipóteses. A natureza pós-colonial da produção de Guerreiro é reconhecida pelos especialistas e aparece de modo mais ou menos autoevidente, tendo em vista suas críticas constantes a posições intelectuais cujo pretenso cosmopolitismo, no seu entender, encobrira uma visão colonizada da ciência brasileira. Da mesma forma, foram aqui transcritas diversas passagens de sua obra no período, explicadas expressamente como partes integrantes de um projeto mais amplo, que deveria, ao final, resultar na elaboração de um “Tratado brasileiro de sociologia”. A adoção do método “histórico-sistemático”, por que se preferiu examinar seus textos na ordem de publicação, a fim de apreender o processo de elaboração do pensamento de Guerreiro, revelou, igualmente, que ele perseguiu com coerência e exemplaridade seu propósito de “utilizar a ciência social como instrumento de organização da sociedade brasileira” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 14). Seus textos do período, iniciados invariavelmente com a apologia de uma teoria sociológica de tipo compreensivo, foram responsáveis pela elaboração dos primeiros estudos modernos do pensamento social brasileiro, orientados por critérios evidentes de cientificidade. Guerreiro procedeu ao seu projeto de elaboração de uma teoria social brasileira, desdobrando-o em duas fases. Na primeira, desenvolvida no âmbito do Ibesp durante o segundo governo Vargas, ele se debruçou sobre a porção mais sociológica daquele pensamento, para apropriarse criticamente das interpretações do Brasil, atualizando as perspectivas de Oliveira Vianna. Sua perspectiva crítica de análise separava sua parte supostamente útil, comprometida com a autonomia nacional, daquela que, alienada, naturalizava a condição semicolonial do país. Seus principais produtos foram publicados quando Guerreiro esteve vinculado ao Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política. Foram eles O processo da sociologia brasileira [1953Ramos, Alberto Guerreiro. (1953). O processo da sociologia brasileira. Rio de Janeiro: [s.n.].], O problema do negro na sociologia brasileira [1954] e O tema da transplantação na sociedade brasileira [1954]. A consolidação da crítica da sociologia brasileira efetuada nas suas Notas para um estudo crítico da sociologia no Brasil [1954] serviria de base para sua primeira interpretação da sociedade brasileira à luz do fenômeno semicolonial: A problemática da realidade brasileira [1955].

Ocorre que o próprio resultado de suas pesquisas, somado à observação do acirramento da crise política brasileira, levou Guerreiro a concluir que não poderia se contentar em ser uma espécie de Oliveira Viana que lera Weber e Mannheim. A industrialização, a urbanização e o surgimento de um mercado interno haviam criado condições objetivas de superação da condição semicolonial e à emergência generalizada de uma consciência crítica. Uma teoria consequente da sociedade nacional não poderia se contentar em descrever o que ela havia sido, mas estava deixando de ser; ela precisava ir além, interpretando a transformação que atravessava e contribuir, pelo conhecimento crítico - dessa vez do pensamento político brasileiro -, para a elaboração de uma ideologia capaz de sustentar o projeto desenvolvimentista. Um dos fracassos do segundo governo Vargas em granjear apoio para sua política nacionalista e industrialista derivara, precisamente, do empirismo de seus métodos políticos, que careciam de uma ideologia científica, capaz de apoiar aqueles esforços. Daí por que se impunha agora, em uma segunda fase, elaborar uma “teoria da sociedade brasileira que sirva de suporte à estruturação efetiva das tendências de autodeterminação vigentes hoje em nosso país” (Ramos, 1995Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 60). A criação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (1955) proveu o espaço ideal para o desdobramento daquela pesquisa, ao longo do governo Juscelino Kubitschek. Na primeira etapa, no Ibesp, ele esboçara sua teoria da sociedade brasileira pela aplicação da sociologia compreensiva de matriz alemã ao estudo crítico do pensamento sociológico brasileiro, distinguindo o que nele havia de autêntico e de artificial. Ela se limitava, porém, a descrever o que a sociedade brasileira tinha sido até 1930. A fim de dotar aquela teoria social de uma perspectiva dinâmica, que explicasse suas mudanças contemporâneas, pela aplicação daquela mesma sociologia compreensiva, Guerreiro se voltava, no Iseb, para ao estudo crítico do pensamento político brasileiro, a fim de nele distinguir as ideologias progressistas das conservadoras. Seus textos produzidos entre 1955 e 1958 refletem esse redirecionamento de seus estudos, que se deslocaram do pensamento sociológico para o pensamento político, como se pode constatar em: A problemática da realidade brasileira [1955], A dinâmica da sociedade política no Brasil [1955], Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados de 1870 aos nossos dias [1955], A ideologia da jeunesse dorée [1955], O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil, na década de 1930 [1956], Nacionalismo e xenofobia [1956], Ideologias e segurança nacional [1957] Caracteres da intelligentsia [1957] e Condições sociais do poder nacional [1957].

A perspectiva histórico-sistemática aqui adotada permitiu acompanhar e entender o itinerário da investigação empreendida por Guerreiro Ramos na década de 1950. Partindo de uma reflexão epistemológica sobre o pensamento social brasileiro, ela passou pela legitimação sociológica do estudo do pensamento e ideologias políticas no Brasil (o pensamento social brasileiro), e culminou com a defesa da intervenção dos cientistas sociais no debate público, a fim de sustentar uma ideologia nacionalista do desenvolvimento. Ao longo dessa pesquisa, Guerreiro deu-se conta de sua própria posição histórica como intelectual na dinâmica sociopolítica brasileira. Ele se representava como um intelectual moderno, científico, orgânico e, portanto, progressista, pertencente a um segmento social emergente, que estava em vias de substituir o intelectual antigo das classes dominantes em declínio, identificado com um Afonso Arinos, que ele considerava um literato, alienado e conservador. Ao fim de sua pesquisa, já na posse de uma interpretação completa do Brasil, capaz de orientá-lo no debate público, Guerreiro Ramos se deixou crescentemente envolver pela política em vez de escrever o seu pretendido Tratado. Depois da saída do Iseb, em 1958, empenhado em disputar com San Tiago Dantas a posição de intelectual orgânico do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ele se envolveria no debate terceiro-mundista e se aproximaria de uma perspectiva socialista, não marxista, numa trajetória que culminou com sua assunção da cadeira de deputado federal em 1963 (Bariani, 2011Bariani, Edison. (2011). Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil. São Paulo: Edusp.: 182-185). Nessa terceira fase, Guerreiro Ramos produziria textos programáticos como Princípios do Povo Brasileiro, de 1959, Cinco princípios do povo brasileiro, de 1959, Panorama do Brasil contemporâneo, de 1961, e Mito e verdade da revolução brasileira, de 1963Ramos, Alberto Guerreiro. (1963). Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores.. Tomado pelos acontecimentos, Guerreiro foi adiando seu projeto de sistematização de sua teoria, para além da parte epistemológica já exposta em A redução sociológica. O golpe militar do ano seguinte, cassando seus direitos políticos, o obrigaria a dar uma guinada radical em seus planos, abandonando aquele projeto. Ele deslocou seu espaço de atuação acadêmica para o campo da administração pública e emigrou para os Estados Unidos, onde se tornou professor em tempo integral na Universidade da Califórnia do Sul. Mas o essencial de sua teoria social e política já estava desenvolvido, e suas obras influenciariam de modo decisivo alguns dos principais representantes da primeira geração de cientistas políticos brasileiros na virada da década de 1960 para a de 1970, como Bolívar Lamounier, José Murilo de Carvalho e Wanderley Guilherme dos Santos (Lynch, 2013Lynch, Christian Edward Cyril. (2013). The institutionalization of Brazilian political thought in the social sciences: Wanderley Guilherme dos Santos’ research revisited (1963-1978). Brazilian Political Science Review [online], 7/3, p. 36-60.; Lynch & Cassimiro, 2018Lynch, Christian Edward Cyril; Cassimiro, Paulo Henrique Paschoeto. (2018). Freedom through form: Bolívar Lamounier and the liberal interpretation of Brazilian political thought. Brazilian Political Science Review, 12/2.).

NOTAS

  • 1
    Com o golpe de Estado de 1964, a oportunidade para a redação daquela obra se perdeu. Até então, Guerreiro somente sistematizara a parte epistemológica de seu projeto em A redução sociológica (1958). O material que guardava acabou aproveitado para o Tratado nos capítulos 4, 5 e 6 de Administração pública e estratégia do desenvolvimento (1966Ramos, Alberto Guerreiro. (1966). Administração e estratégia do desenvolvimento: elementos de uma sociologia especial da administração. Rio de Janeiro: Editora da FGV.), obra produzida a pedido da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape-FGV) e alguns artigos publicados na sequência. Daí que, em entrevista no fim da vida, ele lamentasse o aspecto fragmentário de sua produção: “Nada foi acabado” (Oliveira, 1995Oliveira, Lúcia Lippi. (1995). A sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.: 160). Isso não significa, entretanto, que sua teoria da sociedade brasileira já não estivesse suficientemente esboçada nos diversos textos publicados no período. Esse havia sido o tema da própria A redução sociológica, abordado diversas vezes antes de sistematizá-lo no livro de 1958. Em outras palavras, a não publicação do Tratado de Guerreiro Ramos não impede o estudioso de recuperar e reconstituir, pelo exame de seus textos, a teoria que ele deixou de sistematizar.
  • 2
    “Aparentemente rigorosa, a atitude do economista parnasiano é comodista e primária. De um lado, porque desobriga o economista a pensar em termos nacionais, o que seria penoso; do outro, porque essa atitude supõe que o pensamento econômico possa ser ideologicamente neutro. Ora, a economia é economia política, sempre se elaborou, nos países líderes da cultura, tendo em vista defender e incrementar o poder nacional. ‘O grande objetivo da política econômica de qualquer país - dizia Adam Smith - é aumentar suas riquezas e a potência nacional” (Ramos, 1960Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.: 76).

REFERÊNCIAS

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    » https://doi.org/10.1590/S0103-49792015000100005» https://doi.org/10.1590/S0103-49792015000100005
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  • Ramos, Alberto Guerreiro. (1953). O processo da sociologia brasileira Rio de Janeiro: [s.n.].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2019
  • Revisado
    03 Nov 2020
  • Aceito
    01 Ago 2021
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