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MÁRIO DE ANDRADE E O BRASIL EM MOVIMENTO

Botelho, André; Hoelz, Maurício. . (2022). O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado . Petrópolis: Vozes, 272 p.

2022 marca o ano de dupla efeméride: a rememoração do bicentenário da Independência do Brasil e o aniversário de 100 anos do marco modernista da Semana de 1922. Em meio às intensas publicações acadêmicas sobre o tema, o lançamento de O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado, de André Botelho e Maurício Hoelz, coloca em nova chave leituras sobre a trajetória daquele que foi considerado o agitador do movimento modernista (Jardim, 2015Jardim, Eduardo. (2015) Eu sou trezentos: Mário de Andrade: vida e obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro.: 11-12); um movimento que marcou uma série de interpretações do Brasil no século XX e que se colocou como cerne do país nos cem anos que se seguiram ao centenário da Independência. Se a retomada dos eventos históricos na atualização dos lugares de memória é, a um só tempo, voltar-se ao passado e projeto de futuro (Sant’Anna, 2011Sant’Anna, Sabrina Marques Parracho. (2011). Construindo a memória do futuro: uma análise da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora da FGV.), interpretações sobre os marcos fundadores da moderna literatura brasileira são também leituras a contrapelo, informadas pelos eventos mais recentes da história do país.

Na escritura do livro, tanto os debates sobre a formação do Brasil a partir da Independência como o papel do movimento modernista nessa formação, um século depois, parecem ter merecido destaque, sendo revistos para permitir compreensão mais ampla do conturbado aqui e agora que vivenciamos. Se, como já se disse em outras ocasiões, o capitalismo e a democracia demandam suas justificações (Boltanski & Chiapello, 2009Boltanski, Luc & Chiapello, Eve. (2009). O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes.; Castells, 2018Castells, Manuel. (2018) Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar.), também a nacionalidade se constrói como comunidade imaginada (Anderson, 2005Anderson, Benedict. (2005). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do Nacionalismo. Lisboa: Edições 70.), que supõe embates entre os portadores de seus projetos. Após longo processo de isolamento social, novos controles de fronteira pelas autoridades de saúde pública, movimentos ainda anteriores de ruptura com a globalização - Brexit, MAGA (Make America Great Again), reemergência de movimentos separatistas na Europa -, e, mais recentemente, surgimento de uma guerra que ameaça o rearranjo da ordem mundial, o livro nos propõe questões centrais num país cujos símbolos nacionais vêm há algum tempo sendo sequestrados pelo surgimento de um simulacro de novos nacionalismos.

Se o cultural turn de Jeffrey Alexander vem chamando a atenção para o lugar das representações sociais no ordenamento de processos culturais que orientam instituições políticas e práticas coletivas (Alexander, 1996Alexander, Jeffrey C. (1996). Cultural sociology or sociology of culture? Culture, 10/3-4, p. 1-5. Disponível em <Disponível em https://ccs.yale.edu/sites/default/files/files/Alexander%20Articles/1996_Cultural%20Sociology%20or%20Sociology%20of%20Culture.pdf >. Acesso em 25 jul. 2022.
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), o livro aqui discutido tem o mérito de enfatizar a compreensão do modernismo não como elemento estanque da cultura brasileira, mas como movimento instituinte; projeto que se vai rotinizando ao longo do tempo e que depende da relação com a recepção de seus contemporâneos, com as instituições de Estado e com a juventude de sua época. Como dizem os autores:

Temas como “identidade nacional”, “nacionalismo” e “brasilidade” domesticaram quase por completo o debate e a inquietação sobre o modernismo. E essa rotina foi sedimentando de tal modo uma imagem de Mário de Andrade como ideólogo de um nacionalismo cultural de que tem sido difícil escapar. Argumentamos, contra essa imagem, que, em vez de formulador de uma visão sintética, unívoca e estável de identidade, Mário se mostrou crítico às ideias de autocentramento e de autenticidade da cultura brasileira. […] Se Mário valorizou a cultura popular, seu interesse não se extingue nas manifestações que colheu, mas antes no reconhecimento social e político que provocou delas e na dignidade e visibilidade que procurou conferir a seus portadores sociais. E, sobretudo, diferente de outras correntes do modernismo, o fato de ter buscado problematizar tanto as fronteiras entre erudito e popular indica que Mário não pensou apenas as diversidades culturais ou a diversidade em si mesma, mas antes se mostrou atento às suas relações com os processos duradouros de desigualdades sociais na sociedade brasileira (Botelho & Hoelz: 11).

A retomada da obra de Mário de Andrade a partir de seus esforços de sistematização da música brasileira tem, portanto, impacto profundo sobre as análises do modernismo, quando sua obra é tomada do ponto de vista da construção de um movimento cultural. Um movimento cujos objetivos são, por um lado, a formulação de uma interpretação de país, mas, por outro, para Mário de Andrade, visto com um de seus principais portadores, a formulação dessa interpretação como projeto processual. Enfatizando o caráter instituinte da formação do Brasil, os autores atribuem a Mário uma noção de nacionalidade em aberto, que supunha o turvamento das fronteiras entre baixa e alta cultura e a inclusão dos diferentes portadores sociais num ideal de diversidade que supunha e exigia a democratização do país.

Se Mário de Andrade não saíra do Brasil, a não ser para chegar a Iquitos, a construção de sua interpretação de nação era, ainda assim, inclusiva e cosmopolita. Não por acaso, a leitura do livro no contexto atual faz ressoar o abandono do projeto do romance Quatro Pessoas, quando Mário, tomado pelos eventos da Segunda Guerra Mundial, se achava impossibilitado de dar andamento ao romance, que então redigia. Dizia ele:

Eu estava escrevendo no Rio de janeiro quando a notícia da queda de Paris me estarreceu. Não era mais possível preocupar-me com o destino de quatro indivíduos - envolvidos em dois casos de amor - quando o mundo sofria tanto e a cultura recebia um golpe profundo (Andrade apud Jardim, 2015Jardim, Eduardo. (2015) Eu sou trezentos: Mário de Andrade: vida e obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro.: 163).

Embora nunca houvesse estado em Paris, Mário de Andrade concebia um projeto de nação cuja especificidade se inscrevia na tensão com a universalidade da cultura, sendo modulado, a um só tempo, pelo cultivo de uma formação cumulativa e por uma personalidade que se constituía também em processo, passível de alterar visões de mundo na relação com fatores externos. Ao tematizar o modernismo como movimento cultural, o livro apresenta Mário de Andrade nos círculos sociais em que se inscrevia e explicita uma personalidade que se forma nas trocas epistolares, nas publicações da imprensa e nos deslocamentos geográficos. Tratando a polifonia do escritor como resultado de elaboração pessoal num embate interno com a multiplicidade de pseudônimos que adotou nas revistas das quais participou e também da elaboração pessoal advinda dos debates com os contemporâneos com quem compartilhou o moderno como movimento, o livro apresenta um intelectual público que se faz em constante mudança, e que não é um, mas trezentos.

Sem perder, ainda, de vista processos de rotinização e institucionalização das ideias, os autores examinam também os processos de recepção que incluíram a obra de Mário de Andrade no horizonte de expectativas de sua época, e que foram, por vezes, responsáveis por dissolver a multiplicidade de um projeto inclusivo de país. Partindo da interpretação das leituras de Alceu Amoroso Lima e do enquadramento de Macunaíma acrescentado, à revelia de Mário, por Oswald de Andrade ao projeto antropofágico, o livro apresenta as tensões que se estabeleceram entre as diversas camadas de portadores de uma diversidade de projetos modernistas para o país.

Por outro lado, é no exame primoroso das relações entre Mário e o projeto do Estado Novo que saltam à vista as tensões entre o autoritarismo e o sentido democrático de uma concepção de Brasil, marcada por uma sociação polifônica. O movimento toma forma, portanto, no embate introspectivo de Mário de Andrade, mas também na sua relação com outros atores sociais e com as instituições de Estado, seja no âmbito estadual do governo de São Paulo, seja no escopo ampliado de sua atuação junto ao Ministério da Educação e Saúde Pública, de Gustavo Capanema. Rotinizado e institucionalizado nas relações com o Estado, o projeto de Mário de Andrade passa a travar o difícil embate entre a cultura como projeto diverso e inacabado e o autoritarismo de uma concepção de país restrita às classes médias urbanas emergentes.

No entanto, se o projeto democrático e cosmopolita de Mário de Andrade esbarra nos limites do autoritarismo em seu exílio no Rio de Janeiro, argumentam os autores que ele prospera nas trocas epistolares com uma juventude que se ampara na figura de Mário, para dar prosseguimento a um modernismo como movimento cultural. É no deslocamento espacial pelo Brasil que Mário de Andrade trava conhecimento com Carlos Drummond de Andrade, difundindo um abrasileirar-se que se torna questão central nos debates dos círculos sociais dos jovens modernistas de Minas Gerais. Segundo Botelho e Hoelz (2022Botelho, André & Hoelz, Maurício. (2022). O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado. Petrópolis: Vozes.: p. 235), é nas relações estabelecidas com uma mocidade - que passa a tomar a experiência do país como um estar no mundo e que se abre à experiência do universal - que o movimento ganha nova vida:

Então, vemos mais uma vez, como em vários momentos deste livro, que abrasileirar-se, do ponto de vista de Mário de Andrade, não significa tornar-se nacionalista, patriótico nem tampouco xenófobo. Sim, ele combate o francesismo de Drummond, e o conclama a se abrasileirar, mas isso significa antes adquirir uma maneira própria de estar, sentir e pensar o mundo.

A escolha do último capítulo do livro para tratar do retorno à juventude como aposta permanente de Mário de Andrade é, portanto, decisão acertada dos autores. No momento crítico que vivemos, o livro se conclui de forma precisa, apontando, no capítulo 7, para a recepção da juventude de sua época, que deixa em aberto, hoje também, a esperança necessária em tempos sombrios.

Em meio à crise da globalização, o livro é, assim, ferramenta importante para pensar novos processos de institucionalização das interpretações do nacional. Se hoje vivemos sob o risco constante de se verem estreitar significados e projetos outrora cosmopolitas, o volume retoma a potência democratizante de um modernismo em processo.

REFERÊNCIAS

  • Alexander, Jeffrey C. (1996). Cultural sociology or sociology of culture? Culture, 10/3-4, p. 1-5. Disponível em <Disponível em https://ccs.yale.edu/sites/default/files/files/Alexander%20Articles/1996_Cultural%20Sociology%20or%20Sociology%20of%20Culture.pdf >. Acesso em 25 jul. 2022.
    » https://ccs.yale.edu/sites/default/files/files/Alexander%20Articles/1996_Cultural%20Sociology%20or%20Sociology%20of%20Culture.pdf
  • Anderson, Benedict. (2005). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do Nacionalismo. Lisboa: Edições 70.
  • Boltanski, Luc & Chiapello, Eve. (2009). O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes.
  • Botelho, André & Hoelz, Maurício. (2022). O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado. Petrópolis: Vozes.
  • Castells, Manuel. (2018) Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar.
  • Jardim, Eduardo. (2015) Eu sou trezentos: Mário de Andrade: vida e obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro.
  • Sant’Anna, Sabrina Marques Parracho. (2011). Construindo a memória do futuro: uma análise da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora da FGV.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2022
  • Aceito
    09 Jun 2022
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