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Desafios da tuberculose diante da resistência microbiana

The challenges of tuberculosis on antimicrobial resistance

INFORMES TÉCNICOS INSTITUCIONAIS

Desafios da tuberculose diante da resistência microbiana

The challenges of tuberculosis on antimicrobial resistance

Instituto Clemente Ferreira, Coordenadoria de Controle de Doenças, Secretaria de Estado da Saúde

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Instituto Clemente Ferreira R. da Consolação, 717 01301-000 São Paulo, SP, Brasil

A tuberculose (TB) permanece sendo enorme desafio para a saúde pública. Apesar de existir grande conhecimento tecnológico da doença, outros fatores ainda impedem que se atinjam as metas propostas para o seu controle, como pobreza, desnutrição, a co-infecção com HIV.

Desde 1993, a TB tornou-se prioridade para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e, em 2000, para o Brasil. O orçamento atual para o controle da TB é 14 vezes maior que em 2002, porém ainda insuficiente.

Segundo a OMS, o Brasil está em 16º lugar entre os 22 países prioritários para controle da TB, i.e., com maior número de casos TB no mundo. Porém, não estamos entre os países de maior número de casos de TB multidrogarresistente (TBMDR).

A incidência de TB no Brasil tem decrescido desde a década de 1950, quando foram notificados 160.000 casos novos; na década de 1990 foram 110.000 casos; e no último levantamento, em 2009, foram notificados 72.000 casos, número considerado ainda bastante elevado.

A meta da OMS é de, até 2015, curar 85% e detectar 70% dos casos. Entretanto, o Brasil ainda está atrasado em relação a essa meta.

As características da transmissão da TB por bacilo sensível e por bacilo resistente são as mesmas: transmissão aerógena, ocorrendo em aglomerações humanas e tendo relação direta com a imunidade baixa. A grande diferença é que o bacilo resistente tem menor virulência, comprovada em experimento de 1953,ª a Middlebrook G, Cohn ML. Some observations on the pathogenicity of isoniazid-resistance variants of tuberculosis bacilli. Science. 1953;118(3063):297-9. DOI: 10.1126/science.118.3063.297 em que cobaias inoculadas com bacilos resistentes a isoniazida produziam menor número de lesões e mortes. Outro estudob b van Soolingen D, Borgdorff MW, Haas PE, Sebek MM, Veen J, Dessens M, et al. Molecular epidemiology of tuberculosis in the Netherlands: a nationwide study from 1993 through 1997. J Infect Dis. 1999;180(3):726-36. DOI: 10.1086/314930. de 1999 mostrou que contatos de focos resistentes adoeciam menos do que os contatos de focos drogas sensíveis, talvez porque alguns genes resistentes a drogas reduzem a virulência do bacilo. Estudo de 2003c c Barnes PF, Cave MD. Molecular epidemiology of tuberculosis. N Engl J Med. 2003;349(12):1149-56. DOI: 10.1056/NEJMra021964. mostrou, com auxílio da epidemiologia molecular, que bacilos resistentes a isoniazida apresentavam uma mutação no gene KatG (22%-64%) responsável pela produção de catalase e peroxidase. Essas enzimas são fundamentais para a vida dos bacilos, o que os tornava menos virulentos.

A TB é curável em praticamente 100% dos casos novos, sensíveis aos medicamentos anti-TB, desde que tratada adequadamente com terapia medicamentosa. Hoje no Brasil curam-se 69% dos casos de TB bacilos sensíveis. Porém, a taxa de abandono é alta, ao redor de 13%, o que resulta em surgimento da resistência adquirida. Ao ser transmitida, a resistência adquirida leva ao aparecimento da resistência primária.

Em 1979, o sistema de tratamento para a TB adotado no Brasil era composto pelo esquema I (2RHZ/4RH) para os casos novos, esquema I reforçado (2RHZE/4RHE) para retratamentos, esquema II (2RHZ/7RH) para a forma meningoencefálica e esquema III (3SZEEt/9EEt) para a falência dos anteriores.

Dois Inquéritos Nacionais de Resistência aos Fármacos Antituberculosos, realizados entre 1995-1997 e 2007-2008, evidenciaram aumento da resistência primária à isoniazida (de 4,4% para 6,0%) e aumento da resistência à associação rifampicina-isoniazida, o que levou à necessidade de mudanças. Em 2009, o Programa Nacional de Controle da Tuberculose foi revisto pelo seu Comitê Técnico Assessor, resultando em padronização do esquema básico com introdução do quarto fármaco, o etambutol. Este foi introduzido na fase intensiva, nos dois primeiros meses de tratamento, com o objetivo de diminuir a transmissibilidade e proteger a rifampicina, evitando aparecimento de resistência. Foram extintos o esquema I reforçado e o esquema III, sendo solicitados cultura, identificação, teste de sensibilidade para todos os casos de retratamento e adotado esquema padronizado para multi-resistência (associação de cinco drogas incluindo um aminoglicosídeo e uma quinolona) (Figura 1) ou esquemas especiais individualizados, segundo a combinação de resistências apresentadas pelo teste de sensibilidade. É um grande desafio realizar o teste de sensibilidade para todos os pacientes de retratamento devido à necessidade de uma rede de laboratório capacitada em todo o território nacional.


No Brasil a co-infecção TB-HIV em pacientes com TB bacilos sensíveis é de 12%;d d Dados epidemiológicos informados pelo Ministério da Saúde. em casos de TBMDR-HIV essa taxa é menor (7%).e e Dados epidemiológicos informados pelo Sistema de Vigilância TBMDR - Fiocruz - Centro de Referência Professor Helio Fraga.

O tratamento da TB em pessoas infectadas pelo HIV segue as mesmas recomendações para os não infectados, tanto nos esquemas quanto na duração total do tratamento. A pronta solicitação do teste anti-HIV e a agilidade de seu resultado em pacientes com TB é fundamental para o correto manuseio do tratamento da co-infecção TB-HIV.

Para melhorar a adesão ao tratamento, com melhor índice de cura e conseqüentemente diminuição do aparecimento de cepas resistentes, a OMS propôs o uso da estratégia do tratamento diretamente observado (DOTS) em 1999:

Compromisso governamental com o Programa Nacional de Controle da Tuberculose e aumento dos financiamentos.

Tratamento diretamente observado (TDO), com supervisão das tomadas e suporte aos pacientes.

Bacteriologia de qualidade dos sintomáticos respiratórios para melhor detecção de casos.

Suprimentos de drogas e gerenciamento de registros, notificações de casos e controle do Programa.

Monitorar registro, avaliar o sistema e o impacto das medidas propostas.

O Instituto Clemente Ferreira (ICF) é uma unidade de referência terciária em Pneumologia e Tisiologia da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo que atua especificamente no atendimento de casos de TBMDR, efeitos adversos ao tratamento, TB extrapulmonar e casos de micobacterioses não tuberculosas.

A maioria dos pacientes referenciados para ICF mora distante, e para ser feito o TDO foi implementada a Supervisão Cooperada, em que uma unidade de saúde próxima ao domicílio do paciente se responsabiliza em receber o paciente ou ir até seu domicílio, caso o paciente não tenha condições de se deslocar. Isso permite avaliar melhor a situação global dos pacientes e familiares, possibilitando melhor acolhimento dessas famílias (Figura 2).


A TBMDR no mundo ganhou ênfase na década de 1980 após um surto em Nova Iorque, quando grandes esforços foram realizados para o controle da doença naquele país.

No período de 2000 a 2004 a OMS e o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) avaliaram 14.706 amostras de escarro provenientes de 49 países e perceberam que no grupo de pacientes com TBMDR resistentes a isoniazida e rifampicina existiam casos com resistência a isoniazida, rifampicina e outras drogas, o que veio ser chamada de Tuberculose Extensivamente Resistente (TBXDR). A TBXDR é definida como resistência a isoniazida e rifampicina mais pelo menos uma droga injetável (amicacina, capreomicina ou canamicina) e uma quinolona. Certas regiões do mundo evidenciavam ter 20% dos casos de multi-resistência com padrão XDR.

O ICF realizou levantamento de casos de TB no período de 1994 a 2007. Foram notificados 10.306 casos, dos quais 733 (7%) eram TBMDR. Dentre os casos de TBMDR foram encontrados 18 (2%) casos de TBXDR, 70% deles resistentes a ofloxacina, cujo prognóstico era muito ruim, mas houve casos de cura.

Alguns casos permaneceram bacilíferos e clinicamente estáveis, tornando-se focos de transmissão de bacilos resistentes e gerando um grave problema de saúde pública.

Em 2008, segundo estimativas da OMS, havia 400.000 casos novos de TBMR no mundo, metade deles na Índia e na China. Os países com menores recursos são os responsáveis pelo maior número de casos, agravado ainda pela grande incidência local de HIV (Figura 3).


No Brasil, no período 2000-2008, foram notificados 4.064 casos de TBMR, 95% deles por resistência adquirida e o restante por resistência primária. Somado a isso, o fato de todos os casos de TBXDR do ICF serem provenientes do grupo de TBMR sugere que o programa de controle da TB não está sendo suficientemente eficaz. A taxa de cura de TBMR varia de 50% a 70%, sendo provavelmente pior nos casos de TBXDR e mais ainda quando associado à HIV.

Acredita-se que o número de casos de TBMR no Brasil esteja subestimado. Novos e rápidos testes diagnósticos seriam muito importantes para identificar mais casos, instituir tratamento adequado e impedir a transmissão de TBMR.

O Brasil participa de um projeto para uso de dois novos testes moleculares, Xpert MTB/RIF, para detecção rápida e precoce de resistência a rifampicina, e GenoType TBDRplus, para resistência a rifampicina e isoniazida. Os resultados serão avaliados tanto no aspecto clínico-diagnóstico quanto no econômico, para possível implantação no Sistema Único de Saúde.

A prevenção deve ser feita com acesso a diagnóstico rápido, tratamento adequado e disponível para todos, manejo adequado dos casos, suporte para boa aderência, implantação de medidas de bio-segurança, maior interação entre programa de TB-HIV e quimioprofilaxia. Os desafios são novas drogas e novos regimes terapêuticos, novos e melhores testes diagnósticos, padronização internacional do teste de sensibilidade para drogas de segunda linha.

O aumento da incidência de TBMR e TBXDR no mundo exige uma abordagem multidisciplinar. Essas formas de resistência são conseqüência de um programa inadequado de controle de TB, diagnóstico tardio e recursos insuficientes para controle de infecção.

Texto de difusão técnico-científica da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.

  • Correspondência | Correspondence:

    Instituto Clemente Ferreira
    R. da Consolação, 717
    01301-000 São Paulo, SP, Brasil
  • a
    Middlebrook G, Cohn ML. Some observations on the pathogenicity of isoniazid-resistance variants of tuberculosis bacilli.
    Science. 1953;118(3063):297-9. DOI: 10.1126/science.118.3063.297
  • b
    van Soolingen D, Borgdorff MW, Haas PE, Sebek MM, Veen J, Dessens M, et al. Molecular epidemiology of tuberculosis in the Netherlands: a nationwide study from 1993 through 1997.
    J Infect Dis. 1999;180(3):726-36. DOI: 10.1086/314930.
  • c
    Barnes PF, Cave MD. Molecular epidemiology of tuberculosis.
    N Engl J Med. 2003;349(12):1149-56. DOI: 10.1056/NEJMra021964.
  • d
    Dados epidemiológicos informados pelo Ministério da Saúde.
  • e
    Dados epidemiológicos informados pelo Sistema de Vigilância TBMDR - Fiocruz - Centro de Referência Professor Helio Fraga.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011
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