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Padrão temporal das internações e óbitos por diarréia em crianças, 1995 a 1998, Rio de Janeiro

Temporal pattern of diarrhea hospitalizations and deaths in children, 1995 to 1998, Brazil

Resumos

OBJETIVO: Analisar o padrão temporal dos óbitos e internações, no período de 1995 a 1998, associadas à diarréia em crianças menores de cinco anos de idade para subsidiar ações específicas de prevenção e controle dessa doença. MÉTODOS: Os dados foram obtidos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e Sistema de Internações Hospitalares (SIH) do Ministério da Saúde. As séries mensais de internações e de óbitos por diarréia foram decompostas em componentes de tendência linear estocástica, sazonalidade determinística e irregularidades mediante a aplicação dos modelos estruturais para análise de séries temporais. RESULTADOS: Os níveis de ambas as séries apresentaram mudanças ao longo do tempo, com declínio mais perceptível na série de internações. A variação das taxas de inclinação foi constante para cada uma das séries, em média, a menos 5,3 internações por mês (p-valor <0,001) e menos um óbito por mês (p-valor <0,1), respectivamente. Na análise dos resíduos do modelo de internações, observou-se mudança no nível da tendência em janeiro de 1996. O componente sazonal de ambos os modelos foi estatisticamente significante (p-valor <0,0001), sendo maio e junho os meses com maior excesso de internações e óbitos. Os pressupostos de normalidade e de independência temporal dos resíduos não puderam ser rejeitados ao nível de 0,05. CONCLUSÕES: Os resultados sugerem a predominância da etiologia viral das diarréias moderadas e graves. Neste caso, a vacinação específica é a medida mais eficaz na prevenção e controle, sendo necessários estudos de eficácia de novas candidatas à vacina contra o rotavírus no Brasil.

Diarréia; Mortalidade; Pacientes internados; Sistemas de informação; Séries de tempo; Variações sazonais; Modelos estruturais


OBJECTIVE: To analyze the temporal pattern of hospitalization and deaths due to diarrhea among children less than five years old between 1995 and 1998 to support specific prevention actions and disease control strategies. METHODS: Data was collected from the Ministry of Health's Mortality Data System and Hospitalization Data System. Monthly time series of diarrhea hospitalizations and deaths were decomposed into stochastic linear trend, deterministic seasonal and irregular components using structural time series models. RESULTS: The levels of both series showed a decline in time. This pattern being more evident in the hospitalization series. The slope variation was constant in both series; on average less than 5.3 hospitalizations/month (p-value <0.001), and less than 1 death/month (p-value <0.1). The residual analysis of the hospitalization series revealed a positive trend change in January 1996. The seasonal component for both models was statistically significant (p-value <0.0001) with May and June as months of highest hospitalizations and deaths. Normality and time independence assumptions of errors could not be rejected at a 0.05 significance level. CONCLUSIONS: The temporal pattern of moderate and severe diarrhea described and estimated in this study suggests that rotavirus might be a predominant disease agent. In this context, targeted vaccination is recommended for prevention and control. However, further studies on the efficacy of rotavirus candidate vaccines are necessary in order to implement this strategy in Brazil.

Diarrhea; Mortality; Inpatients; Information systems; Time series; Sasonal variations; Models, structural


ARTIGOS ORIGINAIS

Padrão temporal das internações e óbitos por diarréia em crianças, 1995 a 1998, Rio de Janeiro

Temporal pattern of diarrhea hospitalizations and deaths in children, 1995 to 1998, Brazil

Pauline Lorena KaleI; Cristiano FernandesII; Flávio Fonseca NobreIII

INúcleo de Estudos de Saúde Coletiva. Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IIDepartamento de Engenharia Elétrica. Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IIIPrograma de Engenharia Biomédica da COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Pauline Lorena Kale Rua Professor Miguel Couto, 344/302 Bloco B Icaraí 24230-240 Niterói, RJ, Brasil E-Mail: pkale@nesc.ufrj.br

RESUMO

OBJETIVO: Analisar o padrão temporal dos óbitos e internações, no período de 1995 a 1998, associadas à diarréia em crianças menores de cinco anos de idade para subsidiar ações específicas de prevenção e controle dessa doença.

MÉTODOS: Os dados foram obtidos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e Sistema de Internações Hospitalares (SIH) do Ministério da Saúde. As séries mensais de internações e de óbitos por diarréia foram decompostas em componentes de tendência linear estocástica, sazonalidade determinística e irregularidades mediante a aplicação dos modelos estruturais para análise de séries temporais.

RESULTADOS: Os níveis de ambas as séries apresentaram mudanças ao longo do tempo, com declínio mais perceptível na série de internações. A variação das taxas de inclinação foi constante para cada uma das séries, em média, a menos 5,3 internações por mês (p-valor <0,001) e menos um óbito por mês (p-valor <0,1), respectivamente. Na análise dos resíduos do modelo de internações, observou-se mudança no nível da tendência em janeiro de 1996. O componente sazonal de ambos os modelos foi estatisticamente significante (p-valor <0,0001), sendo maio e junho os meses com maior excesso de internações e óbitos. Os pressupostos de normalidade e de independência temporal dos resíduos não puderam ser rejeitados ao nível de 0,05.

CONCLUSÕES: Os resultados sugerem a predominância da etiologia viral das diarréias moderadas e graves. Neste caso, a vacinação específica é a medida mais eficaz na prevenção e controle, sendo necessários estudos de eficácia de novas candidatas à vacina contra o rotavírus no Brasil.

Descritores: Diarréia. Mortalidade. Pacientes internados. Sistemas de informação. Séries de tempo. Variações sazonais. Modelos estruturais.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze the temporal pattern of hospitalization and deaths due to diarrhea among children less than five years old between 1995 and 1998 to support specific prevention actions and disease control strategies.

METHODS: Data was collected from the Ministry of Health's Mortality Data System and Hospitalization Data System. Monthly time series of diarrhea hospitalizations and deaths were decomposed into stochastic linear trend, deterministic seasonal and irregular components using structural time series models.

RESULTS: The levels of both series showed a decline in time. This pattern being more evident in the hospitalization series. The slope variation was constant in both series; on average less than 5.3 hospitalizations/month (p-value <0.001), and less than 1 death/month (p-value <0.1). The residual analysis of the hospitalization series revealed a positive trend change in January 1996. The seasonal component for both models was statistically significant (p-value <0.0001) with May and June as months of highest hospitalizations and deaths. Normality and time independence assumptions of errors could not be rejected at a 0.05 significance level.

CONCLUSIONS: The temporal pattern of moderate and severe diarrhea described and estimated in this study suggests that rotavirus might be a predominant disease agent. In this context, targeted vaccination is recommended for prevention and control. However, further studies on the efficacy of rotavirus candidate vaccines are necessary in order to implement this strategy in Brazil.

Keywords: Diarrhea. Mortality. Inpatients. Information systems. Time series. Sasonal variations. Models, structural.

INTRODUÇÃO

As estimativas mundiais de mortes atribuídas à diarréia, em menores de cinco anos de idade, vêm mostrando declínio importante nas duas últimas décadas. Em 1999, a estimativa de mortes atribuídas à diarréia foi de 1,5 milhões, sendo creditado como importante fator determinante de redução a terapia de reidratação oral –TRO.19

A associação entre diminuição da mortalidade por diarréia e mudança do padrão sazonal da morbidade reflete a mudança do agente etiológico predominante, possivelmente de Escherichia coli para rotavírus.14 Infecções por rotavírus estão comumente associadas com diarréia de inverno enquanto que a maioria das diarréias bacterianas predomina nos períodos quentes e chuvosos.7 Existe pouca evidência de que essas intervenções, responsáveis pela redução das diarréias bacterianas e por parasitas intestinais, possam reduzir o risco da diarréia por rotavírus. O aleitamento materno e melhorias de saneamento básico e higiene pessoal tiveram um impacto mínimo na prevenção da doença rotaviral nos países desenvolvidos, sendo a vacinação, nesse caso, o método mais eficaz.3

A estimativa da morbidade de diarréia associada com rotavírus em menores de cinco anos no Brasil, quase todos casos advindos da demanda ambulatorial e hospitalar, variou entre 12% e 42%; particularmente na região Sudeste foi de 22%. Nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do País, o pico de incidência das diarréias rotavirais é nos meses mais secos (maio a setembro), semelhante ao das regiões tropicais e temperadas do planeta. Para cada três episódios de diarréia por rotavírus, dois ocorrem entre 6 e 24 meses de idade. Até 4-5 anos, 70% das crianças adquirem imunidade natural.12

O objetivo do presente trabalho é analisar o padrão temporal dos óbitos e internações associadas à diarréia em crianças menores de cinco anos de idade. A caracterização temporal das séries foi realizada extraindo-se os componentes de tendência e sazonalidade da série temporal, os quais mostram, respectivamente, a direção geral da série e seu padrão de repetição intra-anual. Esses padrões podem subsidiar as ações específicas de prevenção e controle da diarréia.

MÉTODOS

As séries temporais de morbimortalidade de diarréia em menores de cinco anos foram obtidos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do Ministério da Saúde (morbidade hospitalar de menores de cinco anos residentes no município do Rio de Janeiro, ocorrida nos serviços de saúde públicos ou contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) do Estado do Rio de Janeiro) e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) (mortalidade de menores de cinco anos de residentes no município do Rio de Janeiro sem restrição ao local de ocorrência).13

Considerou-se importante caracterizar a base populacional que originou as internações e os óbitos por diarréia, cujos dados são constituintes desses sistemas de informação. As internações correspondem à demanda assistida do SUS, enquanto que os óbitos correspondem à totalidade do evento na população, independentemente do tipo de serviço de saúde e local de ocorrência (considerando-se a boa cobertura do SIM no município17).

Os dados de mortalidade foram selecionados pela causa básica diarréia (códigos 1 a 9 da nona revisão da Classificação Internacional de Doenças -CID, até 1995, e A01 a A09 da décima revisão – de 1996 em diante).

Os dados de morbidade hospitalar correspondem a internações associadas à diarréia (diagnóstico principal ou secundário). O município de residência da internação é reconhecido através do campo do código de endereçamento postal de residência, que mal preenchido, impossibilita a informação imediata. Os endereços completos e o município de residência da internação foram cedidos pelo DATASUS. O período de análise foi de janeiro de 1995 a dezembro de 1998, perfazendo um total de 48 observações.

Procedimentos analíticos

Foi realizada uma análise exploratória das séries de óbitos e de internações associadas à diarréia para caracterizar a presença de algum comportamento ou padrão relevante, como, por exemplo, a existência de observações atípicas, sazonalidade e algumas estatísticas descritivas da série, a variação anual da magnitude dos óbitos e internações.

Foram aplicados os modelos estruturais para análise de séries temporais propostas por Harvey.8 Com o objetivo de se extrair os componentes de tendência e sazonalidade, a formulação estrutural de uma série temporal foi baseada na sua decomposição em componentes não observáveis, de interpretação direta, tais como: tendência, sazonalidade, ciclo e irregularidade. A aplicação dos modelos estruturais aos dados de óbitos e internações associadas à diarréia deveu-se à possibilidade de extrair explicitamente os componentes das séries temporais, fornecendo subsídios importantes para sugerir a etiologia predominante e auxiliar na tomada de decisão de medidas específicas de controle e determinação de objetivos no presente estudo.

Os modelos estruturais podem ser entendidos basicamente como um modelo de regressão múltipla, no qual as variáveis explicativas são função do tempo (tendência, sazonalidade), e os respectivos coeficientes mudam com o tempo. Uma tendência determinística pode ser obtida ajustando-se uma regressão linear simples, yt = a + b xt, onde a variável explicativa xt é o tempo, o qual assume os valores 1,2 3, etc. Nesta regressão, os coeficientes a e b são estimados pelo método dos mínimos quadrados, e são únicos (constantes), pois não variam com o tempo. Num modelo estrutural, a e b variam no tempo através de um processo estocástico, denominado de processo de Markov. A estrutura estocástica dos componentes implica um comportamento dinâmico dos padrões do modelo, tornando-os mais aptos a capturar as variações da série ao longo do tempo.

O modelo estrutural básico, que possui apenas os componentes de tendência linear e sazonalidade estocásticos, é definido através de dois conjuntos de equações. A primeira, denominada de equação das observações, especifica os componentes utilizados na decomposição da série pela seguinte equação:

onde gt é a observação no tempo t, composta por: tendência linear estocástica (mt), sazonalidade estocástica (gt) e o componente irregular (et). O modelo é completado mediante especificação da evolução dinâmica de cada um dos componentes presentes no modelo, formando um conjunto de equações denominado de equações do estado. A equação de tendência estocástica é dada por:

onde m, é a tendência linear (nível) da série, b é a inclinação da tendência e ht~NID (0,s2h ). Por sua vez, a inclinação da tendência segue a equação de um passeio aleatório, sendo dada por:

onde zt~ NID (0,s2h ). A função dos choques ht e zt nestas equações é tornar o seu comportamento dinâmico. O modelo de tendência linear determinística gt = a + bt + et pode ser obtido como um caso particular do modelo estrutural com tendência linear estocástica, fazendo-se .

O componente sazonal do modelo estrutural utiliza uma variável indicadora para cada mês, sendo gt a variável indicadora, ou fator sazonal do mês t. Na formulação estocástica da sazonalidade adotada nos modelos estruturais, a soma dos fatores sazonais em um período, ao invés de ser zero, como no caso determinístico, é igual a um ruído branco wt, com média nula e variância s2v. Isto permite que o fator sazonal de cada mês possa assumir valores diferentes ao longo dos anos, possuindo assim um comportamento estocástico. Portanto, a equação que define o componente sazonal será dada por:

onde gt é o fator sazonal do mês t, s é o período sazonal e wt~NID (0,s2v ). O modelo determinístico de sazonalidade com variáveis indicadoras é um caso particular deste modelo, fazendo-se s2v=0.

Os erros das equações (et,h, zt e wt) são assumidos como não correlacionados entre si.

Quando um valor atípico é detectado no resíduo do componente irregular (o valor excede, em módulo, três vezes o seu desvio-padrão), ele pode ser capturado por uma variável de intervenção tipo pulso que assume o valor um, correspondente ao mês de ocorrência, e zero, nos demais meses. Se ocorrer quebra estrutural ou uma mudança de nível na tendência da série, a variável de intervenção a ser incluída no modelo é do tipo degrau, que assume valor zero, antes do mês onde observou-se este evento, e valor um, a partir desse mês. Havendo uma mudança na inclinação do componente tendência, a variável de intervenção a ser incluída no modelo é do tipo, que assume valores 1,2,3 ..., iniciando no período após a ocorrência do valor atípico detectado. A análise estatística das nossas séries foi realizada com o pacote estatístico STAMP (versão 5.0).

RESULTADOS

Em 1995, ocorreram 2.479 internações e 90 óbitos (54,5%) por diarréia em menores de cinco anos residentes no município do Rio de Janeiro (MRJ). No final do período analisado, 1998, essas freqüências diminuíram para 1.350 internações e 41 óbitos (46%).

A inspeção visual das séries de internações e óbitos (Figuras 1 e 2) indica a presença de componentes de tendência e sazonalidade em ambas as séries, justificando assim a adoção do modelo estrutural básico para cada uma das séries. O componente sazonal resultou em sazonalidade determinística (a estimativa da variância do erro sazonal foi zero), ou seja, a evidência é que o padrão sazonal de cada uma das séries não se altera no período de estimação, janeiro de 1995 a dezembro de 1998. Entretanto, a tendência linear estimada para cada uma das séries apresentou mudanças ao longo do período, possuindo assim comportamento estocástico (as estimativas da variância dos erros da tendência foram 51,94 e 0,36 nos modelo das internações e dos óbitos por diarréia, respectivamente). As Figuras 1 (série de óbitos) e 2 (série de internações) apresentam a série original e o componente tendência linear. A tendência de declínio é mais evidente no modelo das internações do que no de óbitos. Neste último, esta tendência de declínio seria imperceptível se o gráfico fosse construído na mesma escala do gráfico das internações. A variação das taxas de inclinação é constante e igual, em média, a menos 5,3 internações por mês (p-valor <0,001) e menos um óbito por mês (p-valor <0,1).



Para a série de internações associadas à diarréia, a análise dos resíduos indicou aumento atípico no nível da tendência a partir do mês de janeiro de 1996, a qual não foi adequadamente capturada pela tendência estocástica ajustada à série. Observou-se também uma flutuação atípica, de grande magnitude, no mês de maio de 1995 (390 internações). Com o intuito de capturar adequadamente esses fenômenos, foram incorporadas ao modelo estrutural básico co-variáveis de intervenção, respectivamente, do tipo degrau e pulso. A mudança do nível da tendência da série de internações é facilmente observável na Figura 2. Para a série dos óbitos, o modelo estrutural básico ajustado necessitou da incorporação de uma co-variável de intervenção tipo pulso, com o intuito de capturar uma flutuação atípica, também de grande magnitude, ocorrida no mês de junho de 1995 (23 óbitos). As intervenções consideradas em ambos os modelos foram estatisticamente significantes (p-valor <0,01).

Devido à natureza estocástica dos componentes dos modelos estruturais, as estimativas e testes estatísticos associados à tendência, inclinação e fatores sazonais teriam que ser reportados para cada um dos períodos de tempo entre janeiro de 1995 e dezembro de 1998. Na Tabela, apresentam-se apenas os resultados para o último período disponível das séries, dezembro de 1998.

As Figuras 1 e 2 apresentam o componente sazonal cujos picos sazonais de inverno não mudam em função do tempo. O excesso de internações e óbitos foi nos meses de pico, maio e junho. O teste do Qui-quadrado (11 graus de liberdade) para o componente sazonal foi 159,26 para as internações e 46,20 para os óbitos, ambos estatisticamente significantes (p-valor <0,0001).

Os modelos ajustaram adequadamente os dados de internações e óbitos por diarréia, como pode ser observado pelo valor dos coeficientes de determinação apresentados na Tabela.

No diagnóstico dos modelos selecionados, foram testados os pressupostos de normalidade e de independência temporal do erro da equação das observações, mediante os resíduos do modelo dos óbitos (Figura 3) e do modelo das internações (Figura 4). Não foi observado qualquer valor atípico na série dos resíduos de ambos os modelos. A análise do correlograma não indica a presença de correlação serial nos resíduos em nenhum dos modelos (Figuras 3 e 4). O gráfico dos quantis da normal padronizada e dos resíduos apresentou um padrão de distribuição normal (linear na parte central) e ausência de valores extremos. O teste de Jarque-Bera para normalidade (NJB) não rejeitou a hipótese nula de normalidade com um nível de significância de 0,05. O diagrama de dispersão do resíduo padronizado em função de cada uma das séries não apresentou qualquer padrão. Portanto, o modelo linear selecionado para avaliação de tendências (séries de óbitos e internações) mostrou-se adequado (Figuras 3 e 4).



DISCUSSÃO

O padrão temporal de declínio e de sazonalidade de inverno, capturado pelos modelos, foi comum às séries de internações e de óbitos por diarréia. Alguns aspectos relacionados à gravidade da diarréia e aos dados analisados devem, entretanto, ser considerados no momento de inferir os resultados.

Não foram selecionados no presente estudo casos leves de diarréia, cuja resolutividade pode ser alcançada no próprio domicílio ou em unidades de atenção primária à saúde. Waldman et al18 analisaram o tratamento dispensado aos casos de diarréia numa coorte de crianças menores de cinco anos, residentes na cidade de São Paulo e obtiveram os seguintes resultados: 46,1% das crianças com diarréia foram tratadas pela própria mãe, 51,8% foram atendidas em serviços de atenção primária à saúde, 2,1% necessitaram de internação e nenhuma criança evoluiu para o óbito. Os dados de internações e óbitos por diarréia do presente trabalho representam os casos de maior gravidade e, portanto, a "ponta de um iceberg" do problema diarréia no município do Rio de Janeiro.

As bases populacionais das internações e dos óbitos constantes dos dados do presente estudo não são as mesmas. Sendo universal a cobertura do evento óbito, pode-se inferir o padrão temporal dos óbitos à população menor de cinco anos residente no município do Rio de Janeiro, enquanto que, o das internações, restringe-se àquela assistida pelo SUS.

A mortalidade por diarréia apresentou uma freqüência mensal menor do que as internações, sendo menos perceptível o descenso e os picos sazonais durante o período analisado. Nos EUA, a estabilização da tendência dos óbitos por diarréia em menores de cinco anos foi evidenciada em 1985, quando então a magnitude anual dos óbitos era de aproximadamente 25. Esta estabilização foi acompanhada de perda do padrão sazonal, exceto no estrato etário de 4 a 23 meses de idade.11

A pronunciada redução da mortalidade por diarréia na década de oitenta no Brasil deveu-se principalmente à terapia de reidratação oral.19 No município do Rio de Janeiro, houve uma redução de aproximadamente 94% dos óbitos por diarréia de 1980 a 1998 em menores de cinco anos de idade. Aproximadamente 5% dos óbitos infantis no início da década de 90 tiveram como causa básica diarréia, índice considerado alto quando comparado ao Japão16 (0,2%), reforçando a idéia de que ainda é passível de redução.

A maior freqüência de internações no ano de 1996, quando comparada aos demais anos, não ocorreu na série de óbitos. Nesse ano, além do aumento da magnitude do pico de internações nos meses de inverno, destacou-se a ocorrência de um valor extremo no mês de janeiro. Não foi confirmada a ocorrência de epidemia ou um possível erro de registro (viés de observador) que pudesse explicar esse valor atípico. Informações climáticas referentes a este período poderiam auxiliar na compreensão desta elevação anual das internações associadas à diarréia. No estudo de Chekley et al,2 o aumento da temperatura ambiente ocasionada pelo El Niño, nos anos de 1997 e 1998, em Lima, Peru, explicou o excesso de internações por diarréia, principalmente nos meses de inverno, em crianças menores de dez anos.

A tendência de declínio das internações associadas à diarréia no município do Rio de Janeiro, de 1995 a 1998, pode representar, de fato, uma redução dos casos moderados e graves da morbidade em menores de cinco anos de idade. Deve-se considerar, entretanto, que no período de 1993 a 1995, principalmente em 1995, houve uma redução do número total de internações nos sub-setores públicos e privado no Estado do Rio de Janeiro, embora fosse menos expressiva na faixa etária de menores de 15 anos de idade.6 Alguns determinantes , como a redução do número de leitos devido à estadualização de hospitais pertencentes ao ex-INAMPS que exacerbaram o processo de má administração e ao sucateamento destas unidades, foram discutidos por Gouveia et al.6 A redução foi explicada também pelo maior controle exercido pela introdução de críticas no SIH-SUS (Sistema de Informação Hospitalar do Sistema Único de Saúde), adotadas em setembro de 1995, bloqueando internações consideradas desnecessárias ou fraudulentas. Em 1995, o Ministério da Saúde alterou o teto de internações, de 10 para 9% da população, o que reduziu a distribuição da Autorização de Internação Hospitalar (AIH) no Estado. Um outro aspecto discutido por Gouvêa et al6 é o aumento de planos de saúde que poderiam estar absorvendo parte das internações públicas e contratadas do setor privado que integram os dados do SIH-SUS.

No presente estudo, não foi possível a caracterização de ciclos, descritos pela primeira vez por Jose et al,10 para série de internações de casos de diarréias por rotavírus em Melbourne na Austrália (ciclos bienais e interepidêmicos, quatro a cinco anos). Isto porque as séries temporais mensais de óbitos e internações associadas à diarréia, no município do Rio de Janeiro, compreenderam um período relativamente pequeno - de 1995 a 1998 (48 observações), impossibilitando assim a estimação de ciclos.

O modelo estrutural estimado para as séries de internações e de óbitos apresenta os componentes de tendência estocástica, sazonalidade determinística e irregular. A tendência de cada uma das séries mudou de padrão ao longo do tempo, mas a velocidade de decréscimo e a sazonalidade não. As variáveis de intervenção foram específicas para cada uma das séries. Seria oportuno justificar essas intervenções com fatos associados ao contexto das internações e óbitos por diarréia. Entretanto, na ausência desse conhecimento, poder-se-ia, no máximo, levantar suposições. Os valores extremos observados nos resíduos dos modelos (mudanças do tipo pulso) poderiam representar um surto epidêmico ou, simplesmente, um erro de registro (viés do observador). Essas mudanças ocorreram em ambas as séries em meses seqüenciais: primeiro, em maio de 1995 na série de internações, seguido de junho do mesmo ano na série de óbitos. A mudança de tendência da série (mudança de estrutura tipo degrau) na série de internações, no mês de janeiro de 1996, poderia levar à suposição de algum tipo de normatização ou mudança de registro das autorizações de internação hospitalar. Foi afastada uma possível interferência da implantação da Décima Revisão da CID no SIH-SUS, como justificativa da mudança de tendência das internações (1996), pois esta ocorreu em 1998. Os modelos estruturais foram capazes de extrair das séries epidemiológicas estudadas componentes de interpretação direta, tendência e sazonalidade, fornecendo assim subsídios para o entendimento da evolução temporal dessas séries. Entretanto, deve-se estar atento, em se tratando de séries formadas por dados de contagem, que a distribuição normal dos erros assumida pelos modelos estruturais pode trazer problemas na prática. Na presença de baixa contagem, como, por exemplo, na série de óbitos, é possível que as bandas do intervalo de confiança das predições incluam números negativos, não respeitando, portanto, a natureza dos dados. A disponibilidade dos modelos estruturais com pressupostos de distribuições para dados de contagem, por exemplo, as diversas abordagens dos modelos Poisson desenvolvidas por Harvey & Fernandes,8 Ferreira & Gamerman5 e Durbin & Koopman,4 fornecem um arcabouço mais adequado para aplicação desse tipo de modelagem a séries epidemiológicas de dados de contagem. Entretanto, a sua aplicação em dados reais ainda enfrenta algumas limitações, como por exemplo, a inexistência de resultados satisfatórios referentes aos diagnósticos dos resíduos, Este tópico foi recentemente abordado em Campos et al.1

O presente trabalho concluiu que o padrão temporal das diarréias moderadas e graves em menores de cinco anos de idade sugere a predominância da etiologia viral, em consonância com o padrão temporal descrito globalmente. Neste caso, a vacinação específica é a medida mais eficaz na prevenção e controle.

A vacina tetravalente (RRV-TV) apresentou uma eficácia de 50 a 60% contra diarréia severa por rotavírus no Peru, Brasil e EUA. Esta vacina foi licenciada nos EUA, em 1998, e, no ano seguinte, na União Européia. Porém, a aplicação de rotina foi suspensa devido à ocorrência de intussuscepção, um tipo raro de obstrução intestinal.15 Linhares12 aponta a necessidade de estudos de eficácia de novas candidatas à vacina contra rotavírus (89-12, tetravalente bovino-humana, etc) no Brasil, em face da magnitude do problema em âmbito nacional.

Recebido em 6/11/2002

Reapresentado em 23/6/2003

Aprovado em 21/7/2003

Subvencionado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Projeto PRONEX - CNPq/MCT nº 41.96.0937.00)

Baseado na tese de doutorado, apresentada ao Programa de Engenharia Biomédica da COPPE - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 2004

    Histórico

    • Revisado
      23 Jun 2003
    • Recebido
      06 Nov 2002
    • Aceito
      21 Jul 2003
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