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A função simbólica dos medicamentos

The symbolic function of drugs

Resumos

Foi analisada a função simbólica dos medicamentos como fazendo parte da exploração mercantil da saúde/doença, no Brasil. O medicamento, como mercadoria capaz de, numa sociedade imatura como a brasileira, encurtar a distância entre o concreto e o abstrato, entre o desejo e sua realização, necessita, para executar esta tarefa, que a saúde e a doença sejam reduzidas ao seu aspecto orgânico, com a omissão dos fatores causais de natureza social e comportamental. O que torna a função simbólica dos medicamentos fato grave de Saúde Pública é que, em muitos casos, ela é eficaz. Assim sendo, todos os profissionais de saúde com responsabilidades educativas devem contribuir, nas suas atividades, para o amadurecimento da sociedade, procurando impedir que os medicamentos sejam usados para inibir a intervenção nos fatores sociais e comportamentais das doenças.

Medicamentos; Educação em saúde pública


The symbolic function drugs as part of the commercial exploitation of health/disease in Brazil is analysed. In an immature society like the Brazilian one, the drug-in so far as it performs the role of a product able to shorten the distance between the concrete and the abstract, between the desire and its fulfilment - needs, in order to accomplish this task, that health and disease of reduced to their purely organic features, and ignores those causal factors of a social and behavioral nature. What makes the symbolic function of drugs a rather serious public health factor is that, in many cases, it is effective. Thus all health professionals with educational responsibilities should contribute, through their activities, to the creation of social maturity, in the attempt to prevent drugs being used in such a way as to inhibit action against the social and behavioral causes of diseases.

Drug consumption; Health education


ATUALIDADES/ACTUALITIES

A função simbólica dos medicamentos

The symbolic function of drugs

Fernando Lefèvre

Do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP – Av. Dr. Arnaldo, 715 – 01255 – São Paulo, SP – Brasil

RESUMO

Foi analisada a função simbólica dos medicamentos como fazendo parte da exploração mercantil da saúde/doença, no Brasil. O medicamento, como mercadoria capaz de, numa sociedade imatura como a brasileira, encurtar a distância entre o concreto e o abstrato, entre o desejo e sua realização, necessita, para executar esta tarefa, que a saúde e a doença sejam reduzidas ao seu aspecto orgânico, com a omissão dos fatores causais de natureza social e comportamental. O que torna a função simbólica dos medicamentos fato grave de Saúde Pública é que, em muitos casos, ela é eficaz. Assim sendo, todos os profissionais de saúde com responsabilidades educativas devem contribuir, nas suas atividades, para o amadurecimento da sociedade, procurando impedir que os medicamentos sejam usados para inibir a intervenção nos fatores sociais e comportamentais das doenças.

Unitermos: Medicamentos, consumo. Educação em saúde pública.

ABSTRACT

The symbolic function drugs as part of the commercial exploitation of health/disease in Brazil is analysed. In an immature society like the Brazilian one, the drug-in so far as it performs the role of a product able to shorten the distance between the concrete and the abstract, between the desire and its fulfilment – needs, in order to accomplish this task, that health and disease of reduced to their purely organic features, and ignores those causal factors of a social and behavioral nature. What makes the symbolic function of drugs a rather serious public health factor is that, in many cases, it is effective. Thus all health professionals with educational responsibilities should contribute, through their activities, to the creation of social maturity, in the attempt to prevent drugs being used in such a way as to inhibit action against the social and behavioral causes of diseases.

Uniterms: Drug consumption. Health education.

INTRODUÇÃO

Constitui um truismo afirmar-se que a saúde e a doença, em nosso país, vem se constituindo, a cada dia que passa, em objeto de intensa exploração mercantil.

No contexto desta exploração, os medicamentos desempenham papel altamente relevante. Apenas a título de ilustração, vale assinalar que, no ano de 1981, o valor das vendas brutas de medicamentos, em nosso país, foi de Cr$ 171 bilhões5.

Gostaríamos de abordar aqui um aspecto pouco discutido, em relação ao tema dos medicamentos, que diz respeito à sua função significativa ou simbólica1,4.

O signo ou símbolo é um estímulo ou realidade material (seja ela um som, traços, gráficos, luzes, sombras, gesso talhado, ou certos tipos de mercadorias como automóveis de luxo, cachimbos, remédios e outras) que, através de um sistema convencional ou código, exerce a função de estar-no-lugar-de ou representar algo, sempre que o representado (pela sua natureza abstrata ou mística, ou pelo fato de expressar mazelas ou contradições sociais que não se deseja que apareçam à luz do dia, ou por qualquer outra razão impeditiva) não puder funcionar como representante de si mesmo.

Cordeiro2 indica, em grandes linhas, o quadro geral, necessário para que se compreenda a função simbólica dos medicamentos, quando afirma: ". . . os medicamentos ocupam o lugar de símbolos e representações que obscurecem os determinantes sociais das doenças, iludem os indivíduos com a aparência da eficácia científica e, como mercadoria, realizam o valor e garantem a acumulação de um dos segmentos mais lucrativos do capital industrial".

Parece-nos necessário, no entanto, ir mais adiante, já que o detalhamento dos mecanismos intrínsecos próprios ao processo de significação ou simbolização, presente nos medicamentos, aumenta, segundo cremos, o valor de verdade da colocação genérica de Cordeiro, acima aludida.

O organismo como "campo de jogo" da saúde-doença

Nesse sentido, o primeiro ponto a assinalar ;diz respeito ao fato de ser a saúde, a nível do senso comum, um valor altamente desejado e um conceito dotado de alto grau de abstração (daí as dificuldades de se definir saúde).

Duas questões interligadas devem ser colocadas a este respeito:

a) Como aproximar os dois pólos desta contradição?

b) Por que os setores hegemônicos da sociedade estão interessados na "promoção" e na "resolução" desta contradição?

Antes de mais nada, busca-se resolver a referida contradição reforçando, através dos vários canais societários de comunicação de valores hegemônicos, a idéia de que a sede da saúde ou das ameaças à saúde, em outras palavras, o "campo de jogo", é o organismo humano.

Esta redução organicista é um primeiro passo, fundamental e imprescindível para a resolução desta contradição, basicamente porque (e aí entra a resposta a segunda questão) através da redução organicista é possível propor, como "solução" para a contradição, o consumo de mercadoria remédio.

Uma das características, no plano da super-estrutura, de sociedades como a nossa, ou seja, formações sociais historicamente jovens e que entraram precocemente no universo da produção capitalista moderna, é a da intensa promoção (basta ver a fantástica taxa de publicidade em nossos meios de comunicação de massas) da idéia de que sempre é possível, através do consumo de alguma mercadoria, encurtar ou mesmo eliminar a distância entre o concreto e o abstrato, entre o desejo e a sua realização (e não admitir esta distância, como sabemos, constitui um comportamento caracteristicamente infantil ou imaturo).

Assim, a saúde, para passar de desejo à realidade e, deste modo, gerar mercadorias (que são os instrumentos que operam esta passagem) precisa ser "biologizada".

A conseqüência disto é deixar no limbo (considerando, por exemplo, em termos de alocação de recursos, a Saúde Pública como uma atividade menor em relação à atenção curativa de saúde) as esferas "nebulosas" e "acadêmicas" do social, do comportamental, as verdadeiras sedes da saúde/ doença, privilegiando como terreno de jogo o universo concreto e seguro do organismo e da biologia.

A escolha deste terreno de jogo não apenas possibilita a promoção da mercadoria remédio como uma mercadoria qualquer mas como uma mercadoria especial, porque lastreada pelo conhecimento científico, cujo valor de uso expressaria então a Verdade.

Em resumo, a função simbólica do medicamento pressupõe que a enfermidade seja considerada um fato orgânico, enfrentável através da mercadoria remédio, que é vista como o único modo cientificamente válido de se obter um valor altamente desejado (a saúde), no contexto de uma sociedade imatura.

Eficácia do processo de simbolização

Este processo de simbolização tem, usando-se termo da semiologia1, um referente, ou seja, uma base real, positiva (o que não é o caso de muitos símbolos, como por exemplo, os símbolos religiosos).

Com efeito, as doenças são "naturalmente" sentidas e experimentadas pelos indivíduos como estados orgânicos e o modo, igualmente "natural", de enfrentamento social das doenças consiste na intervenção científica, rapidamente restabelecedora da normalidade, da Medicina e/ou dos medicamentos (no último caso via auto-medicação) sobre o organismo.

É claro que, mutatis-mutandis, isto vale também para ações de Saúde Pública como as vacinações que, em última instância, são medicamentos.

A sociedade de consumo, ao mesmo tempo que promove, por todos os seus canais de comunicação, a idéia de que qualquer sofrimento, qualquer dor, qualquer estado, enfim, que fuja daquilo que ela institui como padrão, inclusive estético, constitui algo insuportável para o indivíduo; por outro lado, oferece a solução mágica, na ponta dos dedos: os comprimidos4.

Efetivamente, o problema central, do qual os sanitaristas e demais profissionais da Saúde devem estar muito conscientes, é que o medicamento consegue, muitas vezes, funcionar eficazmente como símbolo de saúde.

Quando Cordeiro2 diz que os medicamentos, "iludem os indivíduos com a aparência de eficácia científica" (o grifo é nosso) está afirmando uma verdade apenas parcial porque, de fato, os medicamentos estão conseguindo iludir ou estão funcionando como paliativos dos sofrimentos de massas enormes de indivíduos, não com a aparência mas com a realidade da sua eficácia científica. O grave do mito dos medicamentos é que, de fato, "a dor some com...".

CONCLUSÕES

O medicamento, em nosso país, está funcionando (e eficazmente) como símbolo de saúde, ou seja, como realidade material que, sob a forma de um produto existente (e, perfeitamente acessível ao consumidor comum) num mercado de oferta e procura de bens e serviços de saúde, está ocupando o lugar da Saúde já que ela não está conseguindo aparecer como representante si mesma porque:

a) para que isto ocorresse seria necessário ir às causas sociais e comportamentais da doença, o que, pelo fato de implicar necessariamente, resultados a longo prazo, choca fortemente com a visão da doença como um estado orgânico altamente indesejável que deve, conseqüentemente, ser o mais rapidamente possível aliviado ou superado;

b) ir às causas comportamentais das doenças implica, quase sempre, dolorosas ou trabalhosas mudanças de hábitos ou comportamentos ou processos terapêuticos longos, custosos e certos como as psicoterapias ou psicanálises;

c) remontar as causas sociais das doenças não interessa às forças que, dentro e fora do atual sistema de saúde, se beneficiariam do estado de coisas sanitário educativo e sócio-econômico vigente em nosso país.

Cabe a todos os profissionais que, direta ou indiretamente, têm, nas suas ações de saúde, responsabilidades educativas, reverter esta situação, enfrentando as barreiras enunciadas acima, contribuindo no sentido de tornar mais madura nossa sociedade, não permitindo que os medicamentos ocupem o indevido lugar de substitutivos ou símbolos de saúde, cuja função consistiria em inibir a intervenção nas causas sociais e comportamentais das doenças.

Recebido para publicação em 01/01/1983

Aprovado para publicação em 01/09/1983

  • 1. BUYSSENS, E. Semiologia e comunicação lingüística. São Paulo, Cultrix, 1972.
  • 2. CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro, Graal/Cebes, 1980.
  • 3. HAFEN, B.Q. & PETERSON, B. Medicines and drugs. Philadelphia, Lea and Febiger, 1978.
  • 4. PIERCE, C.S. Semiótica e filosofia. São Paulo, Cultrix, 1975.
  • 5
    SECRETARIA DA INDUSTRIA E COMÉRCIO DA BAHIA, Indústria farmacêutica no Brasil: procedimentos essenciais. Salvador, BA, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1983

Histórico

  • Aceito
    01 Set 1983
  • Recebido
    01 Jan 1983
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