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Comentário: Avanços e problemas no financiamento da saúde pública no Brasil (1967-2006)

Advances and problems in public health financing in Brazil (1967-2006)

CLÁSSICOS DOS PRIMEIROS DEZ ANOS LANDMARKS FROM THE FIRST TEN YEARS

Comentário: Avanços e problemas no financiamento da saúde pública no Brasil (1967-2006)

Advances and problems in public health financing in Brazil (1967-2006)

Silvia Marta Porto

Departamento de Administração e Planejamento em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Silvia Marta Porto Departamento de Administração e Planejamento em Saúde - ENSP/Fiocruz Av. Leopoldo Bulhões ,1480 7º andar Manguinhos 21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: sporto@bighost.com.br

A importância de reproduzir o artigo "Financiamento dos serviços de saúde pública" de autoria de Rodolfo dos Santos Mascarenhas e publicado em 1967 por esta Revista, está dada em parte por ser um dos poucos artigos, publicados antes da década de 70, que aborda a temática do financiamento no Brasil. Nesse trabalho pioneiro, o autor analisa detalhadamente a arrecadação de impostos no Brasil, a descentralização dos serviços de saúde pública e as despesas efetuadas por cada nível de governo.

Assim, sua maior relevância está relacionada com a atualidade dos pontos tratados no artigo: a participação das três esferas de governo no financiamento da saúde pública, capacidade de auto-financiamento das esferas estaduais e municipais, descentralização e desigualdades regionais. Outro aspecto que deve ser destacado é a preocupação do autor com a superação das desigualdades e a construção de um sistema de saúde pública mais justo.

Entretanto, cabe assinalar que no período analisado no artigo, a política de saúde no Brasil estava organizada em dois subsetores, o de saúde pública (tratado no trabalho) e o de medicina previdenciária. O primeiro foi predominante até meados de 60 e o segundo se ampliou significativamente no final da década de 50 assumindo preponderância na segunda metade dos anos 60 (Braga & Paula,1 1981). Essa observação é fundamental para compreender algumas diferenças entre os resultados apresentados no artigo de referência, relativas à composição das recitas e despesas, com os comentários realizados à continuação.

A partir de 1982 iniciou-se um processo de unificação, com a implantação das Ações Integradas de Saúde (AIS), foi posteriormente fortalecido pela implementação dos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS). A unificação foi consagrada na Constituição Federal de 1988, com a definição da saúde como direito de cidadania e o estabelecimento dos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS). A Lei Orgânica da Saúde definiu as diretrizes do SUS dentre as quais se destacam: universalidade de acesso, integralidade de assistência, igualdade na assistência à saúde e descentralização político-administrativa. A legislação também manteve o financiamento tripartite do SUS, com recursos do Orçamento da Seguridade Social (OSS) – criado nessa oportunidade com o objetivo de integrar o financiamento dos programas de Assistência Social, Previdência e Saúde – e daqueles provenientes dos orçamentos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Porém o OSS nunca foi efetivamente implantado, entre outros motivos, porque: houve uma fragmentação e especificação de fontes de financiamento (e.g., a contribuição sobre folha salarial passou a financiar exclusivamente a Previdência Social); as contribuições sociais baseadas no faturamento e no lucro das empresas (definidas no texto constitucional como recursos próprios do OSS) foram apropriadas como recursos do Tesouro Nacional; e, foram incorporadas, ao OSS, despesas antes financiadas por recursos fiscais (Porto,7 1997; Cordeiro,3 2001). Assim, o alcance dos resultados esperados ficou comprometido a partir da criação do OSS em relação à constituição de um Sistema de Seguridade Social, à capacidade financeira para universalização do acesso a saúde e, ao potencial redistributivo em busca de um patamar maior de eqüidade. Concomitantemente, pouco se avançou em relação à capacidade de arrecadação das instâncias estaduais e municipais (Dain,4 2000).

Os recursos de arrecadação direta compreendem os tributos de competência própria de cada esfera de governo – União, Estados e Municípios. O pacto federativo mostrou que, em 2003, os recursos de arrecadação direta da União (incluindo os recursos do OSS) foi responsável por 68,8% do total arrecadado, os Estados participam com 26,6% e os Municípios com apenas 4,8%. Essa participação foi inferior à verificada no ano de 1962. Entretanto, quando considerada a arrecadação direta mais a repartição constitucional de impostos (e.g.: Fundo de Participação de Estados e Municípios, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), a participação da União no total de receita disponível foi de 59%, dos Estados 24,9% e dos Municípios de 16,1% (Alfonso & Araújo, 2002).

Entretanto, as dificuldades financeiras enfrentadas pelo Ministério da Saúde, provocadas pelo descumprimento da legislação vigente, levaram à criação da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), que a partir de 1997 passou a ser uma das principais fontes de financiamento da saúde.

Outro aspecto relevante é a aprovação, em 2000, da Emenda Constitucional n. 29, que vincula recursos da União, Estados e Municípios, para o financiamento da saúde. O aporte da União é definido a partir do orçamento empenhado no ano anterior, corrigido pela variação do Produto Interno Bruto nominal. Estados e Municípios alocam, no primeiro ano, 7% do total de sua receita disponível (arrecadação própria acrescida das transferências constitucionais). Esse percentual deve aumentar anualmente até atingir em 2004, no mínimo, 12% no caso dos governos estaduais e 15% para as instâncias municipais.

São muitos os defensores dessa vinculação, já que busca assegurar o volume mínimo de recursos destinados à saúde, porem, há críticas em relação ao abandono do OSS e à omissão no que diz respeito participação no financiamento das contribuições sociais (Dain,5 2001). Outra vez os resultados esperados não foram alcançados, em parte por interpretações diferentes do texto da emenda em relação ao ano tomado como base para a definição da participação da União. Também, pela falta de uma definição mais clara da abrangência do conceito de ações e serviços de saúde pública e pelo descumprimento da aplicação dos percentuais mínimos por parte dos governos estaduais. Existem estimativas que o descumprimento da Emenda Constitucional n. 29, por parte da União e dos Estados, significou, no período 2000-2004, uma perda para o financiamento do SUS da ordem de R$7,2 bilhões (Mendes,6 2005 ).

Contudo verificou-se um aumento da participação dos governos estaduais e municipais no financiamento do SUS. A distribuição da participação das três esferas de governo no gasto público em saúde que em 1980 foi de 75% federal, 18% estadual e 7% municipal, em 2002 passou para 58%, 20% e 22%, respectivamente (Ugá & Santos,* * Ugá MAD, Santos IS. Uma análise da eqüidade do financiamento do sistema de saúde brasileiro [relatório de pesquisa ENSP/Fiocruz - Projeto de Economia da Saúde]. Rio de Janeiro; 2005. Disponível em http://www.ipea.gov.br/economiadasaude/adm/arquivos/destaque/relatorio_final-1.pdf [acesso em 17 ago 2006] 2005). Entretanto são os municípios das regiões Sul e Sudeste os que apresentam uma maior participação no financiamento do gasto público em saúde, certamente em função de sua maior capacidade de arrecadação.

Embora tenha havido um aumento das transferências "fundo a fundo" em detrimento do repasse efetuado a partir da remuneração de serviços produzidos, nos últimos anos da década de 90 as transferências foram efetuadas vinculadas à realização de programas específicos. Carvalho2 (2002) identificou cerca de 80 vinculações nas transferências efetuadas pelo Ministério da Saúde em 2001. Houve repasse de recursos com destino predefinido pelo Ministério da Saúde, e a conseqüente perda de autonomia das instâncias locais para aplicá-los em função de suas correspondentes necessidades. Isso transforma o princípio organizacional da descentralização em apenas uma desconcentração de recursos.

É importante mencionar os resultados obtidos ao comparar a distribuição de recursos efetuada pelo Mistério as Saúde com a distribuição estimada a partir de critérios de necessidade (Porto et al,8 2003). Para estimar a alocação de recursos em função das necessidades populacionais por serviços de saúde, construiu-se um indicador composto a partir de um conjunto de variáveis demográficas, epidemiológicas e socioeconômicas. Os resultados distributivos obtidos a partir dessa metodologia apontam a existência de iniqüidades na alocação efetuada pelo Ministério da Saúde no ano de 1999, e a maior iniqüidade está relacionada com os repasses destinados ao financiamento de assistência hospitalar e ambulatorial. Caso os recursos financeiros destinados ao custeio dos serviços de saúde fossem alocados a partir da metodologia elaborada nesse trabalho, existiria uma redistribuição dos recursos da maior parte dos Estados das regiões Sudeste e Sul e do Distrito Federal em favor dos Estados das regiões Norte e Nordeste. Segundo esses autores, para diminuir o grau de iniqüidade existente na alocação efetuada pelo Ministério da Saúde, sem retirar recursos dos estados que seriam penalizados com a aplicação dessa metodologia, seria necessário apenas um aumento de 7% no orçamento do Ministério da Saúde.

Finalmente, vale reiterar que, depois de quase 40 anos, e apesar da existência de profundas diferenças entre o sistema atual e a realidade analisada por Mascarenhas, os temas abordados mantém enorme atualidade. É um documento importante para todos aqueles que estudam a evolução do financiamento do sistema de saúde no Brasil.

REFERÊNCIAS

1. Braga JC, Paula SG. Saúde e previdência: estudos de política social. São Paulo: Cebes-Hucitec; 1981.

2. Carvalho G. Financiamento público federal do Sistema de Saúde, 1988-2001 [tese de doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo; 2002.

3. Cordeiro H. Descentralização, universalidade e eqüidade nas reformas de saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2001;6:319-28.

4. Dain S. Do direito social à mercadoria [tese - professor titular]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2000.

5. Dain S. O financiamento público na perspectiva da política social. Econ Soc. 2001;(17):113-40.

6. Mendes A. Financiamento, gasto e gestão do Sistema Único da Saúde: a gestão descentralizada semiplena e plena do sistema municipal no Estado de São Paulo (1995-2001) [tese de doutorado]. Campinas: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas; 2005.

7. Porto SM. Equidade na distribuição geográfica de recursos em saúde: uma contribuição para o caso brasileiro [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz; 1997.

8. Porto SM, Viacava F, Landmann C, Martins M, Travassos C, Vianna SM, et al. Alocação eqüitativa de recursos financeiros: uma alternativa para o caso brasileiro. Saúde Debate. 2003;27(65):376-88.

  • Correspondência | Correspondence:
    Silvia Marta Porto
    Departamento de Administração e Planejamento em Saúde - ENSP/Fiocruz
    Av. Leopoldo Bulhões ,1480 7º andar Manguinhos
    21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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    Ugá MAD, Santos IS. Uma análise da eqüidade do financiamento do sistema de saúde brasileiro [relatório de pesquisa ENSP/Fiocruz - Projeto de Economia da Saúde]. Rio de Janeiro; 2005. Disponível em
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006
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