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Caos e governabilidade no moderno sistema mundial

RESENHAS

Depois da ruptura hegemônica

Isabela Nogueira de Morais

ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly J. 2001. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro : UFRJ-Contraponto.

A reinauguração da era dos mercados financeiros livres nos anos 1980 e as agudas crises financeiras mundiais que vieram em seguida haviam transformado as discussões sobre a reorganização da estrutura do capitalismo global na grande pauta da década. A polêmica nasceu sob a sombra da derrota norte-americana no Vietnã, da quebra do sistema monetário de Bretton Woods e das duas crises do petróleo. E foi, durante toda a década de 1980 e começo da de 1990, acompanhada por sucessivas crises financeiras nas economias centrais, como o crash da bolsa de Nova York em 1987, a quebra dos mercados imobiliários em 1989, o colapso da Bolsa de Tóquio em 1990 e, finalmente, a crise dos títulos americanos em 1994.

A década de 1990, no entanto, operou como uma pausa nas discussões sobre a reorganização do sistema de poder global e nas avaliações de que os Estados Unidos estariam enfrentando uma crise sistêmica aguda. O colapso da União Soviética e o ritmo elevado de crescimento econômico norte-americano fortaleceram as teses de "fim da história". No entanto, o coro puxado por Fukuyama de que a democracia liberal permaneceria como a única aspiração coerente e que abrangeria regiões e culturas diferentes em todo planeta não durou muito. O 11 de setembro funcionou, ao mesmo tempo, tanto como um catalisador das mudanças de trajetória propostas pela gestão George W. Bush quanto como um mecanismo de explicitação das vulnerabilidades que acometem a potência hegemônica.

Pois é nesse cenário de perspectiva de reorganização sistêmica e estrutural que se insere o último livro do sociólogo italiano radicado nos Estados Unidos Giovanni Arrighi. Caos e governabilidade, escrito em parceria com Beverly J. Silver e com contribuições de outros oito pesquisadores da Universidade de Binghamton, tem como pedra angular os grandes ciclos hegemônicos de Fernand Braudel. Aliás, o esquema interpretativo braudeliano, que fundamenta o desenvolvimento dos conceitos-chave de Arrighi, perpassa não apenas toda esta obra como também seu livro anterior, O longo século XX (ARRIGHI, 1996). É clara a intenção de fazer-se uma análise sistêmica, no estilo das grandes narrativas e dos grandes temas, num diálogo permanentemente aberto com Hobsbawn.

O esquema braudeliano (BRAUDEL, 1996) mostra que os ciclos de expansão financeira do sistema capitalista moderno são repetitivos e remontam desde as cidades-Estados da Itália renascentistas. Ao contrário da tese monetarista, de que a expansão financeira é o estágio mais recente e avançado do capitalismo, para Braudel essa expansão é um sinal de fim de um ciclo hegemônico, ou, na metáfora do autor, um "sinal do outono". Isso porque as expansões financeiras provocam dois efeitos, à primeira vista antagônicos, mas que nesse esquema acabam por tornarem-se complementares: a hiperacumulação de capital e a hipercompetição entre os estados pelo capital circulante. A idéia é que toda as vezes em que a acumulação de capital é muito superior à que pode ser reinvestida com lucro nos canais de produção e comércio, os indivíduos e corporações passam a reter seus rendimentos, gerando uma massa de liquidez excessivamente abundante. Essa massa é então mobilizada na especulação e na tomada e concessão de empréstimos, o que reduz a expansão do comércio e da produção e torna a atividade financeira divorciada da produção. A liquidez abundante no sistema financeiro e a escassez de capital no sistema produtivo levam a uma competição intensa entre os estados e entre empresas e estados. A competição por demanda de capital termina por acentuar a redistribuição de renda e riqueza justamente para os agentes que controlam o capital circulante, o que volta a inflar a lucratividade dos negócios financeiros.

A tese central de Arrighi é que as expansões financeiras foram um fator de impulso das crises hegemônicas anteriores e da transformação dessas crises em colapsos. Esse movimento expansivo termina por levar ao chamado "caos sistêmico" – com o aumento da competição interestatal e interempresarial –, à escalada dos conflitos sociais e à emergência de novas configurações de poder. São três processos que se repetiram em duas outras transições hegemônicas: da hegemonia holandesa para a britânica, no século XVIII, e da britânica para a norte-americana, no final do século XIX. Feita a extensa análise histórica dessas transições, Arrighi parte para o ponto ousado da obra: a aposta de que processos similares aos que já ocorreram nas transições hegemônicas do passado acometem os Estados Unidos e sugerem o início de um processo de crise e ruptura hegemônica.

Além da estrutura analítica braudeliana, Arrighi consegue manter a consistência do raciocínio ao incorporar o conceito sistêmico de Waltz, mas sem incorrer no erro de tornar exógena a possibilidade de mudança do sistema. A grande contribuição da teoria sistêmica de Waltz (WALTZ, 2002) foi desmontar o modelo de análise baseado no conhecimento do todo por meio do estudo de suas partes. Nesse sentido, os sistemas são "produtores" e não apenas "produto" de processos unitários. Para chegar à análise sistêmica, o autor emprega o conceito de "estrutura" como o "componente alargado do sistema que torna possível pensar o sistema como um todo" (idem, p. 114). A idéia é criar ferramentas conceituais (neste caso a estrutura) que ajudem a distinguir entre variáveis no nível das unidades e variáveis no nível do sistema.

Apesar de fazer uso da teoria sistêmica para compor a base analítica do livro, Arrighi minimiza a importância da estrutura como conceito para chegar à análise do todo. Ao abstrair tributos da ação humana – como lideranças políticas, instituições econômicas e compromissos ideológicos –, Waltz termina por tornar exógena a possibilidade de transformação do sistema. Quando joga a responsabilidade na estrutura e tira o peso da ação humana, torna a ação das unidades do sistema pré-determinada. É isso que Arrighi busca evitar. Em sua estrutura gráfica da dinâmica das transições hegemônicas (p. 19), Arrighi traz para dentro do sistema a perspectiva de mudança estrutural. A ruptura hegemônica é, assim, fruto de contradições nascidas e alimentadas pelo próprio sistema e não pela estrutura, como as rivalidades interestatais e competição interempresarial, conflitos sociais e surgimento de novas configurações de poder.

I. EUA EM DECADÊNCIA

A primeira característica da atual crise hegemônica diagnosticada por Arrighi é, ao mesmo tempo, a única que não tem precedentes nas transições hegemônicas anteriores. Trata-se da chamada bifurcação das capacidades militares e financeiras. Nas duas outras transições, a decadência econômico-financeira da nação hegemônica veio acompanhada da decadência militar. Foi assim durante a Guerra da Criméia (1854-1856), quando a transformação na indústria bélica promovida pelos norte-americanos (com a introdução de técnicas de produção em massa e com a entrada da iniciativa privada) terminou por destruir por dentro a ordem militar ditada pelos britânicos no século XVIII.

Hoje, no entanto, os Estados Unidos enfrentam uma situação em que não têm qualquer oponente ou aliança de oponentes que façam frente ao seu poderio militar. No entanto, da mesma forma que as duas guerras mundiais terminaram com o status da Grã-Bretanha de maior nação credora e tornaram-na uma nação endividada, a Guerra Fria transformou os Estados Unidos na maior nação devedora do globo. "O centro hegemônico em declínio, portanto, fica na situação anômala de não enfrentar nenhum desafio militar digno de crédito, mas de não dispor dos meios financeiros necessários para resolver problemas de nível sistêmicos que exigem soluções de nível sistêmico" (p. 287).

O segundo ponto que evidencia a decadência hegemônica norte-americana é a economia transnacional, que vem, na visão de Arrighi, minando o poder dos Estados e enfraquecendo a capacidade reguladora das grandes nações até mesmo dentro de suas próprias economias. O processo é similar ao das companhias de comércio e navegação holandesas, que, ao mesmo tempo em que deram às nações européias do século XVII o poder de operar globalmente, também esvaziaram as funções e o poder dos Estados.

As empresas multinacionais norte-americanas, apesar de apropriarem-se de parte da renda dos países onde se instalam, não têm proporcionado aumento equivalente na renda dos residentes dos Estados Unidos e nem do seu governo. Ao contrário, ao menor sinal de instabilidade econômico-financeira na matriz ou na economia nacional, esses capitais fogem para mercados estrangeiros e servem apenas para acentuar a crise. Foi assim durante a crise fiscal que eclodiu depois da Guerra do Vitenã, evidenciando a falência do que o autor chama de "Estado de Guerra-Bem-estar". Ao invés da renda das multinacionais ser repatriada, houve uma onda de fuga de capitais para mercados monetários estrangeiros. Esse movimento terminou precipitando o desmoronamento do sistema monetário de Bretton Woods e tornou a crise fiscal um problema sem solução até os dias de hoje.

Com o fim da centralização econômica e financeira em torno da nação hegemônica, sua capacidade reguladora terminou enfraquecida e abriu espaço para uma forma nova de reorganização sistêmica. Reflexo disso é a ausência de governabilidade mundial. Os Estados Unidos consolidaram-se como nação hegemônica ao resolverem os problemas sistêmicos que atormentavam o mundo no entre-guerras. Mais do que isso, tiveram a capacidade de erguerem a si e às outras nações acima daquilo que Waltz chamou de "tirania das pequenas decisões" – ou seja, superar a tendência de os estados separados buscarem seu interesse nacional, sem levar em conta os problemas de nível sistêmico que exigem soluções sistêmicas. Esta governabilidade global não existe mais. Uma nova tirania das pequenas decisões ressuscitou, já que os problemas de nível sistêmico cada vez mais prementes não podem ser resolvidos nem pelos Estados Unidos e nem por outro país qualquer.

Do ponto de vista do conceito de hegemonia de Gramsci, a falta de governabilidade global é ponto central nas evidências de decadência hegemônica. "Ter hegemonia é assegurar a direção intelectual e moral do processo político-social, ou estabelecer a supremacia de uma forma de unidade do pensamento e da vida que se expressa em uma concepção do mundo" (FERREIRA, 1986). Nesse sentido, o objetivo da ação hegemônica é fazer que o outro aceite a minha vontade como sendo a dele mesmo, por meio da interiorização de valores que se tornam consensuais. Quando o Estado hegemônico deixa de fazer seu interesse parecer o interesse de todos, para Gramsci ele perde sua condição e tende a partir para um processo de dominação.

II. O QUE VEM DEPOIS?

A grande aposta de Arrighi sobre o que vem depois da ruptura hegemônica concentra-se no Leste Asiático. A consolidação da região como centro mais dinâmico dos processos de acumulação de capital em grande escala tem possibilitado o surgimento de uma estrutura produtiva antagônica à norte-americana. Característica fundamental do modelo que nasce é a informalidade, em contraste com a formalidade do modelo dominante no capitalismo de corporações norte-americano, que se baseia na regulação das grandes empresas, mão-de-obra organizada e altas esferas de governo. O ponto crítico é que as grandes estruturas empresariais não teriam hoje mais condições de adaptarem-se às contínuas oscilações das demandas do consumidor, à acentuada competição internacional e à necessidade de modos mais flexíveis de trabalho e de interação entre as empresas. O momento seria de sustentar a economia com companhias menores e mais ágeis, que dessem conta de impulsionar o progresso tecnológico necessário. Nesse sentido, as características das novas estruturas seriam a descentralização, a informalidade e a flexibilização, a exemplo das estruturas do Leste da Ásia, em contraposição às estruturas centralizadoras, burocratizantes e rígidas das corporações norte-americanas.

Essa combinação de novas características estruturais tem transformado o Leste Asiático tanto na nova oficina quanto no cofre da economia mundial, sob a liderança, na década de 1980, de um Estado semelhante a uma empresa (o Japão) e depois de uma diáspora comercial (os chineses de além-mar), o que terminou transformando a China no chão de fábrica mundial. Um sinal da emergência da região teria sido a crise a bolsa de Tóquio, em 1990, e a crise asiática de 1997. Segundo Braudel, as crises que anunciam a derrocada do antigo centro financeiro foram sentidas mais cedo e com mais severidade nos centros financeiros em ascensão. Teria sido assim também na crise de 1929, quando houve o arremate completo do fim da hegemonia britânica e um prenúncio da ascensão norte-americana (BRAUDEL, 1996).

O ponto-chave na emergência do Leste Asiático é que não se trata de um processo galopante de ganho de poder em função da inauguração de um novo sistema produtivo ou de governança global que dê conta da reorganização sistêmica em curso, mas tão-somente fruto da falência norte-americana. O sistema internacional está desmoronando não porque novas potências estejam ampliando seus domínios, mas porque os Estados Unidos estão encolhendo a sua dominação. Isso tende a transformar a hegemonia decrescente em uma dominação exploradora, o que por si só descaracteriza o processo de dominação hegemônica.

É, por enquanto, difícil imaginar uma liderança global nos centros financeiros do Leste da Ásia disposta a enfrentar a tarefa de fornecer soluções sistêmicas para os problemas sistêmicos deixados pela hegemonia norte-americana, especialmente porque a região enfrenta contradições sociais que de certa maneira sumariam as contradições alimentadas pelo modelo norte-americano. Apesar de afirmar que o Leste da Ásia ainda não esboça nenhuma via nova de desenvolvimento que aponte uma alternativa ao beco sem saída em que vivemos hoje, Arrighi parece convencido de que a alternativa sairá de lá. A lacuna final do livro é esta: apesar da nova estrutura econômica que se desenha na região, não há sinais de que o Leste da Ásia tenha um projeto de governança global que surja como alternativa quando o caos sistêmico se instalar. É quase uma aposta de fé, centrada por enquanto mais na intuição do que em evidências.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRIGHI, G. 1996. O longo século XX. São Paulo : UNESP.

BRAUDEL, F. 1985. A dinâmica do capitalismo. Lisboa : Teorema.

_____. (1996). Civilização material, economia e capitalismo. V. 3: O tempo do mundo. São Paulo : Martins Fontes.

FERREIRA, O. 1986. Os 45 cavaleiros húngaros. Uma leitura dos Cadernos de Gramsci. Brasília : UNB-Hucitec.

WALTZ, K. 2002. Teoria das relações internacionais. Lisboa : Gradiva.

Recebida em 26 de julho de 2003

Aprovada em 6 de agosto de 2003

Isabela Nogueira de Morais (issy@uol.com.br) é jornalista e mestranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2004
  • Data do Fascículo
    Nov 2003
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