RELAÇÃO CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICA ENTRE SARS-COV-2 E DOENÇA DE KAWASAKI: UMA REVISÃO INTEGRATIVA DA LITERATURA

RESUMO

Objetivo:

Analisar a literatura científica atual a fim de documentar, por meio de revisão integrativa, os principais achados que associam a doença de Kawasaki (DK) à doença do coronavírus (COVID-19).

Fonte de dados:

A busca ocorreu em junho de 2020, nas bases de dados: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), periódico da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e U.S. National Library of Medicine (PubMed). Os descritores utilizados foram [(COVID-19 OR SARS-CoV-2) AND (Kawasaki Disease)], e os critérios de inclusão estipulados compreenderam estudos publicados de janeiro de 2019 a junho de 2020, sem restrição de idioma ou localização e disponíveis online integralmente. Foram excluídos notícias, editoriais, comentários e cartas de apresentação, assim como duplicatas e artigos que não respondiam à pergunta norteadora.

Síntese dos dados:

Identificaram-se 97 artigos, dos quais sete compuseram esta revisão. A associação da DK com o novo coronavírus parece desencadear um quadro de vasculite grave. Diferentemente do usual, nessa síndrome inflamatória, os pacientes são mais velhos e a descendência prevalente é africana ou caribenha; as manifestações clínicas e laboratoriais também são atípicas, com predomínio de queixas abdominais e elevação exagerada de marcadores inflamatórios. Além disso, houve maior relato de complicações raras e maior resistência ao tratamento preconizado para DK.

Conclusões:

A COVID-19 pediátrica e sua potencial associação com uma DK grave, ainda pouco conhecida pelos profissionais da saúde, reforçam a importância da testagem de pacientes com vasculite para o novo coronavírus e a necessidade de empreender alta vigilância e preparação do sistema de saúde durante a atual pandemia.

Palavras-chave:
Síndrome de linfonodos mucocutâneos; Infecções por coronavírus; Pandemias; Betacoronavírus; Inflamação; Criança

ABSTRACT

Objective:

To analyze the current scientific literature to document, in an integrative review, the main findings that correlate Kawasaki disease (KD) to COVID-19.

Data sources:

The search was carried out in June 2020 in the following databases: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), periódico da CAPES and U.S National Library of Medicine (PubMed). The combination of descriptors used was [(COVID-19 OR SARS-CoV-2) AND (Kawasaki disease)], and the inclusion criteria stipulated were studies published from January 2019 to June 2020, without restriction of language or location, and available online in full. News, editorials, comments, and letters, as well as duplicates and articles that did not answer the guiding question were excluded.

Data synthesis:

A total of 97 articles were identified, of which seven comprised this review. The association of KD to the new coronavirus appears to trigger a severe clinical condition of vasculitis. Different from the usual, in this inflammatory syndrome, patients are older, and prevalence is higher in children from African or Caribbean ancestry; clinical and laboratory manifestations are also atypical, with a predominance of abdominal complaints and exaggerated elevation of inflammatory markers. In addition, there was a greater report of rare complications and greater resistance to the recommended treatment for KD.

Conclusions:

Pediatric COVID-19 and its potential association to severe KD, still unfamiliar to health professionals, reinforces the importance of testing patients with vasculitis for the new coronavirus and the need to wage high surveillance and preparation of the health system during the current pandemic.

Keywords:
Mucocutaneous lymph node syndrome; Coronavirus infections; Pandemics; Betacoronavirus; Inflammation; Child

INTRODUÇÃO

O novo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2) foi identificado em Wuhan, na China, no fim de 2019, como causa da COVID-19 e logo se tornou uma emergência de saúde global. A maioria dos adultos infectados apresenta quadro clínico com febre baixa, tosse seca, fadiga e odinofagia. Alguns casos graves evoluem para síndrome do desconforto respiratório agudo, insuficiência cardíaca, encefalopatia hipóxico-isquêmica e sepse.¹ Em contrapartida, crianças têm manifestações mais leves e representam apenas 1-5% dos casos sintomáticos.² Sintomas típicos pediátricos incluem febre flutuante, sinais de infecção de vias aéreas superiores e pneumonia sem hipoxemia. Menos de 5% das crianças exibem quadros graves e críticos, caracterizados por sintomas gastrointestinais, dispneia, cianose central, insuficiência respiratória aguda e choque.^3,4,5 Recentemente, crianças infectadas com SARS-CoV-2 desenvolveram um quadro grave de síndrome inflamatória semelhante à doença de Kawasaki (DK), levando a um aumento incomum de 30 vezes na incidência dessa patologia.⁶

A DK, descrita pela primeira vez em 1967 por Tomisaku Kawasaki, é uma vasculite sistêmica aguda que atinge pequenos e médios vasos. Afeta, predominantemente, crianças entre seis meses e quatro anos de idade (80-90%).^7,8,9 Ainda hoje, sua etiologia permanece desconhecida. Hipóteses sugerem gatilho infeccioso na precipitação da resposta imune anormal associada à suscetibilidade genética, bem como à maior predisposição racial em asiáticos, visto que a taxa de incidência nestes é 20 vezes maior que em caucasianos. Embora seja uma doença febril autolimitada, desencadeada principalmente no inverno e com caráter epidêmico, nunca foi identificado um patógeno que corroborasse a teoria infecciosa. Adenovírus, rinovírus e coronavírus de New Haven já foram associados à DK, mas os resultados foram inconclusivos e refutados em estudos posteriores.^6,7,9

A American Heart Association (AHA) classifica a DK em formas clássica e incompleta, ou atípica. Conforme os critérios, atualizados em 2017, a forma clássica é caracterizada pela presença de febre com duração de cinco dias ou mais, associada a pelo menos quatro dos seguintes sintomas:

• Conjuntivite não exsudativa.

• Alterações dos lábios ou da cavidade oral (eritema, fissuras ou descamação).

• Linfadenopatia cervical.

• Erupção cutânea polimórfica.

• Alterações de extremidades em fase aguda (eritema de mãos e pés) ou subaguda (descamação periungueal).

Define-se a forma incompleta, por sua vez, por febre inexplicada por cinco dias ou mais associada a dois ou três dos critérios clínicos de DK clássica. Em lactentes com idade igual ou inferior a seis meses, a forma atípica é determinada por febre inexplicada com duração de sete dias ou mais, mesmo na ausência de critérios clássicos.^8,10

Complicações potencialmente fatais da DK incluem síndrome de ativação macrofágica (SAM) e síndrome de choque da doença de Kawasaki (KDSS). A SAM é um processo inflamatório sistêmico causado pela ativação, proliferação e infiltração excessiva de células T e macrófagos, manifestando-se em apenas 1,1% dos pacientes.¹¹ Já a KDSS se refere à diminuição de mais de 20% da pressão arterial sistólica normal, levando à instabilidade hemodinâmica, e afeta de 1,5 a 7% dos pacientes, devendo ser identificada precocemente, pois pode evoluir para choque com fortes respostas inflamatórias que resultam em doença arterial coronariana e disfunção de múltiplos órgãos.^12,13 Embora raras, essas complicações, quando associadas à COVID-19, parecem ser mais prevalentes.^14,15

O novo coronavírus desafia a saúde mundial, suscitando manifestações clínicas incomuns em doenças previamente conhecidas e de alta incidência. A DK demonstrou características diferentes em seu quadro típico quando associada temporalmente ao SARS-CoV-2. Nesse contexto, a presente revisão tem como objetivo elucidar, fundamentada em trabalhos científicos publicados até o momento, a relação entre SARS-CoV-2 e DK.

MÉTODO

Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, estudo que permite a avaliação crítica de diversas abordagens metodológicas, possibilitando reunir e sintetizar conhecimentos, bem como elaborar conclusões fundamentadas em evidências científicas e aplicar seus resultados na prática clínica.^16,17

Esta revisão objetivou responder à seguinte questão: o que a literatura atual diz sobre a relação clínico-epidemiológica entre SARS-CoV-2 e DK? Após determinação da pergunta norteadora, foi dada continuidade às subsequentes etapas: definição da base de dados, descritores e critérios de inclusão e exclusão; coleta de dados; avaliação dos títulos dos artigos selecionados; análise do conteúdo dos resumos; e avaliação e análise criteriosa dos artigos na íntegra.

A seleção dos estudos foi realizada por dois pesquisadores independentes, na primeira semana de junho de 2020, nas seguintes bases de dados eletrônicas: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e U.S. National Library of Medicine (PubMed). Os descritores utilizados foram consultados previamente nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e nos Medical Subject Headings (MesH), definida a combinação [(COVID-19 OR SARS-CoV-2) AND (Kawasaki Disease)], em busca de resultados abrangentes em razão da novidade do assunto. Os critérios de inclusão estipulados foram: estudos publicados no período de janeiro de 2019 a junho de 2020, sem restrição de idioma nem de localização, disponíveis online na íntegra e com abordagem plena ou parcial do conteúdo. Excluíram-se notícias, editoriais, comentários e cartas de apresentação.

As buscas na BVS (n=11), CAPES (n=56) e PubMed (n=30) resultaram em 97 publicações. Após leitura do título, 43 delas foram pré-selecionadas para leitura exploratória dos resumos. Depois de análise criteriosa, restaram 27 artigos, dos quais dez foram retirados por duplicação e dois por não estarem disponíveis integralmente. Com isso, selecionaram-se 15 artigos para análise completa e, após apreciação, sete compuseram a amostra final desta revisão (Figura 1).

Figura 1
Fluxo do processo de seleção dos artigos para revisão integrativa.

Os dados das publicações foram organizados e sintetizados em forma de tabela, com o intuito de simplificar a integração dos achados, conforme as seguintes variáveis: base de dados, título, periódico, autor, país/ano e desenho/amostra.

Quanto aos aspectos éticos, todas as informações extraídas dos artigos pertencem ao domínio público, e foram respeitados as ideias, os conceitos e as definições dos autores incluídos na revisão.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Quanto ao país de origem dos artigos selecionados, dois são dos Estados Unidos da América, um da Índia e quatro são de países europeus (Itália, França e Inglaterra). Com relação ao ano de publicação, todos os estudos foram realizados em 2020, e destes, cinco são do mês de maio e dois de junho. No que se refere ao tipo de estudo, cinco são categorizados como relato de caso e dois como estudo de coorte. Todos os artigos selecionados estavam no idioma inglês. Acerca das áreas de conhecimento do periódico em que os artigos selecionados foram publicados, quatro fazem parte de revistas de pediatria (Indian Pediatrics, The Indian Journal of Pediatrics, Hospital Pediatrics e Journal of the Pediatric Infectious Diseases Society) e três de periódicos de temas diversos da área da saúde (The Lancet e British Medical Journal). A Tabela 1 sintetiza esses achados.

Tabela 1
Características gerais dos estudos incluídos.

Base de dados	Título	Periódico	Autor	País/ano	Desenho (n)
PubMed	Kawasaki-like multisystem inflammatory syndrome in children during the COVID-19 pandemic in Paris, France: prospective observational study18	British Medical Journal	Toubiana et al.	França 2020	Estudo observacional prospectivo (n=21)
BVS PubMed CAPES	An outbreak of severe Kawasaki-like disease at the Italian epicentre of the SARS-CoV-2 epidemic: an observational cohort study19	The Lancet	Verdoni et al.	Itália 2020	Estudo de coorte (n=10)
BVS PubMed CAPES	Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic20	The Lancet	Riphagen et al.	Inglaterra 2020	Relato de caso (n=8)
BVS PubMed	Multisystem Inflammatory Syndrome in Children during the Covid-19 pandemic: a case series21	Journal of the Pediatric Infectious Diseases Society	Chiotos et al.	Inglaterra 2020	Relato de caso (n=6)
PubMed CAPES	Incomplete Kawasaki disease in a child with COVID-1922	Indian Pediatrics	Rivera-Figueroa et al.	Estados Unidos 2020	Relato de caso (n=1)
BVS PubMed	Multisystem Inflammatory Syndrome with features of atypical Kawasaki disease during COVID-19 pandemic23	Indian Journal of Pediatrics	Rauf et al.	Índia 2020	Relato de caso (n=1)
PubMed	COVID-19 and Kawasaki disease: novel virus and novel case24	American Academy of Pediatrics	Jones et al.	Estados Unidos 2020	Relato de caso (n=1)

• PubMed: U.S. National Library of Medicine; BVS: Biblioteca Virtual em Saúde; CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Foram analisados e comparados dados de 48 pacientes pediátricos com o quadro de DK e suspeita de infecção por SARS-Cov-2, sendo 21 deles pertencentes ao estudo de Toubiana et al.,¹⁸ dez de Verdoni et al.,¹⁹ oito de Riphagen et al.,²⁰ seis de Chiotos et al.,²¹ um de Rivera-Figueroa et al.,²² um de Rauf et al.²³ e um de Jones et al.²⁴ Para fins didáticos deste estudo, em função da extensa quantidade de informações, estabeleceram-se oito categorias temáticas: características epidemiológicas, manifestações clínicas, complicações, exames de imagem, exames laboratoriais, associação entre DK e COVID-19, tratamento e síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica.

Características epidemiológicas

A DK acomete, predominantemente, o sexo masculino e menores de cinco anos, com média de três anos de idade.^25,26 Esta revisão demonstra que a síndrome, quando associada ao SARS-CoV-2, parece atingir crianças mais velhas. Os estudos envolveram a faixa etária de seis meses a 16 anos, com média de 7,7 anos. Quanto ao sexo, houve neutralidade entre feminino e masculino.

Embora seja uma doença de distribuição mundial, há predomínio no território oriental e em descendentes nipônicos residentes em outros continentes.^26,27 Contudo, no atual surto de COVID-19, foram poucos os casos da síndrome inflamatória nos países asiáticos, berço da pandemia e local de predominância da DK.¹⁸ A discrepância étnica entre a DK usual e a associada ao coronavírus ficou evidente aqui, em que crianças com descendência africana ou caribenha representaram 43,8% dos casos, caucasiana 16,6%, asiática 8,3% e médio-oriental 4,2%. Já aquelas com etnias desconhecidas somaram 27,1% das ocorrências.

Manifestações clínicas

A DK é caracterizada por três fases: aguda, subaguda e período de recuperação. O aumento de temperatura e os demais critérios diagnósticos ocorrem no estágio inicial.^27,28 Febre por cinco dias ou mais foi encontrada em todos os pacientes desta revisão. O segundo sintoma mais prevalente foi conjuntivite não exsudativa (83,3%), seguida por erupção cutânea polimórfica (75%), alterações dos lábios ou da cavidade oral (58,3%), alterações de extremidades (56,3%) e linfadenopatia cervical (29,2%). Características específicas dos sintomas foram: eritema, fissura ou descamação, presentes em 100% daqueles com alterações dos lábios ou da cavidade oral, enquanto língua de morango representou 16,7%. Em relação às alterações de extremidades, 55,6% exibiram eritema ou endurecimento firme e 60,7% edema de mãos e pés. Conforme critérios da AHA de 2017, 62,5% dos casos foram relatados como do tipo incompleto ou atípico e 37,5% como completo.

Sintomas menos comuns podem estar relacionados: dor abdominal (18%), diarreia (26%) e irritabilidade (50%).²⁷ Comparativamente à revisão, quando associada ao SARS-CoV-2, dor abdominal foi relatada em 89,5% de 38 crianças^{18,20,21,22,23,24}, e alterações de hábito intestinal apareceram três vezes mais, demonstrando maior comprometimento gastrointestinal. A presença de sinais meníngeos associada à DK é pouco apontada pela literatura, entretanto pesquisas sugerem prevalência de até 10% de casos de meningite asséptica.⁷ Nesta revisão, alterações neurológicas e sinais de irritação meníngea foram mencionados em 56,2 e 31,5% das crianças, respectivamente.

Quadros clínicos variáveis que apareceram nos estudos incluíram edema escrotal,²² vômito,^18,20,21 artralgia,¹⁸ ascite,²⁰ taquicardia,^20,23,24 taquipneia,^22,24 dispneia, insuficiência respiratória aguda e parada respiratória.²¹

Na fase subaguda, podem ser mantidos descamação periungueal, anorexia e conjuntivite. Ainda, nesse período, desenvolvem-se os aneurismas de artéria coronária, e o risco de morte súbita é maior. Por fim, na fase de convalescença, os exames normalizam e os sinais clínicos cessam, a menos que se sucedam complicações.^7,13,27

Complicações

Durante quadro clínico complicado de COVID-19 e DK, o sistema imunológico inato é ativado, levando ao aumento exacerbado de citocinas pró-inflamatórias. Logo, ocorrem inflamação excessiva e danos locais e sistêmicos.^13,19,23,29 O acúmulo de células inflamatórias no tecido endotelial é mediado, provavelmente, pela enzima conversora de angiotensina 2 (ECA-2), receptor funcional para SARS-CoV-2. A ECA-2 é altamente expressa nas células alveolares do pulmão, gerando sintomas pulmonares graves. Embora a população pediátrica apresente sintomas respiratórios leves, em quadros de pneumonia a resposta inflamatória pode potencializar a disfunção de células endoteliais cardíacas, levando a lesões coronarianas e acelerando o desenvolvimento da DK.^29,30

O comprometimento do coração, de maneira especial a miocardite, ocorre precocemente em um terço dos pacientes, contudo, na presença de COVID-19, o dano parece ser maior. Diagnosticada por meio da elevação de troponina I e redução da fração de ejeção do ventrículo esquerdo, a miocardite desenvolveu-se em 56,3% de todos os pacientes. Com a disfunção miocárdica e a diminuição da resistência vascular periférica, alguns pacientes podem evoluir com instabilidade hemodinâmica e desenvolver KDSS.^18,19,31 Essa complicação afeta de 1,5 a 7% daqueles com DK.^13,18 Entretanto, conforme presente revisão, quando associada ao SARS-CoV-2, sua incidência aumentou, visto que afetou 52,2% de 38 crianças.^18,19,21,22 Hipotensão e hipoperfusão periférica são os principais indicadores de evolução para KDSS, porém não são diagnósticas.^12,13 Esse dado corrobora o fato de que 74,1% (n=27) dos pacientes apresentaram hipotensão, mas não obrigatoriamente KDSS.^{19,20,21,22,23,24}

A SAM possui incidência mundial inferior a 2%.^11,33 Aqui, 35,3% de 17 pacientes estudados apresentaram a complicação.^19,21,22 Embora possa haver SAM oculto ou subclínico, na prática o entendimento limitado da doença favorece seu subdiagnóstico.¹¹ A hipótese clínica surge quando há febre persistente associada à esplenomegalia, encontrada em 69% dos pacientes,³³ confrontando o fato de apenas um único paciente desta revisão apresentar tal manifestação.²¹

KDSS e SMA foram concomitantes em três crianças.¹⁹ Outras complicações independentes consistiram em choque cardiogênico em um paciente,²³ choque hipovolêmico em uma menina de nove anos²¹ e choque vasoplégico em oito pacientes de um único estudo.²⁰

Exames de imagem

De todos os pacientes submetidos à radiografia de tórax (n=47), 19,1% estavam conforme os limites da normalidade. Os laudos demonstraram cardiomegalia (8,5%), pneumonia (19,1%) e edema pulmonar (4,3%). Ainda, foram encontrados derrame pleural (n=6)^18,20 e achados radiográficos compatíveis com COVID-19 (opacidade em vidro fosco, sombreamento local irregular e anormalidades intersticiais) em oito pacientes.¹⁸

Todos foram sujeitos a exame ecocardiográfico. A alteração mais vista foi fração de ejeção reduzida de ventrículo esquerdo, em 60,4% dos casos, seguida por derrame pericárdico em 31,3%. A principal complicação cardíaca relacionada à DK é aneurisma de artéria coronária, que se desenvolve na fase subaguda, ou seja, após 14 dias do início da doença.^7,27,30 Nesta revisão, o aneurisma (6,3%) e anormalidades inespecíficas das coronárias (22,5%) desenvolveram-se precocemente, conforme a média de 8,6 dias de internação. Disfunção de válvula mitral (12,5%), dilatação do ventrículo esquerdo (4,2%), disfunção biventricular (4,2%) e hipocinesia de ventrículo esquerdo (2,1%) foram outros achados.

Exames laboratoriais

Observaram-se leucocitose em 87,5% (n=40) dos casos,^{18,19,21,22,23,24} linfocitose em 78,3% (n=38) deles^18,19,21,24 e trombocitopenia em 63% (n=27) do total.^{19,20,21,22,23,24} Apresentaram anemia 82,6% (n=23), contudo eritrograma foi realizado em apenas metade dos estudos.^18,22,24

Todas as investigações testaram os marcadores inflamatórios: proteína C-reativa (PCR) e velocidade de hemossedimentação (VHS), que se mostraram aumentadas em 97,9% dos pacientes. Ainda, quatro estudos testaram procalcitonina, elevada em 100% de 35 pacientes.^18,20,21,22

A suspeita de miocardite ocorre, principalmente, quando os níveis laboratoriais de troponina I estão elevados. Nesta revisão, constatou-se aumento em 71,7% de 46 pacientes.^{18,19,20,21,22,23,31} Objetivando ponderar melhor a função cardíaca, a dosagem plasmática do fragmento terminal do peptídeo natriurético tipo B (n=44, elevado em 77,3%),^18,19,20,21 a dosagem de sódio sérico (n=40, reduzido em 92,5%)^{18,19,21,22,23,24} e os triglicerídeos (n=17, elevados em 88,2%) também foram quantificados.^19,20

Para mensurar possíveis lesões em outros órgãos-alvo, foram dosados creatinina para função renal, elevada em 44,7% de 38 pacientes,^18,19,21,23 e biomarcadores de função hepática, como transaminase glutâmico-oxalacética (TGO) ou transaminase glutâmico-pirúvica (TGP), altos em 70% dos 40 pacientes,^{18,19,21,22,23,24} e albumina plasmática, reduzida em 92,1% de 38 pacientes.^{18,20,21,22,23}

Associação entre doença de Kawasaki e doença do coronavírus

De 9 a 42% dos pacientes apresentam sintomas de infecção respiratória nos 30 dias antecedentes ao diagnóstico de DK, outra informação que reforça a teoria de sua etiopatogenia viral. Um dos estudos desta revisão ilustra precisamente esse dado, relatando história recente de sintomas gripais em um intervalo médio de 45 dias entre esse quadro e os sinais de DK em 42% da amostra, salientando a relação entre DK e SARS-CoV-2.¹⁸

Não se devem comparar os quadros infantis de infecção por SARS-CoV-2 com os relatados em adultos, visto que as crianças parecem ter uma resposta qualitativamente diferente. Teorias explicam que o curso benigno, a reduzida gravidade e a mortalidade da doença na população pediátrica se relacionam à menor carga viral presente na faixa etária ou à presença simultânea de outros patógenos nas vias aéreas, que limitariam o crescimento do vírus.^19,29 No conjunto de pacientes deste estudo, os quadros clínicos relacionados à COVID-19 foram assintomáticos ou com sintomas respiratórios leves.^18,20,21 Outras hipóteses sugerem que as respostas inflamatórias de adultos e crianças sejam discrepantes, evidenciada pela atual incidência de síndrome inflamatória multissistêmica em crianças.²⁹

Um instrumento mais confiável que a reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa (RT-PCR) para confirmação de infecção viral ativa em pacientes com DK é o teste sorológico para detecção de anticorpos anti-IgG.¹⁹ Todas as crianças dos estudos foram triadas para COVID-19. O RT-PCR positivou em 35,4%, enquanto o IgG, investigado em 44 pacientes, foi reagente em 91% destes.^18,19,20,21 Na presente revisão, 14 pacientes apresentaram dosagens mútuas positivas, sugerindo um começo tardio da síndrome se contrastada com a infecção primária e fornecendo dados que sustentam a reação imunológica ­pós-viral como responsável pela DK em pacientes predispostos.

Ambos os testes diagnósticos resultaram negativo em quatro pacientes,^18,19 outros quatro foram testados somente para RT-PCR,^21,22,24 e um realizou o teste sorológico para IgG somente após infusão de altas doses de imunoterápicos, enviesando os resultados.¹⁹

Tratamento

O tratamento padrão primário para DK inclui ácido acetilsalicílico (AAS) e imunoglobulina intravenosa (IgIV), sendo iniciado prioritariamente nos dez primeiros dias de febre. A intervenção não objetiva apenas controlar a inflamação e os sintomas subsequentes, mas também prevenir sequelas cardiovasculares a longo prazo.^7,27 Todos os estudos desta revisão seguiram o tratamento recomendado de infusão de IgIV em alta dose, entretanto o AAS foi associado em 89,6%.

Por causa da importância do tratamento precoce com IgIV para evitar complicações, escores foram criados na tentativa de pressupor resistência à terapia. Atualmente, o principal é o de Kobayashi, contudo esse método ainda não é preciso - aproximadamente 10% permanecem irresponsivos. Para a AHA, a refratariedade ao tratamento usual acontece quando não há resposta à primeira infusão, com persistência da febre após 36 horas e menos de sete dias.^7,18,27,34 Esses pacientes podem ser tratados com uma segunda dose de IgIV ou esteroides.

Quanto a corticoesteroides, ainda não se sabe se são mais bem utilizados como adjuvantes ou terapia de resgate.^7,34 Nesta revisão, mesmo com o seguimento correto do tratamento preconizado, a taxa de resistência e de necessidade de abordagem complementar foi elevada, com uso de esteroides intravenosos em 62,5% dos pacientes, mostrando-se uma medicação eficaz e segura para o tratamento de DK associada ao SARS-CoV-2.

Outros medicamentos utilizados foram antibióticos intravenosos, em 58,3% da amostra, diuréticos para redução de pré-carga, em 4,2%, e inibidores da enzima conversora de angiotensina para redução de pós-carga, em 2,1%. Em apenas um artigo foi mencionado o uso de Anakinra, antagonista do receptor de interleucina 1,²¹ e de infliximabe, anticorpo monoclonal, em uma criança de oito anos.²⁰ Tendo conhecimento de que a reação anafilática é um dos efeitos adversos da IgIV, um paciente recebeu anti-histamínico intravenoso como pré-medicação.²²

Realizou-se suporte respiratório em 68,4% dos casos (n=38).^{18,20,21,22,23,24} Suporte hemodinâmico, com inotrópicos, foi relatado em 64,6% de todos os pacientes. Internação em unidade de terapia intensiva ocorreu em 32 de 38 pacientes.^{18,20,21,22,23,24}

Sabe-se que a COVID-19 compromete o miocárdio, sendo necessária maior proteção cardíaca para aqueles com comorbidades cardiovasculares. Aos que manifestam miocardite, é importante monitoramento ecocardiográfico em 1-2 e 4-6 semanas após finalizado o tratamento.^24,32 Quanto às outras complicações, para SAM o tratamento é o usual e, se resistente, devem-se incluir inibidor de fator de necrose tumoral, agentes imunossupressores ou troca plasmática terapêutica. Na KDSS, drogas vasoativas têm de ser associadas.^12,33

A média de internação calculada entre os estudos apresentados foi de 8,6 dias.^{18,21,22,23,24} Apenas um paciente permanecia hospitalizado ao fechamento da pesquisa,²¹ e foi relatado um óbito por acidente vascular cerebral isquêmico.²⁰

Síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica

Os sinais e sintomas aqui apresentados, associados às alterações radiográficas e laboratoriais, demonstram que a infecção por SARS-CoV-2 tem gerado uma síndrome hiperinflamatória grave em pacientes pediátricos, análoga à DK. A provável fisiopatologia pós-viral da vasculite e a exacerbação de citocinas inflamatórias, presentes tanto na COVID-19 quanto na DK, corroboram a hipótese de que o novo coronavírus desencadeia DK severa, apresentando sintomatologia acentuada e maior incidência de complicações previamente descritas, mas que respondem ao mesmo delineamento terapêutico.²¹

Todavia, algumas características se distinguem. Os pacientes com o insólito distúrbio inflamatório são mais velhos e majoritariamente afro-caribenhos; demonstram enteropatia e dor abdominal proeminentes; laboratoriais demasiadamente alterados, sobretudo série branca e marcadores inflamatórios; presença maior de sinais meníngeos e envolvimento cardíaco; além de serem mais resistentes ao tratamento primário habitual. Destarte, apesar da semelhança com quadros graves, porém raros, de Kawasaki e da viável temporalidade com o coronavírus, aliada à aquisição de imunidade, essa atual manifestação tem sido intitulada provisoriamente de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada temporalmente à infecção por SARS-CoV-2, ou síndrome inflamatória multissistêmica em crianças.^18,21 Embora a infecção por coronavírus na população pediátrica seja branda, essa condição pode ser bastante rara, mas potencialmente grave.

Crianças com COVID-19 que têm apresentado características clínicas semelhantes às de síndromes inflamatórias já conhecidas, como a DK, mostram ser epidemiologicamente diferentes, clinicamente mais graves e mais resistentes ao tratamento. A presente revisão demonstra que o SARS-CoV-2 constrói uma reação imunológica anômala, particularmente forte, quando comparada à de outros agentes infecciosos, constituindo uma possível DK rara e complicada em função dos mecanismos patológicos associados, contudo estudos quanto à multiplicidade das manifestações da DK e pesquisas para descrever e caracterizar o processo de infecção da COVID-19 nos pacientes pediátricos ainda são necessários.

Surtos dessa síndrome hiperinflamatória ainda parcialmente conhecida podem ocorrer em todos os países afetados pela pandemia, apresentando-se fora do fenótipo padrão da DK e provocando implicações importantes na saúde pública. Especialmente no Brasil, onde existe ampla população afrodescendente, a doença deve ser levada em consideração, ao apontar-se para a necessidade de implementação de políticas de reintegração infantil. Os profissionais da saúde precisam estar cientes dessas apresentações atípicas e os hospitais estruturalmente preparados. A condição precisa de um gerenciamento rápido e agressivo, caso contrário, se não bem manejada, pode ser grave e letal.

Por fim, com a possibilidade de DK grave manifestar-se após resposta imune adquirida pelo SARS-CoV-2, a concepção de a COVID-19 ser benigna em crianças não se justifica. Hoje em dia chamada de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada temporalmente à infecção por SARS-CoV-2 ou síndrome inflamatória multissistêmica em crianças, a doença tem muito a ser explorada por clínicos e pesquisadores.

REFERENCES

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Financiamento

• O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  31 Ago 2020
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  23 Jun 2020
• Aceito
  12 Jul 2020
• Publicado
  31 Ago 2020