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Dor abdominal intermitente na vasculite por IgA

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a dor abdominal intermitente em pacientes com vasculite por IgA e sua relação com dados demográficos, manifestações clínicas e tratamentos.

Métodos:

Um estudo de coorte retrospectiva incluiu 322 pacientes com vasculite por IgA (critérios EULAR/PRINTO/PRES) em uma Unidade de Reumatologia Pediátrica durante 32 anos. Dezesseis pacientes foram excluídos em razão de dados incompletos. A dor abdominal intermitente foi caracterizada por nova dor abdominal difusa após resolução completa no primeiro mês da doença.

Resultados:

Dor abdominal intermitente foi observada em 35/306 (11%) dos pacientes com vasculite por IgA. A mediana entre a primeira e a segunda dor abdominal foi 10 dias (3–30 dias). O principal tratamento incluiu glicocorticoide [n=26/35 (74%)] e/ou ranitidina [n=22/35 (63%)]. Análises adicionais mostraram que a frequência da púrpura/petéquia intermitente (37 vs. 21%; p=0,027) e a mediana da duração da púrpura/petéquia [20 (3–90) vs. 14 (1–270) dias; p=0,014] foram significativamente maiores em pacientes com vasculite por IgA com dor abdominal intermitente em comparação com aqueles sem essa condição. Sangramento gastrointestinal (49 vs. 13%; p<0,001), nefrite (71 vs. 45%; p=0,006), uso de glicocorticoides (74 vs. 44%; p=0,001) e de imunoglobulina endovenosa (6 vs. 0%; p=0,036) também foram maiores no primeiro grupo. A frequência do uso de ranitidina foi significativamente maior em pacientes com vasculite por IgA com dor abdominal intermitente versus sem dor (63 vs. 28%; p<0,001), ao passo que a mediana da duração do uso de ranitidina foi reduzida no primeiro grupo [35 (2–90) vs. 60 (5–425) dias; p=0,004].

Conclusões:

Dor abdominal intermitente ocorreu em, aproximadamente, um décimo dos pacientes com vasculite por IgA, nos primeiros 30 dias da doença, e foi associada a manifestações clínicas graves. Este estudo sugere, portanto, que esses pacientes devem ser seguidos rigorosamente com avaliação clínica e laboratorial, principalmente durante o primeiro mês da doença.

Palavras-chave:
Imunoglobulina A; Dor abdominal; Púrpura Henoch-Schönlein; Glicocorticoides; Ranitidina

ABSTRACT

Objective:

To assess intermittent abdominal pain in IgA vasculitis patients and its relation to demographic data, clinical manifestations and treatments.

Methods:

A retrospective cohort study included 322 patients with IgA vasculitis (EULAR/PRINTO/PRES criteria) seen at the Pediatric Rheumatology Unit in the last 32 years. Sixteen patients were excluded due to incomplete data in medical charts. Intermittent abdominal pain was characterized by new abdominal pain after complete resolution in the first month of disease.

Results:

Intermittent abdominal pain was observed in 35/306 (11%) IgA vasculitis patients. The median time between first and second abdominal pain was 10 days (3–30 days). The main treatment of intermittent abdominal pain included glucocorticoid [n=26/35 (74%)] and/or ranitidine [n=22/35 (63%)]. Additional analysis showed that the frequency of intermittent purpura/petechiae (37 vs. 21%; p=0.027) and the median of purpura/petechiae duration [20 (3–90) vs. 14 (1–270) days; p=0.014] were significantly higher in IgA vasculitis patients with intermittent abdominal pain compared to those without. Gastrointestinal bleeding (49 vs. 13%; p<0.001), nephritis (71 vs. 45%; p=0.006), glucocorticoid (74 vs. 44%; p=0.001) and intravenous immunoglobulin use (6 vs. 0%; p=0.036) were also significantly higher in the former group. The frequency of ranitidine use was significantly higher in IgA vasculitis patients with intermittent abdominal pain versus without (63 vs. 28%; p<0.001), whereas the median of ranitidine duration was reduced in the former group [35 (2–90) vs. 60 (5–425) days; p=0.004].

Conclusions:

Intermittent abdominal pain occurred in nearly a tenth of IgA vasculitis patients, in the first 30 days of disease, and was associated with other severe clinical features. Therefore, this study suggests that these patients should be followed strictly with clinical and laboratorial assessment, particularly during the first month of disease course.

Keywords:
Immunoglobulin A; Abdominal pain; Henoch-Schönlein purpura; Glucocorticoid; Ranitidine

INTRODUÇÃO

A vasculite associada à imunoglobulina A (IgA), antes denominada púrpura de Henoch-Schönlein, é a vasculite primária mais frequente relatada em crianças e adolescentes.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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55. Suehiro RM, Soares BS, Eisencraft AP, Campos LM, Silva CA. Acute hemorrhagic edema of childhood. Turk J Pediatr. 2007;49:189-92. Esta vasculite é caracterizada por envolvimento cutâneo, articular, renal e gastrointestinal.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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66. Ozen S, Pistorio A, Iusan SM, Bakkaloglu A, Herlin T, Brik R, et al. EULAR/PRINTO/PRES criteria for Henoch-Schönlein purpura, childhood polyarteritis nodosa, childhood Wegener granulomatosis and childhood Takayasu arteritis: Ankara 2008. Part II: Final classification criteria. Ann Rheum Dis. 2010;69:798-806. https://doi.org/10.1136/ard.2009.116657
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O início agudo de cólica abdominal difusa foi descrito em até 12% dos pacientes com vasculite por IgA no momento do diagnóstico. Essa manifestação gastrointestinal pode estar associada a complicações graves, como intussuscepção intestinal ou sangramento gastrointestinal.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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,22. Buscatti IM, Abrão HM, Kozu K, Marques VL, Gomes RC, Sallum AM, et al. Characterization of scrotal involvement in children and adolescents with IgA vasculitis. Adv Rheumatol. 2018;58:38. https://doi.org/10.1186/s42358-018-0039-3
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Digno de nota, a dor abdominal em cólica recorrente ou intermitente na vasculite por IgA foi raramente descrita em relatos de casos anteriores ou séries de casos.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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,22. Buscatti IM, Abrão HM, Kozu K, Marques VL, Gomes RC, Sallum AM, et al. Characterization of scrotal involvement in children and adolescents with IgA vasculitis. Adv Rheumatol. 2018;58:38. https://doi.org/10.1186/s42358-018-0039-3
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,77. Pabunruang W, Treepongkaruna S, Tangnararatchakit K, Chunharas A, Phuapradit P. Henoch-Schönlein purpura: clinical manifestations and long-term outcomes in Thai children. J Med Assoc Thai. 2002;85(Suppl 4):S1213-8.1111. Belman AL, Leicher CR, Moshé SL, Mezey AP. Neurologic manifestations of Schöenlein-Henoch purpura: report of three cases and review of the literature. Pediatrics. 1985;75:687-92. No entanto, pelo que se sabe, análises adicionais comparando pacientes com e sem dor abdominal intermitente no primeiro mês de vasculite por IgA não foram realizadas.

Assim, o objetivo deste estudo foi caracterizar a dor abdominal em cólica intermitente no primeiro mês de vasculite por IgA em crianças e adolescentes e avaliar uma possível associação com dados demográficos, manifestações clínicas, anormalidades laboratoriais e tratamentos em pacientes com e sem esta manifestação gastrointestinal.

MÉTODO

Um estudo de coorte retrospectivo foi realizado durante 32 anos em uma Unidade terciária de Reumatologia Pediátrica em São Paulo, no Brasil. Foram analisados 322 prontuários. Destes, 16 foram excluídos por falta de dados. Os 306 pacientes restantes atenderam aos critérios de classificação de vasculite por IgA da European League Against Rheumatism (EULAR), Pediatric Rheumatology International Trials Organization (PRINTO) e da Sociedade Europeia de Reumatologia Pediátrica (PRES).66. Ozen S, Pistorio A, Iusan SM, Bakkaloglu A, Herlin T, Brik R, et al. EULAR/PRINTO/PRES criteria for Henoch-Schönlein purpura, childhood polyarteritis nodosa, childhood Wegener granulomatosis and childhood Takayasu arteritis: Ankara 2008. Part II: Final classification criteria. Ann Rheum Dis. 2010;69:798-806. https://doi.org/10.1136/ard.2009.116657
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Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética Local.

Foram avaliados dados demográficos, como idade no diagnóstico em anos, sexo e índice de massa corporal (IMC).

A dor abdominal foi definida como dor em cólica difusa com início agudo avaliada por histórico médico e exame físico. Dor abdominal intensa foi descrita como presença de pelo menos um dos seguintes sintomas: angina abdominal (dor abdominal em cólica difusa pós-prandial intensa), intussuscepção intestinal ou sangramento gastrointestinal. Dor abdominal intermitente foi arbitrariamente identificada aqui como um novo episódio de dor abdominal em cólica difusa após a resolução completa do primeiro evento, ambos os episódios ocorrendo no primeiro mês da doença.1010. Karakayali B, Yilmaz S, Çakir D, Günes PG, Güven S, Islek I. Henoch-Schönlein purpura associated with primary active Epstein-Barr virus infection: a case report. Pan Afr Med J. 2017;27:29. https://doi.org/10.11604/pamj.2017.27.29.10481
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,1111. Belman AL, Leicher CR, Moshé SL, Mezey AP. Neurologic manifestations of Schöenlein-Henoch purpura: report of three cases and review of the literature. Pediatrics. 1985;75:687-92. A dor abdominal recorrente foi definida como outro surto de dor abdominal após o primeiro mês da doença. Foi realizada ultrassonografia Doppler abdominal em pacientes com vasculite por IgA e sangramento gastrointestinal.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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O tempo entre a primeira e a segunda ocorrência de dor abdominal em cólica difusa também foi avaliado.

Púrpura/petéquias intermitentes foram caracterizadas como novas lesões cutâneas após recuperação total do primeiro episódio, e púrpura/petéquias persistentes como lesões cutâneas com duração superior a 30 dias. A definição de artrite foi dor nas articulações com limitação de movimento ou edema articular. Artralgia foi definida por dor articular sem edema ou limitação de movimento.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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33. Almeida JL, Campos LM, Paim LB, Leone C, Koch VH, Silva CA. Renal involvement in Henoch-Schönlein purpura: a multivariate analysis of initial prognostic factors. J Pediatr. 2007;83:259-66. https://doi.org/10.2223/jped.1638
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Artralgia/artrite intermitente foi definida como novo início de inflamação articular após resolução total.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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33. Almeida JL, Campos LM, Paim LB, Leone C, Koch VH, Silva CA. Renal involvement in Henoch-Schönlein purpura: a multivariate analysis of initial prognostic factors. J Pediatr. 2007;83:259-66. https://doi.org/10.2223/jped.1638
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Orquite foi descrita como a presença de edema escrotal e/ou sensibilidade ao exame físico e/ou alterações no ultrassom Doppler testicular.22. Buscatti IM, Abrão HM, Kozu K, Marques VL, Gomes RC, Sallum AM, et al. Characterization of scrotal involvement in children and adolescents with IgA vasculitis. Adv Rheumatol. 2018;58:38. https://doi.org/10.1186/s42358-018-0039-3
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A duração da orquite foi medida em dias.

A nefrite foi definida como hematúria >5 hemácias/campo de grande aumento ou presença de hemácias em sedimento urinário e/ou proteinúria >0,1g/m22. Buscatti IM, Abrão HM, Kozu K, Marques VL, Gomes RC, Sallum AM, et al. Characterization of scrotal involvement in children and adolescents with IgA vasculitis. Adv Rheumatol. 2018;58:38. https://doi.org/10.1186/s42358-018-0039-3
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/dia. Síndrome nefrótica foi diagnosticada de acordo com edema, albumina sérica <2,5g/L e proteinúria >1g/m22. Buscatti IM, Abrão HM, Kozu K, Marques VL, Gomes RC, Sallum AM, et al. Characterization of scrotal involvement in children and adolescents with IgA vasculitis. Adv Rheumatol. 2018;58:38. https://doi.org/10.1186/s42358-018-0039-3
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/dia.33. Almeida JL, Campos LM, Paim LB, Leone C, Koch VH, Silva CA. Renal involvement in Henoch-Schönlein purpura: a multivariate analysis of initial prognostic factors. J Pediatr. 2007;83:259-66. https://doi.org/10.2223/jped.1638
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A lesão renal aguda foi caracterizada por aumento da creatinina sérica >2mg/dL1313. Chan JC, Williams DM, Roth KS. Kidney failure in infants and children. Pediatr Rev. 2002;23:47-60. https://doi.org/10.1542/pir.23-2-47
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ou de acordo com os critérios RIFLE modificados (risco, lesão, falha, perda de função renal e doença renal em estágio terminal).1414. Akcan-Arikan A, Zappitelli M, Loftis LL, Washburn KK, Jefferson LS, Goldstein SL. Modified RIFLE criteria in critically ill children with acute kidney injury. Kidney Int. 2007;71:1028-35. https://doi.org/10.1038/sj.ki.5002231
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Hipertensão arterial foi categorizada como pressão arterial sistólica e/ou diastólica ≥ percentil 95 de acordo com sexo, idade e altura em 3 ou mais ocasiões.1515. Flynn JT, Kaelber DC, Baker-Smith CM, Blowey D, Carroll AE, Daniels SR, et al. Clinical practice guideline for screening and management of high blood pressure in children and adolescents. Pediatrics. 2017;140:e20171904. https://doi.org/10.1542/peds.2017-3035
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Envolvimento neuropsiquiátrico foi caracterizado pela presença de pelo menos uma das seguintes manifestações: cefaleia, consciência reduzida, convulsões, hemiparesia e cegueira cortical.1616. Pacheva IH, Ivanov IS, Stefanova K, Chepisheva E, Chochkova L, Grozeva D, et al. Central nervous system involvement in Henoch-Schönlein purpura in children and adolescents. Case Rep Pediatr. 2017;2017:5483543. https://doi.org/10.1155/2017/5483543
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Os medicamentos atuais também foram registrados: prednisona/prednisolona, metilprednisolona intravenosa, ranitidina, imunoglobulina intravenosa (IGIV), azatioprina, ciclosporina, ciclofosfamida intravenosa (CICIV) e plasmaférese.

Os pacientes com vasculite por IgA foram divididos em dois grupos: com e sem dor abdominal intermitente no primeiro mês de evolução da doença.

Os resultados foram apresentados como mediana (intervalo) ou média ± desvio-padrão para variáveis contínuas e número (%) para variáveis categóricas. Os testes do qui-quadrado de Pearson ou exato de Fisher foram usados para comparar as variáveis categóricas. O teste de Mann-Whitney ou t de Student foram usados para comparar as variáveis contínuas. Para todos os testes estatísticos, valor de p inferior a 0,05 foi considerado estatisticamente significante.

RESULTADOS

Dor abdominal intermitente no primeiro mês de doença foi observada em 35/306 (11%) dos pacientes com vasculite por IgA, e foi comumente relatada como cólica e dor abdominal difusa. Essa dor abdominal intermitente foi associada a novas lesões cutâneas no primeiro mês de doença em 32/35 (91%) dos pacientes com vasculite por IgA. O tempo médio entre o primeiro e o segundo episódio de dor abdominal foi de 10 dias (3–30 dias). O principal tratamento da dor abdominal intermitente incluiu glicocorticoide [n=26/35 (74%)] e/ou ranitidina [n=22/35 (63%)]. Apenas um paciente com vasculite por IgA apresentou dor abdominal recorrente após cinco anos de doença. Nesse momento, o paciente referia cólicas abdominais difusas concomitantemente a novas lesões cutâneas e exacerbação de nefrite.

A Tabela 1 inclui dados demográficos e envolvimento clínico/laboratorial de 306 pacientes com vasculite por IgA que apresentaram dor abdominal intermitente em comparação aos que não tiveram essa condição. A frequência de púrpura/petéquia intermitente (37 vs. 21%; p=0,027) e a mediana da duração da púrpura/petéquia [20 (3–90) vs. 14 (1–270) dias; p=0,014] foram significativamente maiores em pacientes com vasculite por IgA com dor abdominal intermitente em comparação com aqueles sem essa complicação. Dor abdominal intensa (60 x 29%; p<0,001), sangramento gastrointestinal (49 x 13%; p<0,001), nefrite (71 x 45%; p=0,006) e hematúria (56 x 25%); p<0,001) foram significativamente maiores nos pacientes com vasculite por IgA com dor abdominal intermitente (Tabela 1).

Tabela 1
Dados demográficos e envolvimento clínico/laboratorial em 306 pacientes com vasculite por IgA e dor abdominal intermitente em comparação aos que não tiveram a condição.

Em relação ao tratamento, o uso de glicocorticoide (74 vs. 44%; p=0,001) e imunoglobulina intravenosa (6 vs. 0%; p=0,036) também foram significativamente maiores em pacientes com vasculite por IgA com dor abdominal intermitente em comparação aos que não tiveram dor abdominal intermitente. A mediana da duração da terapia com glicocorticoides foi maior no primeiro grupo [72,5 (1–365) vs. 40 (1–144) dias; p=0,012]. A frequência de uso de ranitidina foi significativamente maior em pacientes com vasculite IgA com dor abdominal intermitente versus sem (63 vs. 28%; p<0,001), enquanto a mediana da duração da terapia com ranitidina foi reduzida no primeiro grupo [35 (2–90) vs. 60 (5–425) dias; p=0,004] (Tabela 2).

Tabela 2
Tratamento de 306 pacientes com vasculite por IgA com dor abdominal intermitente* * No primeiro mês de doença em comparação com pacientes sem a condição.

DISCUSSÃO

Até onde sabemos, este foi o primeiro estudo que reportou a dor abdominal intermitente no primeiro mês de doença como uma manifestação rara de pacientes com vasculite por IgA e associada a manifestações cutâneas, nefrite e comprometimento gastrointestinal grave. Além disso, a dor abdominal recorrente foi raramente observada em pacientes com vasculite por IgA.

A vantagem do presente estudo foi a seleção da população acompanhada em um centro terciário da América Latina com predomínio de pacientes complexos.1717. Passone CG, Grisi SJ, Farhat SC, Manna TD, Pastorino AC, Alveno RA, et al. Complexity of pediatric chronic disease: cross-sectional study with 16,237 patients followed by multiple medical specialties. Rev Paul Pediatr. 2019;38:e2018101. https://doi.org/10.1590/1984-0462/2020/38/2018101
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Além disso, todos os indivíduos atenderam aos critérios de classificação validados da EULAR/PRINTO/PRES66. Ozen S, Pistorio A, Iusan SM, Bakkaloglu A, Herlin T, Brik R, et al. EULAR/PRINTO/PRES criteria for Henoch-Schönlein purpura, childhood polyarteritis nodosa, childhood Wegener granulomatosis and childhood Takayasu arteritis: Ankara 2008. Part II: Final classification criteria. Ann Rheum Dis. 2010;69:798-806. https://doi.org/10.1136/ard.2009.116657
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e foram sistematicamente avaliados de acordo com nosso banco de dados padronizado, conforme relatado anteriormente.11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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,22. Buscatti IM, Abrão HM, Kozu K, Marques VL, Gomes RC, Sallum AM, et al. Characterization of scrotal involvement in children and adolescents with IgA vasculitis. Adv Rheumatol. 2018;58:38. https://doi.org/10.1186/s42358-018-0039-3
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No início da doença, aproximadamente três quartos de nossos pacientes com vasculite por IgA e dor abdominal intermitente apresentavam nefrite, sugerindo um envolvimento sistêmico grave e periódico dessa vasculite. Na verdade, a nefrite também está comumente associada a episódios de vasculite por IgA, conforme relatado em um estudo com a população da Finlândia.1818. Jauhola O, Ronkainen J, Koskimies O, Ala-Houhala M, Arikoski P, Hölttä T, et al. Clinical course of extrarenal symptoms in Henoch-Schönlein purpura: a 6-month prospective study. Arch Dis Child. 2010;95:871-6. https://doi.org/10.1136/adc.2009.167874
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Além disso, dor abdominal intermitente ocorreu nos primeiros 30 dias de pacientes com vasculite por IgA. Portanto, esses pacientes devem ser seguidos rigorosamente com avaliação clínica e laboratorial, principalmente durante o primeiro mês de evolução da doença.

Em relação ao tratamento, a ranitidina se mostrou eficaz nas manifestações gastrointestinais em pacientes com vasculite por IgA, diminuindo a duração e a gravidade da dor e sangramento gastrointestinal, conforme descrito em uma pesquisa turca.1919. Narin N, Akçoral A, Aslin MI, Elmastas H. Ranitidine administration in Henoch-Schönlein vasculitis. Acta Paediatr Jpn. 1995;37:37-9. https://doi.org/10.1111/j.1442-200x.1995.tb03682.x
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Nosso estudo demonstrou que, apesar do maior uso de ranitidina em pacientes com vasculite por IgA com dor abdominal intermitente, o tempo de uso da ranitidina foi reduzido, sugerindo que esse antagonista do receptor H2 possa ser um fator protetor para a dor abdominal periódica.

É importante notar que, recentemente, a US Food and Drug Administration alertou os profissionais de saúde de que a ranitidina contém baixos níveis de impureza de nitrosamina chamada N-nitrosodimetilamina (NDMA).2020. U.S. Food and Drug Administration [homepage on the Internet]. Statement alerting patients and health care professionals of NDMA found in samples of ranitidine. New Hampshire (US): U.S. Food and Drug Administration; 2019 [cited 2020 Feb 17]. Available from: https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/statement-alerting-patients-and-health-care-professionals-ndma-found-samples-ranitidine.
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Esta substância é identificada como um provável cancerígeno humano, e o risco e o benefício devem ser individualmente considerados para cada paciente.2121. Mahase E. FDA recalls ranitidine medicines over potential cancer causing impurity. BMJ. 2019;367:l5832. https://doi.org/10.1136/bmj.l5832
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Novos estudos serão necessários para esclarecer essa questão.

Além disso, o uso de glicocorticoides é indicado para dor abdominal grave e complicada em pacientes com vasculite por IgA.2222. Rosenblum ND, Winter HS. Steroid effects on the course of abdominal pain in children with Henoch-Schönlein purpura. Pediatrics. 1987;79:1018-21. Nosso estudo demonstrou que pacientes com vasculite por IgA e dor abdominal intermitente necessitaram desse medicamento com maior frequência e por um período mais longo.

O tempo médio entre o primeiro e o segundo episódio de cólica abdominal difusa intermitente foi curto e na grande maioria dos pacientes foi associada a novas lesões cutâneas, indicando que a etiologia da dor provavelmente se deve à atividade da doença. O diagnóstico de dor abdominal na vasculite por IgA é geralmente fácil e raramente requer um diagnóstico diferencial com esofagite, gastrite ou úlcera gástrica.

A principal limitação observada neste estudo foi a análise retrospectiva, com potenciais dados perdidos. Também não avaliamos a IgA11. Buscatti IM, Casella BB, Aikawa NE, Watanabe A, Farhat SC, Campos LM, et al. Henoch-Schönlein purpura nephritis: initial risk factors and outcomes in a Latin American tertiary center. Clin Rheumatol. 2018;37:1319-24. https://doi.org/10.1007/s10067-017-3972-3
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sérica com deficiência de galactose, um conhecido biomarcador de vasculite por IgA associada a anormalidades graves no diagnóstico.2323. Pillebout E, Jamin A, Ayari H, Housset P, Pierre M, Sauvaget V, et al. Biomarkers of IgA vasculitis nephritis in children. PLoS One. 2017;12:e0188718. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0188718
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A ultrassonografia Doppler abdominal foi avaliada apenas em pacientes com vasculite por IgA com sangramento gastrointestinal.

Em conclusão, a dor abdominal intermitente ocorreu em quase um décimo dos pacientes com vasculite por IgA nos primeiros 30 dias de doença e foi associada a outras características clínicas graves. Portanto, nosso estudo sugere que esses pacientes devem ser acompanhados rigorosamente com avaliação clínica e laboratorial, principalmente durante o primeiro mês de evolução da doença.

  • Financiamento
    Este estudo teve o apoio de bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 303422/2015-7 para CAS), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP 2015/03756-4 para CAS) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa “Saúde da Criança e do Adolescente” da USP (NAP-CriAd) para CAS.
  • Declaração
    O banco de dados que deu origem ao artigo está disponível com o autor correspondente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2020
  • Aceito
    20 Set 2020
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