Acessibilidade / Reportar erro

Avaliando habilidades em psiquiatria: um desafio metodológico

Assessing skills in psychiatry: a methodological challenge

CARTAS AO EDITOR

Avaliando habilidades em psiquiatria: um desafio metodológico

Assessing skills in psychiatry: a methodological challenge

Bruno Mendonça CoêlhoI, II; Geilson Lima SantanaI

INúcleo de Epidemiologia Psiquiátrica - LIM-23, Instituto e Departamento de Psiquiatria, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

IIAmbulatório de Psiquiatria da Infância e da Adolescência, Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina do ABC

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Bruno Mendonça Coêlho. Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica, Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785, Jardim Paulista 05403-010 - São Paulo, SP. Telefax: (11) 3069-6976. E-mail: brunomendoncacoelho@yahoo.com.br

Avaliar o ensino médico não é ideia nova. Um marco nessa direção foi o Relatório Flexner, publicado em 1910, que, nos Estados Unidos, modificou as bases do ensino da medicina. No Brasil, as associações de especialidades médicas, como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em conjunto com a Associação Médica Brasileira, têm defendido as provas de título de especialista como uma alternativa viável para avaliação. Entretanto, é questionável a adequação da prova de título de especialista em psiquiatria (PTEPQ) promovida pela ABP como método de verificação do psiquiatra e de suas áreas de atuação.

A medicina e a psiquiatria, em particular, exigem um conjunto de habilidades e atitudes de complexidade variável e que vão além dos conhecimentos técnicos1. Segundo Bloom et al.2, os objetivos educacionais podem ser divididos em domínios: cognitivo, afetivo e psicomotor. Os aspectos cognitivos contemplam não só a retenção e o processamento de informações, mas também a consolidação do conhecimento e a formulação de um raciocínio clínico para a solução de problemas específicos. Já as competências e habilidades clínicas (domínios afetivo e psicomotor) abrangem os aspectos práticos relacionados à atuação com o paciente - aliança terapêutica, anamnese objetiva e subjetiva, exame psíquico e a adequada condução do caso.

Uma das etapas mais importantes do processo ensino-aprendizagem é a avaliação do estudante, e avaliar implica averiguar se os objetivos educacionais foram alcançados3. Portanto, uma avaliação abrangente deve, necessariamente, contemplar todos os domínios descritos acima. No caso da psiquiatria, essa questão reveste-se de especial importância, pois o profissional necessita não apenas do conhecimento técnico, como também de uma série de habilidades e elementos de ordem afetiva e psicomotora, como suas atitudes perante os pacientes e seus familiares1.

Entretanto, quais os objetivos dos programas de residência médica em psiquiatria no Brasil? Qual perfil de psiquiatra que a ABP e a Comissão Nacional de Residência Médica querem formar - um totalmente familiarizado com conceitos da psicofarmacologia e neurociências apenas ou outro que, além disso, consiga ter empatia e atenção com os pacientes? Eis uma discussão iniciada há alguns anos, quando da proposta para o R3 em psiquiatria4, e que ainda não foi considerada com determinação.

Tendo em mente as diferentes competências necessárias à boa prática da psiquiatria1,4, deve-se escolher um método viável e capaz de mensurar com validade e reprodutibilidade se tais requisitos foram preenchidos. Quando se avaliam habilidades múltiplas e complexas, envolvendo mais de um domínio, como é o caso na psiquiatria, em geral, mais de um método se faz necessário3.

Atualmente, a PTEPQ é composta por um exame teórico contendo 40 questões objetivas (que vale 60% da nota final) e uma prova teórico-prática contendo quatro questões descritivas sobre um caso clínico apresentado em vídeo (valendo 40% da nota).

Em primeiro lugar, questiona-se a possibilidade de essas 40 questões teóricas compreenderem as diretrizes curriculares mínimas da especialidade, propostas, por exemplo, pela Associação Mundial de Psiquiatra (WPA, na sigla em inglês)5. Quanto à prova teórico-prática, trata-se de um dispositivo mediado e sem a possibilidade de real interação e apreciação das sutilezas psicopatológicas e interpessoais. Na PTEPQ, portanto, não há uma avaliação dos aspectos clínicos, tampouco dos afetivos, sem medir habilidades e atitudes do médico diante de seu paciente.

Hoje, existe um considerável desenvolvimento na área de avaliação de competências médicas. Dentre os métodos de aferição das habilidades cognitivas, destacam-se, por sua viabilidade na PTEPQ, as provas escritas, objetivas e orais. Quanto à avaliação das habilidades clínicas, evidencia-se, pela sua possibilidade de aplicação na PTEPQ, o Exame de Desempenho Clínico (CPE, na sigla em inglês), o qual utiliza pacientes padronizados como objetos de intervenção3. Esses podem ser pacientes reais treinados, atores ou mesmo examinadores especificamente treinados. Essa modalidade permite uma abordagem integral do "paciente" em uma situação similar à realidade profissional, devendo o avaliando efetuar a anamnese, o exame psíquico, a hipótese diagnóstica, bem como as orientações terapêuticas e a psicoeducação. A fim de garantir a validade e a reprodutibilidade, os casos devem ser padronizados e o julgamento dos examinadores deve ser pautado por protocolos estruturados.

Um dos elementos fundamentais para uma avaliação apropriada de determinado fenômeno é a adequação da metodologia empregada. Exemplo disso ocorre em artigos científicos, nos quais uma das perguntas fundamentais é se a metodologia é adequada para avaliar o objeto do estudo. Em contradição com os princípios apregoados pela psiquiatria contemporânea, tem-se como "padrão-ouro" para avaliação do psiquiatra um exame insuficiente por se restringir aos aspectos cognitivos da especialidade. Novos métodos de avaliação já disponíveis são mais abrangentes, viáveis e podem alcançar resultados mais acurados.

  • 1. Miller SI, Scully JH Jr, Winstead DK. The evolution of core competencies in psychiatry. Acad Psychiatry. 2004;28(3):251-3.
  • 2. Bloom BS, Engelhart MD, Furstin EJ, Hill WH, Krathwohl DR. Taxionomia de objetivos educacionais. 5Ş ed. Porto Alegre, RS: Globo; 1976.
  • 3. Troncon LEA. Avaliação do estudante de medicina. Medicina (Ribeirão Preto). 1996;29(4):429-39.
  • 4. Coêlho BM, Zanetti MV, Lotufo Neto F. Residência em psiquiatria no Brasil: análise crítica. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2005;27(1):13-22.
  • 5. World Psychiatric Association. Institutional Program on the Core Training Curriculum for Psychiatry. Yokohama, Japan: World Psychiatry Association; 2002. Disponível em: <http://www.wpanet.org/education/pdf-ed-prog/curriculum-psych-eng.pdf>
  • Endereço para correspondência:
    Bruno Mendonça Coêlho.
    Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica, Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas
    Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
    Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785, Jardim Paulista
    05403-010 - São Paulo, SP. Telefax: (11) 3069-6976.
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      2011
    Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Rua Ovídio Pires de Campos, 785 , 05403-010 São Paulo SP Brasil, Tel./Fax: +55 11 2661-8011 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: archives@usp.br