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“Depressão, transtorno do pânico e fobia social são reais!”. Notas sobre essencialismo, pragmatismo e psicopatologia

“Depression, panic disorder and social phobia are real!”. Notes on Essentialism, Pragmatism and Psychopathology

“La dépression, le trouble panique et la phobie sociale sont réels!”: Notes sur l’essentialisme, le pragmatisme et la psychopathologie

“¡La depresión, el trastorno de pánico y la fobia social son reales!”: Notas sobre esencialismo, pragmatismo y psicopatología

Resumos

O artigo tematiza a noção de validade diagnóstica na nosologia psicopatológica, de um ponto de vista epistemológico. Argumenta-se que a crise dos modelos operacionais, representados pelos DSMs, se aprofundou nas últimas décadas em virtude da adoção de uma concepção literal de validade, entendida como correspondência entre classificações diagnósticas e propriedades intrínsecas. Tal concepção relega as categorias diagnósticas ao estatuto de tipos artificiais sem substrato ontológico. A partir de autores como Dupré, Rorty, Goodman, Zachar, Agich etc., sugere-se uma recolocação do problema em termos de um nominalismo pragmático. Além de nos deslocar da dicotomia natural/artificial, uma postura nominalista pragmática teria a vantagem adicional de admitir um pluralismo nosológico, que tende a ser incompatível com sistemas classificatórios literais, com pretensões essencialistas.

Palavras-chave
Validade diagnóstica; pragmatismo; essencialismo; pluralismo


This article discusses the notion of diagnostic validity in psychopathological nosology, from an epistemological perspective. The crisis of operational models, represented by the DSM, has deepened in recent decades due to the adoption of a literal conception of validity, understood as correspondence between diagnostic classifications and intrinsic properties. Such conception relegates the diagnostic categories to the status of artificial types devoid of ontological substrate. Based on authors such as Dupré, Rorty, Goodman, Zachar, Agich, etc., it suggests reframing the problem in terms of a pragmatic nominalism. Besides shifting us from the natural/artificial dichotomy, a pragmatic nominalist stance would admit a nosological pluralism, usually incompatible with essentialist classificatory systems.

Keywords
Diagnostic validity; pragmatism; essentialism; pluralism


Cet article traite de la notion de validité diagnostique en nosologie psychopathologique, dans une perspective épistémologique. La crise des modèles opérationnels, représentés par les DSM, s’est aggravé au cours des dernières décennies en raison de l’adoption d’une conception littérale de la validité, comprise comme une correspondance entre les classifications diagnostiques et les propriétés intrinsèques. Une telle conception relègue les catégories diagnostiques au statut de types artificiels dépourvus de substrat ontologique. S’appuyant sur des auteurs tels que Dupré, Rorty, Goodman, Zachar, Agich, etc., on suggère de recadrer le problème en termes de nominalisme pragmatique. En plus de nous éloigner de la dichotomie naturel/artificiel, cette position admettrait un pluralisme nosologique, généralement incompatible avec les systèmes classificatoires essentialistes.

Mots-clés
Validité; diagnostique; pragmatisme; essentialisme; pluralisme


Este artículo aborda la noción de validez diagnóstica en la nosología psicopatológica desde un punto de vista epistemológico. Se argumenta que la crisis de los modelos operativos, representada por los DSM, se ha profundizado en las últimas décadas debido a la adopción de una concepción literal de validez, entendida como una correspondencia entre clasificaciones diagnósticas y propiedades intrínsecas. Esta concepción relega las categorías diagnósticas al estatus de tipos artificiales sin sustrato ontológico. A partir de autores como Dupré, Rorty, Goodman, Zachar y Agich, se sugiere reposicionar el problema en términos de nominalismo pragmático. Además de desplazarnos de la dicotomía natural/artificial, una postura pragmática nominalista tendría la ventaja adicional de admitir un pluralismo nosológico, que tiende a ser incompatible con los sistemas clasificatorios literales de pretensiones esencialistas.

Palabras clave
Validez diagnóstica; pragmatismo; esencialismo; pluralismo


Introdução

Recentemente, no feed de notícias de uma rede social, havia a seguinte publicação: “Depressão, transtorno do pânico e fobia social são reais! Não são frescura! Gostaria de ver cinco dos meus amigos postarem esta mensagem para mostrar que você estará sempre lá se eu precisar conversar.” A publicação vinha acompanhada de mais de uma centena de curtidas, compartilhamentos, mensagens de acolhimento e encorajamento. Correntes desse tipo nas redes sociais, cujo objetivo é reafirmar a realidade dos transtornos mentais, são cada vez mais comuns. Eles “são reais!” Essa afirmação pública aparentemente trivial chama a atenção por vários motivos. Em primeiro lugar, pela sua necessidade: por que alguém precisaria vir a público reafirmar a realidade de algo tão presente em nosso cotidiano, como os diagnósticos psicopatológicos? Em segundo lugar, pela associação entre a possível irrealidade de tais diagnósticos e o que a postagem se referia como “frescura”: se não forem tomados como reais, poderão ser tomados como frescura. Em terceiro lugar, pelo caráter manifestamente metafísico da discussão, já que o tema da realidade dos entes é tão antigo quanto a própria história da metafísica ocidental. Em quarto e último lugar, pela carga afetiva da postagem, convocando-nos todos a estarmos lá para conversar quando alguém acometido por transtornos mentais precisar. Essa defesa apaixonada da realidade dos transtorno mentais mostra o quanto considerar as categorias nosográficas psicopatológicas reais ou irreais possui consequências importantes, dependendo da conclusão a que tal problema conduza. A menos que você seja um astrônomo, ninguém liga muito para saber se Plutão é ou não realmente um planeta. Por outro lado, saber se depressão, transtorno do pânico e fobia social são reais parece tocar o cerne da nossa existência como sujeitos morais, uma vez que interagimos ativamente com as categorias disponíveis para nos descrever (Hacking, 1997, 2007aHacking, I. (2007a). Kinds of People: Moving targets. Proceeding of the British Academy, 151, 285-318.).

Essa despretensiosa publicação de rede social expressa com uma lingua-gem popular um problema que historicamente tem acompanhado o campo psicopatológico: a “incrível insegurança da nosologia psiquiátrica” (Kendler & Zachar, 2008Kendler, K., & Zachar, P. (2008). The incredible insecurity of psychiatric nosology. In K. Kendler, & J. Parnas (Eds.), Philosophical Issues in Psychiatry: Explanation, Phenomenology and Nosology (pp.368-382). John Hopkins University Press.). Se a desclassificação da homossexualidade dos manuais diagnósticos, seguindo um molde plebiscitário, no início dos anos 1970, foi um marco desse mal-estar nosológico (Bayer, 1981Bayer, R. (1981). Homosexuality and American Psychiatry: The Politics of Diagnosis. Basic Books.), a instabilidade em relação à ontologia das suas categorias nunca deixou de ser um tema importante para o campo. A publicação do DSM-III, em 1980, representou para muitos a esperança de mitigar essa incrível insegurança, a partir de uma abordagem descritiva e operacional da nosologia. Porém, ao longo de suas sucessivas revisões, intensificaram-se as interrogações a respeito da validade dos diagnósticos propostos: depressão, transtorno do pânico, fobia social etc. seriam categorias realmente válidas? Em que sentido? Representariam elas grupos homogêneos dotados de fronteiras naturais ou seriam tão somente recortes artificiais da realidade, sem qualquer suporte ontológico subjacente?

Neste artigo, procura-se desenvolver como a intensificação desse mal- -estar nosográfico é, em alguma medida, o resultado da difusão de uma compreensão de validade diagnóstica caracterizada como a capacidade de uma dada classificação para representar um conjunto de propriedades intrínsecas que delimitam fronteiras naturais de entidades nosológicas. Na medida em que categorias como depressão, transtorno do pânico, fobia social etc. vêm se mostrando incapazes desse tipo de representação, seu estatuto de realidade tendeu a ser relegado à incerteza, como se esses recortes diagnósticos não pudessem corresponder a tipos naturais, mas consistissem tão somente em tipos artificiais. Em seguida, argumenta-se que essa abordagem literal das entidades nosológicas não é o modo mais interessante, muito menos o único, de se colocar o problema da realidade dos transtornos mentais. Uma alternativa conceitual menos comprometida com discussões eventualmente metafísicas sobre fronteiras naturais reais seria colocar o problema da validade diagnóstica a partir de uma perspectiva nominalista pragmática. Com apoio em autores como Rorty, Dupré, Goodman, Zachar, Agich, entre outros, argumenta-se que o modo de recortar o mundo em categorias (ou tipos de entes) não precisa implicar a correspondência com algum aspecto essencial do mundo ou com alguma estrutura intrínseca, mas se efetua em razão de interesses, valores e das vias de ação que uma determinada classificação é capaz de ensejar. Além de nos deslocar da problemática dicotomia natural/artificial, uma postura nominalista pragmática teria a vantagem adicional de admitir um pluralismo nosológico, que tende a ser incompatível com sistemas classificatórios literais, com pretensões essencialistas. Qualificar o debate sobre a realidade das categorias psicodiagnósticas é importante para os especialistas, mas, sobretudo, para os leigos (como atesta o post de rede social que abre o artigo), na medida em que se tratam de descrições que subdividem o gênero humano em tipos de indivíduos. Como toda ação humana se dá sob descrições, a interação com tais categorias transforma pessoas e fabrica mundos (Hacking, 1997, 2007aHacking, I. (2007a). Kinds of People: Moving targets. Proceeding of the British Academy, 151, 285-318.).

A realidade dos transtornos mentais entre a confiabilidade e a validade diagnóstica

O debate sobre a realidade dos transtornos mentais não pode ser dissociado da história da medicina moderna. Pelo menos desde a segunda metade do século XIX, a validade de um diagnóstico médico esteve relacionada à ideia de unidade e especificidade da doença, como documentou Charles Rosenberg (2002)Rosenberg, C. (2002). The tyranny of diagnosis: Specific entities and individual experience. The Milbank Quarterly, 80(2), 237-260.. Um diagnóstico real deve ser capaz de apontar para uma entidade unitária e específica que, com um curso clínico característico e um mecanismo causal, existe para além das suas manifestações singulares em homens e mulheres particulares. Os critérios para se determinar essa unidade e especificidade não obedecem um caminho único, podendo atender a alterações fisiopatológicas, a desregulações detectáveis por exames laboratoriais, a padrões visíveis em exames de imagem, mas também a um curso e prognóstico típicos ou à previsibilidade de uma resposta terapêutica. Essa “revolução da especificidade” de que nos fala Rosenberg foi fundamental para a organização de toda a racionalidade médica moderna.

Embora esse ideal de unidade e especificidade estivesse colocado para a psiquiatria desde a sua fundação, foi a partir dos anos 1970 que se observou uma preocupação cada vez mais nítida com o estabelecimento de uma nosologia sólida, em um contexto marcado por uma profunda crise de legitimidade das suas categorias. Na base dessa crise, estava um clima contracultural propício à difusão das ideias do movimento antipsiquiatria entre leigos e especialistas. Acontecimentos como o “experimento de Rosenhan”, a teoria da rotulação de Thomas Scheff, o “Mito da doença mental” de Thomas Szasz, entre outras produções populares à época, expressavam de modo enfático o quanto as categorias psicopatológicas não passavam de meros rótulos sem substrato ontológico, a serviço da estigmatização e da opressão de populações vulneráveis (Berlin et al., 2003Berlim, M., Fleck, M., & Shorter, E. (2003). Notes on antipsychiatry. European Archives of Psychiatry and Clinical Neurosciences, 253, 61-67.; Crossley, 2006Crossley, N. (2006). Contesting Psychiatry. Social Movements in Mental Health. Routledge.; Horwitz, 2002Horwitz, A. V. (2002). Creating Mental Illness. University of Chicago Press.).

Como é amplamente documentado na historiografia da psiquiatria, uma das saídas propostas para essa crise foi a criação de uma força-tarefa por pesquisadores da Universidade de Washington, em St. Louis, associados ao Instituto de Psiquiatria da Universidade de Columbia, com vistas a reaproximar o campo psicopatológico do restante das disciplinas médicas, em sua lógica interna, seus métodos de pesquisa, seus protocolos de tratamento (Kendler et al., 2010Kendler, K. S., Munoz, R. A., & Murphy, G. (2010). The Development of the Feighner Criteria: A historical perspective, American Journal of Psychiatry, 167(2), 134-142.; Shorter, 2015Shorter, E. (2015). The history of nosology and the rise of the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Dialogues in clinical neuroscience, 17(1), 59-67.; Damazeux, 2013Damazeux, S. (2013). Qu’est-ce que le DSM? Genèse et transformations de la bible américaine de la psychiatrie. Itaque.). O objetivo primordial dessa força-tarefa era a criação de um sistema classificatório que não se baseasse em hipóteses especulativas sobre a etiologia das enfermidades mentais, mas na observação sistemática dos conjuntos de sinais e sintomas exibidos pelos pacientes. O alvo dessa empreitada era o sistema assentado na psiquiatria psicodinâmica, que predominava na psiquiatria norte-americana e incorporava teorias psicanalíticas à chamada psicobiologia de Adolf Meyer. Seus esforços culminaram no desenvolvimento de um sistema classificatório inovador, que primava por critérios operacionais claros, demarcando síndromes a partir da co-ocorrência de sinais e sintomas em um dado período. A suposição inicial era de que essa co-ocorrência não seria aleatória, nem fruto do acaso, mas indicaria fronteiras naturais presumidas, tanto entre as síndromes quanto em relação ao limiar da normalidade. Uma vez delimitadas essas fronteiras, a pesquisa sobre a etiologia, os mecanismos causais e os protocolos de tratamento de cada síndrome em questão poderiam se desenvolver com métodos e lógica semelhantes às demais disciplinas médicas, levando, quem sabe, à tão sonhada unidade e especificidade das entidades nosológicas. Resumidamente, esse foi o contexto social e científico que desembocou na publicação da terceira edição do Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais - o famigerado DSM-III - pela Associação Americana de Psiquiatria, em 1980, inaugurando o que o sociólogo Allan Horwitz apelidou de Era da Psiquiatria Diagnóstica (Horwitz, 2002Horwitz, A. V. (2002). Creating Mental Illness. University of Chicago Press.).

Uma das vantagens atribuídas ao DSM-III e aos seus sucessores foi o aumento da chamada confiabilidade diagnóstica. Em linhas gerais, isso significava que, diante de um mesmo paciente, vários clínicos tendiam a chegar a uma mesma conclusão diagnóstica, independentemente da sua orientação teórica e da sua casuística. Esse acordo se devia aos critérios operacionais relativamente claros adotados, baseados em listas de sinais e sintomas, em cláusulas de exclusão e na estipulação de uma duração mínima para o quadro. Por um lado, isso facilitou a comunicação entre profissionais com formações diversas e promoveu uma maior adequação à burocracia dos planos de saúde, institutos de pesquisa, órgãos governamentais etc. Por outro, essa lógica colocou para o DSM-III e seus sucedâneos um problema que, com o passar dos anos, ganhou cada vez mais espaço: embora esse sistema diagnóstico tenha conseguido aumentar a chamada confiabilidade diagnóstica, as suas categorias teriam alcançado alguma validade diagnóstica? Dito de outra forma, será a mera co-ocorrência de sinais e sintomas uma condição necessária e suficiente para se afiançar a realidade de uma categoria diagnóstica? Se não for, qual critério de realidade estamos adotando para considerar o que é ou não um transtorno válido? O que mais, além de critérios operacionais claros, é preciso haver?

Breve história da crise do DSM: utilidade sem validade

Apesar de tanto se falar na hegemonia do modelo diagnóstico do DSM, dada a onipresença de suas categorias em nossa cultura e a difusão do seu uso entre os especialistas, se seguirmos de perto as discussões que circundaram a sua última revisão, que culminou na publicação do DSM-5, constataremos que esse modelo - pelo menos do ponto de vista epistemológico - está em crise (Aragona, 2014Aragona, M. (2014). Epistemological reflections about the crisis of the DSM-5 and the revolutionary potential of the RDoC project. Dialogues in Philosophy, Mental and Neuro Sciences, 7(1), 11-20.). A razão dessa crise é justamente a sua dificuldade para validar as categorias confiáveis que propõem a cada revisão. Porém, o que se entende, de modo mais específico, por validade? Essa noção foi originalmente definida e se desenvolveu majoritariamente a partir de a prioris conceituais assumidos por partidários do modelo médico dos transtornos mentais. Foi a partir desse campo - e não das abordagens críticas afeitas às ciências humanas - que se colocou esse problema, levando o DSM aos impasses que ele enfrenta no presente.1 1 Não há dentro da literatura psiquiátrica um consenso acerca do significado do que seja validade diagnóstica. Nossa opção, por concisão e para os propósitos do artigo, foi seguir tendências hegemônicas do conceito. Para uma apresentação nuançada acerca das várias concepções de validade presentes na psiquiatria, ver Rodrigues (2012).

Segundo Schaffner (2012)Schaffner, K. (2012). A philosophical overview of the problems of validity for psychiatric disorders. In K. S. Kendler, & J. Parnas, J. (Eds.), Philosophical Issues in Psychiatry II: Nosology (pp.169-189). Oxford University Press., o tema da validade surgiu historicamente nos anos 1950, no campo da psicometria, com a noção de validade de construto. Em 1970, a partir de uma publicação de Eli Robins e Samuel Guze, indiretamente influenciados pela noção de validade de construto, introduziu-se pela primeira vez de forma sistemática no campo psicopatológico o tema da validade diagnóstica. Na base desse conceito de validade estava a ideia de que, na ausência de uma etiologia confirmada, deveríamos ser capazes de descrever síndromes integradas a partir de uma correlação entre os critérios operacionais estabelecidos com outros indicadores externos, como estudos laboratoriais, critérios de exclusão, estudos de agregação familiar, estudos de acompanhamento (follow up) etc. Tais “validadores externos” seriam a garantia de que não estamos lidando com um recorte aleatório e superficial de sinais e sintomas, mas com uma categoria consistente, dotada de um substrato e evolução homogêneos, específicos, unitários (Robins & Guze, 1970Robin, E., & B. Guze Samuel (1970). Establishment of Diagnostic Validity in Psychiatric Illness: Its application to schizophrenia. American Journal of Psychiatry, 126(7), 983-987.).

Esse primeiro esforço de Robins e Guze formalizou o debate e lançou as bases metodológicas do tema da validação diagnóstica nas décadas seguintes, sobretudo após a publicação do DSM-III, em 1980. A expectativa era de que essa proposta pudesse servir de orientação para a validação de suas categorias e para a sua reformulação em edições futuras. Desde então, desenvolveu-se uma série de outros candidatos à validade diagnóstica. Kendler, por exemplo, acrescentou em 1980 critérios como os validadores antecedentes (fatores desencadeadores, personalidade pré-mórbida e antecedentes familiares) e os validadores preditivos (taxas de recaída e de recuperação e a resposta ao tratamento). Andreasen, nos anos 1990, defendeu a inclusão de marcadores biológicos a partir dos estudos em genética e por neuroimagem. Posição semelhante foi assumida no início dos anos 2000 por Hyman, para quem seria necessário perseguir uma “validade etiopatogênica”, a partir de fatores neuroanatômicos, neurofisiológicos e moleculares. Uma outra aposta importante lançada foi a busca por endofenótipos, a partir das pesquisas de Gottesman e Gould (Schaffner, 2012Schaffner, K. (2012). A philosophical overview of the problems of validity for psychiatric disorders. In K. S. Kendler, & J. Parnas, J. (Eds.), Philosophical Issues in Psychiatry II: Nosology (pp.169-189). Oxford University Press.).

A despeito dos vários programas de validação propostos ao longo dos anos, os DSMs, em suas sucessivas revisões, exibiram dificuldades sistemáticas para atender aos critérios sugeridos. Não parecia haver um isomorfismo entre suas categorias e os validadores propostos. Essas dificuldades culminaram em uma publicação influente de Kendell e Jablensky (2003)Kendell, R., & Jablensky, A. (2003). Distinguishing between the validity and utility of psychiatric diagnoses. American Journal of Psychiatry, 160(1), 4-12., que propunha uma distinção entre validade diagnóstica e utilidade diagnóstica. No texto, os autores não negam que a abordagem sindrômica e categorial proposta pelos DSMs possa ser útil para orientar o olhar de profissionais de saúde em relação à condução de casos clínicos, ao estabelecimento de prognósticos ou à previsão de respostas a um determinado tratamento. Os autores tampouco negam a sua utilidade para certos tipos de pesquisa clínica ou mesmo para levantamentos epidemiológicos. No entanto, argumentam eles, nada disso garante que estejamos lidando com categorias válidas. Pois, para além da sua utilidade, um sistema diagnóstico válido deveria ser capaz de recortar as suas categorias em função das suas “fronteiras naturais”; e os DSMs nunca foram capazes, em qualquer das suas versões, de demarcar fronteiras naturais entre as principais síndromes e entre tais síndromes e a dita normalidade (Kendell e Jablensky, 2003Kendell, R., & Jablensky, A. (2003). Distinguishing between the validity and utility of psychiatric diagnoses. American Journal of Psychiatry, 160(1), 4-12.). Tratam-se, portanto, de categorias com fronteiras artificiais e imprecisas que não refletem um fatiamento da natureza em suas articulações. Além de produzir falsos positivos e negativos e um excesso diagnóstico de comorbidades, essa ausência de fronteiras naturais estaria ainda comprometendo a pesquisa empírica em psiquiatria: décadas de estudos em genética psiquiátrica teriam sido prejudicadas pela adoção dos DSMs, uma vez que suas categorias estariam longe de representar fenótipos estáveis e homogêneos. O mais provável é que suas categorias abarquem condições heterogêneas demais para servirem à pesquisa básica em psiquiatria.

Os problemas relacionados à validade diagnóstica deixaram o modelo categorial do DSM em um impasse. Por um lado, sua popularidade faz com que suas categorias continuem servindo mais do que nunca a incontáveis usos médicos e sociais. Por outro, a alegada ausência de validade diagnóstica coloca definitivamente em xeque a consistência ontológica de suas categorias, que passaram a ser vistas como a reificação indevida de construtos sem base empírica. Nas palavras de Hyman, ex-diretor no National Institute of Mental Health, a adoção do modelo “de critérios operacionais com base fenomenológica a serviço da confiabilidade, e de uma abordagem totalmente categorial do transtorno, exacerbou involuntariamente a dificuldade para capturar síndromes etiologicamente diversas e fenotipicamente heterogêneas” (Hyman, 2010Hyman, S. E. (2010). The Diagnosis of Mental Disorders: The problem of reification, Annual Review of Clinical Psychology, 6, 155-179., p. 170).

Segundo Nikolas Rose, por volta de 2010, quando a discussão sobre a elaboração do DSM-5 encontrava-se em pleno vapor, já estava claro que o diagnóstico categorial “não era mais um fundamento essencial para uma compreensão científica dos transtornos mentais, muito pelo contrário” (Rose, 2019Rose (2019). Our Psychiatric Future. The Politics of Mental Health. Polity Press., p. 85). Tal movimento fez com que o National Institute of Mental Health (NIMH), o maior órgão financiador de pesquisas em psiquiatria dos Estados Unidos e do mundo, anunciasse em 2011 que o modelo operacional dos DSMs não deveria mais ser adotado na pesquisa básica em psiquiatria. Isso culminou no anúncio de Thomas Insel, então diretor do NIMH, em abril de 2013, poucas semanas antes da publicação do DSM-5, de que aquele instituto investiria na elaboração de um sistema nosológico alternativo, reorientando suas pesquisas para fora das categorias do DSM (Insel, 2013Insel T. (2013). Transforming diagnosis. Director’s blog (Web Page). Recuperado em 22.3.2021, de <https://www.nimh.nih.gov/about/directors/thomas-insel/blog/2013/transforming-diagnosis.shtml>.
https://www.nimh.nih.gov/about/directors...
). Essa é a história da elaboração do Research Domain Criteria (RDoC), projeto que visa o desenvolvimento de um sistema diagnóstico capaz de integrar toda a sorte de marcadores biológicos e achados patofisiológicos para, em um segundo momento, vinculá-los a eventuais descrições clínicas.2 2 Para mais informações, consultar <https://www.nimh.nih.gov/research/research-funded-by-nimh/rdoc/index.shtml>. Acessado em 6/5/2021. Como definiu Michael First (2012)First, M. B. (2012). The National Institute of Mental Health Research Domain Criteria (RDoC) project: moving towards a neuroscience-based diagnostic classification in psychiatry. In K. S. Kendler, & J. Parnas (Eds.), Philosophical Issues in Psychiatry II: Nosology (pp. 12-18). Oxford University Press., em artigo dedicado à apresentação do RDoC, a sua abordagem “representa uma verdadeira mudança de paradigma na classificação dos transtornos mentais, distanciando-se da definição dos transtornos a partir da sua fenomenologia descritiva e, ao invés disso, concentrando-se nas disfunções do circuito cerebral como princípio classificatório fundamental” (p. 16). A aposta desse projeto, além de servir à pesquisa básica em psicopatologia, é de que esses marcadores possam também direcionar decisões diagnósticas, orientar tratamentos mais precisos e, inclusive, permitir eventuais ações profiláticas, a partir de diagnósticos precoces, pré-sintomáticos. Nada disso combina com o modelo criteriológico do DSM.

O RDoC não será provavelmente o último capítulo dessa querela em torno do tema da validade diagnóstica. Por hora, ele não passa ainda de um grande e ambicioso projeto. Todavia, trata-se do reconhecimento por parte do maior órgão financiador de pesquisas em psiquiatria do mundo de que o DSM nunca lidou (e nem lidará) com categorias dotadas de fronteiras naturais. Como consequência, conclui-se que, apesar de sua eventual utilidade clínica, suas categorias carecem de uma necessária consistência ontológica: eis o tamanho da crise epistemológica desse modelo, a despeito da queixa frequente de parte do campo em relação à sua hegemonia.3 3 A inflexão promovida pelo RDoC, embora ainda em forma de projeto inacabado, faz antever a intensificação de uma série de consequências já em curso na psiquiatria contemporânea, como a produção de uma clínica sem páthos, ou seja, de intervenções sem relação com qualquer visada curativa ou mesmo terapêutica. Isso se manifesta, por um lado, na já mencionada possibilidade de atuação profilática a partir de signos subclínicos ou pré-sintomáticos. Por outro lado, uma vez que a psicopatologia não seria mais a régua fundamental para o diagnóstico e a intervenção, o RDoC poderia amplificar ainda mais a lógica do aprimoramento, que se instituiu como tendência nos últimos anos, desde a introdução da “psicofarmacologia cosmética”, das chamadas smart drugs, entre outros artefatos de intervenção sobre o psiquismo e a cognição. Para um resumo deste tópico, ver Neves et al. 2020.

Tipos naturais e literalismo diagnóstico

Como sintetiza de forma simples e direta o filósofo Dominic Murphy, “enquanto a confiabilidade é um indicador de concordância entre as medições, a validade deve ser sobre o que realmente existe” (Murphy, 2015Murphy, D. (2015). Validity, realism and normativism. In P. Zachar, D. Stoyanov, M. Aragona, & A. Jablensky. Alternative Perspectives on Psychiatric Validation: DSM, ICD, RDoC and Beyond (pp. 60-75). Oxford University Press., p. 60). A preocupação de descrever “o que realmente existe” não é um problema metafísico trivial. Sugerimos que a colocação do problema da validade diagnóstica nesses termos parece estar na base do mal-estar nosográfico que permeia tanto o senso comum quanto as discussões entre especialistas: mas depressão, síndrome do pânico e fobia social se referem a algo que “realmente existe”?

Na tentativa de tornar mais clara a colocação desse problema, propomos pensá-la a partir do estatuto ontológico que conferimos às categorias em geral. Isso é importante, na medida em que categorizar é uma das atitudes mais básicas da nossa experiência no mundo: costumamos interpretar os entes não apenas como particulares, mas como particulares que pertencem a tipos de coisas. Isso vale tanto para tipos de coisas banais, como peixes, automóveis e livros, como para categorias científicas, tais quais elementos químicos, partículas subatômicas e diagnósticos médicos. Diante disso, uma questão filosófica clássica é a indagação sobre a natureza das classificações: tratam-se de convenções, artifícios, agrupamentos totalmente dependentes da perspectiva de um sujeito classificador, ou haveria, pelo menos em alguns casos, correspondências entre o modo como o mundo é naturalmente dividido e as nossas categorias? Em outras palavras, seria possível que algumas categorias equivalham ao que os anglo-saxões chamam de tipos naturais [natural kinds]? Se sim, a partir de que critérios?

Na filosofia da ciência contemporânea, a possibilidade de estabelecer tipos naturais esteve habitualmente ligada a versões científicas do essencialismo (Ellis, 2001Ellis, B. (2001). Scientific essentialism. Cambridge University Press.). Um exemplo clássico dessa espécie de essencialismo científico vem do conhecido experimento de pensamento da Terra Gêmea, da fase pré-pragmatista de Hilary Putnam (1975)Putnam, H. (1975). The meaning of “meaning”. In Mind, Language and Reality (Vol. 2) (pp. 215-271). Cambridge University Press.. Segundo essa ficção filosófica, haveria um lugarzinho distante no universo idêntico ao planeta Terra em todos os seus aspectos e atributos, chamado Terra Gêmea. Apesar de toda a semelhança encontrada, há lá uma pequenina diferença: a substância que os seus habitantes chamam de “água” não é composta de H2O, mas de uma molécula inteiramente distinta, chamada XYZ. Essa substância cobre 71% da superfície de Terra Gêmea, incluindo seus rios e oceanos, preenche a maior parte da massa dos corpos dos seus habitantes, é insípida, inodora, incolor, além de cair do céu sob a forma de chuva e servir para fazer deliciosas limonadas. Portanto, do ponto de vista fenomenal, é impossível distingui-la daquilo que nós terráqueos também chamamos de água. Contudo, argumenta Putnam, tais aspectos fenomenais não são propriedades essenciais da água. Não são eles que fazem com que a água seja realmente água. A estrutura molecular H2O é a única propriedade necessária e suficiente para que algo pertença genuinamente ao tipo água, em qualquer mundo possível, independente de qualquer perspectiva, contexto ou relação. É o que a torna um tipo natural e o que determina o seu significado inerente ou sua definição intensional. Outras propriedades, como seu o caráter insípido, inodoro, incolor etc. seriam tão somente acessórias, acidentes que de modo algum fazem parte da essência da água (Putnam, 1975Putnam, H. (1975). The meaning of “meaning”. In Mind, Language and Reality (Vol. 2) (pp. 215-271). Cambridge University Press.).

No experimento de Putnam, somente a investigação científica é capaz de estabelecer inequivocamente a essência de tipos naturais ou a validade de uma determinada categoria. Por essa razão, uma questão importante a ser depreendida dessa ficção é a relação existente entre categorias científicas e categorias populares. Enquanto as primeiras seriam aquelas capazes de dividir o mundo segundo a sua estrutura intrínseca, fatiá-lo em suas articulações, as últimas seriam generalizações arbitrárias e imperfeitas estabelecidas pelo senso comum para uma variedade de objetivos práticos cotidianos. Nos jargão do filósofo norte-americano, se as categorias científicas estão preocupadas com as chamadas extensões reais, as categorias populares lidam tão somente com estereótipos.

Por mais que a imensa maioria dos transtornos mentais não possa ser definida por uma única propriedade essencial, o experimento de Putnam pode servir como uma analogia para o problema da validade diagnóstica.4 4 Não sugerimos que essa analogia seja aplicada de forma literal, pois um abismo conceitual separa as propriedades microfísicas dos elementos químicos e os transtornos mentais. Isso não invalida, no entanto, as tentativas de associar os transtornos mentais à noção de tipo natural. Para ficar em apenas um único exemplo, Tsou (2016) enfatiza o quanto é possível conceber alguns transtornos mentais (como a esquizofrenia, a depressão e o transtorno bipolar) como uma classe em que todos os membros compartilham alguma estrutura biológica causal semelhante, exibindo assim estabilidade e assegurando a possibilidade de inferência indutiva. A questão foi montada de modo a que uma classificação diagnóstica válida fosse aquela capaz de abarcar extensões reais. Desse ponto de vista, o problema dos tipos propostos pelos DSMs seria justamente a sua incapacidade de representar tais extensões. Apesar de toda retórica de cientificidade que historicamente circundou esses manuais, categorias como o transtorno depressivo maior, o transtorno do pânico, a fobia social etc. teriam sido fundadas a partir da conjugação de métodos científicos com certa atitude leiga, espontânea, popular. Nos termos de Putnam, é como se esses manuais só se referissem a estereótipos, isto é, de recortes fenomenais do mundo, que servem muito bem ao senso comum e seus propósitos, mas que não espelham o modo como o mundo é causalmente estruturado, nem permitem fazer inferências indutivas rígidas. Portanto, apesar do seu caráter operacional, listas de sinais e sintomas representariam um nível descritivo demasiado impreciso, ainda repleto de subjetividade, de valores e de um vocabulário intencional herdado da chamada psicologia popular, tal como crenças, desejos, emoções, sentimentos etc., incompatível com a estrutura causal do mundo.

Colocar o problema da validade diagnóstica nos termos de uma busca por aquilo que “realmente existe” conduz ao que poderíamos chamar de literalismo diagnóstico (Zachar, 2014Zachar, P. (2014). A Metaphysics of psychopathology. The MIT Press.): só estamos autorizados a dizer que um diagnóstico é real quando determinada condição puder ser objetivamente identificada como extensão de um tipo natural. Ora, por detrás dessa noção está a ideia de que há um modo único, não relacional, não contextual, independente de qualquer perspectiva, válido em qualquer mundo possível, de se estabelecer uma nosologia válida, como no realismo interno da ficção de Putnam. Enquanto esse tipo natural não for rigidamente estabelecido, acredita-se, continuaremos a lidar com categorias diagnósticas artificiais. Eis aí um posicionamento ontológico implícito que, como argumentamos, responde por boa parte do mal-estar nosográfico da psiquiatria contemporânea. É sobretudo quando a validade das categorias é pensada nesses termos literais que nos sentimos permanentemente ameaçados pela sua inconsistência ontológica. Todavia, essa difícil noção de correspondência com a estrutura intrínseca do mundo não é a única forma de se colocar o problema da realidade dos transtornos mentais. Há modos mais relaxados de colocá-lo, sem tantos compromissos ontológicos, nem obsessão com fronteiras naturais rígidas, como desenvolveremos.

Nominalismo, pragmatismo e psicopatologia

Além do realismo metafísico ou do essencialismo presentes em certas abordagens médicas dos transtornos mentais, outra ameaça historicamente enfrentada pelos sistemas diagnósticos psicopatológicos foram as démarches ditas construcionistas sociais, para quem o estabelecimento da legitimidade de uma categoria nosológica não tem qualquer relação com propriedades intrínsecas, mas com fatores externos, como o lobby de grupos específicos, jogos de força ligados a circunstâncias políticas e econômicas, ideologias etc. Para ficar em apenas um exemplo paradigmático dessa perspectiva, citamos a teoria da rotulação de Thomas Scheff (1984)Scheff, T. (1984). Being Mentally Ill. A sociological theory (2ª ed.). Aldine., segundo a qual os diagnósticos psiquiátricos não são senão rótulos atribuídos a um indivíduo que rompe com determinadas normas sociais hegemônicas, incorrendo em uma espécie de desvio. Uma vez rotulado, o sujeito incorporaria o papel de doente que lhe é socialmente atribuído, contribuindo para o círculo vicioso de rebaixamento da própria identidade, com as mais diversas consequências iatrogênicas. A nosso ver, esse tipo de perspectiva externalista da ciência tem como pressuposto filosófico uma espécie de nominalismo austero, na medida em que supõe que a única coisa em comum entre todos os sujeitos com um determinado diagnóstico é o fato de portarem esse mesmo diagnóstico. Há aí uma suposição de que categorias psicodiagnósticas são, em alguma medida, recortes arbitrários e artificiais da realidade.

Apesar desse nominalismo extremado parecer ser o inverso simétrico de posturas essencialistas, sua difusão também contribui para a angústia ontológica de que padece historicamente o campo psicopatológico. Afinal de contas, também almeja-se minar a validade de qualquer categoria diagnóstica com o argumento de que seus rótulos não refletem “o que realmente existe”, mas são meros artifícios. Conserva-se ainda aí demasiados compromissos metafísicos, a partir de uma dicotomia rígida entre o construído e o realmente existente, ao passo que se nega qualquer racionalidade às categorias das quais suspeita.5 5 Para uma crítica à dicotomia real/construído no campo psicopatológico, ver Banzato e Zorzanelli (2014) e Venturi (2018). Porém, essencialismo e construcionismo não são as únicas formas de colocação do problema da realidade dos transtornos mentais. Uma via alternativa, capaz de aliviar a angústia ontológica a que essas posturas conduzem, é a adoção de uma espécie deflacionada de nominalismo, sem tantos compromissos metafísicos implícitos; um nominalismo que poderia ser qualificado como pragmático.

Uma das características fundamentais do pragmatismo é uma aposta na eliminação da dicotomia entre conhecer as coisas e fazer uso delas. Mesmo diante de conceitos abstratos dotados de alta carga metafísica, como natural, real, objetivo, factual etc. o pragmatismo tende a considerá-los instrumentos cognitivos a serviço de algum propósito. Assim, dessa perspectiva, não se procura perguntar por aquilo que “realmente existe”, no sentido de buscar o estabelecimento de uma correspondência entre determinada descrição e as propriedades intrínsecas do objeto descrito, ao estilo de uma filosofia da representação. Como desenvolve Rorty (2000)Rorty (2000). Um mundo sem substâncias. In C. Magro, A. M. Pereira (Orgs.), Pragmatismo: A filosofia da criação e da mudança (pp. 53-92). Editora UFMG., quando um pragmatista formula descrições a respeito de algo, ele se refere sobretudo a uma rede de relações, e não a noções como propriedades intrínsecas, ou essenciais. Por exemplo, se me perguntam o que é esse computador, posso formular uma teia enorme de descrições: é uma máquina; processa informações por regras lógicas; tem silício em sua composição; serve para escrever textos e navegar pela internet; é cinza; é feito de átomos; tem um design bonito; causa-me dor toda vez que lhe dou um sopapo... Uma infinidade de níveis descritivos podem ser aplicados a esse ente, dependendo do ponto de vista adotado e dos propósitos almejados, sem que possamos dizer que alguma dessas descrições corresponda perfeitamente àquilo que esse computador realmente é, fora da rede de relações que ele estabelece. Por essa razão, dessa perspectiva também não faz sentido estabelecer um fosso ontológico entre categorias científicas e categorias populares. Tal fosso parte de uma metáfora ocular, de um modelo representacional do conhecimento, em que algumas atividades descobrem propriedades intrínsecas, naturais, reais, objetivas, factuais dos entes, ao passo que outras lidam com agregados aleatórios de propriedades acidentais, artificiais, aparentes, fenomenais, segundo interesses humanos.

Essa ausência de distinção ontológica não significa, contudo, um relativismo absoluto em relação às nossas descrições, nem tampouco se trata de um ataque à atividade científica. Algumas descrições e categorias são sem sombra de dúvida melhores do que outras, por serem mais adequadas e úteis a determinados propósitos. A esse respeito, o trabalho do filósofo da ciência John Dupré (1993)Dupré, J. (1993). The Disorder of Things: Metaphysical Foundations of the Disunity of Science. Harvard University Press. é bastante ilustrativo. Por um lado, comenta Dupré, há modos absolutamente irrelevantes de produzir classes de coisas: hipoteticamente, seria possível propor a classe das coisas que pesam entre 1kg e 2kg, por exemplo. Porém, a que propósito uma tal classificação serviria? Que tipo de inferência indutiva ela permitiria? Que espécie de ação no mundo ela propiciaria? Como na enciclopédia chinesa Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos, inventada pelo gênio de Jorge Luis Borges (1974)Borges, J. L. (1974). El idioma analítico de John Wilkins. In J. L. Borges, Obras Completas, 1923-1972 (pp. 706-709). Emecé Editores., a classe das coisas entre 1kg e 2kg talvez só tenha serventia para a imaginação poética e nada mais. Por outro lado, Dupré também demonstra como é uma quimera imaginar que exista um critério último, único, segundo o qual tipos naturais se dividam. Seu campo de análise específico é o da taxonomia biológica e suas controvérsias contemporâneas, como o debate entre as abordagens fenética e cladística. Em linhas gerais, a fenética defende que uma taxonomia deve diferenciar as espécies com base em semelhanças e diferenças morfológicas, ao passo que a cladística sugere a adoção da ancestralidade comum como critério de divisão. Qual desses fatia realmente a natureza em suas articulações? O argumento de Dupré é que todo sistema taxonômico se baseia em critérios que elegem algumas propriedades como mais importantes do que outras, de acordo com propósitos específicos, ou seja, não há uma norma exclusiva, única, segundo a qual as espécies se dividem em tipos naturais. Espécies biológicas não vêm a nós envelopadas como tipos naturais perfeitamente organizados e hierarquizados, a espera de serem desvelados. Se o critério de semelhança é fundamental a qualquer classificação, isso não elimina o seguinte problema adicional: semelhança em relação a quê?

Dupré refere-se à sua posição pluralista como um realismo promíscuo. O caráter realista advém do fato de que adotar o pluralismo não implica tomar as classificações como ilusões do conhecimento, tipos artificiais ou miragens borgeanas. Pelo contrário, o argumento de Dupré é que há mais de um modo legítimo e fundamentado de produzir classificações para os entes, a depender do propósito em questão. Isso vale tanto para as categorias científicas quanto para as categorias do senso comum, como o cozinheiro que classifica o mundo biológico de modo prático em temperos, carnes, legumes, frutas, hortaliças... Portanto, essa espécie de nominalismo pragmático é antiessencialista, mas não precisa se comprometer com as premissas austeras das versões fortes do construcionismo social.

Da realidade (prática) das categorias psicodiagnósticas

Adotar um nominalismo pragmático pode auxiliar a qualificar a afirmação de que depressão, transtorno do pânico, fobia social, entre outros transtornos mentais são reais, como no post de rede social apresentado na introdução deste artigo. Como se procurou desenvolver, tanto o literalismo diagnóstico (ao conceber a validade como correspondência entre descrições e fronteiras naturais) quanto o construcionismo social (ao apostar no caráter intrinsecamente artificial das categorias nosológicas) tenderiam a negar-lhes qualquer estatuto de realidade. Todavia, como se argumentou na seção anterior, é possível pensar em classes sem recair na aporia que opõe ontologicamente tipos naturais e tipos artificiais. Em um conhecido ensaio nominalista, Nelson Goodman (1978)Goodman, N. (1978). Ways of Worldmaking. Hackett Publishing Company. afirma que não há um único modo de fabricar mundos, pois “em um mundo, pode haver muitos tipos servindo a diferentes propósitos” (p. 11). Um mundo é resultado de uma série de procedimentos concretos, que podem ser herdados da tradição, do hábito ou planejados pelo engenho humano, como dividir totalidades em partes, estabelecer distinções, fazer conexões, estabelecer ênfases ou ponderações, instituir níveis de importância e relevância, ordenar elementos dispersos, omitir dados desimportantes, preencher lacunas etc. Isso não implica um vale-tudo nem diminuição da importância da atividade científica. Apenas enfatiza o quanto um tipo real é, antes de tudo, um tipo relevante, inclusive para propósitos científicos, se este for o caso.

A exemplo do argumento de Goodman, no início dos anos 2000, Peter Zachar (2000)Zachar, P. (2000). Psychiatric Disorders are not Natural Kinds. Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 7(3), 167-182. e George Agich (2002)Agich, G. (2002). Implications of a pragmatic theory of disease for the DSMs. In J. Sadler (Ed.), Descriptions and Prescriptions: Values, Mental Disorders, and the DSMs (pp. 96-113). John Hopkins University Press. desenvolveram o quanto classificações diagnósticas são melhor concebidas como tipos práticos dotados de propriedades relacionais do que como tipos naturais dotados de propriedades essenciais. O fato de não serem capazes de espelhar propriedades microestruturais, nem servirem para pesquisas em genética ou em neurobiologia, não autoriza que se as conceba como irreais, arbitrárias ou artificiais. Como vimos com Dupré (1993)Dupré, J. (1993). The Disorder of Things: Metaphysical Foundations of the Disunity of Science. Harvard University Press., esquemas classificatórios podem se orientar por diferentes níveis de análise, em função de múltiplos objetivos, que nem sempre são isomórficos uns com outros. Assim, a criação de grupos homogêneos com base em semelhanças fisiopatológicas ou quaisquer outras propriedades microestruturais pode ser, sem dúvida, um critério legítimo para se recortar a natureza, na medida em que se coaduna com uma série de propósitos metodológicos adotados por pesquisas empíricas. Porém, isso não faz dele o critério legítimo, pois não há descrição que seja útil a todo e qualquer propósito. Outros níveis descritivos podem servir a recortes muito mais relevantes e práticos, dependendo do objetivo almejado. Essa perspectiva pragmática e antimetafísica nos coloca diante da possibilidade de um pluralismo nosográfico, isto é, da admissão de que há múltiplos modos de produzir recortes diagnósticos legítimos. Há mais de uma maneira de combinar e recombinar semelhanças e os critérios adotados nesse processo passam muito mais pela sua capacidade de abrir vias de ação no mundo do que pela representação última de propriedades essenciais ou definições intensionais.

Um exemplo de Ian Hacking (2007b)Hacking, I. (2007b). Natural Kinds: Rosy Dawn, Scholastic Twilight. Royal Institute of Philosophy Supplement, 61, 203-239. é lapidar a respeito da defesa de um pluralismo classificatório: “lama” é uma classe de coisas absolutamente relevante para pais que esfregam roupas sujas de crianças, jogadores de futebol e lavradores. Mesmo sem possuir qualquer propriedade essencial, “lama” também constitui um tipo relevante da perspectiva técnico-científica, haja vista a existência de engenheiros especializados no seu comportamento. Diante disso, qual é a utilidade de se perguntar se “lama” é uma classe realmente existente de coisas ou um artifício? Transportado para a nosologia psiquiátrica, esse exemplo mostra como uma classificação relevante é simplesmente aquela que permite que se faça afirmações gerais e inteligíveis, que possibilita inferências indutivas, que faz sentido dentro de determinado arcabouço teórico e que, sobretudo, nos coloca diante de possibilidades de intervenção clínica profícuas. A pergunta pela sua realidade última conduz a aporias metafísicas supérfluas.

As categorias difundidas na cultura pelo DSM-III e seus sucessores representam um modo de ordenar a nosologia que prima pela operacionalidade dos critérios diagnósticos. A sua utilização faz com que naveguemos pelo mundo de um modo e não de outro, pois, antes de qualquer coisa, se tratam de instrumentos cognitivos a serviço de uma série de propósitos. Por exemplo, elas definem com frequência quem deve ser encaminhado para determinado tratamento especializado, quem possui uma justificativa legítima para faltar ao trabalho, quem é juridicamente imputável, quem pode ter um tratamento coberto por seguros-saúde, quem tem direito a determinados auxílios governamentais... Por outro lado, isso não significa imunidade a críticas, nem um fechamento a revisões e correções. A história da psiquiatria mostra que incontáveis classificações emergiram e desapareceram como espuma na areia, revelando-se como supérfluas ou até mesmo nefastas. Desta feita, críticas pertinentes podem se dirigir ao modelo criteriológico da nosografia proposta por esses manuais, como a sua tendência à hiperinflação diagnóstica e à patologização indevida de toda espécie de sofrimento humano (Frances, 2016Frances, A. (2016). Voltando ao normal: como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle. Versal Editores.; Horwitz e Wakefield, 2010Horwitz, A., & Wakefield, J. C. (2010). A tristeza perdida: como a psiquiatria transformou depressão em moda. Summus.), o agrupamento de sinais e sintomas a partir de critérios vagos e abstratos, incapazes de formar um todo coerente e significativo (Thornton, 2017Thornton, T. (2017). Psychiatric diagnosis, tacit knowledge, and criteria. In G. Keil, L. Keuk, & R. Hauswald. Vagueness in psychiatry (pp.119-137). Oxford University Press.), o empobrecimento da fenomenologia clínica e das narrativas em primeira pessoa (Kraus, 1994Kraus, A. (1994). Phenomenological and criteriological diagnosis: Different or complementary? In J. Z. Sadler, O. P. Wiggins, & M. A. Schwartz (Eds.), Philosophical Perspectives on Psychiatric Diagnostic Classification (pp. 148--160). The John Hopkins University Press.), a concentração excessiva sobre aspectos ruidosos dos quadros clínicos em detrimento de manifestações mais sutis etc. Todavia, compreender a pertinência dessas críticas como uma apelação ao que “realmente existe”, como se o modelo criteriológico dos DSMs lidasse com ficções diagnósticas sem substrato ontológico, não é uma via interessante. Isso ainda seria recair na metáfora ocular de que nos fala Rorty (2000)Rorty (2000). Um mundo sem substâncias. In C. Magro, A. M. Pereira (Orgs.), Pragmatismo: A filosofia da criação e da mudança (pp. 53-92). Editora UFMG., como se, em um plano ideal, entidades psicodiagnósticas devessem ser “espelhos da natureza”. Uma posição nominalista pragmática procura interpretar a pertinência dessas críticas nosográficas a partir das consequências práticas de se adotar determinado sistema classificatório em detrimento de outro. A indagação mais importante, nesse sentido, não é a respeito da correspondência entre determinada descrição e as extensões reais que ela é capaz de abarcar, mas dos efeitos de se assumir um sistema ou uma categoria diagnóstica. Que mundo se fabrica a partir dos critérios de semelhança adotados para “fatiar a natureza”? E se fossem outros? Isso significa levar o debate nosográfico para além de uma dicotomia fato/valor (Venturi, 2018Venturi, C. (2018). A psicopatologia para além da dicotomia fato/valor. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 21(3), 589-610.), na medida em que o caráter normativo de toda racionalidade clínica borra as fronteiras entre descrições e prescrições, entre técnica e ética.

Ao se propor um deslocamento do problema da “incrível insegurança da nosologia psiquiátrica” (Kendler & Zachar, 2008Kendler, K., & Zachar, P. (2008). The incredible insecurity of psychiatric nosology. In K. Kendler, & J. Parnas (Eds.), Philosophical Issues in Psychiatry: Explanation, Phenomenology and Nosology (pp.368-382). John Hopkins University Press., p. 368) em termos nominalistas pragmáticos, evita-se cair tanto no realismo metafísico do literalismo diagnóstico quanto no antirrealismo metafísico do construcionismo social, posto que aquilo que conta como prático é o mais fundamental em uma descrição. Concretamente, desse ponto de vista, o mais complicado é justamente decidir o que conta afinal como prático em relação a um sistema nosográfico: a abertura de estratégias de manejo clínico; a produção de grupos homogêneos com vistas à pesquisa básica; o estabelecimento de prognósticos fiáveis; a facilidade de comunicação e uso; a minimização de falsos positivos e falsos negativos; a boa resposta a classes de medicamentos; a serventia à elaboração de políticas públicas de saúde?... Apesar dessa complicação ser ineliminável, a colocação do problema nesses termos tem a vantagem de trazer clareza sobre a natureza de certas divergências e abrir o debate, em vez de fechá-lo. Por exemplo, é compreensível que psicanalistas de orientação lacaniana tendam a recusar o modelo sindrômico dos DSMs. Afinal de contas, entre outras objeções, o critério de isolar síndromes a partir de conjuntos de sinais e sintomas não informa de modo pertinente a posição que um terapeuta deve adotar diante de um analisando na transferência. Essa informação é fundamental para a abordagem psicanalítica do sofrimento psíquico, uma vez que a hipótese diagnóstica de neurose leva a uma posição e a um manejo clínico inteiramente distintos da hipótese de psicose, por exemplo. A clareza em relação a essas hipóteses diagnósticas não advém do conjunto de sinais e sintomas exibidos pelo sujeito, que podem ser enganosos a esse respeito, mas da chamada estrutura clínica. Esta, por sua vez, só pode ser estabelecida se lançarmos mão de uma trama conceitual incomensurável com manuais operacionais, como recalcamento, foraclusão, denegação, castração e assim por diante. Não se trata, portanto, de uma recusa motivada primordialmente pela falha desses manuais em representar adequadamente extensões reais, mas de uma recusa eminentemente prática. Eles se revelam inúteis para certos propósitos; deixam de ser bons mapas para navegar em certos mares.

Uma atitude nominalista pragmática permite uma postura mais relaxada diante do peso metafísico que o debate em torno das classificações psiquiátricas carrega historicamente. Uma das suas vantagens é deflacionar a angústia ontológica que costuma nos assolar quando pensamos na realidade das classificações psiquiátricas. Isso tem consequências no debate entre especialistas, mas é especialmente relevante para os leigos, como atesta a postagem de rede social que abriu a introdução deste artigo. Para quem recebe um diagnóstico, é muito importante saber se ali se encontra uma categoria real ou artificial. É o próprio cerne da nossa identidade pessoal e moral que se altera quando especialistas propõem uma descrição para o que somos. Com base nessas descrições, políticas públicas são formuladas, tratamentos são inventados, pesquisas são financiadas, instituições são adaptadas, identidades são forjadas, e assim por diante. Há um incrível poder performativo de fabricar mundos e inventar pessoas nessa operação descritiva (Hacking, 1997, 2007aHacking, I. (2007a). Kinds of People: Moving targets. Proceeding of the British Academy, 151, 285-318.). Donde se depreende a urgência de se qualificar o problema da realidade das categorias psicodiagnósticas, tanto para especialistas como para os leigos.

Não respondi à postagem de rede social que afirmava o quanto depressão, transtorno do pânico e fobia social são reais, e não frescura. Deixo aqui registradas, mesmo que com atraso, algumas palavras, a quem interessar possa: Concordo! Depressão, transtorno do pânico e fobia social são reais! Ou melhor, são recortes reais do mundo feitos com certos propósitos. Cabe a nós avaliar inelutavelmente a pertinência desses propósitos. Claro que não é frescura! Sim, estaremos lá se você precisar conversar.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio. / This work received no funding.
  • 1
    Não há dentro da literatura psiquiátrica um consenso acerca do significado do que seja validade diagnóstica. Nossa opção, por concisão e para os propósitos do artigo, foi seguir tendências hegemônicas do conceito. Para uma apresentação nuançada acerca das várias concepções de validade presentes na psiquiatria, ver Rodrigues (2012)Rodrigues, A. C. T. (2012). O que é validade na nosologia psiquiátrica (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Médicas. Campinas, SP..
  • 2
    Para mais informações, consultar <https://www.nimh.nih.gov/research/research-funded-by-nimh/rdoc/index.shtml>. Acessado em 6/5/2021.
  • 3
    A inflexão promovida pelo RDoC, embora ainda em forma de projeto inacabado, faz antever a intensificação de uma série de consequências já em curso na psiquiatria contemporânea, como a produção de uma clínica sem páthos, ou seja, de intervenções sem relação com qualquer visada curativa ou mesmo terapêutica. Isso se manifesta, por um lado, na já mencionada possibilidade de atuação profilática a partir de signos subclínicos ou pré-sintomáticos. Por outro lado, uma vez que a psicopatologia não seria mais a régua fundamental para o diagnóstico e a intervenção, o RDoC poderia amplificar ainda mais a lógica do aprimoramento, que se instituiu como tendência nos últimos anos, desde a introdução da “psicofarmacologia cosmética”, das chamadas smart drugs, entre outros artefatos de intervenção sobre o psiquismo e a cognição. Para um resumo deste tópico, ver Neves et al. 2020Neves, A., Ismerim, A., Costa, F. D. da, Santos, L. R. P. dos, Senhorini, M. Beer, P. Bazzo, P. et al. (2020). A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In V. Safatle, V., N. Silva Junior, C. Dunker, (Eds), Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (pp. 125-176). Autêntica..
  • 4
    Não sugerimos que essa analogia seja aplicada de forma literal, pois um abismo conceitual separa as propriedades microfísicas dos elementos químicos e os transtornos mentais. Isso não invalida, no entanto, as tentativas de associar os transtornos mentais à noção de tipo natural. Para ficar em apenas um único exemplo, Tsou (2016)Tsou, J. (2016). Natural kinds, psychiatric classification and the history of the DSM. History of Psychiatry, 27(4), 406-424. enfatiza o quanto é possível conceber alguns transtornos mentais (como a esquizofrenia, a depressão e o transtorno bipolar) como uma classe em que todos os membros compartilham alguma estrutura biológica causal semelhante, exibindo assim estabilidade e assegurando a possibilidade de inferência indutiva.
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    Para uma crítica à dicotomia real/construído no campo psicopatológico, ver Banzato e Zorzanelli (2014)Banzato, C. E. M., & Zorzanelli, R. (2014). Superando a falsa dicotomia entre natureza e construção social: o caso dos transtornos mentais. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(1), 100-113. e Venturi (2018)Venturi, C. (2018). A psicopatologia para além da dicotomia fato/valor. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 21(3), 589-610..

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Editora/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2021
  • Revisado
    11 Ago 2022
  • Aceito
    07 Nov 2022
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