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Faz escuro mas eu canto: A dialética entre psicanálise e democracia

Despite the darkness, I still sing: Dialectics between psychoanalysis and democracy

Ingo Lenz Dunker, Christian. Boitempo, 2022. 478 págs

Entendo que boa clínica psicanalítica é crítica social feita por outros meios

(Dunker, 2022Dunker, C. I. L. (2022). Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios. Boitempo., p. 23)

Em seu novo livro intitulado Lacan e a democracia: clínica e crítica em tempos sombrios, publicado pela Boitempo, Dunker propõe um mapeamento do “encontro faltoso” ou da “extimidade produtiva” entre psicanálise e democracia. Um debate-convite dirigido não exclusivamente aos psicanalistas, num movimento de ondas que vão mais além das instituições psicanalíticas e dos lacanismos.

Em certa medida, esse livro traz em seu cerne a expressão viva da “luta de classes no interior da própria psicanálise” (Boitempo, 2022Boitempo (2022, 14 jan.). TV Boitempo: Debate com Christian Dunker e Jones Manoel, mediação de Andrea Dip. Recuperado de <https://www.youtube.com/watch?v=p3BhRNb10sQ>.
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) e do esforço para pensar o que seria “[...] uma política que tem a psicanálise como alicerce [...] que coloque o desejo em sua cúspide e que, portanto, seja prevenida quanto a sua formalização em demandas” (Dunker, 2022Dunker, C. I. L. (2022). Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios. Boitempo., p. 27).

Balizado, de início, pelo chamamento lacaniano em tomar como horizonte a subjetividade da época (Lacan, 1953/1998Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 238-324). Zahar. (Trabalho original publicado em 1953)., p. 322), Dunker empreende uma cartografia das articulações entre psicanálise e democracia. Para isso, o autor toma como via régia a constatação de certa tradição crítica presente na psicanálise, com destaque para aquela de orientação lacaniana. Ambas, democracia e psicanálise tomam “o uso da palavra” e o “trabalho da dúvida” no espaço público e extraem deles seus desdobramentos. Dunker nos aponta como objetivo do livro “[...] trazer uma contribuição para a tradição crítica, para a reflexão histórica sobre a democracia, mas também para a revalorização da palavra em sua ação direta pelos sujeitos” (Dunker, 2022Dunker, C. I. L. (2022). Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios. Boitempo., pp. 17-18). Contribuição que vemos como crucial neste momento em que “[...] a palavra e a democracia se veem ameaçadas neste momento no Brasil” (p. 35).

Em certa medida, esse livro deslinda diversos deslocamentos empreendidos pela psicanálise na contemporaneidade. Aqui, localizamos uma aposta do autor nesta práxis, enquanto disparadora de processos transformativos, tendo em vista “[...] a potência democrática da ética psicanalítica e sua inscrição cada vez mais variada na esfera pública” (p. 18). Um desses desdobramentos diretos seria inclusive o próprio questionamento do estatuto do sofrimento psíquico na subjetividade de nossa época, sob a gestão neoliberal. Assim, o livro se enlaça com produções anteriores do próprio autor e de outros pesquisadores (Safatle, Silva Junior, & Dunker, 2018Safatle, V. P., Silva Junior, N., & Dunker, C. I. L. (2018). Patologias do social. Autêntica., 2020Safatle, V. P., Silva Junior, N., & Dunker, C. I. L. (2020). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Autêntica.), membros do Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo (LATESFIP - USP) também destinadas a enodar a psicanálise a outros campos do conhecimento, como a teoria social, a política, a economia, a medicina (com destaque à biopsiquiatria) e a filosofia social crítica.

Quanto à sua estrutura o livro possui nove capítulos, envelopados pela Introdução e pela Conclusão. Alguns desses capítulos destacam a premência do debate da psicanálise com a cultura, como é o caso dos capítulos de número três: “Negacionismos”, quatro: “A psicanálise nos espaços públicos”, cinco: “Grupo, classe e massa no espaço digital” e seis: “Políticas de identidade”. Em certa medida, o nono capítulo “Teorias da transformação: clínica e política” enlaça os demais, num certo movimento diacrônico de après-coup com o primeiro capítulo “Lacan e a democracia”. Destaco ainda que no capítulo cinco há uma importante distinção entre massa e coletivo, fundamental para a compreensão menos obscura dos atuais fenômenos de massa que vão do negacionismo à onda antidemocrática com tendências discursivas que flertam com a extrema direita, com pendores fascistas.

O livro traz ainda elementos que apostam numa espécie de “oniropolítica”, retomando do sonho seu caráter de uma narrativa em construção, cujos pedaços e seus restos fornecem ancoragens para uma crítica da própria política e da democracia vigentes no contemporâneo.

Por que ler esse livro neste momento pandêmico, no Brasil, num ano eleitoral, desde já turbulento por estar imerso num processo de demonização da política e de suas instituições mantenedoras? Em primeiro lugar, por se tratar de um livro que atribui à articulação entre psicanálise e democracia, uma possibilidade de renovação da imaginação política. Também por se tratar de uma leitura capaz de propor um tratamento da culpa, do ódio e do ressentimento diante da política e da democracia. Outro motivo nada menor é o fato de a articulação entre psicanálise e democracia ser uma aposta de sustentação de um marco civilizatório que não se pode abrir mão, senão para extrair a singularidade do sofrimento e não sua gestão produtivista e empresarial neoliberal. Portanto, Dunker nos fornece com seu livro “uma caixa de ferramentas críticas” diante de questões candentes no cenário brasileiro como o negacionismo e o papel da reparação diante da política da culpa e do ressentimento à brasileira (Kehl, 2020Kehl, M. R. (2020). Ressentimento. Boitempo.).

Em suma, resenhamos um livro que destaca a psicanálise como uma práxis não cerceada aos “iniciados” ou aos “membros da paróquia”. Vemos neste esforço de escrita, em certa medida, a manutenção da “sega cortante da verdade freudiana”, tão defendida por Jacques Lacan (Lacan, 1964/2003Lacan, J. (2003). Ato de fundação. In Jacques Lacan, Outros escritos (pp. 235-247). Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 235). E com isto, uma defesa incondicional aos pressupostos democráticos decorrentes desta ética da psicanálise, com destaque a seu componente transformativo, ponto fulcral para a sua transmissão aos jovens e às jovens psicanalistas na contemporaneidade (Rosa, 2021Rosa, M. D. (2021). Carta aos/às jovens psicanalistas hoje. Lacuna: uma revista de psicanálise, 12, 6. <https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-06/>.
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, p. 6).

Esperamos que a leitura seja proveitosa nesta travessia pelas afinidades entre psicanálise e democracia, tomando como guia o pensamento de Lacan. Um convite, segundo Dunker (2022)Dunker, C. I. L. (2022). Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios. Boitempo., para a constatação de uma política que teria “[...] o sonho como modelo e a realização do desejo como fim” (p. 27). Em outras palavras, uma oniropolítica que remeta aos versos forjados durante o cárcere do poeta Thiago de Mello “[...] faz escuro mas eu canto/ porque a manhã vai chegar” (Mello, 2017Mello, T. (2017). Faz escuro mas eu canto. Global.). Um livro necessário para mantermos nossos sonhos acordados, num esforço de poesia e de apostas arriscadas. Ambas, vagalumes em tempos de noite longa.

Referências

  • Boitempo (2022, 14 jan.). TV Boitempo: Debate com Christian Dunker e Jones Manoel, mediação de Andrea Dip. Recuperado de <https://www.youtube.com/watch?v=p3BhRNb10sQ>.
    » https://www.youtube.com/watch?v=p3BhRNb10sQ
  • Dunker, C. I. L. (2022). Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios Boitempo.
  • Kehl, M. R. (2020). Ressentimento Boitempo.
  • Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 238-324). Zahar. (Trabalho original publicado em 1953).
  • Lacan, J. (2003). Ato de fundação. In Jacques Lacan, Outros escritos (pp. 235-247). Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
  • Mello, T. (2017). Faz escuro mas eu canto Global.
  • Rosa, M. D. (2021). Carta aos/às jovens psicanalistas hoje. Lacuna: uma revista de psicanálise, 12, 6. <https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-06/>.
    » https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-06/
  • Safatle, V. P., Silva Junior, N., & Dunker, C. I. L. (2018). Patologias do social. Autêntica.
  • Safatle, V. P., Silva Junior, N., & Dunker, C. I. L. (2020). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico Autêntica.
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2022
  • Aceito
    07 Fev 2022
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