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Dissidências da crítica desencarnada a identidades

Dissidence from the disembodied critique of identity

Psicanálise antropofágica: identidade, gênero e arte. . Rivera, Tania. Porto Alegre, RS: Artes & Ecos, 2020. 166 págs

Psicanálise antropofágica é um livro que marca posição no debate psicanalítico brasileiro contemporâneo. Isso ocorre não apenas por seu caráter inovador no que se refere à sensibilidade rigorosa e criativa com que desdobra articulações a respeito da relação entre subjetividade e cultura, bem como entre estética e clínica, campos de pesquisa longamente explorados por Tania em outros trabalhos, nem somente pela visibilidade que confere à obra de mulheres artistas brasileiras (Laura Lima, Eleonora Fabião, Carmela Gross, Anna Maria Maiolina, Stella do Patrocínio, Natália Leite e Lygia Clark), mas especialmente pela potência com que nada contra certa maré psicanalítica atual que vê nas questões relativas à esfera identitária o signo inequívoco de um engodo a ser superado. Ao sair do lugar comum da crítica à identidade, o livro produz efeitos performativos, na medida em que instaura uma nova realidade nos meios psicanalíticos de discussão e opera como ato discursivo que mobiliza linhas de força até então inexistentes no fulcro da tensão entre a defesa da identidade e a valorização de experiências de destituição de lógicas totalizantes.

Tania nos atenta para o fato de que a problematização da hipóstase da identidade — constantemente repetida a partir da ênfase no descentramento do eu, na divisão do sujeito e nos efeitos alteritários do inconsciente —, ao ser propagada sem uma consideração por suas implicações no contexto socio-cultural brasileiro, legitima a manutenção de relações desiguais de poder e o ocultamento das estratégias de opressão racial, sexual e de gênero, que marcam a história do país. Aliada ao elogio do outro, a crítica à identidade, ao ser feita de forma ingênua, corre o risco de favorecer o silenciamento de identidades historicamente assujei-tadas e de reiterar velhas narrativas míticas que, pretensamente, fazem do Brasil um país no qual as condições para o estabelecimento da democracia racial, da equidade de gênero e do respeito às dissidências sexuais já estariam dadas. E nesse sentido que “a crítica à identidade em vez de se aliar ao reconhecimento da alteridade serve a não aceitação do outro como diferente” (p. 22).

É do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade (2017)Andrade, O. (2017). Manifesto Antropófago e outros textos. São Paulo, SP: Penguin Classics/Companhia das Letras., a partir de seu recurso a “Totem e tabu”, de Freud (1912-1914/2012)Freud, S. (2012). Totem e tabu. In Obras completas (vol. 11). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1912-1914)., que Tania extrai a possibilidade de pensar uma forma específica de laço identificatório que não se confunde com a incorporação mimética do outro, mas produz, em seu lugar, uma apropriação criativa, capaz de distorcer aquilo do qual se apropria, uma vez que o faz seu. No contexto da antropofagia oswaldiana nossa brasilidade é reafirmada mediante uma subversão da relação de alienação com o colonizador. Trata-se de deglutir, digerir e regurgitar, como baba, a alteridade dominante: introjetar o outro para configurar algo de radicalmente impróprio, destituindo-o de sua soberania enquanto modelo.

A atitude do rapaz condenado à morte ao dizer, a caminho da forca, “a semana está começando bem!”, mencionada por Freud (1905/2017)Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas (vol. 7). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1905). na obra “O chiste e sua relação com o inconsciente”, nos permite capturar algo desse movimento. O caráter jocoso da história, que é retomada por Tania no capítulo sobre o humor como estratégia política, emerge não da negação frente à irremediável e trágica realidade que se impõe, mas do desapego narcísico que permite ao sujeito, em tom de desafio, se deslocar do lugar de subjugação frente ao poder do outro, produzindo, através do riso, um “giro no discurso mesmo do agressor” (p. 38).

É também o que faz a teoria queer, por exemplo, em relação ao termo que a intitula. Antes de ser utilizado como uma ofensa à dissidência sexual, o termo queer fazia referência a sujeitos que eram considerados pela norma social como descartáveis e fracassados (Halberstam, 2020Halberstam, J. (2020). A arte queer do fracasso. Recife, PE: Cepe.). Em vez de reivindicar a supressão da palavra, a teoria queer a ressignifica, transformando-a em um instrumento que reafirma a resistência daqueles que desestabilizam a gramática da norma. Tal como a perspicácia de alguém que escuta um “vai tomar no cu!” e, em vez de reagir com as mesmas armas do poder, desmonta seus termos ao devolver um “ah, quem me dera!”, vemo-nos diante de estratégias que reviram o discurso normativo desde dentro, permitindo, através de giros simbólicos, a insurgência de novas formas de lidar com a realidade da dominação.

Ao pôr em movimento uma lógica que denuncia e faz irromper os limites simbólicos e imagéticos do discurso hegemônico, Rivera mostra como a psicanálise está em sintonia com a força crítica das lutas descoloniais e antirracistas, bem como com as reivindicações feministas e do movimento LGBTQIAP+. Mas é preciso lembrar que a veia dialética da psicanálise exige que nós, seus entusiastas, teóricos e praticantes, possamos também colocá-la na berlinda, permitindo-nos, sem tantas afetações narcísicas e sem ceder ao impulso mais imediato do descarte, questioná-la a partir das lacunas legadas por seus mestres (heterocisbranco) europeus.

É preciso “pensar psicanaliticamente a situação da psicanálise” em terras brasileiras. Pois negligenciar a afirmação estratégica da identidade em um contexto colonial, racista, patriarcal e que faz da dissidência sexual o correlato da abjeção, como é o caso brasileiro, pode se confundir com uma tentativa de esconder processos de exclusão e violência para melhor perpetuá-los. Manobra de apagamento cuja lógica tem estrutura semelhante àquela denunciada por Lélia Gonzáles (1984)Gonzáles, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244., ao compreender o racismo no Brasil — e sua contrapartida denegatória estampada no mito da democracia racial — como efeito da recusa do brasileiro em reconhecer suas raízes amefricanas. Ou mesmo aquela explicitada por Gayle Rubin (1993)Rubin, G. (1993). O tráfico de mulheres: notas sobre a “Economia Política” do Sexo. Recife, PE: Editora SOS Corpo. ao nos fazer questionar o lugar de objeto de troca, no interior de relações heteronormativas, reservado às mulheres em “Totem e tabu”.

É nesse sentido que Psicanálise Antropofágica nos faz pensar que a crítica da identidade, ao ser feita sem mediações históricas, implica o esquecimento de que os movimentos sociais ditos identitários surgiram justamente como uma reação ao discurso “pseudodesidentitário”, para usar um termo cunhado por Tania. É assim que ela nos exige pôr em questão quais e em que condições a crítica da identidade se faz, de fato, produtiva, sob o risco de desconhecermos o quanto o discurso dominante que a propaga deve, ele mesmo, a privilégios conferidos pelo identitarismo que rejeita.

  • Citação/Citation: Campos, L. (2021, dez.). Dissidências da crítica desencarnada a identidades. Resenha do livro Psicanálise antropofágica: identidade, gênero e arte. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 24(4), 797-800. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021 v24n4p797-16
  • Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/ University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.

Referências

  • Andrade, O. (2017). Manifesto Antropófago e outros textos. São Paulo, SP: Penguin Classics/Companhia das Letras.
  • Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas (vol. 7). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1905).
  • Freud, S. (2012). Totem e tabu. In Obras completas (vol. 11). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1912-1914).
  • Gonzáles, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244.
  • Halberstam, J. (2020). A arte queer do fracasso. Recife, PE: Cepe.
  • Rubin, G. (1993). O tráfico de mulheres: notas sobre a “Economia Política” do Sexo. Recife, PE: Editora SOS Corpo.
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D'Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2021
  • Aceito
    03 Dez 2021
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