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O espaço da diferença: a psicanálise híbrida de Thamy Ayouch

The space of difference: Thamy Ayouch’s hybrid psychoanalysis

Ayouch, Thamy. Calligraphie. 2019. 239 págs

Qual a identidade da psicanálise? Talvez essa seja uma das principais perguntas que guiam o pensamento de Thamy Ayouch em seu Psicanálise e hibridez. Ainda que a questão perpasse a leitura desse livro, é com maestria que Ayouch nos faz desconfiar da premissa de que existiria uma identidade da psicanálise. Isso porque, para o autor, nada é tomado de forma a-histórica ou transcendental. No ímpeto de combater a naturalização de categorias que se pretendem universais (como homem e mulher), surge para o psicanalista a ideia da hibridez. Passando por autores das mais variadas áreas do conhecimento, Ayouch constrói com consistência seu argumento pela hibridação da psicanálise, conseguindo demonstrar sua importância nos âmbitos clínico, teórico e político. Essa leitura é uma empreitada das mais frutíferas para pensar uma psicanálise (auto)crítica e atual.

Se podemos falar em uma identidade psicanalítica, talvez seja a partir do conceito de hibridez. Para Ayouch, esta é inerente à psicanálise. A hibridez perpassa seus conceitos e sua epistemologia. Segundo o psicanalista, é a capacidade da psicanálise de hibridar-se com outros discursos que a constitui como tal. Essa hibridação se encontra nas origens de sua teoria e de sua prática. No cânone psicanalítico clássico, o que não faltam são diálogos com outros campos do conhecimento (da medicina à lógica, passando pela antropologia).

Aplicando o conceito à clínica, toma-se a dupla analista/analisante como algo que produz um terceiro espaço, relacional — lembrando o conceito de espaço transicional em Donald Winnicott (1953/1975)Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In Winnicott, D. O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1953). como zona da criação e do paradoxo (entre eu e outro, objetividade e subjetividade, sujeito e objeto). A ideia de relação e de paradoxo conversa com a noção do híbrido como desconstrução das oposições binárias e categóricas e do “universal”.

No cerne da prática psicanalítica haveria uma hibridação: o fenômeno transferencial. A transferência torna nebulosa a linha que separa o paciente do analista. No encontro analítico, a hibridação é mútua e ambos saem transformados pelo processo. A hibridez não se trata, para Ayouch, de um encontro inaugural entre dois elementos, que geraria então algo novo e imutável, de ontologia decidida. É uma abertura para a transformação. Ela seria processual, um devir que surge do confronto com a diferença: com o reconhecimento da alteridade e com a possibilidade da coexistência com o diferente, mesmo quando os elementos estão em contradição.

A hibridez de Ayouch se constitui em algo como um terceiro espaço, uma zona intermediária de alteridade e interculturalidade. Um exemplo interessante para pensá-la é o que descreve Gloria Anzaldúa (1987/2021)Anzaldúa, G. (2021). La conciencia de la mestiza/Rumo a uma nova consciência. In H. Buarque de Hollanda (Org.), Pensamento feminista: Conceitos fundamentais. Bazar do tempo. (Trabalho original publicado em 1987). em “La conciencia de la mestiza” sobre a condição da chicana: mulher de origem mexicana que nasce nos Estados Unidos e que não é nem americana, nem mexicana, e que deve se haver também com suas origens indígenas. Ela é tudo isso e nada disso. O lugar que ocupa é híbrido e obriga a uma tolerância à contradição e à ambiguidade, a uma capacidade de não se manter em ideias ou definições rígidas, mas plurais. Podemos pensar que a chicana é híbrida no sentido de ocupar uma fronteira e ser, de certo modo, ela própria a fronteira. Como em Ayouch, essa hibridez é não essencializada e não categórica, constituindo-se sobretudo como um espaço onde podem ocorrer trocas entre sujeitos, culturas, grupos, corpos, zonas psíquicas... A ética do híbrido é a do encontro, a da relacionalidade. Da mesma forma, no âmbito epistemológico, a hibridez figura como uma zona intermediária que se produz — se quisermos pensar com Winnicott (1953/1975)Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In Winnicott, D. O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1953). — enquanto espaço potencial: de transformações, de criação, de novos símbolos. Esse “entre” é algo comum aos territórios de diferentes domínios do conhecimento, mas, ainda assim, não pertence a nenhum deles. É uma terceira coisa.

Penso que uma forma de entender a hibridez é vê-la como reconhecimento da diferença, sem apagamento da diversidade e sem desejo de resolver o conflito que o paradoxo da coexistência de opostos apresenta. Coabitarem, em um mesmo espaço ou ser, elementos díspares sem que nenhum deles se sobreponha, significa compreender a diferença como necessariamente relacional. Só há relação quando há convívio com a diferença, sem colonizar o diferente, “resolvendo” o conflito pela via da universalização.

Ainda que a hibridez, para Ayouch, faça parte de todo psiquismo, é na experiência dos grupos minoritários (de gênero, raça e classe) que essa hibridação se torna mais potencializada e evidente, por perturbar as fronteiras entre o inteligível e o ininteligível para a norma. Enquanto em seu magistral texto Gayatri Spivak (1985/2010)Spivak, G. (2010). Pode o subalterno falar? Editora UFMG. (Trabalho original publicado em 1985). se pergunta se pode o subalterno falar, Thamy Ayouch questiona como podemos escutar as categorias minoritárias se não reconhecermos o locus de nossa teoria ou de nós mesmos como analistas. Se uma psicanálise hibridada é relacional, então a transferência ocupa nela um papel ainda mais fundamental. Significa que o reconhecimento da subjetividade e do lugar social do analista, bem como o de sua teoria, não devem ser compreendidos como um obstáculo para a neutralidade analítica. Ao contrário, como propõe Donna Haraway, é entendendo o ponto a partir do qual nos situamos e produzimos saber que nos aproximamos da verdadeira objetividade. Abordar a psicanálise como um saber localizado evita que seus preceitos sejam tomados como dogmas. Compreender a situação política inerente a cada encontro analítico não será possível em uma clínica que se deseje “pura”: a psicanálise precisa, pelo contrário, de outros discursos para manter-se fiel às suas origens inovadoras. Pensar nesses termos implica o diálogo com outras teorias, tais quais as decoloniais, as antirracistas e as de gênero e queer.

O reconhecimento pela psicanálise de sua própria hibridez contribuiria para a escuta dos sujeitos minorizados pelos discursos dominantes. Retomo aqui a compreensão de Ayouch da identidade como relacional, ou seja, dependente do outro, da diferença. A identidade, portanto, sempre se opera em um espaço de encontro. Quanto à identidade psicanalítica, uma psicanálise interessada somente em si mesma seria, para o autor, antipsicanalítica, pois visaria a ser ou a ter uma identidade definida — o que difere de uma ética da transformação e do encontro.

Uma clínica psicanalítica capaz de escutar sujeitos minorizados não se fecha em si mesma e deve compreender o caráter inescapavelmente relacional do encontro analítico. Escutar esses sujeitos representa atentar ainda mais para a, muito viva, hibridez de toda análise. Para isso, não podemos nos furtar, enquanto analistas, ao reconhecimento de nossa própria inscrição social, bem como aquela de nossa teoria. Essa psicanálise hibridada não teme as transformações sociais nem com elas coincide, e, assim, pode ser capaz de escutá-las.

Referências

  • Anzaldúa, G. (2021). La conciencia de la mestiza/Rumo a uma nova consciência. In H. Buarque de Hollanda (Org.), Pensamento feminista: Conceitos fundamentais Bazar do tempo. (Trabalho original publicado em 1987).
  • Ayouch, T. (2019). Psicanálise e hibridez: Gênero, colonialidade e subjetivações Calligraphie.
  • Haraway, D. (2009). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 7-41. Recuperado em 28 jan. 2022, de <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773>. (Trabalho original publicado em 1988).
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
  • Spivak, G. (2010). Pode o subalterno falar? Editora UFMG. (Trabalho original publicado em 1985).
  • Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In Winnicott, D. O brincar e a realidade Imago. (Trabalho original publicado em 1953).
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2022
  • Aceito
    07 Fev 2022
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