Acessibilidade / Reportar erro

Tristezas invisíveis

Invisible sadness

Uma tristeza infinita. Xerxenesky, Antônio. Companhia das Letras, 2021. 256 págs

Esta é uma obra literária que interessa à psicanálise, à psiquiatria, à psicologia e às várias áreas que compõem o chamado campo da saúde mental, pois ela aborda questões concernentes à psicopatologia e à clínica e seus métodos. Em alguns desses métodos, a clínica está expressa na radicalidade de seu termo, Kliné, do grego, que significa cama. Ou seja, o exercício da clínica requer um movimento de se debruçar sobre o humano e suas determinações, extraindo junto com ele um saber sobre o pathos, suas paixões e padecimentos. A exposição a seguir busca apresentar algumas razões para um percurso nessa obra.

A leitura deste livro foi feita num ritmo descompassado. Num primeiro momento, quase sem movimentar meu corpo, percorri suas primeiras cem páginas, absorvida pela simplicidade de sua escrita e de seu tema envolvente. Essa simplicidade faz jus a um dos legados da literatura: seu tom de oralidade, de fala, conversação com o leitor. Depois, por vários dias, nenhuma folha de Uma tristeza infinita se movimentou. Dias depois, fui lendo no meu ritmo: em cada momento um pouco. Porém, as últimas dez páginas demoraram mais do que todo o restante da leitura até então realizada. Esse ritmo completamente desarmônico e aparentemente aleatório revelou uma obra de impacto.

Sobre a categoria literária dessa obra, podemos conceber certa complexidade. Pois, ao mesmo tempo que é uma ficção, não apresentando nenhum compromisso com a veracidade dos fatos, devido à excelência da verossimilhança, pode ser lida como uma espécie de documento sobre as práticas psiquiátricas, o contexto da psicanálise num tempo histórico-cultural. Também, em suas páginas se encontram referências importantes da literatura sobre o tema da melancolia, que serão citadas logo a seguir.

Arriscaria considerar que esse romance pode ser caracterizado como uma ficção documental. Uma questão que ficou presente da primeira até a última página dessa riqueza de literatura. Parece bastante evidente que essa obra contém certa especificidade de gênero literário. Como ficção ela não tem absolutamente nenhum compromisso com a verdade. Porém, não é por não ter o crivo de relato de fatos reais que ela não traz autenticidade de acontecimentos, dados e eventos. Vejamos.

O enredo da obra transcorre nos anos 1950, num vilarejo da Suíça. Nicolas, protagonista, é um jovem psiquiatra francês que trabalha numa clínica para pacientes graves. A maioria deles padece de traumatismos pós-guerra, produzidos pela Segunda Guerra Mundial.

Aqui é plausível algumas referências às guerras nas elaborações da psicanálise, fundamentalmente, aquelas apresentadas por Freud sobre os impactos psíquicos produzidos na subjetividade. Essas correlações são expostas especialmente nos textos “Introdução à psicanálise das neuroses de guerra” (1919/2010a) e “Além do princípio do prazer” (1920/2010b).

Neste último texto, os impactos psíquicos produzidos pela guerra, através da repetição dos sonhos traumáticos que sempre retornam à situação do acidente (Freud, 1919/2010b, p. 169Freud, S. (2010b). Mais além do princípio do prazer. In O Homem dos Lobos e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1920).) levaram Freud, juntamente com outros fenômenos, a uma das viradas metapsicológicas fundamentais à psicanálise. Ou seja, a formulação de uma outra concepção do funcionamento psíquico com o conceito de pulsão de morte, na sua segunda teoria pulsional.

Esse tema das neuroses de guerra numa correlação com o traumático, como da repetição de sonhos traumatizantes é um tema recorrente nesse livro de Xerxenesky. O autor faz referências aos estudos de Freud sobre as condições psíquicas dos soldados da Primeira Guerra Mundial. Todos voltaram impactados, porém alguns processam o luto e outros ficam presos em um estado desolador, recaindo numa melancolia. É também a partir dessa psicopatologia que Xerxenesky desenvolve sua narrativa: desde as formas de tratamentos às constituições históricas dos sofrimentos dos pacientes, como o próprio padecimento de Nicolas, o protagonista-psiquiatra.

Uma das máximas clínicas está presente na obra: O clínico não está isento do que trata. Também é afetado pelas histórias que escuta, acompanha, testemunha. Não há neutralidade no campo clínico. Essa é uma das contribuições radicais de Freud para as ciências e práticas clínicas.

Na clínica em que Nicolas trabalha, o método empregado é a psicanálise, “a cura pela fala”. Por meio da psicanálise, o jovem psiquiatra vai mostrando as intervenções com os pacientes, desde os relatos de seus sonhos aos eventos traumáticos que produziram tais sofrimentos. Nesse universo, é contextualizado o histórico de diversos tipos de tratamentos: o eletrochoque e lobotomia, como o momento da introdução das medicações como a clorpromazina.

A obra apresenta referências importantes sobre o tema da melancolia como ao clássico Anatomia da melancolia, de Robert Burton (2011)Burton, R. (2011). Anatomia da melancolia. Editora UFPR., e ao texto de Freud “Luto e melancolia” (1917[1915]/2011). Também há referências acerca dos tratamentos historicamente empregados para essa psicopatologia, uma das mais antigas na humanidade: “essa tristeza que não tem fim”.

Uma das passagens mais marcantes sobre o tema da melancolia é uma analogia com a radiação. Isso ocorre após um atendimento a uma paciente que havia trabalhado numa base secreta do Projeto Manhattan em que foram construídas as bombas atômicas jogadas em Hiroshima e Nagasaki. Ela comenta da radiação que mata silenciosamente. Nesse momento, Nicolas pensa na melancolia e em todas as dores e destruições invisíveis que produzem seus efeitos.

A composição de um elemento radioativo age e, ao mesmo tempo, sua composição não tem peso, medida, diâmetro. Assim é uma dor psíquica como a da melancolia, podendo se manifestar no corpo, mas sua origem não tem uma localização orgânica.

Uma tristeza infinita em sua forma narrativa ficcional-documental é uma obra que apresenta um debate muito atual sobre a necessidade de encontrar materialidade orgânica como origem e manifestação dos sofrimentos psíquicos. Talvez o melhor lugar palpável ainda sejam as palavras. Afinal, a linguagem escrita e sonora também produz efeitos radioativos!

Referências

  • Burton, R. (2011). Anatomia da melancolia Editora UFPR.
  • Freud, S. (2010a). Introdução à psicanálise das neuroses de guerra. In O Homem dos Lobos e outros ensaios Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1919).
  • Freud, S. (2010b). Mais além do princípio do prazer. In O Homem dos Lobos e outros ensaios São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1920).
  • Freud, S. (2011). Luto e Melancolia. In Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1917[1915]).
Editor/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    26 Ago 2022
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com