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O vivenciar a situação de ser com câncer: alguns desvelamentos

Resumos

Este estudo teve como propósito desvelar o significado de ser-com-câncer para pacientes oncológicos, buscando compreendê-los nesse vivenciar, vislumbrando a descoberta de novos caminhos para o cuidar. Estudo fundamentado na metodologia da pesquisa qualitativa - modalidade fenomenológica, realizado junto a pacientes oncológicos, cientes do diagnóstico de câncer, internados em uma instituição especializada em oncologia. Compreende-se, aqui, que o vivenciar uma situação de doença grave como o câncer repercute significativamente na vida do Ser. As restrições físicas e psíquicas decorrentes da doença implicam em mudanças significativas e podem levar a pessoa a tornar-se dependente ou afastar-se do convívio social. Além disso, sofre com os desajustes financeiros e se depara com a necessidade de interromper ou desistir de projetos importantes para sua vida. A compreensão do vivido pela pessoa com câncer sinaliza para a relevância de transformações na filosofia de seu cuidado, incluindo a necessidade de discutir e compartilhar sentimentos.

enfermagem oncológica; cuidados paliativos; humanização da assistência


This article aims to reveal the meaning of being-with-cancer to oncologic patient, trying to comprehend them in their living, discerning the discovery of new ways to deliver care. This study is based on the qualitative research methodology - phenomenological modality, realized with cancer patients who were aware of their diagnosis and were hospitalized at an institution specialized in oncology. Living a serious disease like cancer reverberates on the person's life in a significant way and affects his/her entire Being. The physical and psychical restrictions deriving from the disease imply significant changes, which may make the person become dependent or withdraw from social companionship. Moreover, the person suffers due to financial disarrangements and may come across the need to interrupt or give up of important life projects. The comprehension of what is lived by the person with cancer indicates the relevance of transformations in the philosophy of his/her care, including the need to discuss and share feelings.

oncologic nursing; hospice care; care humanization


Este estudio tuvo como propósito revelar el significado de estar con cáncer para pacientes oncológicos, buscando comprenderlos en esa vivencia y discerniendo nuevos caminos para el cuidado. Un estudio fundamentado en la metodología de la investigación cualitativa - modalidad fenomenológica, fue realizado junto a pacientes oncológicos, conscientes del diagnóstico de cáncer, internados en una institución especializada en oncología. El vivir de una situación de enfermedad grave como el cáncer repercute significativamente en la vida de la persona, afectando todo su Ser. Las restricciones físicas y psíquicas como consecuencia de la enfermedad implican en cambios significativos y pueden llevar a la persona a quedarse dependiente o apartarse de la convivencia social. Además, sufre con los desajustes financieros y se ve con la necesidad de interrumpir o desistir de proyectos importantes para su vida. La comprensión de lo vivido por la persona con cáncer señala para la relevancia de transformaciones en la filosofía de su cuidado, incluyendo la necesidad de discutir y compartir sentimientos.

enfermería oncológica; cuidados paliativos; humanización de la atención


ARTIGO ORIGINAL

O vivenciar a situação de ser com câncer: alguns des-velamentos1 1 Trabalho extraído de Dissertação de Mestrado

Karina Machado SiqueiraI; Maria Alves BarbosaII; Magali Roseira BoemerIII

IEnfermeira, Mestre, Professor Assistente, email: karinams@fen.ufg.br

IIEnfermeira, Doutor, Professor Titular da Faculdade de Enfermagem, da Universidade Federal de Goiás, Brasil

IIIEnfermeira, Doutor, Professor Associado Aposentado da Escola de Enfermagem, da Universidade de São Paulo, Brasil

RESUMO

Este estudo teve como propósito desvelar o significado de ser-com-câncer para pacientes oncológicos, buscando compreendê-los nesse vivenciar, vislumbrando a descoberta de novos caminhos para o cuidar. Estudo fundamentado na metodologia da pesquisa qualitativa modalidade fenomenológica, realizado junto a pacientes oncológicos, cientes do diagnóstico de câncer, internados em uma instituição especializada em oncologia. Compreende-se, aqui, que o vivenciar uma situação de doença grave como o câncer repercute significativamente na vida do Ser. As restrições físicas e psíquicas decorrentes da doença implicam em mudanças significativas e podem levar a pessoa a tornar-se dependente ou afastar-se do convívio social. Além disso, sofre com os desajustes financeiros e se depara com a necessidade de interromper ou desistir de projetos importantes para sua vida. A compreensão do vivido pela pessoa com câncer sinaliza para a relevância de transformações na filosofia de seu cuidado, incluindo a necessidade de discutir e compartilhar sentimentos.

Descritores: enfermagem oncológica; cuidados paliativos; humanização da assistência

INTRODUÇÃO

O câncer tem afetado parcela expressiva da população mundial e se configurado como uma das principais causas de morte. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, mais de 10 milhões de pessoas recebem diagnóstico de câncer todos os anos e, desses, aproximadamente 6 milhões chegam a óbito, representando 12% das causas de morte em todo o mundo(1).

No Brasil, as estimativas para o ano 2006 apontavam que ocorreriam 472 mil casos novos de câncer, sendo 234 mil casos novos para brasileiros do sexo masculino e 238 mil para sexo feminino(2). Apesar dos diversos avanços tecnológicos, obtidos pela moderna oncologia e possibilitarem maior índice de cura das neoplasias malignas, as taxas de incidência e mortalidade chamam a atenção das autoridades em saúde pública.

Acredita-se que o número expressivo de pessoas que busca instituições de saúde para o tratamento de neoplasias malignas deva conduzir todos à postura reflexiva em relação à forma com que vêm sendo cuidadas pelos profissionais de saúde. Apesar de conceitualmente visar a dignidade e totalidade do ser humano, ao se observar a realidade das instituições de saúde, percebe-se que o processo de cuidar adquiriu, ao longo do tempo, características meramente tecnicistas e reducionistas. O profissional de saúde, muitas vezes, assume postura autoritária e defensiva, enquanto as ações de cuidado parecem perder seu caráter originariamente interativo, onde a pessoa a ser cuidada participa e torna-se co-responsável pelas condutas tomadas em prol de sua saúde.

O cuidar em saúde necessita resgatar a essência do que significa cuidado, devendo ser desenvolvido de forma multidimensional, envolvendo, inclusive, a habilidade de reconhecer a pessoa que necessita desses cuidados como um ser integral. O cuidado precisa caracterizar-se como atitude, um modo-de-ser e não apenas tarefa que ocorre em determinado momento. Constituindo-se um modo-de-ser, o cuidado se traduz em fenômeno ontológico-existencial básico e, fazendo parte da natureza e da constituição do ser humano, revela sua maneira concreta de ser-no-mundo-com-os-outros(3-4).

O câncer é doença que, historicamente, vem sendo associada a experiências saturadas de sofrimento e dor, seguidas de morte. Devido ao estigma de morte que envolve a doença, ao se descobrir no mundo com câncer, o Ser deixa de existir em seu mundo cotidiano e passa a viver em outra dimensão de mundo, na qual a possibilidade de morte parece se revelar como algo inevitável, então, passa a almejar não somente o cuidado com a doença e suas manifestações físicas, mas anseia também por ações que expressem solicitude e compreensão em relação ao seu existir doente(5).

A percepção social da doença geralmente reflete a associação do câncer a doença fatal, vergonhosa e comumente considerada como sinônimo de morte, marginalizando o paciente e cultivando sentimentos pessimistas em relação à doença. Considerando a preocupação com a atenção ao Ser que adoece com câncer, em relação ao cuidado que recebem dos profissionais de saúde e sabendo do interesse de enfermeiros, que atuam em um serviço especializado em oncologia, em oferecer cuidado que contemple as necessidades de seus pacientes, constituiu-se proposta deste estudo desvelar o significado de ser-com-câncer para pacientes oncológicos, buscando compreendê-los nesse vivenciar, vislumbrando a descoberta de novos caminhos para o cuidado a essas pessoas.

O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Trata-se de estudo fundamentado na metodologia da pesquisa qualitativa modalidade fenomenológica, realizado em instituição especializada no tratamento do câncer, localizada no município de Goiânia, GO.

Considerando que a experiência de adoecer com câncer é fenômeno detentor de diferentes particularidades e que somente o Ser que vivencia essa situação é capaz atribuir o significado de ser-com-câncer e revelar sua experiência, este estudo foi realizado junto a onze pacientes oncológicos, cientes do seu diagnóstico de câncer, que se encontravam internados na instituição de saúde selecionada para a pesquisa, durante o período de coleta de dados. Esses pacientes foram entrevistados por uma das autoras.

O número de participantes do estudo foi determinado pelo critério da saturação dos dados(6), adotado em pesquisas de natureza qualitativa, onde as convergências e divergências das informações coletadas sinalizam para o encerramento da coleta de dados. Essas convergências são denominadas como o invariante e expressam a essência do fenômeno em estudo(7).

A pesquisa foi desenvolvida segundo as recomendações propostas pelo Conselho Nacional de Saúde, Resolução 196/96(8). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Médica Humana e Animal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (Protocolo CEPMHA/HC/UFG n° 029/2005).

A coleta de dados foi realizada entre os meses de junho a agosto de 2005, por meio de entrevistas gravadas, autorizadas pelos pacientes e norteadas pela seguinte questão: para você, o que significa existir com câncer?As entrevistas foram conduzidas segundo a abordagem fenomenológica, o que pressupõe um sentido de troca de experiências, na qual o cuidado, o zelo e o respeito para com a pessoa devem estar sempre presentes(9).

A análise dos dados baseou-se no "Método da Análise Qualitativa do Fenômeno Situado" (10), onde são propostos quatro momentos para análise das descrições(6,10), os quais foram rigorosamente seguidos neste estudo.

Primeiramente, foi realizada leitura completa das descrições, com o intuito de obter um sentido do todo, buscando captar os significados atribuídos pelo sujeito da mesma forma como ele os atribuiu. Em seguida, realizou-se nova leitura das descrições, de maneira mais lenta e atentiva, identificando as unidades de significado. Após identificar tais unidades nos discursos, todos foram percorridos, buscando apreender o significado nelas contido. E, finalmente, realizou-se a categorização temática ou síntese das unidades de significado, buscando chegar à estrutura, à essência do fenômeno. Essa fase de síntese ou categorização também é entendida como tematização, que significa tomar seriamente e estudar de forma sistemática um assunto(10).

No decorrer de cada um desses momentos da análise, procurou-se questionar incessantemente as descrições advindas das falas sobre o existir com câncer, buscando, assim, a compreensão do fenômeno. A análise compreensiva dos discursos permitiu a apreensão de algumas facetas do fenômeno ser-com-câncer, segundo os significados atribuídos pelos pacientes oncológicos, as quais apontam para a essência de vivenciar essa situação.

A fenomenologia, enquanto referencial teórico-metodológico, possibilitou o encontro com as vivências do Ser com câncer, compreendendo-os em seu sentido existencial de ser-no-mundo-com-os-outros e buscando apreender a essência de seu existir com câncer, utilizando como ponto de partida suas próprias experiências, atribuições de significado e visão de mundo.

Enquanto movimento filosófico, a fenomenologia constituiu-se uma das principais correntes de pensamento do século XX, surgindo a partir das concepções de Edmund Husserl (1859-1938) e desenvolvida, sobretudo na França e Alemanha, por seus seguidores(11). Husserl propunha, por meio da fenomenologia, a "volta às coisas mesmas", à análise das essências, entendidas como unidades ideais de significação, elementos que constituem o sentido de nossa experiência(11).

No presente estudo, as falas sinalizavam claramente para a questão do existir humano, para as perspectivas futuras ou projetos de vida, para o redimensionamento da existência e, sobretudo, para a questão da finitude. Essas dimensões orientaram, neste trabalho, recorrência ao pensamento filosófico de Martin Heidegger, por questionar incessantemente a questão do Ser e trata, fundamentalmente, da questão da finitude do homem.

Heidegger considera o homem como ser-aí ou Dasein, que significa, necessariamente, um ser no mundo, ser consigo mesmo e com o outro, que interroga a si mesmo em busca de sua verdade. Segundo esse referencial, o Ser só pode ser determinado a partir de seu sentido como ele mesmo, ou seja, a compreensão do Ser somente é possível no contexto de seu próprio mundo, suas experiências e vivências(12).

Além da característica de ser-no-mundo, o ser-aí é um ser-para-a-morte. A existência não é dada ao homem como um caminho bem arranjado ao fim do qual está a morte, mas a morte, como possibilidade, pode atravessar sua existência a qualquer momento. A morte é entendida como a possibilidade inalienável de poder não mais estar presente, uma possibilidade ontológica que o Dasein tem que assumir; com ela o ser-aí completa o seu curso. Assim sendo, morrer não é um evento; é um fenômeno a ser compreendido existencialmente(12).

Essas considerações, entendidas como as principais idéias referentes ao pensamento de Heidegger, permearam o pensar durante o desenvolvimento da análise deste estudo. Tendo a fenomenologia como referencial teórico-metodológico, optou-se por organizar a análise em categorias temáticas. Descreveu-se, a seguir, alguns des-velamentos realizados por meio deste estudo, identificando as falas com nomes fictícios.

ANÁLISE COMPREENSIVA

Mudanças decorrentes do existir com câncer

As mudanças nos hábitos de vida e a necessidade de deixar de fazer o que proporciona prazer pela vida são ressaltadas pelos pacientes como dificuldades decorrentes do existir com câncer. A referência de que suas atividades passaram a se restringir aos ambientes da própria casa ou do hospital, expressa a exclusão do convívio social experienciada pelos pacientes.

Você se sente triste por você não estar podendo compartilhar, sair com seus amigos, não pode jogar uma bola. Não pode ir num cinema por causa do tumulto e quando você vai no shopping e você está com a máscara ou com o cabelo caindo. (Rodrigo); É difícil responder essa pergunta, tem muita coisa que acontece com a gente depois que a doença aparece e muda tudo, sabe? Minha vida mudou muito, tive que parar de estudar [...] Eu sinto falta da minha vida de antes, eu não sinto que essa aqui sou eu, é como se eu tivesse começado outra vida depois do câncer, uma vida bem mais difícil, mais sofrida. (Roberta).

As mudanças dificultam a situação vivida pelo Ser com câncer e intensificam os sentimentos de angústia e incerteza em relação às suas possibilidades enquanto Ser. Esses sentimentos relacionam-se à condição do ser humano de "estar-lançado" no mundo, um modo de ser que se refere às suas próprias possibilidades existenciais(12).

A mudança na imagem corporal é relatada como uma das grandes dificuldades enfrentadas pela pessoa com câncer. Situações constrangedoras são destacadas pelos pacientes, os quais referem não ser fácil conviver com as mudanças sofridas durante o tratamento.

Agora, viver com essa doença é muito difícil [...] Na época fez a colostomia, então eu tive que passar a usar bolsa. Eu fiquei meio constrangido, eu nunca pensava, eu já tinha sofrido tanto e ainda ter que usar essa bolsa. Mas aí, devagarinho a gente vai adaptando. Não é nada fácil, a gente pode dizer a verdade, né? Não é fácil. (Luís)

Outro aspecto ressaltado foi a discriminação procedente da falta de informação das pessoas sobre a etiologia do câncer, suas manifestações clínicas mais comuns e efeitos colaterais decorrentes do tratamento. Algumas falas expressam os sofrimentos psíquicos e sociais decorrentes do preconceito e indiferença vividos pelos pacientes.

Eu sinto assim, as pessoas às vezes me olham com indiferença, igual no colégio, no colégio chegou a sair um boato que eu tava com AIDS. Meu cabelo tava caindo, eu tinha emagrecido bastante. [...] As pessoas te olham diferente, pensam que é uma doença que pode pegar. Uma vez eu fui no shopping e sentei na mesa, na praça de alimentação, e tinha duas moças perto. Eu tava com o cabelo bem baixo e de máscara, aí eu tava sentado e elas começaram a me olhar, ficaram olhando e depois saíram e mudaram de mesa. (Rodrigo); Agora uma coisa que a gente questiona muito é a discriminação, você chega nos lugares, as pessoas se afastam, você está de máscara, pensam que você arrancou os dentes. Quando você está sem cabelo e anda com lenço, muitos amigos seus se afastam, então complica muito. Ainda hoje essa discriminação acontece, na maioria das vezes, ainda acontece. (Cristiana)

O câncer sempre foi percebido como algo vergonhoso, contagioso e sem cura, sendo enfermidade tradicionalmente relegada pela sociedade(13). Enquanto realidade na vida de uma pessoa, o câncer pode afetar significativamente sua autopercepção, seu comportamento e suas relações sociais. Na maioria dos casos, a partir do diagnóstico, as pessoas começam a ser tratadas de forma diferente.

Nesse contexto, destaca-se, aqui, a importância do convívio social para o ser humano, remetendo à compreensão heideggeriana de que o ser-aí é um ser-com, não sendo possível desvincular o Ser daqueles com os quais mantém suas relações no mundo. O ser-com é uma característica existencial do ser-aí, pois não é possível ao homem ser só no mundo, não estabelecer relações com os outros(4).

O sofrimento decorrente da doença, o déficit na realização do autocuidado e a dependência de outras pessoas na execução das atividades do cotidiano foram ressaltados como situações que provocam sentimentos de insuficiência e inferioridade.

Eu tenho essa fé, eu acho que um dia eu vou sarar e vou voltar às minhas atividades, voltar a ser um homem de verdade porque no momento eu não me sinto um homem completo. Às vezes, tem dia que eu fico tão ruim que até para virar na cama, se minha esposa não me virar, eu não dou conta. A doença vai deixando a gente cada dia mais debilitado, mas logo eu supero (Carlos); Mas para mim tem sido muito complicado lidar com essa doença sabe? È muito difícil ter câncer, você se sente muito inferior, sente como se a vida realmente estivesse acabando (Marta).

Dentre as mudanças vivenciadas pelos pacientes com câncer, a impossibilidade de trabalhar destacou-se como algo que intimida e marginaliza. O trabalho é uma das maneiras pela qual o ser humano se expressa, se identifica e se realiza enquanto ser-no-mundo. A incapacidade física para o desenvolvimento das atividades cotidianas de trabalho provoca sentimentos que deprimem a qualidade do seu existir.

Mas eu peço muito a Deus que logo, logo Ele me cure e eu volte a fazer o que eu fazia antes, porque o trabalho que eu fazia era um serviço muito perigoso, mas eu gostava. (Carlos); A minha vida mudou muito, mudou bastante depois dessa doença. Agora, mesmo eu melhorando eu não vou poder trabalhar naquele serviço. Eu tenho fé em Deus que eu tô recuperando passo a passo, mas eu não vou poder trabalhar com o gado que eu mexia mais. Eu vou ter que mudar minha vida radicalmente, vou ter que passar a morar na cidade [...] E mudar o ritmo de vida totalmente, né? Vou ter que, sei lá, comprar roupa e revender, porque meu estudo é pouco, né? Vou ter que tentar viver de outro jeito. (Eduardo)

Além da falta de realização pessoal, obtida por meio do trabalho, as dificuldades financeiras decorrentes desse ausentar-se da vida laboral preocupam, sobremaneira, as pessoas durante o período de tratamento, especialmente para aqueles dos quais a família depende da renda, conforme explicitado a seguir.

É muito difícil ficar sem trabalhar sabendo que seus filhos precisam do sustento. Ainda bem que a minha mulher ajuda em casa também, ela trabalha em confecção, o salário é pouco, mas ajuda. (Paulo); Eu não tô trabalhando, lá em casa ninguém trabalha, ninguém está empregado, a gente vive com uma pequena renda mesmo, muito pouco. E inclusive se eu achasse uma pessoa que me desse uma força para ver se eu consigo aposentar seria muito bom. O que dificulta é eu precisar de trabalhar e não poder [...] Eu não tenho como trabalhar, eu sinto falta de apetite, fraqueza, mal-estar e, às vezes, dor também. (Luís)

Em uma sociedade capitalista como esta, a impossibilidade de trabalhar, suprir suas próprias necessidades e manter a família em boas condições financeiras faz com que o ser humano se sinta descartável, um ser-dependente e sem autonomia, um corpo que não atende mais às exigências produtivas de uma sociedade de consumo(14).

Existindo com câncer: o vivenciar de medos e sofrimentos

O discurso dos pacientes em relação ao seu existir com a doença evidencia o sofrimento por ela proporcionado. A aproximação a essas pessoas permitiu compreender que a doença provoca repercussões na vida do Ser como um todo e não apenas em seu sendo-doente. A vivência de medos e sofrimentos passa a integrar o existir humano e os agravos decorrentes da doença vão se tornando, com o passar do tempo, mais freqüentes e incapacitantes.

Um dos maiores medos e dificuldades enfrentados pelo paciente que vivencia a situação de adoecer por câncer é a experiência de dor física. As dores são lembradas pelo Ser com câncer como algo que proporciona muito sofrimento físico e que pode também provocar situações de descontrole psíquico extremo, levando inclusive ao suicídio.

No começo a perna doía demais, aí eu tomava remédio e não adiantava. Aí eu ficava só deitada na cama, eu só vinha no hospital e voltava, andava de cadeira de roda [...] Foi na época que começou a dor meu joelho demais que eu pulei (tentou suicídio) porque o joelho doía tanto, tanto sabe? Eu batia minha cabeça no chão, batia mesmo, de dor no joelho, doía mesmo, você via o joelho aumentando, parecia que ia explodir dentro de mim (Gabriela).

As tentativas de suicídio revelam a incapacidade do Ser em suportar a sobrecarga de conviver com um problema de saúde tão grave e incapacitante. O suicídio é uma das principais causas de morte de adultos jovens e, apesar de ser estudado em quase todo o mundo, permanece ainda como um grande enigma para as ciências que estudam o comportamento humano. Entretanto, sob a perspectiva heideggeriana, é a vontade do Dasein em não ser mais aí no mundo e essa compreensão pode se constituir como caminho para a reconstrução e o redimensionamento de suas perspectivas existenciais(15).

Em muitos casos, as condutas propostas para tratamento do câncer tornam-se agressivas e provocam reações adversas no organismo. A quimioterapia foi lembrada pelos pacientes como tratamento difícil de suportar, pois os agentes quimioterápicos provocam muitos efeitos colaterais.

Porque antes de eu tomar a quimioterapia, eu me sentia até bem, eu só sentia dores nas articulações. Depois que eu comecei a quimioterapia, eu comecei a me sentir muito mais mal, sentia dores, fadiga, cansaço e me senti um pouco rejeitado por não poder receber visita nenhuma, porque o médico me proibiu de receber visitas em casa (Rodrigo); Agora o que tem sido mais difícil é a quimioterapia, eu no início, nas primeiras, acho que na quarta sessão, eu pensei em desistir. Achava que não ia agüentar, que ia morrer se continuasse (Marta).

Ao mesmo tempo em que percebem e sofrem com os efeitos colaterais provocados pelo tratamento, os pacientes ressaltam a importância da quimioterapia diante da sua busca maior que é ser novamente um Ser sem a doença(16). Os discursos a seguir expressam essa consciência dos pacientes sobre a necessidade do tratamento quimioterápico.

[...] Nessa última sessão eu estou até sentindo melhor um pouco, tomei uns remédios bom para o enjôo e não vomitei muito. Meu apetite é que continua ruim, não gosto de comer nada, perdi a graça com tudo quanto é comida. E olha que eu era boa para comer, mas a quimioterapia acaba com a gente mesmo. Mas tem que fazer né, não tem outro recurso (Roberta); Às vezes eu fico preocupado com essas reações, com medo de precisar parar o tratamento, então eu faço força para não passar mal. Porque eu sei que se eu parar pode ser o caso de eu até morrer por causa dessa doença e eu não quero morrer não (Luís).

Muitos agentes quimioterápicos causam efeito citotóxico nas células da raiz dos cabelos e pêlos, afetando a rápida proliferação dessas células, inibindo parcial ou completamente seu metabolismo e atividade mitótica, causando enfraquecimento e queda dos cabelos(17).

A perda dos cabelos foi lembrada pelos pacientes como um dos efeitos colaterais mais relevantes no que diz respeito ao impacto do tratamento em suas vidas. A percepção da própria imagem como a de uma pessoa feia, diferente daquela que existia antes da doença e não condizente com padrão de beleza socialmente aceito, provoca repercussões psíquicas e sociais importantes na vida do ser-com-câncer em tratamento quimioterápico.

O mais difícil é o cabelo porque você acaba ficando com vergonha das outras pessoas, eu tinha o cabelo bem comprido, era bonito meu cabelo e agora está assim curtinho e ralo. Às vezes quando eu paro a quimioterapia ele começa a nascer, mas logo eu volto a fazer e ele cai de novo. Eu sei que isso não é importante perto da gravidade da doença, mas é uma coisa que me abala, me faz sentir feia, fico com vergonha, fico chateada (Roberta).

Apesar de não se constituir reação adversa clinicamente importante, a queda de cabelos induzida pela quimioterapia pode ser considerada, por alguns pacientes, como o mais devastador efeito colateral decorrente do tratamento. A alopecia pode afetar negativamente a imagem corporal da pessoa, trazendo muito sofrimento e alterando suas relações interpessoais e a vida social como um todo(16-17).

O sentimento de medo em relação à morte é vivenciado no momento do diagnóstico e acompanha o ser-com-câncer durante toda a sua trajetória de enfrentamento da doença. A morte se constitui no fato mais assustador da vida, frente ao qual não há controle ou previsão(12). No presente estudo, o medo da morte foi relacionado pelas pessoas com a impossibilidade de realizar projetos de vida como acompanhar o crescimento dos filhos, conhecer netos, usufruir de aposentadoria e muitos outros. Alguns depoimentos trazem explicitamente o medo da morte.

Eu já tinha depressão antes, mas com o diagnóstico de câncer piorou... porque aí você sente a ameaça de morte, então piora. A gente pensa que câncer é o mesmo que morte, eu pensava assim, até mesmo alguns profissionais de saúde pensam assim (Gabriela); Mas eu ainda sinto medo, sinto medo do transplante, porque eu já fiz e foi a pior parte do tratamento. [...] Na hora da infusão da medula, eu fiquei pensando: meu Deus, será que é hoje que eu vou morrer? (Cristiana); Mas eu sabia que precisava operar, então eu pensei: Ou eu fico sem um pedaço de mim ou eu fico sem a minha vida, porque o câncer mata mesmo se você não tratar. [...] Eu não estou preparada para a morte, sabe? Tenho medo de morrer porque eu acho que não está na hora. Ainda não tenho netos e quero muito conhecer meus netos (Lúcia).

A partir da constituição fundamental do Dasein, o fenômeno da morte se revela como ser-para-o-fim. É uma possibilidade ontológica que o próprio Dasein precisa assumir, configurando-se como a possibilidade de poder não mais estar presente(12). Compreendido dessa forma, o fenômeno da morte deixa de ser visto como mero findar ou desaparecer e assume suas características humanas, existenciais.

Apesar dos avanços obtidos em relação ao tratamento do câncer, o medo de que ocorram recidivas da doença também se destaca no discurso dos pacientes como algo que preocupa e causa sofrimento. A angústia está interligada ao medo de que a doença retorne e possa levar à morte, caracteriza-se pelo não conhecimento daquilo que causa angústia ou que se teme. Na angústia o que ameaça o Dasein ou a existência do ser é algo que não está em parte alguma, aquilo que não possui familiaridade com seu cotidiano, o que é inesperado(12).

A fragilidade decorrente da possibilidade de recidivas é algo que proporciona momentos de muita ansiedade. Algumas falas nos permitem identificar esses sentimentos.

Mas fazer o quê, eu sei que eu preciso continuar, senão eu vou acabar morrendo, essa doença vai acabar me levando. Eu continuo por causa disso. [...] Eu queria muito ver os dois casados, com filhos, mas eu tenho medo disso não acontecer. Eu sei que mesmo tratando a doença pode voltar, então eu tenho medo (Marta); O mais difícil dessa doença é isso, você não sabe quando vai ficar livre dela ou se vai acontecer de voltar. Esse medo da doença voltar é difícil, preocupa muito a gente (Paulo).

Importantes reflexões referentes ao Ser-doente lembram que a doença provoca agressão, uma solução de continuidade entre o viver anterior e o presente, tornando o futuro incerto(18). Essa incerteza faz parte do cotidiano e aflige, em particular, as pessoas que se encontram doentes com enfermidade grave como o câncer. O medo de não retornarem a viver como antes ou de que não consigam superar esse momento se faz presente e proporciona sentimentos que deprimem a qualidade da existência do Ser da pessoa com câncer.

Ao conviverem com essas pessoas e se aproximarem desses sentimentos, os profissionais de saúde necessitam resgatar o cuidado em seu sentido originário, um modo-de-ser com solicitude que possibilite o compartilhar de experiências e, quando possível, o esclarecimento das dúvidas e incertezas que os angustiam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o referencial heideggeriano, o homem é o único ente capaz de refletir sobre o seu Ser e questioná-lo. O homem se manifesta pela fala; é na discursividade que ele tem a possibilidade de revelar o sentido do ser e do existir humanos. Apesar de não consistir em uma tarefa fácil, as pessoas que concordaram em participar deste estudo se dispuseram a descrever os significados que atribuem à sua situação de doença. Assim, por meio de suas falas e de formas não-verbais de comunicação, co-participaram e permitiram melhor compreensão do fenômeno existir com câncer.

A partir do momento que o Ser se depara com a realidade de existir com uma doença grave, diversos projetos existenciais tendem a ser anulados ou modificados pela situação vivida. As atividades cotidianas são comprometidas e as debilidades físicas provocam mudanças significativas e podem levar a pessoa a se tornar dependente em diversos aspectos. Pode-se compreender que o Ser doente com câncer, a partir de nova perspectiva, passa a promover novo redirecionamento para seu viver, entretanto, as mudanças não se mostram fáceis ou desejáveis ao Ser.

A realização do presente estudo possibilitou a aproximação do mundo-vida dos pacientes com câncer e, durante o desenvolvimento do mesmo, a discriminação da sociedade foi referida pelos pacientes, despertando especial atenção. Percebe-se o quanto o câncer, enquanto realidade na vida de uma pessoa, pode afetar tanto sua autopercepção e seu comportamento, quanto suas relações sociais. Além dos inúmeros sofrimentos provocados pela doença, o estigma que ainda envolve o câncer é responsável pela manutenção de preconceitos que aumentam o sofrimento e desgastam intensamente o ser humano.

Apesar dos avanços obtidos em relação ao tratamento do câncer, o medo da morte se revelou como algo que acompanha a pessoa durante toda sua trajetória de enfrentamento da doença. Além disso, a possibilidade de que ocorram recidivas também se destacou no discurso dos pacientes como algo que preocupa e causa sofrimento. A angústia está interligada ao medo de que a doença retorne e possa levar à morte.

Tendo como pressuposto a complexidade do ser humano e a subjetividade que envolve o processo saúde-doença, acredita-se que o desenvolvimento desse estudo permitiu o desvelamento de algumas facetas do Ser pessoa com câncer, incluindo seus medos e perspectivas existenciais, possibilitando o desenvolvimento de postura reflexiva por parte dos profissionais e colaborando com a integralidade da assistência aos pacientes oncológicos ao resgatar o autêntico sentido das ações de cuidar.

A compreensão do vivido pela pessoa com câncer sinaliza para a necessidade de discutir sentimentos, compartilhar suas dores, tristezas e preocupações, aliviar as tensões geradas pela situação permeada por incertezas e temores. O cuidado às pessoas com câncer implica em desenvolver a sensibilidade de olhar o paciente em sua fragilidade, como alguém dotado de consciência da situação em que se encontra e que necessita de cuidados direcionados para sua esfera existencial e não somente para seu corpo físico.

Torna-se necessário que os profissionais assumam o cuidado com solicitude, orientados pela consideração e a paciência, tendo como base o sentido de temporalidade dessas duas palavras. A consideração seria a vivência solícita com olhar no passado, nas experiências já vividas, enquanto que a paciência é a vivência solícita com um olhar para o futuro, o que ainda está por vir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 23.6.2006

Aprovado em: 31.5.2007

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  • 1
    Trabalho extraído de Dissertação de Mestrado
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Recebido
      23 Jun 2006
    • Aceito
      31 Maio 2007
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