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Particularidades do planejamento familiar de mulheres portadoras de transtorno mental

Resumos

Objetivou-se identificar o perfil gineco-obstétrico de mulheres portadoras de transtorno mental, verificar a associação entre diagnóstico médico de transtorno mental e uso correto/incorreto dos métodos anticoncepcionais e verificar diagnósticos, frequência de internações e variedades de medicamentos consumidos. Participaram 255 mulheres atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial. Os dados foram coletados por meio de revisão de prontuário e entrevista estruturada. A hereditariedade de alguns transtornos mentais, internação psiquiátrica como causa de interrupção da anticoncepção, uso de anticoncepcionais que independem do controle pessoal, interação medicamentosa entre psicotrópicos e anticoncepcionais orais, participação do parceiro e/ou de familiares na escolha reprodutiva e prática anticonceptiva constituíram particularidades no planejamento familiar desse público-alvo. Não houve associação estatística entre os diagnósticos médicos e uso correto ou incorreto dos métodos anticoncepcionais. Mulheres portadoras de transtorno mental possuem demanda para atendimento de planejamento familiar específico e integral.

mulheres; transtornos mentais; planejamento familiar


The study aimed to identify the gynecological and obstetric profile of women with mental disorders; to verify the association between medical diagnosis of mental disorder and correct/incorrect use of contraceptive methods, and verify diagnoses, frequency of hospitalizations and varieties of medication consumed. Participants were 255 women who received care in a Psychosocial Care Service. Data were collected through medical record review and structured interview. The inheritance of some mental disorders, psychiatric hospitalization as the cause to interrupt contraception, use of contraceptives that do not depend on personal control, drug interactions between psychotropic drugs and oral contraceptives; participation of the partner and/or relatives in the reproductive choice and contraceptive practice were particularities of this target audience in family planning. There was no statistical association between medical diagnoses and correct or incorrect use of contraceptives. Women suffering from mental disorders need specific and comprehensive family planning care.

women; mental disorders; family planning


Se tuvo como objetivo identificar el perfil ginecológico y obstétrico de mujeres portadoras de trastorno mental, verificar la asociación entre diagnóstico médico de trastorno mental y uso correcto/incorrecto de los métodos anticonceptivos y verificar diagnósticos, frecuencia de internaciones y variedades de medicamentos consumidos. Participaron 255 mujeres atendidas en un Centro de Atención Psicosocial. Los datos fueron recolectados por medio de revisión de fichas y entrevista estructurada. La hereditariedad de algunos trastornos mentales, la internación psiquiátrica como causa de interrupción de la anticoncepción, el uso de anticonceptivos que independen del controle personal, la interacción medicamentosa entre psicotrópicos y anticonceptivos orales, la participación del compañero y/o de familiares en la elección reproductiva y la práctica anticonceptiva, constituyeron particularidades en el planificación familiar de ese público. No hubo asociación estadística entre los diagnósticos médicos y el uso correcto o incorrecto de los métodos anticonceptivos. Las mujeres portadoras de trastorno mental presentan una demanda para la atención de la planificación familiar específica e integral.

mujeres; trastornos mentales; planificación familiar


ARTIGO ORIGINAL

Particularidades do planejamento familiar de mulheres portadoras de transtorno mental

Tatiane Gomes GuedesI; Escolástica Rejane Ferreira MouraII; Paulo César de AlmeidaIII

IEnfermeira, Doutoranda em Enfermagem na Universidade Federal do Ceará, Brasil, e-mail: tatigguedes@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará, Brasil, e-mail: escolpaz@yahoo.com.br

IIIEstatístico, Doutor em Saúde Pública, Professor Doutor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual do Ceará, Brasil, e-mail: pc49almeida@gmail.com

RESUMO

Objetivou-se identificar o perfil gineco-obstétrico de mulheres portadoras de transtorno mental, verificar a associação entre diagnóstico médico de transtorno mental e uso correto/incorreto dos métodos anticoncepcionais e verificar diagnósticos, frequência de internações e variedades de medicamentos consumidos. Participaram 255 mulheres atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial. Os dados foram coletados por meio de revisão de prontuário e entrevista estruturada. A hereditariedade de alguns transtornos mentais, internação psiquiátrica como causa de interrupção da anticoncepção, uso de anticoncepcionais que independem do controle pessoal, interação medicamentosa entre psicotrópicos e anticoncepcionais orais, participação do parceiro e/ou de familiares na escolha reprodutiva e prática anticonceptiva constituíram particularidades no planejamento familiar desse público-alvo. Não houve associação estatística entre os diagnósticos médicos e uso correto ou incorreto dos métodos anticoncepcionais. Mulheres portadoras de transtorno mental possuem demanda para atendimento de planejamento familiar específico e integral.

Descritores: mulheres; transtornos mentais; planejamento familiar

INTRODUÇÃO

A assistência ao Planejamento Familiar (PF) deve proporcionar às mulheres, homens e/ou casais, informações necessárias para a livre escolha e uso efetivo dos métodos anticoncepcionais que melhor se adaptem às suas condições individuais(1). A busca por igualdade, liberdade e justiça social, no campo da saúde sexual e reprodutiva feminina, tem sido enfocada nas políticas públicas vigentes nos últimos anos, superando preconceitos, discriminações e problemas estruturais.

A interface entre as políticas públicas da saúde da mulher e as políticas públicas de saúde mental parece necessitar transpor o discurso oficial e se tornar prática na atenção à saúde da mulher portadora de transtorno mental. O PF de mulheres portadoras desse agravo, objeto deste estudo, é uma mostra da necessidade de interação efetiva das políticas referenciadas. Mulheres com transtorno mental estão amparadas pela Lei nº. 9.263, de 12 de janeiro de 1996(2), que, sem discriminação, universaliza a participação de homens e mulheres nas ações referentes ao PF e pelas políticas específicas de saúde mental que preveem, fundamentadas na Lei nº.10.216, de 6 de abril de 2001(3), o resgate à cidadania, o respeito às diferenças, a autonomia e a inclusão social.

A atual Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) propõe que sejam introduzidas, na rede pública de saúde, ações voltadas a segmentos sociais específicos, como o caso de mulheres portadoras de transtorno mental. Em suas diretrizes, a atenção integral à saúde da mulher deverá ser norteada pelo respeito às diferenças, sem dis-criminação de qualquer espécie e sem imposição de valores e crenças pessoais(4).

Assistir às mulheres no campo do PF deve constituir prioridade na atenção básica. Não obstante, tais ações devem assegurar igualdade dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres com transtorno mental. Por outro lado, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), também na perspectiva de integralidade das ações, devem oferecer atendimento biopsicossocial à mulher portadora de transtorno mental, funcionando como apoio técnico às equipes de atenção básica e vice-versa.

É elevada a ocorrência de gravidez não planejada entre pacientes psiquiátricas, devido à frequente falta de insight em função do transtorno mental, a ausência de planejamento e de controle comportamental, além da possível interação medicamentosa entre os anticoncepcionais hormonais e alguns psicotrópicos, reduzindo a efetividade contraceptiva(5). Ademais, o exercício da maternidade relacionado a essas mulheres pode ser comprometido por internações psiquiátricas recorrentes, autonomia prejudicada e limitações de suas funções no cuidado de si e da família. Nessa perspectiva, é relevante conhecer as particularidades do PF dessa população, no intuito de contribuir para um atendimento mais justo e mais humano, fazendo-se cumprir o que está disposto nos instrumentos legais, como direitos sexuais e reprodutivos.

Face ao exposto, decidiu-se pela realização do presente estudo, com os objetivos de identificar o perfil gineco-obstétrico de mulheres portadoras de transtorno mental, verificar associação entre diagnóstico médico de transtorno mental e uso correto/incorreto dos métodos anticoncepcionais e verificar diagnósticos, frequência de internações e variedades de medicamentos consumidos, caracterizando, assim, as particularidades do PF desse público-alvo.

METODOLOGIA

Pesquisa transversal, com abordagem mista. A pesquisa transversal possibilitou a coleta de dados, em um único instante de tempo, permitindo obter um recorte momentâneo a respeito do planejamento familiar de mulheres portadoras de transtorno mental, em curto prazo. O método misto de obtenção de dados envolve coleta e análise das duas formas, integrando as informações na interpretação dos resultados gerais(6). Os dados qualitativos referiram-se aos discursos das participantes e foram organizados pela técnica de análise categorial(7), sendo, posteriormente, processados no Programa Statistical Package for Social Science (SPSS).

O estudo ocorreu em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Fortaleza, CE, de maio a agosto de 2007. Parte dos dados foi pesquisada no prontuário e outra parte foi coletada por meio de entrevista estruturada com obtenção de depoimentos, nos quais alguns foram ilustrados na discussão, acompanhados da idade da participante e de seu diagnóstico médico do transtorno mental.

A população correspondeu a 747 mulheres matriculadas no referido CAPS, com diagnóstico médico de transtorno mental. Para definição da amostra, foi fixado nível de significância de 5%, erro amostral de 6% e proporção de 50%, por implicar esse valor, em tamanho de amostra máximo, quando fixados os erros anteriores. Tais valores foram aplicados na fórmula para cálculo com populações finitas, obtendo-se valor amostral de 255 mulheres que deveriam estar na idade reprodutiva (12 a 49 anos) e ter iniciado a vida sexual. Para a análise de associação entre diagnóstico médico de transtorno mental e o uso correto/incorreto dos métodos anticoncepcionais, empregou-se o teste de Fisher-Freeman-Halton, com nível de significância de 5%.

O estudo seguiu as recomendações da Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, que trata de pesquisas envolvendo seres humanos, sendo submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (COMEPE), obtendo parecer favorável (Protocolo nº. 81/07). As participantes, após serem informadas sobre os objetivos da pesquisa e seus aspectos gerais, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, concordando em participar voluntariamente do estudo, sendo-lhes dada a garantia do seu anonimato e o direito às informações acerca da pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Quase metade das mulheres, ou seja, 119 (46,6%) encontravam-se nos extremos da idade reprodutiva, representadas por 2 (0,8%) até 19 anos e 117 (45,9%) acima de 35 anos. A escolaridade predominante foi de 8 a 10 anos e de 4 a 7 anos de estudos, correspondendo a 67 (26,3%) e 79 (31%), respectivamente. Somente 35 (13,7%) haviam concluído o ensino médio (11 anos ou mais de estudos); 114 (44,7%) não possuíam rendimento ou sequer perfaziam renda de até um salário mínimo. A maior frequência foi de domésticas, 179 (70,2%). Apenas 14 (5,5%) mulheres tinham trabalho formal e exerciam as atividades laborais. O universo de mulheres casadas de 119 (46,7%) preponderou sobre as demais condições de união.

Como demonstrado na Tabela 1, mais da metade das mulheres teve alguma gestação (n=144), sendo que 125 (86,8%) tiveram de uma a quatro gestações e 19 (13,2%) tiverem mais de quatro. A idade no primeiro parto variou entre 13 e mais de 35 anos, sendo o intervalo de 20 a 35 anos o de maior ocorrência dos partos, correspondendo a 70 (51,4%) da amostra. O intervalo gestacional superior a dois anos foi relatado por 54 (59,3%) das mulheres, 38 (14,9%) sofreram aborto espontâneo ou provocado, conforme o indicado, respectivamente por 13 (34,2%) e 25 (65,8%) das participantes.

O perfil gineco-obstétrico, em referência, confirma que a gravidez de mulheres com transtorno mental é uma realidade. Levando-se em consideração que essas mulheres são portadoras de agravos que podem comprometer sua autonomia, é imprescindível atenção individualizada em planejamento familiar, envolvendo o companheiro e outros(s) familiar(es) significativo(s) na tomada de decisão, tratando a relação gravidez/transtorno mental, embora delicada, como um direito sexual e reprodutivo dessa população.

Na proposta de desinstitucionalização da Reforma Psiquiátrica, o cônjuge ocupa espaço privilegiado. Portanto, estando esse a desempenhar papel de destaque na reabilitação da companheira e, sendo o PF uma determinação do casal, cabe aos profissionais dos CAPS e da atenção básica aproximá-lo da corresponsabilidade do PF e da prática contraceptiva.

De acordo com a Tabela 2, 34 (23,6%) das participantes referiram ter planejado todas as gestações. O transtorno mental influencia essa situação que, por conseguinte, solicita o suporte dos parceiros e/ou familiares responsáveis, os quais devem ter acesso às informações e aos métodos anticoncepcionais. Esses eram utilizados por apenas 35 (13,7%) das mulheres, estando as demais expostas ao risco de uma gestação não planejada. Corroborando essa questão, a participante 189, 47 anos, portadora de transtorno bipolar, afirmou: só comecei a tomar anticoncepcional depois da quarta gravidez.

Interação medicamentosa entre anticoncepcionais hormonais e psicotrópicos é conhecida por parte das mulheres do estudo. A participante 79, 29 anos, portadora de transtorno de ansiedade, relatou: nunca tomei remédio para não engravidar, por causa dos remédios que já tomava para o meu tratamento. Os anticoncepcionais hormonais orais interagem com os anticonvulsivantes (barbitúricos, difenil-hidantoína primidona e carbamazepina), reduzindo a eficácia dos mesmos, uma vez que são indutores das enzimas hepáticas(1).

Muito embora 233 (91,4%) mulheres, pelas condições de relacionamentos relatadas (casadas ou com companheiros eventuais), tivessem vida sexual ativa, foi significativamente baixo o número daquelas que faziam uso de métodos anticoncepcionais e das que recebiam atenção em planejamento familiar, correspondendo a 15 (5,9%) e 35 (13,7%), respectivamente. Dentre as usuárias de métodos, 22 (62,9%) usavam anticoncepcional hormonal oral, 11 (31,4%) usavam condom e 2 (5,7%) usavam anticoncepcional injetável. Esse resultado analisado na perspectiva do número de mulheres que recebiam atenção voltada ao PF, revela que 20 (57,1%) faziam uso de método sem assistência formal, o que pode ter relação com 27 (77,2%) dessas mulheres estarem fazendo uso incorreto do método.

A laqueadura tubária, referida por 40 (15,7%) das mulheres pesquisadas, é aspecto importante a ser analisado. No imaginário popular, e até mesmo sob a ótica de muitos profissionais da saúde, o método cirúrgico é o único indicado para mulheres portadoras de transtorno mental, o que é preconceituoso e antiético. Os métodos contraceptivos que dispensam o controle da paciente são, de fato, os mais eficazes para mulheres com transtornos mentais severos. No entanto, a conduta ética apropriada a essas pacientes pressupõe o respeito aos seus direitos sexuais e reprodutivos, que implica tratamento particularizado a cada mulher portadora de transtorno mental. Das mulheres participantes do estudo, que estavam laqueadas, 6 (15%) relataram não ter sido uma escolha pessoal, mas de terceiros (médicos, genitora, irmã e companheiro), como demonstrado nas falas de algumas dessas mulheres: minha mãe achou que era melhor. Às vezes eu acho que fiquei pior da minha doença por causa disso. Ela pagou o médico e ele fez (participante 6, 30 anos, portadora de transtorno esquizofrênico). Quando eu acordei me disseram que eu estava ligada. O médico na hora do parto me perguntou quantos filhos eu tinha e me ligou (participante 99, 36 anos, portadora de transtorno bipolar). Passei os noves meses na última gravidez doente da cabeça, aí meu marido assinou os papéis e o médico me ligou (participante 16, 43 anos, portadora de transtorno bipolar). Para as pessoas absolutamente incapazes, a Lei do PF assegura a realização de laqueadura tubária desde que ocorra mediante autorização judicial, sob pena de reclusão quando não cumprida(2). No grupo estudado, a característica de total incapacidade não foi observada, o que denota as formas nas quais ocorreram tais procedimentos no grupo pesquisado.

Não houve associação estatística significante entre as variáveis apresentadas na Tabela 3 (p=0,685). Contudo, devem ser considerados os aspectos relacionados ao baixo número de mulheres em uso de contraceptivos (n=35) que estavam sendo assistidas por ações de planejamento familiar durante a pesquisa (n=15). Das mulheres que faziam uso incorreto dos métodos anticoncepcionais (n=27), 19 (54,4%) tinham como diagnóstico médico o transtorno de humor, seguido da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos, ambos presentes em 3 (8,6%) das mulheres participantes do estudo. O transtorno de personalidade mostrou-se presente entre 2 (5,8%) das mulheres que faziam uso incorreto dos métodos.

Para esse público, a preferência deve recair sobre os métodos cujo uso independa do controle pessoal, haja vista a possibilidade de comportamento alterado das usuárias. Dessa forma, o preservativo masculino, o injetável, o DIU e os métodos cirúrgicos constituem-se nos mais adequados. É recomendado, ademais, o envolvimento do parceiro no acompanhamento do uso do método anticoncepcional, sendo essa uma oportunidade ímpar para que o homem assuma a responsabilidade pelo PF e opte pelos métodos masculinos.

Os obstáculos que se antepõem ao acesso nos serviços de saúde tornam-se complicadores para a inserção dessas mulheres nas ações de planejamento familiar, como especificou a participante 3, 36 anos, portadora de transtorno psicótico: fui fazer a ficha, mas no dia não estava fazendo. Com a perspectiva de amenizar esses obstáculos, o enfermeiro do CAPS deve não só referenciar as mulheres ao serviço de atenção básica para atendimento em PF, mas acompanhá-las e orientá-las nesse aspecto, promovendo o cuidado integral.

Os transtornos do humor apresentaram-se com maior frequência, acometendo, praticamente, a metade das mulheres do estudo, seguidos da esquizofrenia e dos transtornos neuróticos. Tais transtornos possuem elevada prevalência na população mundial, sendo causa de perdas significativas na vida dos portadores. É doença com importante fator genético, cuja herança se caracteriza por mecanismos complexos de transmissão, envolvendo múltiplos genes que estão sob influência de inúmeros fatores ambientais(8). A hereditariedade do referido transtorno foi preocupação relatada pelas mulheres do estudo que o apontaram como fator impeditivo ao desejo de engravidar. A participante 4, 32 anos, portadora de transtorno de humor enfatizou: tenho medo de ter um filho igual a mim. Como vou cuidar dele? Profissionais que atuam em saúde mental e PF devem informar sobre a carga hereditária dessa patologia à mulher e/ou casal, para que a decisão de ter ou não ter filhos possa ser tomada com consciência.

Outra particularidade do planejamento familiar de mulheres portadoras de transtorno mental diz respeito ao uso dos psicotrópicos na gravidez, utilizados por quase todas as mulheres do estudo, já que esses são, em sua maioria, teratogênicos, como o lítio, um dos estabilizantes de humor utilizados para tratamento do transtorno bipolar. Filhos de mulheres em tratamento com lítio estão expostos a anomalias congênitas em 4 a 12% dos casos, enquanto na população geral o mesmo risco é de 2 a 4%(9). O transtorno bipolar poderá se exacerbar na gestação, pela necessidade de subtrair drogas contraindicadas ao perfeito desenvolvimento fetal. Assim, a interação permanente entre gestante, família, obstetra e psiquiatra é um recurso importante para subsidiar o risco-benefício nas decisões. Não obstante, já se encontram disponíveis dados de pesquisa sobre o uso de antidepressivos em pacientes grávidas e que estejam amamentando(10).

Do ponto de vista ético, não se pode proibir as pacientes portadoras de transtorno mental de engravidar, posto o direito à livre escolha da concepção, como todas as outras mulheres, pelo que devem receber assistência em todas as dimensões. É necessária a compreensão dos serviços envolvidos no cuidado de mulheres portadoras de transtornos mentais, no tocante ao direito de escolha da maternidade, competindo ao sistema de saúde preparar-se para atender essa demanda, respeitando as mulheres que tenham optado pela concepção, apesar dos riscos, monitorando os filhos, quanto ao possível surgimento do transtorno e promovendo o acompanhamento adequado.

A utilização de medicamentos é vista como a principal prática terapêutica na rede pública de saúde, em seus diferentes níveis(11), constituindo-se sério agravante, por se firmar como o único recurso disponível àqueles que necessitam desse tipo de cuidado e como recurso que se perpetua na vida desses sujeitos, tornando-os dependentes de medicamentos.

A internação psiquiátrica, referida por mais da metade das mulheres do estudo, poderá potencializar o risco gestacional de mulheres portadoras de transtorno mental, bem como interromper as práticas anticonceptivas. Uma das mulheres pesquisadas, 37 anos, portadora de transtorno bipolar, confirmou que a internação hospitalar a torna susceptível à interrupção do uso do método anticoncepcional e, portanto, a uma provável gravidez inesperada: não me preveni certo. Quando me internava não levava os comprimidos.

A internação psiquiátrica carrega dupla função no cuidado dos pacientes, que é a de tratar e de proteger o portador de transtorno mental, sob pena de limitar seus direitos de cidadania e contribuir para riscos sexuais e reprodutivos. Para diminuir essas possibilidades, as atuais ações de saúde mental, norteadas pela lei que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, preconizam a internação psiquiátrica somente quando todos os recursos comunitários já tiverem sido exauridos(3). Tais recursos consolidam a reforma psiquiátrica e são considerados projetos inovadores, capazes de garantir aos portadores de transtornos mentais assistência de qualidade, baseada em pressupostos como a singularidade, o direito à saúde e à vida digna(12).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Particularidades do planejamento familiar de mulheres portadoras de transtorno mental foram reconhecidas no presente estudo, como a hereditariedade de alguns transtornos mentais, internação psiquiátrica como causa de interrupção da prática anticonceptiva, uso multivariado de psicotrópicos, em que parte desses sofre interações medicamentosas com os anticoncepcionais hormonais orais e provocam efeitos teratogênicos, uso de anticoncepcionais que exigem controle pessoal, ficando, pois, comprometido em meio ao comportamento alterado e à importância da participação do companheiro e/ou familiares responsáveis nas escolhas reprodutivas e contraceptivas.

O grupo estudado padece da intervenção de um sistema de saúde fragmentado, que nega a assistência integral e os direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Os resultados encontrados orientam para a necessidade de interação das políticas públicas de planejamento familiar e de saúde mental, que preveem o resgate à cidadania, o respeito às diferenças, a autonomia e a inclusão social de seus usuários. Sugere-se que estudos futuros venham fortalecer mudanças na dinâmica do atendimento de PF de mulheres com transtorno mental, no qual equipes dos CAPS e das unidades básicas possam responder melhor a essa demanda.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Política de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Assistência em planejamento familiar. Manual Técnico. 4ª ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002.
  • 2
    Ministério da Saúde (BR). Lei Ordinária nº 9263 de 12 de janeiro de 1996. Regula o parágrafo 7 do artigo 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. DOU. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 1997.
  • 3
    Ministério da Saúde (BR). Lei Ordinária nº 10216 de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. DOU. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.
  • 4
    Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher - Princípios e Diretrizes. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de ações Programáticas Estratégicas. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2004.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2008
  • Aceito
    01 Jul 2009
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