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O cuidado de enfermagem na visão de mulheres em situação de abortamento

Resumos

Estudo qualitativo que buscou compreender como mulheres em situação de abortamento vivenciam o cuidado de enfermagem que recebem. A análise dos depoimentos de 13 mulheres hospitalizadas ocorreu por meio da técnica de análise de conteúdo. Foi composta a categoria central "O cuidado de enfermagem vivenciado na situação de abortamento", a partir de quatro subcategorias: o cuidado centrado nas necessidades físicas; o receio do julgamento na situação de abortamento; aspectos legais definindo o cuidado; a necessidade de apoio na situação de abortamento. As mulheres identificaram o cuidado de enfermagem fundado em aspectos físicos, não contemplando a individualidade e as especificidades delas. Os resultados apontaram a necessidade de criar um ambiente que propicie a escuta, ajudando essas mulheres a elaborar seus sentimentos, permitindo aos profissionais conduta mais próxima da realidade delas, de forma que seus próprios desejos e conflitos sejam menores, e que seja contemplada a integralidade da assistência.

aborto; saúde da mulher; enfermagem; cuidados de enfermagem


This qualitative study aimed to understand how women having an abortion experience the nursing care they receive. The statements of 13 hospitalized women were analyzed through content analysis. The central category "Nursing care experienced in situations of abortion" was constituted from 4 subcategories: care centered in physical needs; fear of judgment in abortion situations; legal aspects defining care; the need for support in abortion situations. These women identified nursing care as based on physical aspects, without contemplating their individuality and specificities. Results indicated the need to create an environment that stimulates listening, helping these women to elaborate their feelings and allowing professionals to behave closer to these women's reality, in order to reduce their own desires and conflicts and contemplate the integrality of care.

abortion; women's health; nursing; nursing care


Estudio cualitativo con objeto de comprender como mujeres en situación de abortamiento vivencian el cuidado de enfermería que reciben. El análisis de los testimonios de 13 mujeres hospitalizadas ocurrió mediante la técnica de análisis de contenido. Se compuso la categoría central "El cuidado de enfermería vivenciado en la situación de abortamiento" a partir de cuatro subcategorías: el cuidado centrado en las necesidades físicas; el recelo del juicio en la situación de abortamiento; aspectos legales definiendo el cuidado; la necesidad de apoyo en la situación de abortamiento. Las mujeres identificaron el cuidado de enfermería como basado en aspectos físicos, no contemplando su individualidad y especificidades. Los resultados indicaron la necesidad de crear un ambiente que propicie la escucha, les ayudando a esas mujeres a elaborar sus sentimientos, permitiendo a los profesionales una conducta más próxima de su realidad, de forma que sus propios deseos y conflictos sean menores, y que sea contemplada la integralidad de la atención.

aborto; salud de las mujeres; enfermería; atención de enfermería


ARTIGO ORIGINAL

O cuidado de enfermagem na visão de mulheres em situação de abortamento

Mariana Gondim Mariutti1; Ana Maria de Almeida2; Marislei Sanches Panobianco2

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem em Saúde Pública, e-mail: mgmariutti@yahoo.com.br

IIProfessor Doutor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: amalmeid@eerp.usp.br, marislei@eerp.usp.br

RESUMO

Estudo qualitativo que buscou compreender como mulheres em situação de abortamento vivenciam o cuidado de enfermagem que recebem. A análise dos depoimentos de 13 mulheres hospitalizadas ocorreu por meio da técnica de análise de conteúdo. Foi composta a categoria central "O cuidado de enfermagem vivenciado na situação de abortamento", a partir de quatro subcategorias: o cuidado centrado nas necessidades físicas; o receio do julgamento na situação de abortamento; aspectos legais definindo o cuidado; a necessidade de apoio na situação de abortamento. As mulheres identificaram o cuidado de enfermagem fundado em aspectos físicos, não contemplando a individualidade e as especificidades delas. Os resultados apontaram a necessidade de criar um ambiente que propicie a escuta, ajudando essas mulheres a elaborar seus sentimentos, permitindo aos profissionais conduta mais próxima da realidade delas, de forma que seus próprios desejos e conflitos sejam menores, e que seja contemplada a integralidade da assistência.

Descritores: aborto; saúde da mulher; enfermagem; cuidados de enfermagem

INTRODUÇÃO

A ilegalidade do aborto, no Brasil, não tem impedido sua prática, que ocorre em condições diversas, desde clínicas com controle de qualidade da assistência como em clínicas clandestinas em condições precárias. O número de abortos, no Brasil, é de 1,4 milhões por ano, correspondendo a uma razão de 23 abortos por 100 gestações e 50 milhões por ano no mundo, impondo sérios riscos à saúde e à vida das mulheres(1-3). No contexto da mortalidade materna, a incidência de óbitos por complicações de aborto oscila em torno de 12,5% do total de óbitos, ocupando o terceiro lugar entre suas causas.

Estudo anterior de natureza fenomenológica apreendeu que mulheres em situação de abortamento devem ter a possibilidade de expressar sua dor fisiológica e existencial, independente da causa do aborto, lembrando ainda que a decisão por abortar não é individual, pois envolve circunstâncias e histórias de vida. O abortamento mostrou-se como experiência que leva à hospitalização desconfortante, pois, apesar do tempo de internação ser curto, a ansiedade e o desejo das mulheres de irem para suas casas era grande pelo medo de que pessoas significantes descobrissem o ocorrido. Esse estudo identificou, também, sentimentos de culpa ou medo, por causa dos parâmetros valorativos da sociedade. Revelou-se, ainda, como experiência que envolve preocupação com o corpo e com a integridade do mesmo, pela possibilidade de complicações advindas do procedimento e pelo medo de não poder gerar uma criança futuramente. O aborto, portanto, foi revelado, pelas mulheres, como experiência que traz o desejo de rever seus projetos de vida(4).

Dessa forma, como profissionais de saúde, há a preocupação com o cuidado de enfermagem sob o ponto de vista dessas mulheres. A proposta desta investigação foi compreender como as mulheres internadas em um hospital público, em decorrência da situação de abortamento, reconhecem o cuidado de enfermagem a elas prestado.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta investigação é de natureza qualitativa, uma vez que procura centrar a atenção no indivíduo, com a finalidade de compreender os fenômenos estudados.

Essa abordagem caracteriza-se como método de compreensão e de reflexão sobre um tema e possibilita refletir sobre questões inquietantes, a partir das falas dos sujeitos submetidos à análise, as quais trazem significados, auxiliando na compreensão da problemática levantada(5).

Este estudo é do tipo exploratório e descritivo, no qual utilizou-se a técnica da análise de conteúdo que é definida como "... uma técnica de investigação que tem por finalidade a descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação"(6).

O cuidado de enfermagem a mulheres em situação de abortamento foi estudado a partir dos discursos de 13 mulheres, internadas em um hospital público de um município paulista, nos meses de maio, junho e julho de 2003, após um período de, no mínimo, 20 horas de internação.

A preocupação centrou-se no conteúdo dos discursos, no sentido de garantir que refletissem as experiências vividas pelas mulheres ao serem cuidadas na situação de abortamento e a saturação dos dados ocorreu quando os conteúdos se repetiam, sem que houvesse fatos novos a serem interpretados.

Os procedimentos éticos da pesquisa em saúde foram considerados, o projeto foi submetido à aprovação do hospital onde foi realizado o estudo e, posteriormente, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da mesma instituição.

Aos sujeitos, aspectos importantes foram considerados, tais como apresentação formal do entrevistador, o interesse pela entrevista, o objetivo do estudo e a garantia do sigilo sobre seus nomes verdadeiros. Ao fim de cada entrevista, foi dada a oportunidade para que as mulheres pudessem esclarecer dúvidas sobre aspectos relacionados ao tema.

O encontro com cada mulher deu-se após a apresentação do entrevistador, assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e solicitação de autorização para gravá-la, deixando clara a possibilidade de desligar o gravador, durante a entrevista, caso a gravação afetasse sua disponibilidade para falar.

Após esses procedimentos, a entrevista era iniciada com as seguintes questões: como você reconhece o cuidado de enfermagem que está recebendo? Você pode descrevê-lo? Vale ressaltar que todas as entrevistas foram realizadas por um dos pesquisadores.

Os dados coletados, por sua própria natureza e subjetividade, foram analisados qualitativamente, sendo sistematizados conforme a técnica de análise de conteúdo, optando na sua organização, pela análise temática, com o objetivo de analisar os significados das falas das mulheres acerca do cuidado de enfermagem a elas prestado, durante o período de internação em decorrência da situação de abortamento.

Na busca por analisar o cuidado de enfermagem vivenciado pelas mulheres, buscou-se identificar nas suas falas o significado desse cuidado. Fez-se um exercício de voltar o olhar para o cuidado, despojado de "pré-conceitos" sobre a temática, no intuito de compreendê-la nesse momento, sob o ponto de vista de quem vivencia o processo de ser cuidada em situação de abortamento. Assim, após a leitura dos discursos, elegeu-se uma categoria central que foi o cuidado de enfermagem vivenciado na situação de abortamento, que foi apresentado a partir de quatro subcategorias, a saber: o cuidado centrado nas necessidades físicas; o receio do julgamento na situação de abortamento; aspectos legais definindo o cuidado; a necessidade de apoio na situação de abortamento. Nesse momento, foram destacados trechos significativos que compuseram essa categoria, mantendo-os como foram expressos pelas mulheres. Para garantir e preservar o anonimato, as mulheres foram identificadas por nomes fictícios escolhidos pelos pesquisadores.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caracterização das mulheres

As mulheres tinham idade entre 20 e 45 anos. Na ocasião do aborto apresentavam idade gestacional de 9 a 22 semanas. Cinco delas relataram ser solteiras, três casadas e cinco amasiadas. O nível de instrução variou do analfabetismo ao ensino médio completo. Quanto à ocupação, uma era estudante, três do lar, duas desempregadas, quatro domésticas, duas balconistas e uma funcionária pública. Três relataram ser primigestas e, para as outras, o número de filhos variou de um a quatro, sendo que três revelaram já ter passado pela situação de aborto, anteriormente. Dessas mulheres, apenas duas haviam planejado a gravidez. Quanto ao uso de métodos contraceptivos, oito revelaram não fazer; três estavam tomando pílula, mas haviam interrompido seu uso.

O cuidado de enfermagem vivenciado na situação de abortamento

O cuidado não deve se resumir em ações e intervenções em saúde, mas, antes, deve constituir-se no desenvolvimento de atitudes e em espaços de genuíno encontro intersubjetivo, do exercício de uma sabedoria prática para a saúde, apoiada na tecnologia, mas sem se deixar resumir a ela; antes, deve promover um encontro entre cuidador e cuidado visando uma relação mais simétrica entre ambos(7). No presente trabalho, o cuidado não pôde ser vivenciado nessa dimensão, conforme a descrição das subcategorias abaixo.

O cuidado centrado nas necessidades físicas

Em seus discursos, o significado do cuidado de enfermagem foi percebido pelas mulheres como aquele em que, na maioria das vezes, o "básico" é realizado. O significado dado por elas aponta para o atendimento das necessidades físicas e para o desempenho dos procedimentos técnicos e foi revelado como "normal", com ênfase no atendimento das necessidades relacionadas ao corpo físico.

Normal, as pessoas, a enfermeira, tudo boazinha. Tudo natural, um ótimo tratamento. Tudo o que você precisa, toda hora elas tão no quarto, sabe? Tudo que você precisa elas te dão, é assim, sabe? Mal educada, nem nada, tudo boa (Gilda).

... o cuidado deles, dos enfermeiro, normal, bem normal, fazem higiene da gente, mede pressão, febre, dá remédio...cuida... o papel deles... (Lúcia).

O campo da saúde ainda opera com uma concepção essencialista e biologizante da condição humana(8). É necessária mudança de enfoque na assistência que leve a equipe de enfermagem a refletir acerca da sua atuação, visto que o cuidado deve ir além da resolução de problemas físicos, ou seja, incorporar sua dimensão social, psicológica e espiritual.

A atuação dos profissionais de enfermagem foi percebida como um agir sem sentido, ou cujo sentido é desconhecido pelo trabalhador, o que faz com que ele reproduza o saber e a prática burocratizados, não havendo assim dom que resista à repetição automática de atos e, trabalhar em serviços assim estruturados, costuma tornar-se insuportável(9). Desse modo, a competência do enfermeiro está associada ao lado técnico e burocrático e essa maneira de ser do trabalho da enfermagem foi revelado nos discursos das mulheres e definido como "normal", sendo considerado como o mundo do trabalho da enfermeira.

... seria esse... o papel do enfermeiro? de orientá, de passá pra vê se tá tudo bem, se tá precisando de alguma coisa ou sei lá, vê a febre, por remédio, vê pressão. Essas coisas normal... (Vânia).

Essa fala revela que a enfermagem na situação de abortamento contempla os procedimentos que atendem as necessidades físicas, sendo esse o significado percebido pelas mulheres acerca do cuidado de enfermagem. Nesse sentido, não há diferenciação das atribuições das diferentes categorias profissionais de enfermagem (enfermeiro, técnico e auxiliar), uma vez que, nos seus modos de agir, não houve discriminação das diferentes categorias, pelas mulheres estudadas.

O mundo do trabalho da enfermagem, em seu cotidiano, segundo o relato das mulheres, foi marcado por um modo técnico do fazer. Elas expressaram, por meio das falas, o modo impessoal de ser no trabalho dessa equipe e apontaram para a necessidade de novas propostas para o cuidado.

As mulheres revelaram a necessidade do cuidado que vai além de procedimentos técnicos. Pelos seus discursos, as necessidades apresentadas extrapolaram o cuidado físico e a situação de abortamento mostrou-se como uma situação difícil, complicada e dolorosa, física e existencialmente.

E a pessoa que vai pro hospital independente de qualquer coisa ela vai porque precisa, precisa de ajuda... as coisas acontecem na nossa vida e quando a gente vê já aconteceu... e pode acontecer com qualquer um. Tem sempre o lado de dor mesmo do corpo e sofrimento mesmo humano... (Vera).

...agora, assim...fisicamente estou bem ...(choro, muito choro) (Dulce).

Cabe salientar que o privilégio dos aspectos físicos do cuidado parece não estar contemplando as necessidades vivenciadas por essas mulheres, pois elas trouxeram, em seus discursos, que esse modelo é insuficiente para assisti-las, na íntegra. As relações entre as categorias profissionais da enfermagem e a clientela foram influenciadas pelas condições subjetivas de cada pessoa ali presente e pelas condições materiais do trabalho. As realidades se mostraram complexas, difíceis de serem apreendidas no seu conjunto e permeadas por crenças e interesses distintos e, por vezes, divergentes(9).

Há, portanto, que se considerar essas mulheres em seus contextos de vida, histórias, expectativas e especificidades e apesar de se mostrarem, na situação de abortamento, desvinculadas de sua própria identidade, elas se resguardam, muitas vezes, por não estabelecer uma relação de confiança com os profissionais o que, às vezes, é justificado pela dificuldade em lidar com as conseqüências de um ato considerado pecaminoso e ilegal.

O receio do julgamento na situação de abortamento

O receio do julgamento pelo ato praticado faz com que algumas mulheres, em situação de abortamento por elas induzido, busquem por assistência apenas porque apresentam restos embrionários e o medo da censura familiar e social faz com que enfrentem a internação sozinhas tornando-a mais dolorosa ainda(10).

Devem ser considerados, também, os casos de mulheres com abortamento espontâneo, frustradas com esse acontecimento e que, muitas vezes, são negligenciadas e tratadas com discriminação até que a equipe se conscientize de que a perda fetal foi espontânea. Uma das tarefas mais difíceis é informar a essa mãe sobre a perda do bebê, e pouco ou nada tem sido feito no sentido de apoiá-la psicologicamente. É freqüente que as mulheres experimentem sentimentos de revolta e rejeição, buscando, às vezes, outros serviços para sua confirmação, além de expressarem culpa por não terem evitado a perda e necessidade de saber o motivo do aborto(10-11).

A vivência do abortamento configura-se, portanto, como uma crise e a atuação profissional deveria ser pautada pela compreensão dos sentimentos expressos pelas mulheres, buscando discernir alguns temores ambivalentes vivenciados por elas e, principalmente, evitando posições legalistas e moralistas em relação à prática do aborto(8, 11).

A situação é dolorosa e complexa para ambos os casos, os abortos espontâneos e aqueles sugestivos de indução, e as mulheres necessitam de apoio e compreensão independente da etiologia do aborto.

No entanto, ao vivenciar o cuidado de enfermagem, as mulheres conseguiram dar significado à diferenciação no cuidado que é prestado a elas.

Até porque a gente sofre muito sabe, é muito triste e precisa de apoio, eu até me conformei e foi uma coisa que aconteceu assim... natural, mas essas assim (ela quis dizer de quando é provocado), acho que precisa de mais apoio ainda, deve ser complicado (Gilda).

...se aquela pessoa tá passando por aquilo algum motivo tem, você acha que ela ia querer passar por aquilo, sofrer daquele tanto e ainda sê rejeitada, falada mal pelas pessoas, perseguida...me trataram com muita humilhação, desprezo e com punição...todo mundo sabe que o tratamento é diferente...as poucas pessoas que eu pude contar, pude falar a verdade e me estenderam a mão, uma delas foi aquela enfermeira que eu te falei... (Adelaide).

O acesso universal à saúde e o respeito às singularidades de cada indivíduo, sem qualquer tipo de discriminação, são direitos constitucionais. A humanização das ações de saúde depende do reconhecimento efetivo da condição de sujeito, de cidadão ou cidadã titular de direitos, de todas as pessoas que buscam qualquer tipo de atendimento à saúde, em serviço público ou privado. Cuidar é um ato político e o cuidado é complexo. Ter consciência dessa complexidade favorece o distanciamento crítico para reflexão, avaliação e implementação de práticas em saúde mais pertinentes à situação. A humanização dos serviços de saúde e da enfermagem, em particular, é um processo contínuo e depende da reflexão diária da equipe de enfermagem sobre o cuidado(12).

Aspectos legais definindo o cuidado

As falas das mulheres revelaram que o apoio nesse momento é imprescindível e demonstraram que visualizam a diferença de apoio diante da situação de abortamento espontâneo e do aborto "sugestivo" de ser provocado. Em uma das falas, uma depoente tentou mostrar sua condição referindo-se à inadequação da lei brasileira referente ao aborto.

...já que eu comecei a falar eu vou falar mesmo sabe? Por exemplo a lei, a lei proibi o aborto, mas ele acontece, e aí? Ele acontece mesmo....e a gente tem que ir pro hospital...como que fica isso? Eu sei que isso não devia acontecer...igual comigo nunca mais...sabe? eu acho que é tão bom você poder falar o que sente, o que deve...sabe? chegá... olha eu fiz, a minha vida tá assim, assim, assim...eu sei que eu devia prevenir, mas aconteceu, sabe? (Adelaide).

É necessário exercer a profissão enfermagem compreendendo as diversas transformações pelas quais passa a sociedade, refletindo sobre os fenômenos que derivam demandas de cuidado. Toda lei que facilite isso deve ser apoiada. A ilegalidade do aborto, no Brasil, não tem conseguido controlar sua ocorrência e observa-se que as mulheres têm consciência disso, portanto, precisa-se garantir a elas o acesso ao atendimento de qualidade na rede pública e privada de saúde.

O comprometimento do cuidado, entretanto, se configura quando os profissionais de saúde mostraram-se a essas mulheres com julgamento de valores e "pré-conceitos".

...é muito melhor você poder contar a verdade, mas tem o medo...eu como nunca escondi nada de ninguém, não escondia mesmo, ...eles achava que deveria mentir esconder, eles ficá até de boca aberta, porque eles tão acostumados com a mentira, eles querem ouvir a verdade, mas não tem como fazer com isso. Quantas vezes eu já fui embora do hospital sem ser atendida porque eu chegava e falava, qual que era o meu problema eles não me atendiam...deixava eu lá... (Adelaide).

Essa fala aponta para o fato de que os profissionais parecem preferir ouvir a mentira, negando-se ao enfrentamento de situações conflituosas e polêmicas como é o caso do aborto. É importante que os profissionais de saúde, especificamente os de enfermagem, apreendam que o acesso universal à saúde e o respeito às singularidades de cada indivíduo, sem qualquer tipo de discriminação, são direitos constitucionais(12).

É compreensível a preferência pelo atendimento de gravidezes bem-sucedidas, mas, mesmo quem é contrário ao aborto pode ajudar a mulher, nesses momentos, e se assim o fizer não estará cometendo crime e nem provocando o aborto. Os profissionais de enfermagem têm mantido uma postura que contraria esse preceito, muitas vezes desconsiderando a individualidade e a dignidade da mulher nessa condição(12).

A necessidade de apoio na situação de abortamento

Criar um ambiente que propicie a escuta pode ajudar essas mulheres a elaborar seus sentimentos, permitindo aos profissionais uma conduta mais próxima da realidade delas, de forma que as projeções de seus próprios desejos e conflitos sejam menores(13). A humanização do serviço de enfermagem implica na organização de serviços, cujo ambiente seja acolhedor e confortável, mas principalmente que tenha profissionais qualificados e comprometidos com a qualidade do cuidado.

Uma postura mais humanizada, em que o profissional possa estar com essas mulheres, auxiliando-as é evidenciado em seus discursos, quando elas falaram da importância da conversa e do apoio nesse momento.

... o cuidado é isso, eu acho que tem que conversá, acalmá a pessoa... seja o doente qual for (Maria Aparecida).

Eles conversam com a gente, sim, fazem tudo direitinho, mas é que eu passei por muita coisa e eu sinto essa falta de apoio. Eles conversam, assim, sabe? O que dá? Pergunta se tá tudo bem? Se sente dor, mas sinto falta de informação... e de conversá meus problemas mesmos...tudo deles é muito superficial, automático (Vânia).

O conformismo das mulheres acerca do cuidado é mostrado pelas suas falas, mas destaca-se, também, a superficialidade e o automatismo com que os profissionais de enfermagem se apresentam a elas.

Novas relações entre o cuidador e aquele que é cuidado, incluindo nesse processo a subjetivação do sujeito, despontam como necessárias, com comprometimento na articulação de novas estratégias de cuidado, para as pessoas em sofrimento.

O desejo de ter filho, de ter provocado um aborto ou não, da situação econômica da família e da idade gestacional não interferem no sentido de amenizar ou intensificar a dor dessa perda(14). A expressão desse pesar é extremamente pessoal. Assim, na aproximação com mulheres, que estão vivenciando a situação de abortamento e participando desse mundo, deve-se permitir e facilitar a manifestação livre de seu pesar com gestos, palavras e silêncios(4).

O cuidado, portanto, implica em que o profissional desenvolva relações com essas mulheres, respeitando-as enquanto sujeitos com frustrações, expectativas e sonhos. Os profissionais devem saber, também, identificar os momentos de introspecção que são necessários para a elaboração da situação vivida.

...é bom elas conversá com a gente...faz bem, a gente se sente melhor...., mas às vezes nem a gente quer conversar. Por exemplo, agora eu gosto de estar conversando, gosto dessa parte, de conversa, você desabafa e sofre um pouco menos, acho bom, assim, mas tem vezes que não. Você quer ficar quieta, pensar, descansar (Renata).

Esse discurso aponta para a necessidade de os profissionais reconhecerem o momento pelo qual as mulheres estão passando e apoio implica em saber compartilhar, em estar junto naquele momento.

As falas das mulheres nos fazem refletir sobre o fato de que o objeto de trabalho da enfermagem não deveria se centrar no corpo biológico e sim olhar essa mulher com toda a sua especificidade, proporcionando seu autoconhecimento, a conscientização dos riscos a que se expõe na situação de abortamento, a prevenção de reincidência, elaboração dessa situação, preservando-a nos aspectos sociais, afetivos e emocionais, evitando seqüelas físicas e psicológicas, evitando que outras gravidezes indesejadas se repitam e, conseqüentemente, outro aborto.

Essa mudança no paradigma do fazer enfermagem é identificada pelos sujeitos do cuidado e se revelou no discurso das mulheres acerca da sua percepção do fazer fundamentado na verdade.

Dá pra perceber pela maneira que eles cuidam... (Fernanda).

...é bom conversa com a gente, mas é melhor ainda quando a gente sabe que o interesse é verdadeiro... A pessoa realmente se importa...você pode ou não tá interessada na pessoa, no sofrimento e você pode apoiar conversando ou não, dá pra perceber se é verdadeiro ou não... é automático ou por falar... entende...não é tão verdadeiro, não estou dizendo que aqui aconteceu assim, mas, pode ser que sim, dá pra perceber pela maneira de falar, de olhar de tudo...olhares entregam... no amor é assim também (Vera).

Esses discursos mostraram que as mulheres percebem o cuidado que estão recebendo e não somente esse, mas a maneira como ele está sendo implementado, se de forma automática, fazendo parte da rotina, ou se é real o interesse em ajudá-las e compartilhar com elas daquele momento, transcendendo o aspecto físico do cuidado. Assim, a escuta, algo aparentemente simples, revela-se na prática como fenômeno extremamente complexo, demandando uma articulação dos possíveis e múltiplos sentidos de cada fala, bem como saberes oriundos de diferentes áreas do conhecimento. A escuta, portanto, pode contribuir para diminuir a ocorrência de comportamentos preconceituosos e dos julgamentos que geralmente recaem sobre a mulher(12).

Essa dimensão do cuidado ainda não foi alcançada pelos profissionais de enfermagem, na instituição em que o estudo foi realizado, e as mulheres buscam explicações como falta de respeito da equipe de enfermagem, falta de consideração com suas necessidades, falta de informação, justificando essas deficiências com sua percepção de que há quantidade insuficiente de profissionais para atender a demanda e, portanto, falta-lhes tempo.

Alguns discursos descreveram esses problemas relacionados à equipe de enfermagem como pessoal em quantidade insuficiente e falta de tempo.

... alguns cuidam mais, além de fazer essas coisas... vê febre, ajuda no banho, conversam e tem outros que não, pode ser por causa do tempo...(Gilda).

Ahh..o tempo...por exemplo, às vezes pode ter muito paciente e eles são em pouco, então é difícil mesmo sobra menos tempo... (Fernanda).

As mulheres, como se sentem fragilizadas pela situação do abortamento, buscam justificar a assistência baseada somente nas necessidades físicas, visto que elas possuem uma expectativa mínima de cuidado.

Algumas falas das mulheres apontaram ainda momentos considerados como falta de respeito da equipe, em relação às suas necessidades e momentos de descasos.

Eu comecei a ficar nervosa... E ele ficava encostando, eu pedi para ele chega mais pra lá, ele não foi, ele começou a gritar comigo e eu comecei a gritar com ele, aí ele foi pega minha veia, aí acho que ele furo minha veia, olha aqui, aí ele veio fala comigo, gritando, falei com ele também... não é porque a gente tá numa situação dessa que a gente tem que se humilhá pras pessoa (Maria Aparecida).

Nota-se, por esse discurso, a falta de respeito da equipe em relação às necessidades das mulheres e momentos de descaso que podem estar sendo utilizados, de forma camuflada como punição pelo abortamento, trazendo à tona o fato de que o profissional não está isento do juízo de valor e, às vezes, prioriza cuidados em outras situações de hospitalização.

Em seus relatos, algumas mulheres descreveram o cuidado como demorado e muito lento aos seus olhos.

Ahhh...demora viu...quando a gente chama, pelo menos demorou ...(Maria Aparecida).

Ahh...o cuidado tá bom, mas eu acho ele muito devagar, muito lento (Vera).

A demora no atendimento às mulheres em situação de abortamento é percebida, com maior intensidade, entre aquelas que estão sem acompanhantes. Em seus discursos, elas revelaram um cuidado postergado, no qual têm que esperar com dor e caladas, além da falta de informações quanto à sua condição, aos procedimentos que serão realizados, terapêuticas e condutas utilizadas.

... será que não poderia ter tido mais atenção, mais informação, a gente não sabe o que tá acontecendo a gente não estudo aquilo...a gente não sabe o que pode acontecer, a gente não é informada..eu fico preocupada...eu queria mais informação, explicação do que tá acontecendo, o que vai acontecer.... (Vânia).

...só sinto falta de algumas informações... (Eduarda).

As mulheres relataram falta de informações e descaso e esses são fatores que geram medos e ansiedades. Portanto, a situação é muitas vezes traumatizante, uma vez que é permeada pela solidão e medo do desconhecido. Antecipar ou informar significa quebrar o desconhecido, poupar do choque do novo e dividir a sensação de solidão, tentando minimizar os agravos psicológicos(13).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aborto é caracterizado por ser um tema polêmico e um problema de saúde pública cuja morbimortalidade deve ser considerada, no qual a ilegalidade não impede sua ocorrência.

A prática de saúde baseada no modelo biológico tem-se mostrado insuficiente para atender as necessidades apresentadas pelas mulheres, sendo importante atuar compreendendo-as integralmente em suas especificidades e respeitando sua autonomia. A finalidade é proporcionar assistência de qualidade a essas mulheres, conscientizando-as, informando-as e ajudando-as numa situação que não tem retorno.

Compreende-se que o profissional deve refletir no seu fazer, envolvendo-se genuinamente. As necessidades físicas devem ser atendidas, mas a mulher não pode deixar de ser contemplada em sua totalidade. Isso implica em compreender o aborto no contexto existencial das mulheres, desvinculado do seu caráter de ilegalidade ou crime. Nenhuma situação é por si só isolada. O homem vive em um contexto, tem hábitos, valores, condições socioeconômicas, modos de ser que interferem na sua vida, no seu existir.

É fundamental, além da reflexão do profissional na busca da transformação dos modelos de assistência atuais, que haja modificação das próprias mulheres na busca de maior autonomia, conhecimento de seu próprio corpo, desenvolvimento do empoderamento, prevenção quando o desejo é não ter filhos e busca de seus direitos como usuárias dos serviços de saúde.

Os profissionais de saúde, particularmente os de enfermagem, que atuam nesse campo, deveriam estar conscientes do seu papel no controle social e na garantia dos direitos dos seus clientes, independente da situação que se apresenta, pois são os sujeitos que operacionalizam, dão sentido, corpo e qualidade às políticas de saúde. É necessário que eles compreendam que o acesso universal à saúde e o respeito às singularidades de cada indivíduo, sem qualquer tipo de discriminação, são direitos constitucionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em:15.2.2005

Aprovado em: 13.9.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2007
  • Data do Fascículo
    Fev 2007

Histórico

  • Aceito
    13 Set 2006
  • Recebido
    15 Fev 2005
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