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Violência laboral em enfermeiras: explicações e estratégias de enfrentamento

Resumos

O objetivo do estudo foi explorar parte da experiência do assédio laboral, vivenciado por treze enfermeiras chilenas, analisando a relação entre as explicações e as estratégias de enfrentamento, para formular um modelo compreensivo que inclua os elementos envolvidos e que possa ser utilizado para desenvolver estratégias preventivas. Os dados foram coletados através de entrevistas semiestruturadas, utilizando como critério de finalização a saturação teórica e analisados segundo os procedimentos da Grounded Theory. A análise relacional mostra a influência de fatores perpetuantes do fenômeno, também dos fatores organizacionais e dos relacionados à execução do papel profissional. A partir do modelo compreensivo se postula que esse tipo de violência é fenômeno circular, no qual os elementos envolvidos se influenciariam e se relacionariam com as construções narrativas do fenômeno e com elementos contextuais, todos podem, também, ser considerados como parte da causalidade mais provável do mesmo.

Adaptação Psicológica; Enfermeiros; Saúde do Trabalhador


This study explored part of the experience of occupational harassment, experienced by thirteen Chilean nurses, analyzing the relationship between the explanations and their coping strategies, to formulate a comprehensive model that includes the involved elements and that can be used to develop preventive strategies. Data were collected through semi-structured interviews, using theoretical saturation as the ending criterion and were analyzed according to the procedures of Grounded Theory. The relational analysis shows the influence of factors that perpetuate the phenomenon, both the organizational factors and the ones related to the execution of professional roles. According to the comprehensive model, this kind of violence is a circular phenomenon, in which the involved elements influence each other and are related to the narrative constructions of the phenomenon and to contextual elements, which can also be considered as part of the most probable cause of it.

Adaptation, Psychological; Nurses, Male; Occupational Health


El objetivo del estudio fue explorar parte de la experiencia de hostigamiento laboral vivida por trece enfermeras chilenas, analizando la relación entre sus explicaciones y sus estrategias de afrontamiento, para luego formular un modelo comprensivo que contenga los elementos involucrados y que pueda utilizarse para desarrollar estrategias preventivas. Los datos se recolectaron a través de entrevistas semi estructuradas utilizando como criterio de finalización la saturación teórica y se analizaron según los procedimientos de la Grounded Theory. El análisis relacional muestra la influencia de factores que perpetuán el fenómeno, tanto los organizacionales como los relativos a la ejecución del rol profesional; utilizando el modelo comprensivo se postula que este tipo de violencia es un fenómeno circular, en el cual los elementos intervinientes se influyen mutuamente relacionándose con las construcciones narrativas del fenómeno y con los elementos contextuales, los cuales también pueden considerarse como parte de la causalidad más próxima del mismo.

Adaptación Psicológica; Enfermeros; Salud Laboral


ARTIGO ORIGINAL

Violência laboral em enfermeiras: explicações e estratégias de enfrentamento1

Angelina María Dois Castellón

Enfermeira obstétrica, Mestre em Psicología da Saúde, Especialista em Terapia Familiar e de Casais, Profesor Associado, Escuela de Enfermería, Pontificia Universidad Católica de Chile. E mail: adois@uc.cl

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo do estudo foi explorar parte da experiência do assédio laboral, vivenciado por treze enfermeiras chilenas, analisando a relação entre as explicações e as estratégias de enfrentamento, para formular um modelo compreensivo que inclua os elementos envolvidos e que possa ser utilizado para desenvolver estratégias preventivas. Os dados foram coletados através de entrevistas semiestruturadas, utilizando como critério de finalização a saturação teórica e analisados segundo os procedimentos da Grounded Theory. A análise relacional mostra a influência de fatores perpetuantes do fenômeno, também dos fatores organizacionais e dos relacionados à execução do papel profissional. A partir do modelo compreensivo se postula que esse tipo de violência é fenômeno circular, no qual os elementos envolvidos se influenciariam e se relacionariam com as construções narrativas do fenômeno e com elementos contextuais, todos podem, também, ser considerados como parte da causalidade mais provável do mesmo.

Descritores: Adaptação Psicológica; Enfermeiros; Saúde do Trabalhador.

Introdução

O mobbing é uma situação laboral na qual uma pessoa é objeto de atos negativos, intencionais, persistentes e repetidos no tempo, caracterizado pela assimetria da relação, a diferença relativa de poder entre vítima e acossador e a ausência de sequelas visíveis, exceto o deterioração psicológica da vítima(1).

Há evidência internacional de altas taxas de prevalência de mobbing contra as enfermeiras(2-4). Entre as causas, são mencionadas algumas características pessoais e organizacionais e a aparente existência de uma cultura nas equipes de enfermagem que invisibiliza o problema e aumenta a probabilidade de ser vitimado(1,3,5-9).

Entre suas consequências, se tem descrito maior acidentalidade, licenças médicas prolongadas e isolamento, alterações na saúde física e mental, das relações sociais e da atenção necessária para executar o trabalho(5-6,9). Alguns estudos mostram que, para fazer frente a ditas situações, as enfermeiras optam por estratégias que vão desde a passividade e à não defensa até à utilização de redes de apoio, não sendo menor a percentagem que ignora a situação ou renuncia ao trabalho(3,10-11). No Chile, 30% dos trabalhadores denunciam ser vítimas de mobbing, sendo as deficiências organizacionais/laborais aquelas que mais se associam ao fenômeno. Por outro lado, no país, a disponibilidade de enfermeiras somente cobre 51% das demandas, o que gera maior carga laboral e aumenta o risco de ocorrência de fenômenos violentos, que afetam diretamente a pessoa e aos usuários, que se encontram envolvidos como vítimas secundárias, já que as enfermeiras deixam de atender seus labores profissionais, como consequência do processo do mobbing, traduzindo-se isso em cuidado de menor qualidade e em alguns casos de negligência(4). Pelo exposto, o estudo teve como objetivo explorar uma parte do fenômeno e analisar as explicações acerca do acossamento, oferecidas pelas enfermeiras vitimadas, e como essas se relacionam com as suas estratégias de enfrentamento, para logo formular um modelo compreensivo que inclua os elementos envolvidos no fenômeno, e que poderia ser utilizado para desenvolver estratégias de prevenção.

Metodologia

Trata-se de estudo retrospectivo, analítico-relacional, qualitativo, baseado na Grounded Theory(12). Essa metodologia é útil para explorar novos campos de estudo ou objetos de pesquisa, dos quais se tem conhecimento limitado, e, por esse motivo, se adéqua ao interesse de abordar o tema desta pesquisa, quer dizer, descrever como as explicações que as enfermeiras constroem sobre suas experiências de mobbing se relacionam às estratégias de enfrentamento das mesmas, a partir da influência de fatores pessoais e contextuais, considerando que, no Chile, o mobbing é tema relativamente novo e não se tem evidência disponível no caso das enfermeiras.

As participantes foram selecionadas respeitando os critérios de pertinência, adequação, conveniência, oportunidade e disponibilidade para obtenção dos dados. Utilizando amostragem por conveniência e bola-de-neve, contataram-se as treze enfermeiras que participaram do estudo, entrevistadas entre os meses de janeiro e maio de 2007. Todas elas eram chilenas e se identificaram como vítimas de mobbing, durante seu exercício profissional (excluindo violência física, assédio sexual e violência de qualquer tipo, exercida pelos usuários do sistema de saúde). Os dados foram coletados usando-se entrevistas semiestruturadas com um questionário temático validado, construído a partir de perguntas norteadoras, baseadas na evidencia disponível. Cada uma delas foi gravada, transcrita e analisada na sua totalidade, dando início ao processo de codificação aberta. Uma vez terminada essa primeira codificação, procedeu-se à realização da segunda entrevista e, seguindo o mesmo procedimento anterior, também foi codificada. Nessas codificações, foram realizadas algumas modificações no questionário da entrevista para aprofundar alguns temas, procedimento que se repetiu na análise das entrevistas seguintes. O critério de finalização das entrevistas foi a saturação teórica(12). A organização e análise foram realizadas manualmente, segundo os procedimentos da Grounded Theory. Utilizou-se a codificação aberta para identificar os conceitos emergentes, suas propriedades e dimensões. Para a análise analítica relacional, realizaram-se duas codificações axiais para relacionar categorias e subcategorias, em volta de eixos aglutinadores e uma codificação seletiva, para integrar as categorias principais num esquema teórico mais amplo que permitisse formular um modelo explicativo(12).

Para diminuir o viés do pesquisador, as categorias relevantes foram determinadas segundo os resultados aportados pelas entrevistas, os antecedentes bibliográficos e a triangulação por especialistas.

A confidencialidade da informação, a autonomia das participantes e a proteção da sua dignidade foram asseguradas através do consentimento informado, aprovado para o Projeto de Pesquisa nº 0702005010 (Purdue University Institucional Review Board).

Resultados

As participantes, quando foram vitimadas, tinham entre 23 e 56 anos de idade. A maioria era solteira, trabalhavam em serviços públicos e privados, ambulatórios e hospitais. A média de desempenho no cargo era de 3,9 anos (6 meses a 14 anos) e a duração média do acossamento foi de 19 meses (2 a 84 meses). Entre os acossadores, 11 eram enfermeiras, sendo que 9 exerciam função de chefia.

Os códigos obtidos na codificação aberta se agruparam sobre dois aspectos que se destacam nos resultados descritivos (codificação axial). A segunda etapa (codificação seletiva) permitiu construir um modelo compreensivo que articulava os aspectos essenciais dos resultados, em volta do fenômeno estudado.

Da análise relacional, se desprende que o contexto organizacional, a clareza na execução do papel da enfermeira, as características das condutas de assédio e os fatores envolvidos nos mecanismos de enfrentamento das mesmas atuam como facilitadores da ocorrência do mobbing nesse grupo.

No que se refere ao contexto organizacional, as características do ambiente laboral, o sistema de incentivos, a política de resolução de conflitos da instituição e a ação das chefias (não diretamente relacionadas à vítima) intervêm diretamente na ocorrência e manutenção do mobbing, sendo as duas últimas identificadas como elementos influentes, por si mesmos, no curso do conflito. Nesse sentido, políticas claras na forma e tempo, no qual um conflito deve ser resolvido e a posição das chefias, perante as denúncias, marcam a diferença no apoio percebido e no enfrentamento da vítima aos acontecimentos.

Nalgum momento eu disse "ela vai ficar do meu lado"... Tinha a sensação que sempre ia me apoiar, mas não foi assim, esse, eu creio, foi o momento mais duro e onde senti que me deu as costas, me fechou a porta e me bateu uma desconhecida... (Enf 10).

Outro fator identificado se refere à clareza da enfermeira na execução do seu papel profissional que receberia a influência de formação universitária técnica (com escasso desenvolvimento de um pensamento crítico, capaz de reconhecer e destacar o foco da disciplina) e, por outro lado, da imagem social com a qual se reconhece a enfermeira, influenciada pela herança cultural que a situa num papel derivado do cuidado religioso, supervisado pelo médico e pelas expectativas que dela se tem, segundo seja seu grau de especialização e o nível socioeconômico da população que a julga.

A enfermeira sempre está temerosa de demonstrar o que sabe e do que é capaz de fazer... a falta de seguridade... o médico segue sendo a figura assim como Deus, então não podes fazer um comentário que seja distinto ao que pensa o médico... (Enf 8).

Segundo se conjugam esses elementos, o papel profissional é executado seguindo distintos padrões que dão conta da solidez da construção do mesmo e dos paradigmas que reconhecem como próprios e que diferenciam a profissão.

Distinguem, ademais, características pessoais que influem na execução do papel e nos estilos laborais de relação, podendo se diferenciar daqueles que destacam a submissão e, outros, o autoritarismo das chefias para desenvolver o trabalho, o primeiro estabelecendo relações horizontais de cooperação e proximidade e, no segundo, se destaca a verticalidade das relações que as mantêm afastadas dos seus pares.

Nesse tipo de relações laborais, as condutas hostis se caracterizam por serem solapadas, reiteradas, mantidas no tempo e abrangendo o âmbito pessoal e profissional da vítima, que é objeto de ações de intimidação e de ameaças, relacionadas, na sua maioria, a maus-tratos verbais e rumores sobre a vida privada. No laboral, as condutas buscam dificultar o desenvolvimento e execução do trabalho, ocultando informações relevantes e ameaçando o status profissional da vítima.

Era como se tu sentiras que estão falando de ti, que estão tratando de prejudicar-te, mas tu não enxergas ninguém... (Enf 5).

Devido à constância e permanência no tempo, as vítimas fazem uso de estratégias de enfrentamento que buscam terminar com o acossamento, confrontando ou denunciando o fato (ativas), ou diminuindo os contactos com o hostilizador e extinguindo as condutas (passivas), podendo ser observado que, muitas vezes, mudam de ativas para passivas ou vice-versa, devido aos infrutuosos resultados dos primeiros intentos de resolução.

Eu diria que mantive silêncio e tentei quase passar inadvertida, ou seja, quase de anular-me e sair do caminho... (Enf 12).

Essas estratégias, porém, podem se modificar e/ou reforçar, segundo a definição que as enfermeiras fazem da experiência, as motivações para seguir trabalhando e a reação das testemunhas.

Considerando todos os componentes descritos, configurou-se um modelo compreensivo que articula variáveis históricas, contextuais e pessoais para explicar o fenômeno (Figura 1).


No contexto, existem fatores históricos relacionados ao desenvolvimento da profissão e mediados pela socialização de gênero, recebida pelas enfermeiras enquanto mulheres, que jogam um papel fundamental na construção da imagem social das mesmas e nas características da formação profissional recebida, determinando a forma utilizada pelas enfermeiras para desenvolver e executar seu papel profissional.

Da imagem social se destaca que ainda é possível identificar elementos ligados à herança religiosa, determinante no desenvolvimento da enfermagem na América Latina, durante a conquista espanhola, da qual vem a visão do papel profissional associado à humildade e à tradição de servir, e, por outro lado, elementos ligados ao papel técnico, subordinado à prática médica que caracterizou a época do reformismo(13). O grande desenvolvimento científico/disciplinar da profissão dos últimos cinquenta anos não tem conseguido transpor a barreira cultural que permeia o imaginário coletivo e que, segundo as mesmas enfermeiras, as posiciona num papel primário de serviço não profissional que seria, em parte, reforçado por formação universitária excessivamente técnica.

Além disso, ao analisar a imagem social da enfermeira, não é possível concluir que, por serem majoritariamente mulheres, também respondem às características associadas ao papel feminino na sociedade. O serviço e o cuidado têm sido historicamente visualizados dentro dos limites do âmbito familiar, sendo que sua extensão ao cuidado de outros segue visto como uma continuidade do papel doméstico, o que determina a posição social da mulher e por extensão da enfermagem(14); caracterizando quem assume essa tarefa como sensível, complacente, passiva, obediente e dependente(15); elementos reconhecidos pelas enfermeiras como parte da sua imagem social e, a partir dos quais, é impossível se negar ao mandato de serem permanentemente boazinhas.

Nessa linha, a formação recebida seria um determinante para formulação do papel social das mesmas, construindo-se, assim, um círculo perpetuante e mutuamente reforçante. As enfermeiras descrevem que é precisamente a formação profissional que as colocariam no papel fundamental para a ocorrência do mobbing, sendo essa fortemente influenciada pela valoração da técnica e a dificuldade para desenvolver atitudes que lhes permitiriam posicionar-se profissionalmente no exercício do papel, quer dizer, num papel executado ativamente e com autonomia, a partir da reflexão crítica das situações da enfermagem, situações que se contrapõem ao proposto por outros pesquisadores(16).

A imagem social e a formação, porém, não são condições isoladas, elas são aquelas que operam, influenciando diretamente aqueles que estão em processo de formação. As participantes e a evidência disponível descrevem que, muitas vezes, os alunos são vítimas de acossamento, o que poderia contribuir para a incorporação de um pacto violento de relação como modo habitual de desenvolvimento do trabalho, que tornaria invisível o fenômeno por considerá-lo constitutivo da profissão(5); situação que também contradiz as propostas de alguns pesquisadores(16). Outro elemento que as enfermeiras consideram relevante, na ocorrência e manutenção do mobbing, se relaciona às características do lugar de trabalho. Geralmente, as instituições de saúde tendem a reproduzir, no seu funcionamento, modelos de poder legitimados culturalmente e que reforçam os papéis assimétricos, referentes ao mesmo. No caso do mobbing, ele entraria nas organizações onde predominam sistemas de crenças e valores que validam o autoritarismo como forma de relação e que, ademais, perpetuam hierarquias consideradas inamovíveis(17); elementos que são descritos pelas enfermeiras ao analisar a influência do contexto institucional, onde laboram, e que se configurariam como facilitadores da ocorrência de mobbing, nesse grupo. Além disso, todas elas trabalhavam em instituições de grande porte, que não possuíam política clara de incentivos e de resolução de conflitos, o que facilita a manutenção e permanência do mobbing(1,18-19); e em ambientes laborais de alto estresse e sobrecarga laboral, com climas interpessoais frios e empobrecidos, facilitando a ocorrência do acossamento, o que também tem sido reportado como um elemento interveniente por outros autores(18).

Por último, outro fator institucional que se destaca é o papel das chefias, que não estão diretamente envolvidas no mobbing, diferenciando o curso que ele tome, dependendo, em grande medida, das ações que elas executam. Porém, a maior parte das enfermeiras percebeu apoio menor do que o esperado, concordando, assim, com outros estudos, situação que se faz relevante devido ao impacto na saúde mental das mesmas e no curso das estratégias de afrontamento que utilizam(5,8).

Essas características contextuais estruturariam a base sobre a qual se assentaria o mobbing, que, da mesma forma que em outros estudos, considerou principalmente as duas enfermeiras (vítima e assediador)(5,8); modificando seu padrão relacional habitual para iniciar um ciclo de assédio(1); que, na maioria das vezes, terminou com a resignação à instituição, sem sanção aos responsáveis pelo assédio nem reparação institucional às vítimas.

Entre as condutas mais frequentes nesse grupo, se encontram o acossamento verbal e a ocultação de informação relevante para o trabalho, ainda somado a comportamentos que atacam a imagem pública e o status profissional da vítima, divulgando rumores, criticando o desempenho laboral, determinando tarefas abaixo das suas possibilidades, dificultando a realização do trabalho, o que concorda com os achados relatados por outros pesquisadores(1,7). As condutas de assédio produzem, na vítima, experiência subjetiva de estresse que aciona distintas estratégias de enfrentamento, cujo sucesso ou fracasso, do controle da situação, pode determinar, em grande medida, o significado e duração das consequências.

Foi possível comprovar que, da mesma forma que descrito na literatura, as enfermeiras fixavam um prazo para resolver a situação e mudavam de estratégias passivas para ativas, uma vez que o prazo tinha finalizado, ou faziam intentos ainda mais explícitos com a finalidade de deter a progressão das condutas. Também se encontrou, em muitos casos, que as enfermeiras que respondiam inicialmente de forma ativa às condutas violentas, esgotavam progressivamente suas estratégias defensivas, especialmente se não encontravam o apoio explícito da organização, ou se as consequências dos fatos eram percebidas como graves, e, nesse caso, utilizavam estratégias mais passivas de enfrentamento.

Além das consequências, em si mesmas, ou em função da duração do acossamento, através das entrevistas, foi possível resgatar o valor de três elementos específicos que influenciam diretamente as estratégias de enfrentamento utilizadas. O primeiro, relacionado à motivação para permanecer no seu trabalho, que se associava a garantias laborais e a vínculos afetivos desenvolvidos durante a permanência na instituição. Se esses eram suficientemente fortes e com poder de contenção contribuíam para diminuir as consequências do acossamento. Por outro lado, também se destaca que a deterioração psicológica das enfermeiras as leva a não valorizar corretamente sua capacidade profissional, o que as motivava para se esforçarem na conservação do trabalho, acreditando que essa seria a única fonte laboral a que podiam ter acesso.

O terceiro fator envolvido se relaciona à definição metafórica, outorgada ao fenômeno, que explica a qualidade da vivência que experimentam, o que permite recuperar o significado que, para elas, tem a experiência, mas explicitando os processos que implicam e os resultados que geram. Essas narrações poderiam ajudar a desvelar como ocorreu o fato, sendo as imagens alternativas do ocorrido um meio mais compatível para manejar construtivamente o conflito, já que, de alguma forma, as representações da violência incorporam o sentido que se dá à experiência(20). Quando as metáforas utilizadas incluíam elementos de resolução direta, as estratégias iniciais de afrontamento foram mais ativas (confrontação e solicitude explícita de ajuda).

Então você tem que começar a caminhar como na selva, olhando para todas as partes porque sabes que os punhais podem vir de qualquer lado (Enf 13).

Por outro lado, se a metáfora incorporava elementos catastróficos, as estratégias eram mais passivas.

Estava caindo num buraco e não tinha onde segurar-me, eu estava caindo e caindo (Enf 7).

Em ambos os casos isso pode se associar a representações narrativas que são construções dinâmicas, estruturantes e perseverantes que consideram processos cognitivos e emocionais produtores de sentido, e que se constituem esquemas organizadores da realidade(20).

Discussão

A partir do anteriormente exposto, é possível relacionar os elementos que as enfermeiras identificam como parte de suas experiências de mobbing com a compreensão da violência, a partir do Modelo Ecológico. Ao centrar a atenção no macrossistema, é possível distinguir alguns elementos que se constituem em particularidades da realidade sociocultural da enfermagem, associadas à cultura das organizações da saúde, ao desenvolvimento histórico da profissão, à influência das desigualdades de gênero e ao imaginário social que se tem construído em torno das enfermeiras, que poderiam estar atuando como uma base que sustenta as relações abusivas que elas sofrem, no âmbito laboral ,e que seriam recriadas nas instituições de saúde que formam parte do ecossistema da vítima. Essas tenderiam a reproduzir modelos de funcionamento socialmente aceitos que reforçam a assimetria dos papéis em relação ao poder e que, por outro lado, se centram no cumprimento de objetivos e metas, tornando invisíveis às pessoas, constituindo-se em contextos propícios para que apareçam e se mantenham vigentes as práticas do assédio.

Nos microssistema e mesossistema, as enfermeiras se relacionam no trabalho em ambientes descritos como hierárquicos, rígidos, intolerantes ao conflito e que legitimam os comportamentos abusivos como forma habitual de relação.

Por último, sob a perspectiva individual, a forma na qual as enfermeiras estabelecem suas relações laborais e constroem as explicações do fenômeno do assédio, se relacionam com as dimensões pessoais, propostas na literatura. A maneira como as enfermeiras conceituam suas experiências, os padrões de relação e de comunicação com outras pessoas e o nível de autoestima e/ou fragilidade emocional foram descritas com características particulares, seja para as vítimas ou para os agentes do assédio, numa relação que, para as envolvidas, está diretamente relacionada à ocorrência e manutenção do mobbing.

Considerações finais

O mobbing nas enfermeiras é fenômeno de movimento circular que provoca alto nível de estresse naqueles que o experimentam. No caso das enfermeiras, além de repercutir em distintos âmbitos da sua vida e sua saúde, afeta necessariamente, como vítima secundária, os usuários que cuida. Os elementos que intervêm no desenvolvimento e manutenção do mobbing se relacionam recursivamente, podendo se distinguir uma concatenação de fatores que explicam a complexidade do fenômeno em si mesmo e se relacionam com aspectos formativos e do contexto histórico e cultural, considerando neles a cultura organizacional das instituições sanitárias, como, também, algumas características dos atores envolvidos e dos estilos de relação laboral, o que propiciaria um círculo que perpetua o acossamento, no qual as condutas perpetradas contra as vítimas e suas estratégias de enfrentamento se influenciam, mutuamente, e se relacionam com as construções narrativas do fenômeno e com elementos contextuais, todos eles podendo ser considerados como parte da causalidade mais próxima da evolução do mesmo.

Como enfermeiras, não se é possível abster-se dessa realidade. O correto seria assumir papel ativo na prevenção do fenômeno, intervindo sobre aqueles fatores que podem ser modificados. Faz-se evidente, então, a necessidade de ampliar e aprofundar o estudo do acossamento laboral na enfermagem, para explicar as características desse fenômeno no contexto nacional e, da mesma maneira, é relevante aprofundar sobre as características da formação universitária e do modelo que recebem, os quais poderiam estar relacionados ao processo de construção da identidade profissional e a manutenção de valores culturais, associados ao gênero e ao exercício do poder.

No âmbito laboral, se faz necessário pesquisar aspectos relativos à invisibilidade da violência nas equipes de enfermagem para que o acossamento laboral seja considerado como um problema que atenta contra o princípio do respeito às pessoas e seja definido como uma situação inaceitável nas relações que se estabelecem no interior das equipes de trabalho, independentemente da hierarquia e situação dos envolvidos, ou das características específicas dos contextos laborais.

Não é possível efetuar a gestão do cuidado dos outros se as enfermeiras não realizam o autocuidado, e se não se consideram dignas de serem cuidadas, assim, o trabalho preventivo constitui-se num imperativo moral que deve ser atendido.

Agradecimentos

À María Paz Tagle, PhD, que orientou o desenvolvimento desta pesquisa.

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  • Corresponding Author:
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Fev 2011

    Histórico

    • Recebido
      23 Nov 2009
    • Aceito
      03 Dez 2010
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