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Utilitarismo, pobreza e desenvolvimento dos portadores de deficiência

Resumos

Objetivou-se analisar a influência dos fatores de desenvolvimento humano na vivência dos portadores de deficiência, tomando por base os cenários sociais de desigualdade. Os dados coletados foram padronizados e alocados em núcleos temáticos. A análise fundamentou-se no utilitarismo liberal. Conforme se concluiu, no Brasil, os portadores de deficiência conquistaram legislação que assegura seu desenvolvimento, mas enfrentam dificuldades para superar a pobreza e alcançar esse desenvolvimento. Os fatores que limitam seu desenvolvimento situam-se no campo da saúde, da educação e do trabalho. E ainda existem resquícios de preconceito tendentes a legitimar a prática da equidade nos moldes do utilitarismo liberal.

pobreza; desenvolvimento humano; justiça social; ética


This study aims to analyze the influences of human development factors in the experience of disabled people based on social scenarios of inequality. The data collected were standardized and allocated in thematic categories. The analysis was based on liberal utilitarianism. The conclusion is that there is legislation in Brazil that guarantees the disabled people's development in areas such as health, education and work. However despite the attempts of decision makers in combating discriminatory behaviors and the theory based on equity, these people still face difficulties in breaking the barrier of poverty and achieving all humans rights deserved.

poverty; human development; social justice; ethics


Este taller analiza la influencia de los factores de desarrollo humano en la vida de los portadores de deficiencia, tomando por base los escenarios sociales de desigualdad. Los datos colectados han sido puestos en patrones y alojados en núcleos temáticos. El análisis se ha fundamentado en el utilitarismo liberal. Se concluyó que, en Brasil, los portadores de deficiencia conquistaron legislación que asegura el su desarrollo, sin embargo enfrenten dificultades para superar la pobreza y alcanzar desarrollo; que los factores que limitan su desarrollo se localiza en el campo de la salud, de la educación y del trabajo. Y aún existen resquicios de prejuicio que se encargan de legitimar la práctica de la equidad en los moldes del utilitarismo liberal.

pobreza; desarrollo humano; justicia social; ética


ARTIGO DE REVISÃO

IDoutor em Enfermagem, Docente do curso de graduação em Enfermagem da Universidade Estadual da Paraíba, Brasil, e-mail:isxf@oi.com.br

IIDoutor em Enfermagem, Docente do Departamento de Enfermagem, da Universidade Federal do Ceará, Brasil, e-mail:pagliuca@ufc.br

RESUMO

Objetivou-se analisar a influência dos fatores de desenvolvimento humano na vivência dos portadores de deficiência, tomando por base os cenários sociais de desigualdade. Os dados coletados foram padronizados e alocados em núcleos temáticos. A análise fundamentou-se no utilitarismo liberal. Conforme se concluiu, no Brasil, os portadores de deficiência conquistaram legislação que assegura seu desenvolvimento, mas enfrentam dificuldades para superar a pobreza e alcançar esse desenvolvimento. Os fatores que limitam seu desenvolvimento situam-se no campo da saúde, da educação e do trabalho. E ainda existem resquícios de preconceito tendentes a legitimar a prática da equidade nos moldes do utilitarismo liberal.

Descritores: pobreza; desenvolvimento humano; justiça social; ética

INTRODUÇÃO

A América Latina destaca-se como a região onde existe a mais desequilibrada distribuição de recursos. Esse fenômeno é conseqüência da sua posição no sistema econômico global, do colonialismo interno que mantém as categorias raciais e do subdesenvolvimento das estruturas estatais(1). A crise do capitalismo, a globalização da economia e as transformações dos processos de produção econômica causaram impacto social resultando em crescimento do desemprego, pobreza, desigualdades sociais e, conseqüentemente, em processo de exclusão daqueles indivíduos considerados desnecessários ao universo produtivo.

No Brasil, a Coordenação Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, dispõe de legislação específica com vistas a forjar novos arranjos institucionais articulados a formas de participação sociais criativas que assegurem a conquista da cidadania pela via da justiça e da inclusão social. Entre os postulados legais ressaltam-se os seguintes: a Lei nº 7.853(2), o Decreto nº 3.298(3), que regulamenta a Lei nº 7.853, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e consolida as normas de proteção; e a Lei nº 10.098(4), que estabelece normas gerais e critérios para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

Ao considerar a possibilidade de preterição dos portadores de deficiência no mercado de trabalho, e que os fatores causais do desemprego sobressaem como determinante maior do grau de pobreza em que eles vivem, cabe, pois, indagar: qual a situação socioeconômica das pessoas portadoras de deficiência na atual conjuntura brasileira?

Selecionou-se o objeto "pobreza e desenvolvimento dos portadores de deficiência" com o objetivo de analisar a influência dos fatores de desenvolvimento dos portadores de deficiência, com base nos cenários sociais de desigualdade. A hipótese perseguida é a de que, no Brasil, as instituições criam instrumentos destinados a estimular a construção de sociedade inclusiva, que possibilita aos portadores de deficiência desenvolver suas potencialidades, mas o utilitarismo liberal se encarrega de dificultar essa construção, criando espaço para concepções ilusórias de bem-estar social.

MÉTODO

Trata-se de revisão bibliográfica acerca do objeto "pobreza e desenvolvimento dos portadores de deficiência". O recorte temporal, adotado, foi de 1981 a 2006. O corte epistemológico justifica-se por ter sido 1981 proclamado, pela Organização das Nações Unidas, o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência.

Coletou-se os dados nas bases LILACS e MEDLINE, utilizando-se os seguintes descritores: pobreza, desenvolvimento humano, justiça social e ética. Coletaram-se dados no site http://www.sedh.gov.br, pertinente ao Ministério da Justiça no Brasil, para o recorte de legislação promotora da inclusão social dos portadores de deficiência, e em bibliografia de autores que enfocassem a influência do utilitarismo nas conjunturas sociais.

Para fazer jus ao objetivo do estudo, quando da composição do corpus, deu-se preferência aos textos em português que enfocassem a condição socioeconômica dos portadores de deficiência. No referente aos periódicos nacionais de enfermagem, não foram encontrados artigos abordando essa temática.

Após busca e seleção do material, realizou-se leitura superficial e profunda para captação das idéias centrais e dos conceitos utilizados pelos autores na formulação de idéias acerca da pobreza e do desenvolvimento humano e sobre as políticas sociais para a inclusão dos portadores de deficiência.

Procedeu-se, então, à padronização dos dados e elaboração de núcleos temáticos. Concluída essa etapa, realizou-se análise para articular as situações descritas nos núcleos temáticos com as idéias contidas na obra Utilitarismo(5). Por fim, pontuou-se conclusões acerca das condições socioeconômicas dos portadores de deficiência e sugeriu-se intervenções com vistas à redução da pobreza e ao desenvolvimento desses indivíduos.

ASPECTOS FUNDANTES DA POBREZA E DA DESIGUALDADE SOCIAL

A pobreza pode ser definida como carência de bens e serviços essenciais. Isso significa impossibilidade de atender às necessidades de nutrição, saúde, vestuário e habitação, recursos econômicos, bom nível de escolaridade, emprego, auto-estima elevada, sociabilidade e participação social(6).

Para a classificação da pobreza, usam-se como critérios determinados indicadores, assim especificados: pobreza absoluta, quando a pessoa tem ingestão diária de calorias inferior ao que ela necessita, ou seja, menos de 2.000 a 2.500 quilocalorias, e sobrevive com menos de um dólar por dia. Já a pobreza relativa corresponde àquela em que o indivíduo sobrevive com um a dois dólares por dia(7). Essas situações são detectadas mediante indicadores, entre eles, o Coeficiente de Gini. Tal parâmetro mede a concentração de renda de dada população, de modo que, quanto mais próximo de um estiver o valor do coeficiente, maior será a concentração de renda. E quanto mais próximo de zero, menor será a concentração de renda. Nesse último caso, maior será a igualdade econômica nessa população(8).

Para além dos fatores determinantes da pobreza, a globalização da economia destaca-se em virtude dos seus efeitos indesejáveis: pobreza-exclusão. Esse sistema econômico fundamenta-se, a priori, nas idéias contidas no utilitarismo liberal, uma corrente ética que estimula a livre concorrência como ferramenta alavancadora do desenvolvimento social(9). A influência dessa corrente ética fez surgir, no século XVIII, o Estado liberal, movimento contra o Estado absolutista e sua interferência sobre mercados livres(10).

O liberalismo econômico proliferou nos séculos XVIII e XIX e contribuiu para os avanços da industrialização e da tecnologia e para a intensificação tanto das lutas pelo domínio dos mercados mundiais como das contradições entre as grandes potências. Como conseqüências desse movimento surgiram, então: depressão econômica, fortalecimento das teorias socialistas, reivindicação pelos sindicatos de trabalhadores de leis protetoras de direitos sociais, direitos operários e modificações nas relações de trabalho. Tal fato impulsionou a intervenção do Estado no sentido de resgatar a economia, ao instituir nova fase capitalista agora marcada pelo Welfare State, uma política de bem-estar social inspirada nas idéias de John Maynard Keynes(11).

No final da década 1970 e início dos anos 1980, a política Keynesiana, que já era acusada de causar inflação, sofreu o impacto da ação conservadora dos governos da Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, que colocaram em prática idéias neoliberais baseadas na desregulamentação, na privatização e na abertura comercial. Devido à relação de interdependência entre os países, essa política disseminou-se por todos os continentes de modo que, no início dos anos 1990, o Brasil cedeu a essa política por força da sua dívida externa(12).

Como mostra a realidade, a globalização da economia trouxe benefícios para muitos países, mas não para todos. E, apesar da pobreza global ter sido reduzida, ela ainda se constitui problema que clama por intervenção, pois, em todo o mundo, 1.100 milhões de pessoas sobrevivem em pobreza absoluta; mais de 800 milhões estão subnutridas; diariamente, morrem 50 mil pessoas, na maioria, mulheres e crianças e, anualmente, morrem, aproximadamente, 11 milhões de crianças antes de completar 5 anos de idade(7).

Tratando-se do desenvolvimento humano, esse é avaliado mediante mensuração da pobreza, alfabetização, educação, esperança de vida e natalidade de determinado país em comparação com outros países do mundo, tomando por base o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O IDH é considerado baixo quando estiver entre 0 e 0,499; médio, quando se situar entre 0,500 e 0,799 e alto quando estiver entre 0,800 e 1. Desde 1993, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento usa esse índice em seu relatório anual. Conforme os dados, existem 75 países com alto grau de desenvolvimento humano. Inscrito entre os 177 países avaliados, o Brasil, em 2006, alcançou o índice 0,792. Dessa forma, situou-se na 69ª colocação em relação aos demais países(7).

A VIVÊNCIA DAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA NO BRASIL

De acordo com o censo 2000, realizado no Brasil, existem 24,5 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Dessas, o maior percentual encontra-se na Região Nordeste, notadamente nos Estados da Paraíba (18,7%), Rio Grande do Norte (17,6%), Piauí (17,6%), Pernambuco (17,4%) e Ceará (7,3%). E o menor percentual, nos Estados de São Paulo (11,3%), Roraima (12,5%), Amapá (13,2%), Paraná (13,5%) e Distrito Federal (13,4%). Dessas pessoas, 19,8 milhões residem na zona urbana e 4,8 milhões na zona rural. No concernente ao tipo de deficiência, os resultados apontam 48% de deficiência física, 22,9% de deficiência motora, 16,7% de deficiência auditiva, 8,3% de deficiência mental e 4,1% de deficiência visual(13). Segundo apontado, a principal causa de deficiência é a falta de assistência na gravidez. Essa precária assistência à gestante é responsável por 16,8% dos casos, seguido de problemas genéticos, com 16,6%(14).

Relacionado ao gênero, coletou-se que 13.179.712 pessoas são do sexo feminino, contra 11.420.544 do sexo masculino. Entre os 9 milhões de portadores de deficiência inseridos no mercado de trabalho, 5,6 milhões são homens e 3,4 milhões são mulheres. Desse contingente, 4,9 milhões ganham até 2 salários mínimos(13-14).

No ano 2000, no tocante à instrução, o acesso de portadores de deficiência na faixa etária de 7 a 14 anos foi 88,6%, caindo para 74,9% para pessoas com deficiência severa e para 61% para pessoas com deficiência física permanente. Já entre as pessoas com 15 anos ou mais, a taxa de alfabetização foi da ordem de 72%. E entre as pessoas nessa mesma faixa etária, com até 3 anos de estudo, foi de 32,9%(13).

Ao considerar que, no Brasil, a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência é o órgão responsável pela gestão de políticas voltadas para a inclusão dessas, pessoas objetivando a defesa de direitos e a promoção da cidadania, que o último IDH brasileiro (0,792) refere-se ao coletivo da população, que esse índice é expressão de pobreza, da falta de oportunidades de emprego e que esse contexto pode desencadear discriminação social contra grupos vulneráveis, questiona-se: que fatores persistem em determinar que os portadores de deficiência sobrevivam na precariedade, numa situação de pobreza-exclusão? Quais os desafios na construção de espaços de desenvolvimento dessas pessoas?

DETERMINANTES DA POBREZA-EXCLUSÃO DOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA

Ao tomar por base a ética teleológica, na sua versão utilitarista liberal(5), conforme se apreende nas sociedades neocapitalistas, como é o caso brasileiro, a justiça social é construída a partir da liberdade dos sociados para desenvolver, com maior eficiência, as forças produtivas dessa sociedade à medida que a intervenção estatal é reduzida. Nessa forma de ação, a função da justiça é preservar a ordem social por meio de tratamento igual para pessoas iguais e desigual para pessoas desiguais, segundo a proporção de sua diferença(5).

Contudo, a disparidade de renda monetária não responde, por si só, pela desigualdade na qualidade de vida dos portadores de deficiência, nem pela diversidade de suas limitações e incapacidades, nem pela disparidade de gênero que lhes é inerente. A degradação da qualidade de vida desses sujeitos está atrelada a outros fatores, como a (des)educação, o desemprego, a criminalidade e a violência, o impacto da poluição sobre o meio ambiente e as dificuldades de acesso a serviços de saúde, fatores esses que afetam sobretudo os mais pobres.

Dessa forma, apesar de se reconhecer uma continuidade de ações sociais, voltadas para o atendimento das necessidades daquelas pessoas consideradas excluídas, não há como desconsiderar as descontinuidades e rupturas nos modelos de intervenção. No caso dos portadores de deficiência, relatos da literatura atestam essa afirmativa.

Falta escola pra surdos na sociedade. As escolas são de ouvintes, não têm professor surdo. O surdo não se desenvolve, não aprende. Na sociedade é muito difícil para o surdo porque não tem LIBRAS. Precisa ensinar LIBRAS. Eu chego e se o ouvinte não sabe de LIBRAS... Ah! Deixa pra lá... Sofri muito. Passei muito tempo fazendo da primeira à quarta série. Culpa do governo que não tem LIBRAS. Chegava à sétima série, voltava para a primeira. Culpa do governo. Errado é o governo, a mentalidade do governo. Faço a sétima série. Atrasei por causa de voltar da sétima para a primeira série. Tem empresa que não dá trabalho. Tem empresa com mentalidade muito ruim. Tem empresa que quer empregar o deficiente, mas não sabe o que fazer. Tem empresa que pensa diferente. Queria que todos pudessem trabalhar pra todos ficar feliz. Pra poder crescer, desenvolver. Tem muito deficiente triste(15).

Essa conjuntura não passa despercebida ao Ministério da Ação Social, nem a muitos gestores das esferas governamentais e das diversas instituições não-governamentais. Tais atores sociais se empenham em buscar a concretude e eficácia da assistência social, consolidada na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), cuja missão é assegurar proteção social aos cidadãos brasileiros em situação de precariedade de sobrevivência(16). Contudo, os avanços decorrentes da PNAS ainda são insipientes, pois, o nível de desigualdade do Brasil, da ordem de 1% de crescimento econômico, só reduz a pobreza em menos de 1%(17).

Desse modo, as intervenções em saúde ora se baseiam na piedade e na compaixão pelos pobres, ao reproduzir relações de subordinação, ocultando estratégias de coerção e inviabilizando laços sociais legítimos e igualitários, ora se baseiam no utilitarismo, respeitando as diferenças da pluralidade. Em qualquer dessas formas de assistência perdura a desigualdade, pois a equidade não é um valor central(18).

DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE DESENVOLVIMENTO DOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA

Entre os postulados legais que asseguram espaços de desenvolvimento dos portadores de deficiência destacam-se os seguintes: a Constituição Brasileira de 1988(19), que conceitua seguridade social como o conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social; a Lei nº 8.742/93(16), que dispõe sobre a Política Nacional de Assistência Social, ao integrar ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento das necessidades básicas, provendo, em caráter não contributivo, os mínimos sociais para o enfrentamento da pobreza; a Lei nº 7.853/89(2), o Decreto nº 3.298/99(3) e o Estatuto do Portador de Necessidades Especiais preconizado pelo Projeto de Lei nº 3.638/00(20).

O Estatuto vem reforçar as conquistas do movimento dos portadores dado que, entre outros preceitos, viabiliza a participação dos portadores de deficiência em todas as fases de implantação das políticas públicas e fomenta a realização de estudos epidemiológicos e clínicos, de modo a produzir informações sobre a ocorrência de deficiências e incapacidades. Cria, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), Centros de Biologia Genética como referência para a informação e prevenção de deficiências. Outro direito assegurado pelo Estatuto diz respeito à matrícula compulsória e à inclusão escolar do portador de deficiência em estabelecimentos de ensino regular, assim como ao oferecimento de educação especial ao portador hospitalizado por prazo igual ou superior a um ano.

A legislação está posta! Observados seus postulados, conforme se apreende, os temas habilitação, reabilitação, inclusão social, educação, trabalho e discriminação são uma constante em todos eles. Pergunta-se, pois: o que entrava o desenvolvimento dos portadores de deficiência? Segundo se acredita, a resposta está latente na insistência com que as temáticas são reeditadas na legislação vigente: o caminho para a aceitação social dos portadores de deficiência não se constrói com palavras de ordem ou com as boas intenções de alguns segmentos da sociedade.

Daí porquê a legislação assegura o direito, pune os infratores, mas existem as estratégias de resistência. Como mostra a fala:

... agora a sociedade aceita entre aspas. Porque está precisando da sociedade ver realmente a capacidade por igual da pessoa que porta uma deficiência. Mas não, a sociedade ainda não vê isso. Esse trabalho que está aparecendo por aí, isso é porque existe uma lei. Se não existisse essa lei, se o Ministério não tivesse batido em cima, tava do mesmo jeito. O deficiente não tinha espaço no trabalho, mesmo se tivesse a capacidade, se dava preferência ao não portador de deficiência. Então a sociedade ainda tem preconceito, e muito, em cima do deficiente. A gente percebe. Tem as pessoas, não é só uma nem duas não. É uns 90% da sociedade que ainda vê você de banda, desconfiado, indiferente. Tem muito ainda. Você tem que mostrar, expor a sua capacidade, para alguém ver você, mesmo como deficiente, mas pelo menos ver você com capacidade. A sociedade ainda tem muito preconceito perante o portador de deficiência. E esse preconceito é igual pra todos os tipos de deficientes(15).

Esse recorte discursivo nomeia o conceito central que delimita o processo de inclusão social dos portadores de deficiência - tolerância. A ação de tolerar encerra um misto de piedade e compassividade. Portanto, a possibilidade de, ao mesmo tempo em que alguém se dispõe a acolher o diferente, estar legitimando a desigualdade.

Para além das práticas discriminatórias, de acordo com o utilitarismo liberal, o ser humano precisa buscar seu próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento, pois essa doutrina não valoriza a passividade. O desenvolvimento humano só acontece em função das potencialidades individuais e das opções feitas ao longo da vida. Ao transpor essa idéia para a vivência dos portadores de deficiência, o desafio a eles imposto consiste em superar e transcender as próprias limitações e desafiar o estabelecido para, só assim, ocupar o seu lugar social. No entanto, para que isso aconteça, esses sujeitos carecem de solidariedade.

No utilitarismo, a solidariedade é um conceito no qual se encampa o desejo de universalizar a dignidade humana, interessar-se pelos desfavorecidos e preocupar-se com o bem comum(5). Ser solidário confere ao benfeitor o reconhecimento social como um agente moral(18) e, no caso dos dirigentes estatais, contribui para a minimização da pressão da sociedade civil por ações mais efetivas ante as desigualdades sociais. Assim é que, por força da reorientação política e econômica em curso no Brasil, desde a década 1980, os portadores de deficiência contam com o apoio solidário do Estado, das associações de portadores de deficiência, das ONGs, da Pastoral da Igreja; entre outros. Entretanto, não se pode afirmar que os indivíduos integrantes desse segmento social têm facilidade para desenvolver suas potencialidades.

No concernente aos portadores de deficiência, consoante se entende, uma sociedade solidária é aquela que, destituída de preconceitos, garante aos seus sociados os recursos necessários a condições de vida dignas, que persegue a universalização da educação, que prima pela oferta de um mercado de trabalho inclusivo e promove o emprego como um direito e uma oportunidade para todos, que assegura a igualdade de acesso a bens e serviços de qualidade.

No que concerne à formação de recursos humanos para cuidar dos portadores de deficiência, todavia, persiste o desafio de desenvolver pedagogia centrada nas necessidades desses sujeitos e dos seus familiares. A esse respeito, de acordo com o apontado por resultados de pesquisa, os cursos de Enfermagem da Região Nordeste incluem, em seus componentes curriculares, temas relacionados à prevenção e reabilitação do portador de deficiência, segundo enfoque biológico. Inexistem, porém, temas relacionados ao desenvolvimento e à conseqüente inclusão desses indivíduos na sociedade(21).

Ao longo dos últimos anos, contudo, os enfermeiros brasileiros vêm assumindo conduta marcada pela politização e pelo compromisso para atender demandas específicas dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). A capacidade de reflexão crítica acerca da conjuntura social motiva esses profissionais a assumirem condutas solidárias, respaldando-se em elementos políticos e sociais no referente à cidadania e à possibilidade de intervenções no campo das políticas públicas. Dessa forma, pode-se inferir que o enfermeiro brasileiro exerce sua prática de cuidados orientando-se pela solidariedade.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

O Brasil é um país em que a desigualdade socioeconômica exerce forte impacto sobre grande parte de sua população, fazendo com que as pessoas situadas abaixo da linha de pobreza não consigam atender às suas necessidades básica de sobrevivência.

Os parâmetros econômicos de justiça social, a exemplo do Coeficiente de Gine, que norteiam os estudos sobre a distribuição de renda, demonstram que, no Brasil, apenas 10% da população concentra índices significativos de renda per capita o que assegura, a esse grupo social, o status de segmento mais rico do país.

Dessa forma, ao se tomar por base que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mantém relação direta com a riqueza, o grau de instrução, educação e, conseqüentemente, com o bem-estar e longevidade de uma dada população, entende-se que a expressiva desigualdade distributiva em solo brasileiro determina o crescente empobrecimento populacional e o comprometimento do desenvolvimento de diversos segmentos sociais, a exemplo daquele das pessoas portadoras de deficiência.

Apesar dos portadores de deficiência já terem conquistado legislação específica que lhes assegura direitos de cidadania, essas pessoas, sujeitas a condições sociais precárias, têm dificuldade para superar a pobreza e alcançar desenvolvimento humano, em decorrência de fatores limitantes. Tais fatores situam-se no campo da saúde, da educação e do trabalho. Dessa forma, confirma-se a hipótese segundo a qual o utilitarismo liberal se encarrega de dificultar a redução da pobreza e entravar o desenvolvimento dessas pessoas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 21.3.2007

Aprovado em: 27.8.2007

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  • Utilitarismo, pobreza e desenvolvimento dos portadores de deficiência

    Inacia Sátiro Xavier de FrançaI; Lorita Marlena Freitag PagliucaII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Recebido
      21 Mar 2007
    • Aceito
      27 Ago 2007
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