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Clóvis Moura e a questão social no Brasil

Resumo:

O artigo procura apresentar as contribuições do pensamento de Clóvis Moura para a análise da questão social no Brasil, por meio de investigação bibliográfica, documental e reflexões sobre o pensamento do autor, consoante ao Serviço Social. A proposta está estruturada em três momentos, sendo o primeiro uma breve apresentação da análise da questão social no Serviço Social, o segundo sobre o pensamento moureano a respeito da formação econômico-social brasileira e as relações étnico-raciais, e, por fim, o último momento busca diálogo entre o pensamento de Clóvis Moura, o capitalismo dependente e a questão social no Brasil. Procuramos demonstrar que a gênese e o desenvolvimento da questão social perpassam necessariamente pela análise da questão racial, compreendendo que o racismo não é uma expressão da questão social, mas as expressões da questão social perpassam substancialmente pelas relações raciais.

Palavras-chave:
Clóvis Moura; Racismo; Escravismo; Capitalismo dependente; Questão Social

Abstract:

The article seeks to present the contributions of Clóvis Moura's thinking to the analysis of the social issue in Brazil, through bibliographic and documentary research and reflections on the author's thinking, according to Social Work. The proposal is structured in three moments, the first being a brief presentation of the analysis of the social issue in Social Work, the second on the Mourean thought about Brazilian economic-social formation and ethnic-racial relations, and, finally, the The last moment seeks a dialogue between the thought of Clóvis Moura, dependent capitalism and the social question in Brazil. We seek to demonstrate that the genesis and development of the social question necessarily pass through the analysis of the racial question, understanding that racism is not an expression of the social question, but the expressions of the social question substantially permeate racial relations.

Keywords:
Clóvis Moura; Racism; Slavery. Dependent capitalismo; Social issues

Introdução

O artigo tem como objetivo apresentar as elaborações do intelectual Clóvis Moura, com intuito de apontar suas contribuições às discussões sobre a questão social no Brasil. Para esse alcance, utilizamos recursos bibliográficos e documentais como aporte teórico-metodológico, além do adensamento de reflexões produzidas em grupo de estudos e pesquisas sobre o pensamento do autor, consoante ao Serviço Social.

A análise parte de uma breve incursão sobre a questão social no Serviço Social, a partir do projeto de formação profissional construído coletivamente pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) (1996), além da referência em dois dos principais expoentes do debate no Serviço Social brasileiro: Iamamoto (2001)IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. Revista Temporalis, Brasília, ano 2, n. 3, p. 9-32, jan./jul. 2001. e Paulo Netto (2001); em seguida, apresentaremos o percurso teórico-metodológico de Clóvis Moura, demonstrando que seu pensamento é de grande valia para uma concepção histórico-crítica das relações raciais no Brasil, o que em nossa perspectiva diz respeito a abordar a formação econômico-social brasileira e o racismo na gênese do capitalismo e suas ressonâncias na sociedade contemporânea.

Tal esforço investigativo se localiza em contribuir com o debate da questão social no âmbito da formação e exercício profissional em Serviço Social e pressupõe enriquecer as análises a partir de elementos que auxiliem a compreensão da realidade brasileira. Além disso, reivindica a pertinente contribuição intelectual e política de Clóvis Moura, componente fundamental da tradição marxista no Brasil, cujo pensamento social detém uma análise fundante das relações étnico-raciais articulada à constituição das classes sociais na formação social brasileira.

A abordagem da Questão Social no Serviço Social

O projeto de formação profissional em Serviço Social instituído a partir da renovação da profissão culminou na construção das Diretrizes Curriculares da ABEPSS, de 1996. Uma lógica curricular composta por núcleos de fundamentação que permeiam a formação profissional e perpassam pelos fundamentos teórico-metodológicos da vida social, da particularidade da formação sócio-histórica da sociedade brasileira e dos fundamentos do trabalho profissional. De modo transversal e articulado, os núcleos procuram superar o processo de fragmentação do ensino-aprendizagem, propiciando conhecimento e habilidades que possam orientar um exercício profissional crítico e fundamentado em seus pressupostos (ASSIS et al., 2021ASSIS, E.; VALDO, J. P. S.; VAZ, S. Questão Racial e Serviço Social: desafios e perspectivas de uma formação profissional antirracista. In: ELPÍDIO, M. H.; VALDO, J. P. S.; ROCHA, R. (orgs.). Desafios para o Serviço Social na luta antirracista: questão étnico – racial em debate. São Paulo: Annablume, 2021.).

Desse modo, a questão social se caracteriza como fundamento basilar da existência do Serviço Social. É por meio dela que a profissão se particulariza como interventiva no bojo das relações sociais de produção e reprodução da vida social, visando ao enfrentamento de suas expressões, que são frutos das contradições do modo de produção capitalista.

Em A Questão Social no Capitalismo, Marilda Iamamoto (2001IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. Revista Temporalis, Brasília, ano 2, n. 3, p. 9-32, jan./jul. 2001., p. 10) parte da premissa de que a “[...] análise da questão social é indissociável das configurações assumidas pelo trabalho”. Isso implica considerar a vinculação da gênese da questão social com o processo de acumulação capitalista e os desdobramentos sobre as classes sociais, em especial a parcela trabalhadora despossuída dos meios de produção. Fundamentada na Lei Geral da Acumulação Capitalista, Iamamoto (2001IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. Revista Temporalis, Brasília, ano 2, n. 3, p. 9-32, jan./jul. 2001., p. 16) mostra que os desdobramentos da questão social se caracterizam pelo “conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura”, expressam “disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizada por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais” (IAMAMOTO, 2001IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. Revista Temporalis, Brasília, ano 2, n. 3, p. 9-32, jan./jul. 2001., p. 17). Temos, com isso, uma firme orientação sobre a gênese e expressão da questão social situada na relação de contradição entre capital e trabalho, cujos resultantes se configuram como elemento nuclear que delineiam o significado social da profissão no contexto do seu enfrentamento, mediatizada pela relação entre as classes sociais.

Ao fazer um resgate histórico e político em torno da questão social, Paulo Netto (2001) recupera o surgimento da expressão na Europa Ocidental, destacando a sua emergência concomitante ao desenvolvimento da onda industrializante na terceira década do século XIX e o fenômeno do pauperismo generalizado, cuja “[...] pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas” (PAULO NETTO, 2001, p. 42). Ou seja, o capitalismo se consolidava e expandia, e com isso os desdobramentos sociopolíticos e a ameaça às instituições sociais do período, por parte dos protestos e insurgências dos pauperizados, fizeram com que a designação dada ao fenômeno como questão social fosse tomada pelo pensamento conservador, que contornava a situação por meio de um ideário reformista e de medidas sociopolíticas de amenização de seus agravantes.

O salto qualitativo ocorreria em torno da compreensão teórico-política e dos processos formativos, a partir das obras marxianas, que possibilitaram situar a questão social por meio de uma radicalidade histórica e remeter a sua expressão a uma tergiversação conservadora, avançando nos processos de luta e consciência política no horizonte da supressão da sociabilidade erguida pelo capital.

A partir das considerações sobre a gênese da questão social, sua dimensão econômico-política, social e ideocultural, é possível afirmar que o debate da questão social no Serviço Social encontra-se em plena efervescência e atualidade, tendo em vista as análises cada vez mais particularizadas e aprofundadas da gênese da questão social na realidade brasileira e das transformações societárias decorrentes da reestruturação produtiva do capital e do ascenso neoliberal, que impuseram reconfigurações na relação capital e trabalho e rebatimentos nas expressões da questão social. Esses rebatimentos, embora tenham perpetuado novas expressões da questão social, continuam tendo em sua raiz os mesmos elementos de contradição e dinamização, como convergem Iamamoto (2001)IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. Revista Temporalis, Brasília, ano 2, n. 3, p. 9-32, jan./jul. 2001. e Paulo Netto (2001).

Na particularidade latino-americana, o Brasil apresenta, de forma singular, processos históricos que demarcam as relações entre capital e trabalho pautadas pela superexploração do trabalho como determinante econômico do capitalismo dependente, e tem como base fundante e dinamizadora o racismo, que, instituído desde a invasão colonial, ao contrário de ser concebido como traço morto ou vestígio do sistema escravista, foi dinamizado e incrementado como um dos mecanismos reguladores do capitalismo dependente e do imperialismo. Desse modo, as contribuições de Clóvis Moura possibilitam compreender a dinâmica brasileira a partir das relações raciais e sua centralidade na formação da estrutura da sociedade de classes, e explicita que a questão racial não é uma expressão da questão social, mas constitutiva da relação entre capital e trabalho e seus desdobramentos. Por fim, Moura nos ajuda compreender a vinculação da luta antirracista e anticapitalista como única forma de superação do racismo e, por conseguinte, dessa ordem societária.

Queremos com esses apontamentos afirmar que o debate sobre a questão social no Brasil perpassa necessariamente pela questão racial, coadunando com Márcia Eurico (2017)Eurico, M. Da escravidão ao trabalho livre: contribuições para o trabalho do assistente social. SER Social, Brasília, v. 19, n. 41, p. 414-427, jul./dez. 2017., Renata Gonçalves (2018)GONÇALVES, R. Quando a questão racial é o nó da questão social. Revista Katálysis, Florianópolis, n. 3, v. 21, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/1982-02592018v21n3p514. Acesso em: 29 set. 2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/kat...
, Sheila Dias Almeida (2015)ALMEIDA, S. D. Serviço Social e relações raciais: caminhos para uma sociedade sem classes. Temporális, Brasília, ano 15, n. 29, jan./jun. 2015., Magali da Silva Almeida (2014)ALMEIDA, M. da S. Desumanização da população negra: genocídio como princípio tácito do capitalismo. EM PAUTA, Rio de Janeiro, n. 34, v. 12, p. 131-154, 2014., Tereza Martins (2012)MARTINS, T. C. S. Racismo no mercado de trabalho: limites à participação dos trabalhadores negros na constituição da “questão social” no Brasil. 2012. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, 2012. e uma vasta produção contemporânea que vem pautando a importância de maior contundência na incorporação da temática étnico-racial na abordagem sobre a questão social e o Serviço Social.

Nesse sentido, entendemos, assim como Santos (2010)SANTOS, J. S. Particularidades da “Questão Social” no Brasil: Elementos para o debate. In: Dossiê: A “Questão Social”. Temas & Matizes, v. 9, n. 17, p. 125-150, 2010., que as particularidades do capitalismo no Brasil determinam a questão social no país. O que ressalta a premissa fundamental de apreciar as categorias da relação capital-trabalho, a Lei Geral da Acumulação Capitalista em sua amplitude e compreender que é preciso também captar as minúcias próprias dessa formação social, histórica e econômica.

Clóvis Moura e a realidade brasileira

Clóvis Steiger de Assis Moura, conhecido como Clóvis Moura, nasceu em Amarante, interior do Piauí, no ano de 1925. Dez anos depois, mudou-se para Natal-RN, local onde teve contato com o colégio formal pela primeira vez, iniciando seu processo de liderança política através da atuação no grêmio estudantil. Tempos depois, ao mudar-se para o interior da Bahia, Clóvis Moura se aproxima do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tornando-se um substantivo militante e propagador do pensamento da esquerda marxista, com importantes contribuições para pensar a luta de classes no Brasil (FARIAS, 2019FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019.).

Clóvis Moura foi sociólogo, jornalista e historiador. Sua trajetória, assentada no jornalismo, rendeu uma vasta produção literária e incansável atuação militante combativa. Alinhado ao pensamento crítico, sobretudo referenciado na teoria marxista e no método em Marx, seu pensamento nos remete a reflexões sobre a sociedade, denunciando o racismo em sua conformação e atuação a partir de mecanismos dinamizadores. Assim, o pensamento de Moura inova, portanto, na interpretação sobre a formação social brasileira, pois aponta a dinâmica das relações raciais como central no processo de estruturação da sociedade de classes no Brasil e formação da classe trabalhadora.

Nos anos 1960, Moura se desliga do PCB e até 1980 se dedica a estudos, congressos e publicações de sua autoria em revistas científicas, jornais, periódicos e livros. A intensificação das suas produções em torno da relação entre raça e classe o fez se aproximar do Movimento Negro Unificado (MNU) ao final dos anos 1970, período este marcado também pelo estreitamento do diálogo entre ativistas do movimento negro e intelectuais (FARIAS, 2019FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019.).

As produções de Clóvis Moura se pautaram pelo desvelo da relação entre racismo e capitalismo a partir da realidade brasileira. Como define Farias (2019)FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019., as suas produções têm como “raízes os estudos sobre relações raciais, a história e a historiografia da escravidão, o chamado “pensamento social brasileiro” e o marxismo, em seu desenvolvimento teórico e histórico” (FARIAS, 2019FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019., p. 50).

Sua primeira obra sistematizada foi “Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas”, publicada em 1959. Trata-se de uma elaboração que tinha o intuito de reafirmar os antagonismos da relação senhor e escravo, instituída como relação entre classes sociais, além de apontar a participação de negras e negros na formação política do país como sujeitos históricos e protagonistas da história. Um salto qualitativo na historiografia contemporânea da escravidão que o coloca como vanguarda deste processo (FARIAS, 2019FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019.).

As obras de Moura apontam que a história da luta de classes não começa no final do século XIX ou início do século XX, com a chegada dos imigrantes e a formação dos primeiros sindicatos e greves operárias, mas, antes disso, inicia com a história do trabalho, a partir do Brasil Colônia, cuja relação no sistema escravista era marcada pelo antagonismo entre a classe proprietária-senhores e a classe despossuída-escravizados (ROCHA, 2020ROCHA, G. S. Rebeliões da Senzala de Clóvis Moura: Uma abordagem histórica da luta de classes no Brasil. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH, 5, 2020, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Anais [...]. São Paulo, 2020. Disponível em: https://www.encontro2020.sp.anpuh.org/resources/anais/14/anpuh-sp-erh2020/1588776606_ARQUIVO_249f1667161be24b63b68818162c74a7.pdf. Acesso em: 10 jun. 2021.
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).

Ao mostrar um Brasil pelas lentes de suas particularidades, Clóvis Moura inaugurou uma leitura que interpreta o negro como sujeito político, protagonista no processo de transformação social e superação do escravismo por meio da sua rebeldia, insurgência e organização quilombola. Significativas são as contribuições de Gabriel Rocha (2021), Márcio Farias (2019)FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019., Ana Paula Procópio da Silva (2017)SILVA, A. P. P. da. O contrário de “Casa Grande” não é Senzala. É quilombo! A categoria Práxis Negra no pensamento social de Clóvis Moura. 2017. 293 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Rio de Janeiro: UFRJ, 2017., Fábio Nogueira de Oliveira (2009)OLIVEIRA, F. N. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra. 2009. 153 f. Dissertação (Mestrado Ciências Jurídicas e Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Niterói: UFF, 2009. e de uma produção crescente em revistas científicas e espaços diversificados que assinalam a vanguarda do pensamento moureano.

Nessa perspectiva, Clóvis Moura (1984MOURA, C. Escravismo, Colonialismo, Imperialismo e Racismo. Revista Afro Ásia, Salvador, n. 14, 1984. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/issue/view/1448/showToc. Acesso em: 10 jun. 2021.
https://periodicos.ufba.br/index.php/afr...
, 1988MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988., 2014MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014.) segue na contramão das leituras estáticas e coisificadas atribuídas ao africano e ao negro escravizado, conforme a vasta produção historiográfica e literária sobre a época. Essas leituras Moura debate em suas produções teóricas, fazendo duras críticas ao pensamento social brasileiro de matriz, sobretudo, culturalista, que fortaleceu o mito da democracia racial no processo de modernização brasileira. Essa concepção, na medida em que ressaltava e valorizava a questão da mestiçagem por meio da amálgama entre brancos, negros e indígenas, na tentativa de criação de uma identidade nacional brasileira, levava à diluição das relações raciais e ao ocultamento do racismo.

Moura (2014)MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014. estabelece contraponto ao pensamento de Gilberto Freyre, sinalizando o racismo como elemento pertencente à gênese do capitalismo brasileiro, o qual se desenvolve com o fortalecimento das estruturas de opressão racial. Sobre o mito da democracia racial, considera que “[...] toda essa produção cultural, quer científica quer ficcional, que escamoteia ou desvia do fundamental o problema do negro nos seus diversos níveis, (o desvincula) da dinâmica dicotômica produzida pela luta de classes, na qual ele está inserido” (MOURA, 1988MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988., p. 30). E assim, de forma incisiva constata, que “[...] o mito da democracia racial é uma ideologia arquitetada para esconder uma realidade social altamente conflitante e discriminatória no nível das relações interétnicas” (MOURA, 1988MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988., p. 30).

Moura (2014)MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014. também critica as análises mecanicistas e esquemáticas de um marxismo eurocêntrico e dogmático, que buscavam fazer uma interpretação analógica entre Europa e Brasil, desconsiderando as lutas e resistências negras e os mecanismos de barragens instituídos pela classe dominante. Como demonstra o autor, os desdobramentos do racismo na dinâmica das relações sociais denotam que o problema de negros e negras não se limita apenas ao âmbito da condição de classe social, pois perpassa necessariamente pelas relações étnico-raciais mediadas por ideologias mistificadoras da realidade, que demarcaram processos de inferiorização, fragmentação e hierarquização no âmbito das relações sociais e na divisão social do trabalho.

O racismo para Moura (1994)MOURA, C. O Racismo como arma ideológica de dominação. Revista Princípios, São Paulo, n. 34, 1994. é uma construção ideológica que serviu para justificar a expansão de grupos e nações na dominação e expansão de seus territórios, apropriados por meio de invasão, saqueamento e violência. Essa base ideológica foi necessariamente a mediação utilizada para explicar os “[...] crimes cometidos em nome do direito biológico, psicológico, e cultural” das raças que se autointitularam eleitas, por acreditarem deter superioridade em nível intelectual, moral e cultural (MOURA, 1994MOURA, C. O Racismo como arma ideológica de dominação. Revista Princípios, São Paulo, n. 34, 1994., p. 28). Um processo que, dado o objetivo político e econômico de expansão, promoveu o extermínio dos povos, sua cultura, crença e história em nome da civilização e justificação do tráfico negreiro.

Em “Dialética Radical do Brasil Negro”, Clóvis Moura (2014)MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014. apresenta uma análise consistente da escravidão no Brasil, mostrando a importância de compreender este processo histórico que perdurou por quase quatro séculos, cuja dinâmica social esteve marcada por contradições, conflitos, modificações tangenciais e regionais e influências externas. Ao organizar a sua análise a partir de uma periodização, Moura (2014)MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014. define o escravismo no Brasil em duas fases: a primeira denominada como Escravismo Pleno e a segunda por Escravismo Tardio. A partir dessas duas fases, o autor busca examinar o nascimento, apogeu, decadência e decomposição do escravismo no Brasil.

Na fase do escravismo pleno, ou seja, no período que abrange cerca de 1550 a 1850, criou-se uma estrutura rígida e centralizada na unidade administrativa e judiciária, de modo a racionalizar o sistema de governo da Colônia e criar condições repressivas contra as revoltas negras e indígenas. Nesse período, a escravidão e o número de escravizados cresceram genuinamente, e a repressão era a condição eficaz para conter a rebeldia e manter o equilíbrio social do sistema, alicerçado pela unidade entre a colônia e o mercado mundial. No entanto, a resistência negra foi a marca substantiva de sua libertação e humanização.

A convergência da análise moureana com as vias de conformação de um capitalismo dependente no Brasil é um ponto que queremos destacar. Moura (2014)MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014., ao apresentar o dinamismo do sistema escravista, nos mostra que, sendo este um circuito fechado e articulado, em que o escravo é produtor-mercadoria e produtor de mercadoria, as economias coloniais em sua totalidade são subordinadas ao monopólio comercial da metrópole. Nessa relação, o sistema colonial brasileiro foi partícipe na dinâmica do capitalismo mercantil e acumulação primitiva, gênese da constituição e desenvolvimento do modo de produção capitalista na Europa. Esse processo levou como única via possível a subordinação da sociedade brasileira (e sua burguesia nacional) à dominação externa, que logrou mudanças sem modificações estruturais e preservou o domínio e interesse das nações do centro no mercado capitalista mundial.

O Escravismo Tardio é apresentado como recorte temporal responsável pela desagregação do regime escravista, ao passo que aponta a edificação da sociedade brasileira em base a um novo arranjo jurídico-político. Sua definição compreende os anos de 1850 até 1888, sendo seu início demarcado pela proibição formal do tráfico de pessoas negras escravizadas e findado com a abolição do trabalho escravo. Dentre os principais elementos de caracterização, possuem maior centralidade os movimentos jurídico-políticos que antecederam a abolição da escravatura e transformaram a legislação escravista, a importação da mão de obra imigrante para o trabalho assalariado e a consolidação da dependência econômica. Esse conjunto de aspectos reformulou os eixos fundamentais da estrutura societária do Brasil escravista, possibilitando um rearranjo do país na transição do antigo regime de trabalho em direção ao regime de assalariamento. No entanto, essa transição perdurou por décadas, tendo escravizados e trabalhadores livres convivido nos mesmos espaços de trabalho e compartilhado formas de resistência e lutas políticas.

Esse processo garantiu a permanência e os interesses políticos e econômicos da oligarquia brasileira, não havendo mudança no tocante à distribuição de poder e renda. Para Moura (2014)MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014., o processo de modernização, apesar de estabelecer um conjunto de valores nas relações entre grupos e classes sociais, estava em sua essência subordinado aos interesses do capitalismo internacional — particularmente inglês —, à classe senhorial que detinha a posse do escravizado e de parcelas livres no sistema escravista.

A subalterna incorporação do negro ao mercado de trabalho e sua composição à grande franja marginalizada passaram a cumprir necessariamente a exigência do modelo de capitalismo dependente que emergia no Brasil, em substituição ao escravismo. Na transição do escravismo para o trabalho assalariado, o negro foi subjugado incapaz de exercer plenamente seus ofícios laborais. Mas o que Moura (2014)MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2014. nos revela é que, durante o escravismo, os negros exerciam o trabalho de forma contundente seja no setor manufatureiro seja no artesanal em que era desenvolvido. Por meio de mecanismos repressivos e reguladores das relações, estabeleceu-se a divisão entre brancos, negros e seus descendentes: de um lado, trabalho qualificado e intelectual; de outro, trabalho não qualificado, braçal, mal remunerado (MOURA, 1988MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.).

De diferentes formas, medidas instituídas provocaram a desagregação do sistema escravista, mas com manutenção das elites senhorial e cafeeira enquanto classe dominante e a inserção subordinada de negras e negros no regime de trabalho assalariado. Dessa forma, foi inaugurada uma sociedade de classes mediada por um capitalismo de caráter dependente que se ergueu mediante a compulsória localização do negro liberto no exército industrial de reserva. Considerando a ampliação e a consolidação de relações comerciais em nível internacional, o Brasil da metade final do século XIX respondia às tendências estabelecidas no âmbito do mercado mundial e da divisão internacional do trabalho.

Racismo e capitalismo dependente: a questão social em debate

Mediante a natureza específica da opressão racial sob os contornos do capital e a lógica mercantil, entender o funcionamento do sistema capitalista, a forma como se desenvolve e o que é necessário para sua expansão e reprodução é elemento substancial para a compreensão do racismo. Assim, Ruy Mauro Marini (2005)MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. aponta que é nas determinações desse caráter que deve estar contida a atenção daqueles que examinam o capitalismo dependente na região. Portanto:

O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, não poderá desenvolver-se jamais da mesma forma como se desenvolvem as economias capitalistas chamadas avançadas. É por isso que, mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional. (MARINI, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., p. 138).

Para Marini (2005)MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., a economia dependente é a condição necessária do avanço do capitalismo mundial. Dessa forma, “o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador” (MARINI, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., p. 144). Esta relação, que é dialética, favorece o intercâmbio desigual no mercado mundial, jogando “[...] formas particulares de extração da riqueza para o processo produtivo e, portanto, também no âmbito da reprodução social” (SOUZA, 2020SOUZA, C. L. S. de. Racismo e Luta de Classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo: Hucitec, 2020., p. 145).

Os efeitos do capitalismo dependente, portanto, possuem particularidades que estão relacionadas à superexploração da força de trabalho, a qual se manifesta nas seguintes formas: a) pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor; b) prolongamento da jornada de trabalho além dos limites normais; c) aumento da intensidade do trabalho além dos limites normais; d) hiato entre o pagamento da força de trabalho e o elemento histórico-moral do valor da força de trabalho. Luce (2018LUCE, M. S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018., p. 178) afirma que “em todas elas, o capital se apropria do fundo de consumo do trabalhador, deslocando-o para o fundo de acumulação”, ou seja, uma espécie de mecanismo de transferência de renda às avessas, que impõe uma diminuição geral na renda das famílias. E não é só do fundo de consumo que o capital se apropria por meio da superexploração, ocorre também um avanço sobre os anos de vida do trabalhador, em que o capital abastece sua acumulação com a violação do fundo de vida da classe trabalhadora.

Mediante esse contexto, gênero e raça são categorias substanciais para nossa compreensão de que racismo e patriarcado possuem efeitos contínuos, por sua feição estrutural neste modo de produção. Souza (2020SOUZA, C. L. S. de. Racismo e Luta de Classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo: Hucitec, 2020., p. 158) aponta que, na compressão do mercado de trabalho, “o estrangulamento da dependência, o emprego, assim como o desemprego estrutural, o subemprego, e as condições mais precárias de trabalho, também se apresentarão aos sujeitos a partir de sua racialização”.

Na realidade de trabalho livre e igualdade jurídico-política, a contradição estabelecida entre as relações étnico-raciais foi necessariamente a saída para o rebaixamento salarial dos trabalhadores. Como assinala Moura (1984)MOURA, C. Escravismo, Colonialismo, Imperialismo e Racismo. Revista Afro Ásia, Salvador, n. 14, 1984. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/issue/view/1448/showToc. Acesso em: 10 jun. 2021.
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Há, finalmente, a contradição que se estabelece entre o trabalhador negro, recém-saído da escravidão, quase sempre desempregado ou na faixa do sub-emprego, e o trabalhador branco, estrangeiro, que veio para suprir de mão-de-obra uma economia que entrava em um modelo econômico já condicionado pelo imperialismo. Por isto mesmo necessitava de um contingente marginalizado bem mais compacto do que o exército industrial de reserva no seu modelo clássico europeu. Havia necessidade da existência de uma grande franja marginal capaz de forçar os baixos salários dos trabalhadores engajados no processo de trabalho. Essa franja foi ocupada pelos negros, gerando isto uma contradição suplementar. (MOURA, 1984MOURA, C. Escravismo, Colonialismo, Imperialismo e Racismo. Revista Afro Ásia, Salvador, n. 14, 1984. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/issue/view/1448/showToc. Acesso em: 10 jun. 2021.
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, p. 133).

Coaduna-se com Souza (2020)SOUZA, C. L. S. de. Racismo e Luta de Classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo: Hucitec, 2020., quando esta afirma que no capitalismo dependente o racismo se torna a contradição suplementar para a conformação da classe trabalhadora, pois, sendo este modo de produção composto por uma massa de trabalhadores correspondente a uma população muito superior às necessidades produtivas, seus mecanismos não conseguem inserir qualitativamente essa massa na “dinâmica da valorização do capital, sequer como consumidor; pois essa é a franja marginal capaz de forçar os baixos salários dos trabalhadores engajados no processo de trabalho” (SOUZA, 2020SOUZA, C. L. S. de. Racismo e Luta de Classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo: Hucitec, 2020., p. 154).

Esse seria um elemento indispensável, portanto, para compreendermos o processo de conformação do trabalho assalariado e da luta de classes no Brasil. Perpassa essencialmente pela compreensão da realidade da população negra na transição entre o pré e pós-abolição, que sofreu diretamente a influência do padrão de dominação burguesa vigente. Um marco que foi de encontro à forma como homens e mulheres da classe trabalhadora e imigrantes foram sendo incorporados aos postos de trabalho, antes ocupados por negros libertos ou escravizados, que foram inseridos em uma zona de desemprego e subemprego permanente. Uma perspectiva que influencia diretamente nos estudos sobre a formação da classe trabalhadora e da luta de classes no Brasil, pois, como afirma Mattos (2009)MATTOS, M. B. Trajetória entre fronteiras: o fim da escravidão e fazer-se da classe trabalhadora no Rio de Janeiro. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis v. 1, n. 1, janeiro-junho, 2009.:

Numa sociedade como a brasileira, marcada por quase quatro séculos de escravidão, não seria possível pensar o surgimento de uma classe trabalhadora assalariada consciente de si sem levar em conta as lutas de classe – e os valores e referências – que se desenvolveram entre os trabalhadores escravizados e seus senhores, particularmente no período final da vigência da escravidão. (MATTOS, 2009MATTOS, M. B. Trajetória entre fronteiras: o fim da escravidão e fazer-se da classe trabalhadora no Rio de Janeiro. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis v. 1, n. 1, janeiro-junho, 2009., p. 54-55).

Aliado às péssimas condições de trabalho que o conjunto da classe enfrentava no início do século XX, com destaque à parcela de trabalhadores negros, houve uma elevação na piora das condições de vida da classe trabalhadora. Ao analisar a situação do Rio de Janeiro, então capital da República, Marcelo Badaró Mattos (2008)MATTOS, M. B. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008. aponta as condições degradantes de moradia, saúde, educação e transporte para a maior parte da população:

O grau de desigualdade no meio urbano, radicalizado pela intervenção literalmente demolidora do Estado naquele contexto de reformas, acentuando em muito a percepção de injustiça em relação à experiência dos trabalhadores que moravam no Rio de Janeiro. Custos de moradia, transporte e alimentação se elevavam com a fúria “modernizadora” das obras, ao passo que os baixos salários e a inexistência de políticas sociais ou compensatórias tornavam a miséria um horizonte próximo e ameaçador para a maioria dos que viviam do próprio trabalho. (MATTOS, 2008MATTOS, M. B. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008., p. 167).

O que podemos avaliar dessa situação imposta à parcela negra do proletariado brasileiro é que as décadas posteriores à abolição impuseram uma situação de desemprego e subemprego permanente. Podemos constatar que esse quantitativo populacional se estabeleceu como uma massa excedente no mercado de trabalho. Homens e mulheres, que apesar de estarem em idade economicamente ativa e aptos para realizar distintas ocupações laborais, não conseguiam estabelecer vínculos consolidados. Ou seja, acabavam por ampliar, ano após ano, a avolumada parcela de trabalhadores que estavam fora dos postos de trabalho, numa relação caracterizada pela elaboração marxiana de superpopulação e exército industrial de reserva. Nesta concepção, Marx (2017MARX, K. O Capital Livro 1: o processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo. 2017., p. 709) considera que a produção “de uma população excedente relativa, isto é, excedente em relação à necessidade média de valorização do capital, é uma condição vital da indústria moderna”. Ademais, essa compreensão perpassa também pela gênese da questão social, conforme verificamos com Iamamoto (2001)IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. Revista Temporalis, Brasília, ano 2, n. 3, p. 9-32, jan./jul. 2001. e Paulo Netto (2001).

Dada a compreensão de que o exército industrial de reserva é essencial para controlar o valor da força de trabalho e sua oscilação, em direção a um maior contingente que favorece o rebaixamento dos salários e a piora nas condições de trabalho, Fagundes (2020)FAGUNDES, G. O racismo no caso brasileiro e as raízes da superexploração do proletariado negro. Revista EM PAUTA, Rio de Janeiro, n. 45, v. 18, p. 55-68, 2020. aponta como a racialização dessa superpopulação fomenta a agudização das expressões da superexploração. Dessa forma, fica exposta a funcionalidade do racismo ao capitalismo, principalmente na sua face dependente. Racializa uma parcela da população, reproduz ideologias de inferiorização, concentra de forma majoritária nas piores ocupações laborais ou fora do mercado de trabalho e na informalidade. Essa equação implica em pressão negativa contra os salários e condições de vida de toda classe trabalhadora (principalmente pela população não branca ser a maioria no Brasil), mas com especial brutalidade à população negra.

Além da contradição inerente ao capitalismo, Clóvis Moura (1988)MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988. considera que os mecanismos de barragens criados pela classe dominante, em seu arcabouço jurídico e político, afetaram as dimensões econômico, social, política, cultural e existencial, e impediu de emergir uma consciência crítica e radical que fosse capaz de extrapolar a ordem social vigente e de fato estabelecer uma verdadeira democracia racial. Perpassando pela Tarifa Alves Branco (1844), a Lei da Terra (1850), Lei Eusébio de Queiroz (1850), Guerra do Paraguai (1865-1870), o movimento imigracionista associado à política do branqueamento, esses e outros mecanismos de barragens possibilitaram a manutenção do bloco dominante no poder político-econômico, face à emergência e desenvolvimento do capitalismo na realidade brasileira.

Responsabilizada por sua própria condição, a sociedade não havia obstruído a possibilidade de ascensão negra. Assim, a falsa ideia de democracia racial anulava a contestação em torno da desigualdade racial, que foi substituída pela preguiça, ignorância, estupidez e incapacidade. Esses fatores explicaram de forma pejorativa o não aproveitamento de negras e negros frente às oportunidades oferecidas pela sociedade.

Assim, as concepções de raças humanas e qualidades civilizatórias inatas e degradantes foram superadas pela conjugação de povo, absorvido e abrasileirado, com diferentes manifestações culturais e relações de democracia racial. Guimarães (2001)GUIMARÃES, A. S. A. A questão racial na política brasileira (os últimos quinze anos). Revista Tempo Social, São Paulo: USP, nov. 2001. considera isso como uma estratégia de compromisso político e social do Estado moderno. Este consistiu na incorporação da população negra no mercado de trabalho, ainda que objetivamente essa incorporação tenha sido pela via da informalidade e/ou subalternidade, ampliação da educação formal e outras possibilidades formais que pudessem romper com os estigmas da escravidão e perpetuar a economia capitalista brasileira.

Assim, a questão social em sua gênese e desenvolvimento no Brasil, a qual consideramos ter sido gestada de forma embrionária na transição do século XIX para o século XX, em sua concretude, perpassa necessariamente pela compreensão: a) dos processos de lutas e resistências negras que impuseram a conformação das classes sociais no capitalismo dependente; b) dos processos de diluição e fragmentação política em detrimento dos mecanismos de barragens, associados sobretudo à perspectiva da mestiçagem, que culminou na fragmentação da consciência étnico-racial por meio de uma escala de valores e padrão de civilização branco imposto pela classe dominante; c) dos elementos de superexploração da força de trabalho em geral e do racismo.

Sendo assim, é de extrema importância observar o destino dos milhões de brasileiros e africanos escravizados responsáveis pela produção da riqueza nacional no período escravista e após a abolição da escravidão; principalmente por essa abrangente parcela populacional ser representada por homens negros e mulheres negras, o que indica a existência do elemento racial nessa equação. Neste sentido, o entrelaçamento de gênero, raça, classe e orientação sexual denota a diversidade humana e as diferenças no interior da classe trabalhadora, a qual deve ser explicitada, como destaca Eurico (2018):

Quero reafirmar que nosso compromisso com a classe trabalhadora precisa compreender necessariamente suas pautas universais, mas também apreender suas particularidades. Entre o universal e o particular se põe um campo de disputas onde certamente o pertencimento étnico-racial, a identidade de gênero, a orientação sexual, o lugar ocupado na divisão social e técnica do trabalho revelam a diversidade humana, mas também acirram a desigualdade no interior da própria classe. (EURICO, 2018, p. 516-517).

Desse modo, o trato da questão social, como assinala a ABEPSS (1996)ABEPSS. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Diretrizes gerais para o curso de Serviço Social: com base no currículo mínimo aprovado em assembleia geral extraordinária de 8 de novembro de 1996. Rio de Janeiro: ABEPSS, 1996., perpassa necessariamente pelo trato da questão racial numa conjugação entre o universal e o particular. Frente a isso, acreditamos que as reflexões aqui apontadas podem valer de subsídio à formação e exercício profissional, de modo a contribuir com o debate e a realidade em que atuam assistentes sociais os quais têm como compromisso ético-político o combate ao racismo.

Para o Serviço Social, que tem a questão social como seu elemento fundante, a apropriação dessa discussão torna-se imprescindível, pois é sobre as múltiplas expressões da questão social que irá atuar. Assim, interrogamos: Quem são os sujeitos sociais historicamente discriminados e alvos preferenciais das ações de violações de direitos? Quem são os sujeitos que mais demandam a intervenção do profissional de serviço social em seus diversos espaços sócio-ocupacionais? Sobre quem as políticas de repressão e controle do Estado age mais fortemente? Conhecer esses sujeitos vai para além de conhecer o seu “registro de identidade”. É preciso conhecer sua história e com ela aprender as diversas formas de resistência às pressões que são forjadas individual e coletivamente. (ROCHA, 2014ROCHA, R. A inserção da temática étnico-racial no processo de formação em Serviço Social e sua relação com a educação antirracista. In: ABRAMIDES, M. B. C.; DURIGUETTO, M. L. Movimentos Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014., p. 303-304).

Considerações Finais

Diante da explanação inicial sobre o lugar que partimos acerca da questão social e do caminho teórico-metodológico sobre o objetivo da presente reflexão, indicamos que relacionar a superexploração da força de trabalho, o racismo estrutural e o patriarcado moderno enquanto categorias é um esforço necessário para captar não só as minúcias circunscritas a questão social no Brasil, mas compreender as determinações da própria formação econômico-social brasileira. Nesse sentido, a elaboração presente buscou apontar a necessária articulação do debate sobre racismo, capitalismo e questão social, bem como enseja que seus desdobramentos sejam esmiuçados, levando em consideração a importância de outras categorias marxianas no desvelo dos nós investigativos e o esforço de nos despirmos dos dogmas, com objetivo de nos debruçarmos às armas da crítica de maneira criativa, rigorosa, transformadora e ético-política.

Sem perder de vista a centralidade das categorias raça e racismo, a contribuição de Clóvis Moura é profícua no entendimento da questão social no Brasil, pois desvela as particularidades vivenciadas em nosso território a partir da formação social, submetidas às determinações das relações sociais de produção. Entendendo negras e negros enquanto sujeitos políticos, ativos na conformação das classes sociais no país, nas lutas e resistências, o potente pensamento de Clóvis Moura denuncia as questões estruturais da nossa sociedade, e, ao contrário da passividade, ressalta a práxis negra como sinônimo de rebeldia, insurgência e combatividade que demarca a história brasileira e a contemporaneidade. Um pensamento revolucionário que se faz norteador e necessário em tempos de ascensão neoconservadora e mistificação da luta de classes. Reivindiquemos Clóvis Moura e sua inspiradora crítica marxista.

Agradecimentos

Agradecemos às pesquisadoras/es e discentes do Grupo de Estudos sobre o Pensamento de Clóvis Moura, coordenado pelo Grupo de Estudos Ilè Si Imó (UFES) e GEPEQSS (UFF), pelos diálogos mensais e aquilombamento.

  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimento da autora e do autor.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    11 Fev 2022
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