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Vozes de resistência no Brasil colonial: o protagonismo de mulheres negras

Resumo:

Vivemos em uma sociedade patriarcal-racista-capitalista que renova continuamente as relações desiguais que marcam a formação do Brasil, desde o período colonial. Dentre as expressões dessa desigualdade, há uma forte invisibilidade das mulheres negras. Por isso, neste artigo objetivamos apresentar mulheres protagonistas de lutas e resistências contra a escravização no Brasil. É imprescindível descortinar a importância dessas mulheres e romper com o ocultamento das suas ações. Aqui, apresentamos a mulher negra como sujeito histórico e político fundamental nas ações de resistência contra a escravização. Mulheres que permanecem, em sua maioria, silenciadas pela narrativa dominante branca. Para tanto, realizamos uma pesquisa qualitativa, de tipo bibliográfica e documental, fundamentada no feminismo marxista, sob o método do materialismo histórico-dialético. Concluímos que mesmo diante da desigualdade social, as mulheres negras lideraram resistências e lutas contra a escravização, em defesa da liberdade.

Palavras-chave:
Mulheres Negras; Resistências; Brasil colonial

Abstract:

We live in a patriarchal-racist-capitalist society that continually renews the unequal social relations which based the Brazil social formation since the colonial period. Among the expressions of this inequality, there is a strong invisibility of black women. Therefore, in this article we reflect on women protagonists of struggles and resistances against slavery in Brazil. It is essential to reveal the importance of these women and break with the invisibility of their actions. Here, we present the black women as a fundamental historical and political subject in the actions of resistance against slavery. Women who remain silenced by the dominant white narrative. For that, we carried out a qualitative research based on bibliographic and documental review based on a Marxist feminism and a dialectical historical materialism method. We conclude that even in the face of social inequality, black women led resistance and struggles against slavery in defense of freedom.

Keywords:
Black women; Resistances; Colonial Brazil

Introdução

O racismo e o patriarcado se constituem como sistemas que fundidos ao capitalismo, oferecem as bases para criação de uma sociedade estruturalmente desigual. Com a nossa formação social marcada pela ocupação colonial e os quase quatrocentos anos de regime escravista, presenciamos, até os dias atuais, a continuidade de um intenso processo de exploração e opressão contra a população negra em geral, mas, em particular sobre as mulheres, que sofrem múltiplas violências, violações e invisibilidade sexistas, além de racistas e de classe.

Temos como objetivo apresentar mulheres protagonistas de resistência contra a escravização no Brasil colonial. É imprescindível descortinar a participação de mulheres na história e romper com ocultamento das suas ações e importância. Apontamos a mulher negra escravizada sob nova perspectiva, como sujeito histórico primordial nas ações de resistência.

Analisamos a construção socio-histórica das mulheres na sociedade brasileira colonial com base em uma orientação marxista-feminista. Para tanto, partimos da análise do sistema patriarcal-racista-capitalista como resultado de relações estruturantes da sociedade brasileira, quais sejam, as relações sociais de sexo, raça/etnia e classe. Essa perspectiva é fundamental para identificarmos a classe trabalhadora em sua totalidade, incorporando suas singularidades, não como forma de segmentar a luta, mas de identificar os múltiplos sujeitos que a compõem e “universalizar o grito por liberdade em suas múltiplas dimensões” (CISNE, 2018CISNE, M. Feminismo e marxismo: apontamentos teóricos-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n.132, p.211-230, maio/ago. 2018., p. 227). Em seguida, apresentamos algumas mulheres protagonistas de lutas e resistências no Brasil colônia.

Para a análise do nosso objeto de investigação, realizamos uma pesquisa bibliográfica e documental, fundamentada no materialismo histórico-dialético, como instrumento que nos possibilita compreender a totalidade social como resultado de múltiplas determinações.

Racismo e patriarcado na formação brasileira

O Brasil é um país estruturalmente marcado pelo escravismo colonial de tipo patriarcal1 1 De acordo com Delphy (2009, p. 113), na acepção feminista, o patriarcado “[...] designa a formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres”. , percorrendo um trajeto de dependência e subordinação aos países europeus desde sua construção. Assim, constituiu-se com uma sociedade heteronômica, com “uma economia produtora de mercadorias para o mercado internacional” (IANNI, 1987IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 24).

É sob esse contexto de dependência e subordinação que se estabelece a escravização no Brasil, como parte do projeto “das nações colonizadoras em fase de expansão comercial e mercantil” (MOURA, 2014MOURA, C. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5. ed. São Paulo: Anita Garibaldi coedição com a fundação Maurício Grabois, 2014., p. 75), com vistas à acumulação originária do capital, baseada na violência, trabalho escravizado, e genocídio, em nome do lucro. Nesse sentido, as expedições para o continente africano, partem em busca de riquezas, sob a forma de saques e raptos de nativos, em busca de novas fontes de lucro e expansão econômica.

Por esse ângulo, a rentabilidade oriunda da concentração de força de trabalho explorável para o capital justifica a implementação da escravização, que passa a funcionar como principal sustentáculo econômico da sociedade brasileira em formação. Como nos explica Nascimento (2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3ed. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 59): “O papel do negro escravo foi decisivo para o começo da história econômica de um país fundado, como era o caso do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista. Sem o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido”.

Assim, quando se analisa a estratégia utilizada para persistência da dominação colonial, verifica-se que o racismo desempenha papel primordial, determinando as “condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática” (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 64). É então, nesse momento, que as dimensões raciais e de classe articuladas, moldam uma sociabilidade fundamentada na hierarquização, com vistas a manter um padrão de poder que assegura a superioridade da classe dominante, bem como, a continuidade da ordem colonial escravista-patriarcal.

Nesse contexto, a raça2 2 Concordamos com Almeida (2019, p. 22) na percepção do termo raça como um elemento político: “utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários”. surge como padrão classificatório para distribuição de lugares sociais de poder na sociedade em formação. As diferenças se transformam em desigualdades e consequente inferiorização das populações trazidas coercitivamente para o Brasil. Como explica Quijano (2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 108):

[...] a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na idéia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa idéia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia.

Nesse sentido, Federici (2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 214) explica ainda, que o homem branco não se torna apenas um atributo de privilégio, mas uma imagem idealizada sob a qual a hegemonia foi construída e naturalizada. Por outro lado, negros(as) e africano(as) passam a ser sinônimo de escravizadas(os), ocupando um espaço de inferioridade na vida em sociedade. Essas distinções partem de um mecanismo estratégico da fração dominante, no sentido de conservar seu poder hegemônico e ao mesmo tempo, controlar os segmentos dominados nas últimas escalas da estrutura social.

Compreende-se assim as estruturas do escravismo colonial e do capitalismo fortemente vinculados em uma relação de produção que “organizava a sociedade de forma a criar um mundo de senhores e escravos, proprietários e propriedade, donos e mercadorias” (PINSKY, 1986PINSKY, J. Escravidão no Brasil. 5. ed. São Paulo: Global, 1986., p. 30). Uma sociedade que divide as pessoas a partir das dimensões de raça, criando uma condição de superioridade com objetivo de extração de riquezas. Logo, no contexto da invasão colonial, estabelecem-se as identidades raciais indígenas e negras, assim como sua qualificação de inferioridade, no sentido de legitimar dominação e garantir a continuidade da exploração capitalista.

Com efeito, a colonização a partir da reorganização do poder baseada na classificação racial do trabalho, combinou-se de forma precisa à divisão sexual do trabalho e, dialeticamente, à exploração capitalista. O controle do trabalho da população negra e indígena durante a escravização traz reverberações até a atualidade, não apenas como um legado do passado, mas como relação social dinâmica e estrutural que continua estabelecendo lugares de inferioridade e desigualdade no interior da sociedade. Logo, o racismo não pode ser compreendido apenas como construção ideológica, mas como elemento primordial da nossa formação social, indispensável para consolidação do capitalismo mundial emergente.

No tocante a isso, como resultado da nossa formação socio-histórica assentada no modelo escravista patriarcal, encontramos o reflexo das desigualdades relacionadas também às vidas das mulheres. São elas as primeiras a sofrerem com a escravização, principalmente as negras e indígenas. Sob esta ótica, racismo e patriarcado são funcionais ao capitalismo, que serviram e ainda servem às formas de opressão, exploração e dominação, sobretudo, dos sujeitos marcados por raça e sexo.

Por isso, para pensar na estruturação da sociedade de classes no Brasil, fez-se necessário compreender não apenas a consolidação da sociedade escravista, mas também, do patriarcado. Em outras palavras, é preciso analisar as particularidades da vida das mulheres, especialmente as negras e indígenas escravizadas, como explicam Cisne e Santos (2018CISNE, M.; SANTOS, F. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018., p. 100):

O entendimento da exploração de classe no Brasil, portanto, não pode desconsiderar a exploração da população negra e indígena na economia colonial do país, desenvolvida pelo trabalho forçado e relações de apropriação sobre o corpo e a vida desses povos, destacada e diferenciadamente sobre as mulheres que, além do trabalho forçado, tiverem seus corpos apropriados para exploração sexual.

É importante frisar que essas mulheres tinham não apenas seus corpos apropriados, como os produtos dos mesmos, como o leite — no caso das amas de leite —, bem como na garantia da reprodução gratuita de força de trabalho, mercadoria central para produção de riqueza ou mesmo para venda. Aqui, evidencia-se que a dimensão de classe e raça tornam a vida das mulheres bastante desiguais. Falamos de mulheres negras que serviam às senhoras brancas, que tiveram seus corpos castigados e seus filhos arrancados de si para servirem de mercadoria, enquanto foram obrigadas a amamentar os filhos(as) dos(as) brancos(as). Assim, é importante romper com a imagem da mulher universal branca para apreender as condições materiais particulares de cada uma, levando em consideração, especialmente, que as dimensões de sexo, raça e classe de maneira articulada diferenciam ou mesmo tornam desiguais suas vivências.

Explica-nos Collins (2015)COLLINS, P. H. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In: COLLINS, P. H. Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: SOF, 2015., que a escravização se constitui como uma instituição patriarcal baseada no poder do homem branco proprietário, assegurando a autoridade masculina em todas as esferas sociais. Assim, no contexto escravista, as mulheres brancas aparecem como propriedades dos pais, e posteriormente dos maridos, experimentando processos de exploração e submissão, sem direito a participação da vida em sociedade. É delas ainda, o papel de preservar os costumes europeus, sendo exigidos os valores de passividade, cordialidade e submissão aos mandos do patriarca. Como nos explica Saffioti (1976)SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.:

As mulheres brancas da época escravocrata apresentavam os requisitos fundamentais para submeter-se, sem contestação, ao poder do patriarca, aliando à ignorância uma imensa imaturidade. Casavam-se, via de regra, tão jovens que aos vinte anos eram praticamente consideradas solteironas. Era normal que aos quinze anos a mulher já estivesse casada e com um filho, havendo muitas que se tornavam mães aos treze anos. Educadas em ambiente rigorosamente patriarcal, essas meninas-mães escapavam ao domínio do pai para, com o casamento, caírem na esfera de domínio do marido (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 91).

Destinadas ao casamento desde muito cedo, as mulheres brancas recebiam educação rígida e controle, só podendo sair de casa para “se batizar, para se casar e para ser enterrada” (ARAÚJO, 2004, p. 40). Depois de casadas, encontrava-se submetida aos mandos de um novo senhor, que passa a ser o seu marido. São voltadas às funções sociais de maternidade e obediência, bem como a realização de tarefas ligada aos espaços privados de cuidado e reprodução.

Essa condição torna evidente o padrão patriarcal imposto pela sociedade, ao modo de estabelecer a supremacia do homem sobre a mulher tanto na esfera familiar, como nos espaços socialmente compartilhados. Posto isto, é imprescindível compreender que as relações de poder formuladas dentro da sociedade escravista patriarcal criam modos de ser mulher, impondo papéis sociais que dão formas à sua existência e imprimem lugares socialmente aceitos que elas podem ocupar. Esses estereótipos firmados sob as funções de mãe dedicada e esposa submissa, persistem até hoje na nossa sociedade, e decorrem, na verdade, não de uma essência natural feminina, mas “como resultado de uma construção social” (CISNE, 2015CISNE, M. Gênero, Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Outras Expressões, 2015., p. 30), como forma de atender interesses dominantes.

Apesar de também sofrerem opressão patriarcal, essas mulheres brancas impuseram relações de dominação sobre as negras e indígenas, submetidas a níveis de violência, exploração e opressão incomparáveis. Enquanto as mulheres brancas são propriedades dos pais, e posteriormente dos maridos, experimentando processos de submissão, sem direito à participação da vida em sociedade, as mulheres escravizadas, além de subordinadas ao domínio masculino, têm seus corpos apropriados para o trabalho forçado e exploração e violência sexual.

Partindo da condição de trabalhadoras, as cativas desenvolviam serviços iguais aos dos homens escravizados, contudo, vivenciavam experiências distintas, haja vista o fator sexual como elemento capaz de intensificar a exploração e expressões de violência. Em sua análise geral sobre a condição da mulher negra escravizada, Angela Davis (2016)DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. constata que:

A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas (DAVIS, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 25).

Como sumariamente anunciamos, ao serem escravizadas, as mulheres negras eram violentadas pelos colonizadores não apenas como força de trabalho e instrumento de trabalho, mas também como fonte de reprodução humana e satisfação sexual, portanto, além de exploradas, eram violentadas sexualmente. Nessa circunstância, a exploração econômica da mulher cativa se torna “consideravelmente mais elevada do que a do escravo, por ser a negra utilizada como trabalhadora, como mulher, e como reprodutora de força de trabalho” (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 90).

Assim, eram apropriadas para além dos papéis desempenhados no âmbito doméstico, nas lavouras, como mãe negra, ama de leite e reprodutora. Ressaltamos ainda, as marcas da violência sexual e o estupro colonial como um mecanismo de dominação e expressão do poder dos homens na sociedade escravista patriarcal. Logo, as mulheres vivenciam castigos mais cruéis, uma vez que além das agressões físicas, estas ainda têm que suportar os abusos sexuais. Explica-nos Davis (2016)DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.:

Como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas as formas de coerção sexual. Enquanto as punições mais violentas impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as mulheres eram açoitadas, mutiladas e também estupradas. O estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras (DAVIS, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 26).

É muito importante compreendermos essa circunstância atentando para persistência nos estudos sobre a formação social brasileira da ideia da miscigenação sob visão idílica, cercada pelo discurso da democracia racial e da livre união entre colonizadores e cativas. Basta ampliarmos nossa perspectiva sobre a posição da mulher negra na sociedade escravista patriarcal para percebermos que a fantasiosa integração entre raças é fruto do estupro.

Como vimos, a estrutura patriarcal herdada de Portugal origina uma série de imposições que incidem diretamente sobre as mulheres, a julgar pela exigência dos padrões que impõe o fortalecimento da supremacia masculina em todas as esferas sociais. Essa substância unida ao racismo estrutural constitui uma hierarquia de poder expressa por meio das relações desiguais entre sexos e também, na dimensão étnico-racial. Nesse ambiente, é formulada uma espécie de pirâmide social, na qual os homens brancos ocupam a primeira posição, ao mesmo tempo em que mulheres negras permanecem em sua base.

É importante demonstrar que a dimensão étnico-racial permanece estritamente articulada à desigualdade sexual para estruturação da classe. Por isso, é impossível realizar a análise crítica da realidade sem levar em consideração as relações sociais de sexo, raça/etnia e classe de forma articulada, conformam “um único sistema de exploração, aqui denominado patriarcado-racismo-capitalismo” (SAFFIOTI, 1987SAFFIOTI, H. I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987., p. 60), sob o qual se edifica as violências, desigualdades e opressões. É então, devido à fusão desse sistema, que a experiência da escravização foi terrivelmente vivida pela população africana e de forma mais acentuada, sobre as mulheres negras escravizadas.

Percebemos o capitalismo como um sistema econômico que lucra com exploração diferenciada entre membros da classe trabalhadora. Assim, por meio da construção das desigualdades sexuais e raciais, “amplia um grande contingente humano disponível para os mais baixos salários, aumentando, portanto, a sua capacidade de exploração” (CISNE, 2014CISNE, M. Relações sociais de sexo, “raça/etnia e classe: uma análise feminista-materialista. Brasília (DF), ano 14, n. 28, p. 133-134, jul./dez. 2014., p. 146). Sob essa lógica, a forma com que a força de trabalho é explorada traz reverberações em toda a dinâmica da sociedade, tornando perceptível a existência da divisão classista, racista e sexual do trabalho, na qual as diferenças se transformam em desigualdades, por meio da hierarquização de atividades. Nesse sentido, o trabalho das mulheres e da população negra ganha dimensões diferenciadas de exploração, tendo em vista a estrutura das relações sociais como relações de opressão, dominação e exploração radicalmente interligadas.

Compreende-se assim que a lógica do capital é forjada de maneira indissociável da lógica de exploração/apropriação patriarcal e racista. Sendo assim, as mulheres são oprimidas pela sua condição sexual, e adquirem um agravante das opressões de raça/etnia. Federici (2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 119), mesmo analisando a situação europeia, é capaz de auxiliar na compreensão dessas opressões ao argumentar que as hierarquias servem como mecanismos funcionais à dominação e que só são capazes de operar por intermédio da divisão e enfraquecimento dos que querem oprimir. Nesse caso, percebemos a especificidade das mulheres escravizadas, uma vez que localizadas em uma sociedade composta por relações antagônicas de poder, vivenciam dimensões diferenciadas de exploração e opressão, o que não ocorreu de forma passiva ou sem resistências.

Resistências e lutas de mulheres cativas no Brasil colônia

Desde o início da vida em cativeiro, a população negra, negando a visão da escravização dócil e passiva, participa como elemento primordial na criação de estratégias de rebeldia e confronto a instituição. Nesse contexto, as ações executadas pelas mulheres correspondem à negação do modo de produção escravista e a consequente oposição ao mando dos senhores proprietários. Assim, travando um movimento entre opressão e resistência, elas arquitetavam diferentes alternativas para sobreviverem e se libertarem. Como demonstram Shumaher (2006)SHUMAHER, S. Mulheres negras do Brasil. São Paulo: SENAC, 2006.:

As mulheres negras – fossem livres ou cativas – procuraram elaborar e manejar mecanismos diversos de resistência e rebeldia, visando modificar suas vidas e a de seus familiares. Resistiram com uma inventiva obstinação e persistência, minando a escravidão e, em conseqüência, contrariando a idéia de que aceitaram com passividade a opressão imposta (SHUMAHER; 2006SHUMAHER, S. Mulheres negras do Brasil. São Paulo: SENAC, 2006., p. 86).

Nesse sentido, os constantes conflitos oriundos da sociedade escravista patriarcal aliado ao crescente descontentamento da população escravizada resultam na insurgência de ações contínuas contrárias à escravização. As mulheres cativas recorreram a várias formas de recusa a dominação que lhes são impostas. Podendo ir desde ações individuais e cotidianas, como fugas, abortos, infanticídios e suicídios, até ações mais coletivas como as participações nas rebeliões e na formação de quilombos.

Durante toda a época colonial é possível reconhecer na sociedade escravista, uma cadeia ininterrupta de resistência, não apenas com ações pontuais e raras, mas também em uma luta permanente e articulada nas manifestações de inconformismo pela liberdade.

Para melhor compreensão, retomamos a época de aprisionamento da população africana, no qual o tráfico se constituiu como uma atividade rentável de compra e venda de seres humanos reduzidos à condição de mercadoria. Durante o trajeto, elas são acondicionadas e transportadas em verdadeiros calabouços, empilhadas com outras centenas de pessoas. Essa condição, ao mesmo tempo em que acresce os índices de mortalidade e sofrimento decorrente da viajem, apresenta também, expressões de uma luta sem trégua pela liberdade. Não sendo raros os relatos sobre a participação feminina nas revoltas durante o trajeto em alto mar:

O subcomandante da Companhia Geral das Índias, William Bosman, conta que, em 1702, cativos embarcados num navio holandês ancorado em Ajudá apoderaram-se de várias armas e lançaram-se sobre a tripulação. [...]. No dia seguinte, muitos deles foram enforcados na ponta do mastro, onde permaneceram pendurados. As mulheres, segundo Bosman, pareciam mais audaciosas e perigosas (SHUMAHER; 2006SHUMAHER, S. Mulheres negras do Brasil. São Paulo: SENAC, 2006., p. 21, grifo nosso).

Com a chegada em solo brasileiro, a luta continua. Mulheres e homens escravizados ocupam ações nas ruas das cidades, promovendo possíveis manobras de resistência à exploração imposta pela sociedade escravista. Nesse contexto, as escravizadas de ganho aparecem em lugares de destaque, uma vez que, posicionadas nos espaços urbanos, possuíam uma maior mobilidade para articulação.

De acordo com Soares (1996SOARES, C. M. As ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Afro-Ásia, Salvador, n.17, 1996., p. 57), as escravizadas de ganho desenvolvem as mais diversas atividades do comércio ambulante, carregando produtos alimentícios em cestas e tabuleiros à cabeça, ou no transporte dos mais variados tipos de carga. Elas eram mandadas às ruas pelos seus senhores para executar a tarefa a que estavam designadas e no fim do dia, tinham de entregar ao proprietário uma determinada quantia, previamente estipulada, numa espécie de contrato informal. O que excede desse valor é, portanto, apropriado pela escravizada, possibilitando o acúmulo dos bens necessários para a obtenção da alforria.

Além disso, a categoria das escravizadas de ganho possibilitava também, a experiência de viver longe dos mandos dos seus senhores, garantindo maior locomoção nos centros urbanos. Nesse contexto, as mulheres de ganho fazem do seu ponto de venda, espaços de articulação política de resistência. Uma vez que além dos seus produtos, transportavam também sua cultura, suas estratégias e seus ideais de liberdade para transformação social.

Dentre essas mulheres, destacamos Adelina. Nascida no Maranhão, era filha e escravizada do mesmo senhor, que promete alforriá-la junto com a mãe ao completar dezessete anos de idade, mas, volta atrás e recua na decisão (DEL PRIORI, 2013DEL PRIORI, M. (org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2013.; SHUMAHER; 2006SHUMAHER, S. Mulheres negras do Brasil. São Paulo: SENAC, 2006.). Trabalhou desde a adolescência pelas ruas da cidade, carregada com tabuleiros de charutos para venda, tendo a oportunidade de assistir os discursos libertários promovidos por estudantes. Essa condição serve para alimentar sua repulsa à sociedade escravista, aproximando-a cada vez mais, da causa abolicionista. Ela passa a colaborar como sujeito ativo na luta contra a escravização, tanto na distribuição e repasses de informações, como nas fugas.

Percebemos assim, as contribuições das negras de ganho na construção de redes de solidariedade e articulação entre escravizados na luta na pela libertação das amarras do sistema de dominação escravista. Elas utilizam seus espaços de venda para repasse de informações e deliberações, como lideranças no âmbito da luta contra a escravização. Assim, apesar de ser importante na organização econômica da vida urbana, a mobilidade das mulheres de ganho começa a gerar preocupações para as autoridades, como possíveis ameaças à ordem estabelecida a partir da troca de mensagens, com outras negras(os) revoltosas(os).

De acordo com Soares (1996SOARES, C. M. As ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Afro-Ásia, Salvador, n.17, 1996., p. 67), na Bahia, em 1835, ganhadeiras foram acusadas de participar da revolta do Malês, atuando no fornecimento de bebidas e participando das conspirações. Dentre elas, estava Luiza Mahin, suspeita de se envolver em outros planos de insurreições de escravizados, como a Sabinada de 1837 (MOURA, 2004MOURA, C. Dicionário da escravidão Negra no Brasil. São Paulo: USP, 2004., 1986MOURA, C. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1986.). Com a derrota, ela foge para o Rio de Janeiro, dando continuidade às ações em busca pela liberdade, até ser presa e deportada para seu local de origem.

A história dessas mulheres, mesmo cercadas de incertezas, é capaz de evidenciar a insubmissão como uma prática que esteve sempre presente no cotidiano das escravizadas. Nesse sentido, as cativas que não tinham a mesma mobilidade das que ocupavam os centros urbanos, recorriam a outros mecanismos, dentre os quais: agressões, sabotagens, ameaças e até mesmo, o assassinato, para manifestar o inconformismo às condições de vida e exploração impostas pela escravização.

O assassinato de senhores e senhoras proprietárias era um tipo de revolta comum no decorrer do período escravista, sendo justificado, na maioria das vezes, pelo ambiente violento de castigos constantes. Dessa forma, as escravizadas utilizavam do conhecimento com o trato de ervas, venenos naturais e também, dos instrumentos cotidianos do trabalho, para que a partir da morte daqueles que as exploram, pudessem usufruir a tão desejada vida em liberdade.

Analisando essa condição, Pinsky (1986)PINSKY, J. Escravidão no Brasil. 5. ed. São Paulo: Global, 1986., demonstra que as ações contra os senhores podem acontecer ainda, como revide às opressões e desestruturação de laços familiares, bem como atitudes premeditadas. Como a realizada por Letícia, Querubina, Cecília e Virgínia, acusadas de matar sua senhora, no ano de 1873, em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. Elas alegavam que a senhora “muito cruel e violenta”, perpetrava castigos contínuos, que iam desde as surras com palmatórias e chicotes, até o acorrentamento no sótão da casa. Assim, as quatro se unem e de comum acordo, combinando o assassinato por vingança (GOMES, LAURIANO, SCHWARCZ, 2021GOMES, F. S.; LAURIANO, J.; SCHWARCZ, L. M. Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 201).

O fato é que, esse ambiente instaura entre os senhores, um clima de tensão e medo constante, que pode ser exemplificado no aumento das ações repressivas e solicitação de leis mais severas para os que atentassem contra seus proprietários e familiares, como por exemplo, a Lei n. 4, de 10 de junho de 1835, estabelecendo que:

Art.1º – Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa pshysica ao seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem3 3 Código criminal do Império do Brazil annotado, (TINÔCO, 2003). (TINÔCO; 2003TINÔCO, A. L. F. O Código Criminal do Império do Brasil annotado. 1. ed. de 1886. Edição fac-similar, com prefácio do Ministro Hamilton Carvalhido. Senado Federal, Conselho Editorial, 2003., p. 558).

Podemos verificar assim, que a população escravizada é tida como uma propriedade viva, sujeita aos mandos do senhor a quem pertence. Nesse contexto, os castigos e as práticas repressivas são indissociáveis do seu cotidiano, como forma pela qual a sociedade se protege das parcelas revoltosas, como um método de alerta, para os outros cativos que pensam em repetir tais ações de rebeldia. Contudo, nesse cenário marcado pelo autoritarismo, as cativas permanecem na luta contra sua condição, com práticas silenciosas ou ações de enfrentamentos.

A fuga, por exemplo, aparece como um afronte ao modo de dominação senhorial. Uma vez que, partindo para longe dos seus proprietários, as escravizadas buscavam escapar não apenas das explorações e castigos diários, mas romper definitivamente com todas as amarras oriundas da sociedade escravista patriarcal. Assim, ao mesmo tempo em que essa ação representa a possibilidade de liberdade, pode apresentar também um caráter de insegurança. Isso porque, entre os grandes riscos de captura, estão a natureza violenta dos castigos e as rígidas medidas de controle. Suas tentativas, contudo, não cessavam, caracterizando a persistência de negação da submissão aos mandos do senhor.

Essa condição pode ser evidenciada nos anúncios de jornais, que publicavam frequentemente, artigos noticiando as fugas de mulheres escravizadas, que mesmo quando recuperadas não desistem de tentar alcançar a libertação. Algumas delas, ainda se encontravam recebendo a sentença pela fuga anterior, quando encontram brechas para tentativa de uma nova partida, como no trecho evidenciado a seguir:

Carolina, crióla, idade pouco mais ou menos 17 annos, refeita do corpo, altura regular, levou quando fugio, um vestido novo de chila azul de xadrez, e alguns outros velhos também de xilla, traz uma argola de ferro no pé direito, por haver a pouco tempo commettido a mesma fuga: ao porto das canoas, casa nova do Mesquita, que será recompençado (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1834DIÁRIO DE PERNAMBUCO (PE). Escravos fugidos. Diário de Pernambuco, Ano 1834, n. 339, segunda-feira 1 de março, impresso em Pernambuco por José Victorino de Abreu, p. 1356. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029033_01&hf=memoria.bn.br&pagfis=6516. Acesso em: 10 abr., 2021.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
).

Em casos como esses, é comum que as escravizadas, receosos de serem duramente castigados ou mesmo inconformados pela recaptura, optarem pela morte. O suicídio é utilizado como uma forma de protesto e resistência à escravização, ou nas palavras de Pinsky (1986PINSKY, J. Escravidão no Brasil. 5. ed. São Paulo: Global, 1986., p. 60), “um derradeiro e eloqüente gesto de revolta”.

No caso específico das mulheres escravizadas não bastava à liberdade individual, buscando a todo modo livrar a si, mas também, aos seus filhos(as) das explorações. O aborto e infanticídio, então, apresentavam como métodos de rebeldia eficazes na garantia da liberdade.

Não eram raras as acusações contra as escravizadas que matavam seus filhos para impedir que fossem vendidos. É o caso de Geralda, escravizada durante o século XIX. Ela atenta contra o seu filho sob a justificativa desesperada de evitar os castigos que poderiam ser cometidos contra ele. Quando indiciada pelo crime de infanticídio, chega a declarar em juízo que preferia “morrer com seu filho, do que se separar dele” (GOMES; LAURIANO; SCHWARCZ, 2021GOMES, F. S.; LAURIANO, J.; SCHWARCZ, L. M. Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 92).

Esses movimentos na exigência pela libertação e dignidade culminam na formação dos quilombos, como uma das maiores expressões de resistência da população cativa, capaz de estremecer as estruturas de uma sociedade organizada sob a dominação senhorial. De acordo com Moura (1986MOURA, C. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1986., p. 18), os quilombos surgem como uma unidade de resistência física e de preservação cultural, elaborada por um modelo associativo de ajuntamento entre os demais segmentos oprimidos da sociedade, como indígenas, criminosos e fugitivos do serviço militar.

Durante o período colonial, as referências aos primeiros mocambos são datadas em meados do século XVI (GOMES, 2015). A partir de então, o seu crescente desenvolvimento faz dessa organização um movimento político abrangente e contínuo na oposição ao modo de vida imposto pela escravização. A popularização do movimento faz com que as fugas de escravizados se façam cada vez mais constante no cotidiano da colônia, perdendo o caráter esporádico e individual, para se tornar uma ação contínua e coletiva de resistência. Logo, os quilombos se tornam o foco da população negra, chegando a reunir, durante sua formação, milhares de habitantes fugidos.

As mulheres foram figuras importantes para a estruturação de quilombos, assim como na sua organização política e no desenvolvimento de resistências nos mesmos. De acordo com Gomes (2005GOMES, F. Palmares: Escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005., p. 82), elas realizavam as mais diversas atividades, podendo trabalhar nas plantações, no desenvolvimento de atividades produtivas e nos transportes de alimentos, bem como na participação em combates. Tornavam-se ainda, importantes lideranças religiosas, ocupando espaços de destaque como divindades e conselheiras da comunidade, é o que acontece com Acotirene dos Palmares.

Ao chegar aos Palmares ainda no século XVI, antes do líder Ganga Zumba assumir o poder, Acotirene, exercendo função de matriarca do Quilombo, orientava, aconselhava e guiava a população negra no desenvolvimento das primeiras atividades de resistência a escravização. Ela era ainda, a encarregada por receber os primeiros negros refugiados na Cerca Real dos Macacos — um dos maiores mocambos localizado na Serra da Barriga — considerado o centro político para as decisões da comunidade quilombola (SILVA, 2007).

De acordo com Moura (2019MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 214), a administração pública do Quilombo passava pelo poder absoluto do rei e dos seus conselheiros, representados por chefes de diversas comunidades. Assim, quando Ganga Zumba assume o espaço como regente de Palmares, Acotirene permanece desempenhando a função privilegiada como conselheira, desde questões familiares e internas dos mocambos, até o planejamento e decisões políticas e militares.

Outra importante liderança feminina foi Aqualtune da dinastia Nlanza. Uma princesa guerreira e dirigente política congolesa, que atuou, no século XVII, na linha de frente na batalha de Mbwila, liderando cerca de 10 mil combatentes. Diante à derrota no combate, ela é capturada, aprisionada e marcada a ferro, sendo enviada ao Brasil e, posteriormente, vendida como escravizada na condição de reprodutora. Durante o desembarque em Recife, a princesa aproveitando de uma brecha deixada pelos seus condutores, desempenha uma tentativa de fuga, correndo em direção ao mar em uma busca frustrada de alcançar a liberdade. Sendo novamente capturada, é enviada à região de Porto Calvo (COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS, 2020COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS. Biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras. Curitiba: Voo, 2020.).

Segundo Rezzutti (2018REZZUTTI, P. Mulheres do Brasil: a história não contada. Rio de Janeiro: Leya, 2018., p.49) é a partir desse contexto, que Aqualtune tem acesso a informações sobre os movimentos negros insurgentes. Dentre eles, o Quilombo dos Palmares, como uma estrutura composta por escravizados fugidos, localizado nas redondezas do seu local de trabalho. Nesse momento, a princesa começa a estruturar um novo plano de fuga. É em meio ao desenvolvimento de uma gestação, que ela consegue partir, junto com outros fugitivos, em direção à comunidade dos Palmares. Chegando lá, Aqualtune tem sua realeza reconhecida, recebendo um mocambo para governar.

Segundo o Coletivo Narrativas Negras (2020COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS. Biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras. Curitiba: Voo, 2020., p. 23), como chefe do mocambo — que agora leva o seu nome —, Aqualtune foi peça fundamental na organização dos Palmares. Possuía uma vasta experiência nos ambientes de batalha. Além da sua contribuição para estruturação da comunidade, Aqualtune se destaca também, por ser mãe de personalidades importantes dos Palmares, dentre eles: Ganga Zumba e Ganga Zona que se tornam, assim como ela, dirigentes do Quilombo. Bem como sua filha Sabina, que “deu-lhe o neto que suplantaria a história da avó e seria mais conhecido que ela: Zumbi” (REZZUTTI, 2018REZZUTTI, P. Mulheres do Brasil: a história não contada. Rio de Janeiro: Leya, 2018., p. 49).

O fato de conhecermos mais Zumbi do que as mulheres citadas é a confirmação de que o histórico processo de luta contra a escravização permanece ainda reduzido à figura masculina. Assim, essas quase não aparecem na historiografia, e quando são apresentadas, é à sombra da figura de um homem influente, como Dandara, mais conhecida por ser companheira de líder dos Palmares, do que por sua própria história.

Muito além de esposa de Zumbi, Dandara foi uma mulher negra e guerreira, que lutou incansavelmente na resistência dos Quilombos e pela liberdade de negras e negros escravizados, durante o século XVII. Ela foi uma das provas vivas do poder da mulher cativa, destacando-se no processo de organização e defesa da comunidade quilombola. Assim, além de desenvolver atividades dedicadas à produção de alimentos, plantação e caça, ela também lutava capoeira, e quando necessário, empunhava armas, liderando as falanges femininas do exército negro palmarino (FUNDAÇÃO PALMARES, 2014). Não há dados sobre seu nascimento e ascendência africana, o que leva alguns historiadores a acreditar que ela nasce no Brasil e se instala nos Palmares desde criança. A partir de então, aprende técnicas de defesa e fabricação de armas, tornando-se uma das principais lideranças femininas, que junto a Ganga Zumba, luta contra as investidas da sociedade escravista. Essa relação dura até o ano de 1678 quando, segundo Souza e Cararo (2017SOUZA, D. P.; CARARO, A. Extraordinárias: mulheres que revolucionaram o Brasil. São Paulo: Seguinte, 2017., p. 18), o líder de Palmares assina um tratado de paz com o governo português, garantindo a liberdade dos palmarinos e do comércio, em troca da entrega dos escravizados fugitivos. Dandara apresenta oposição à decisão de Ganga-Zumba, aliando-se a Zumbi, sucessor do rei, com quem teve três filhos. Desde então, ela assume posição de liderança no Quilombo.

Considerações finais

As relações raciais, patriarcais e de classe moldam, dialeticamente, uma sociabilidade fundamentada na hierarquização, expressa por meio das relações desiguais de raça, classe e entre sexos. Por isso, é impossível realizar a análise crítica da realidade, sem levar em consideração as particularidades do sistema patriarcal-racista-capitalista de maneira articulada, sob o qual se edifica as violências, desigualdades, violências e opressões.

A escravização foi terrivelmente vivida pela população africana, e de forma mais acentuada sobre as mulheres negras, sujeitas não apenas ao trabalho escravizado, mas, também, à exploração sexual. Mesmo diante do contexto de intensa apropriação e opressão, as cativas desafiaram o regime escravista. Foram símbolos de luta e forjaram ações de combate às estruturas dominantes. Identificamos mulheres que participaram ou mesmo lideraram rebeliões, organizando fugas e impondo resistência, que foram fundamentais na organização quilombola, como Adelina, Luiza Mahin, Aqualtune, Acotirene e Dandara. Mulheres que seguem nos inspirando como símbolos de resistência na luta pela liberdade. Assim, a retomada a essas memórias, além de evidenciar um trajeto marcado pela força e o poder daquelas que lutaram contra a escravização, inspira-nos a dar continuidade na luta pela conquista dos nossos direitos e liberdade substantiva.

Agradecimentos

Ao apoio do CNPq.

  • 1
    De acordo com Delphy (2009DELPHY, C. Patriarcado. In: HIDRATA, H. et al. (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009., p. 113), na acepção feminista, o patriarcado “[...] designa a formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres”.
  • 2
    Concordamos com Almeida (2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 22) na percepção do termo raça como um elemento político: “utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários”.
  • 3
    Código criminal do Império do Brazil annotado, (TINÔCO, 2003TINÔCO, A. L. F. O Código Criminal do Império do Brasil annotado. 1. ed. de 1886. Edição fac-similar, com prefácio do Ministro Hamilton Carvalhido. Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.).
  • Agência financiadoraCNPq. Processo: 436384/2018-3. Período de vigência 03/2019 a 02/2022. Artigo resultante de pesquisa com apoio do CNPq, por meio do edital universal 2018; uma bolsa produtividade (PQ2) e uma bolsa de iniciação científica (PIBIC/CNPq).
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentido das autoras.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    21 Fev 2022
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