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A crítica da economia política como método: alguns elementos para investigação nas ciências sociais

The critique of political economy as a method: some elements for research in the social sciences

Resumo:

Objetivamos, com este artigo, lançar luz sobre alguns elementos da crítica da economia política como método, que favoreçam o desenvolvimento de pesquisas no campo das ciências humanas e sociais. Para isso, partimos dos escritos produzidos por Karl Marx e Friedrich Engels — aos quais complementamos com os avanços teóricos produzidos por alguns intelectuais marxistas ao longo do último século e meio — num esforço de evidenciar princípios importantes para investigação. Destacamos, como aspectos relevantes do trabalho, que a pesquisa social deve ter fundamento no real concreto, cabendo ao pesquisador descobrir a mediação entre aparência e essência através de aproximações sucessivas de reconstrução, no pensamento, da totalidade do fenômeno analisado, a partir de seu próprio movimento, em vista da transformação social.

Palavras-chave:
Método; Economia política; Dialética; Materialismo; Marx

Abstract:

With this article, we aim to shed light on some elements of the critique of political economy as a method that favor the development of research in the field of human and social sciences. For this, we start from the writings produced by Karl Marx and Friedrich Engels – which we complement with the theoretical advances produced by some Marxist intellectuals over the last century and a half – in an effort to highlight important principles for investigation. We emphasize, as relevant aspects of the work, that social research must be based on the concrete reality, and it is up to the researcher to discover the mediation between appearance and essence through successive approximations of reconstruction, in thought, of the totality of the analyzed phenomenon, from their own movement, in view of social transformation.

Keywords:
Method; Political economy; Dialectic; Materialism; Marx

Introdução

A compreensão da realidade social, na abordagem metodológica marxista, deve incidir sobre processos que resultam de inúmeras determinações contraditórias do próprio movimento da luta de classes. Assim, o pesquisador (enquanto sujeito) está imerso nessa realidade social a qual precisa decifrar para poder intervir. A partir disso, com este artigo, procuramos lançar luz sobre alguns elementos da crítica da economia política como método, ou seja, o método de Marx, que favoreçam o desenvolvimento de pesquisas no campo das ciências humanas e sociais.

Em meio ao ambiente acadêmico brasileiro, muitas vezes hostil ao marxismo, faz-se necessário voltar nossa atenção à questão do método em Marx, tirando daí importantes lições de como proceder diante de nossos próprios objetos de investigação. Para isso, partimos dos escritos produzidos por Karl Marx e Friedrich Engels — aos quais complementamos com os avanços teóricos produzidos por alguns intelectuais marxistas ao longo do último século e meio — num esforço de destacar alguns princípios importantes para investigação nas ciências sociais e humanas.

Para tal, dividimos o presente texto em cinco partes. Além desta breve introdução, no segundo momento trazemos as fontes do pensamento de Marx. Em seguida, avançamos para uma curta análise crítica da economia política. Na quarta seção, a maior do trabalho, evidenciamos elementos que julgamos centrais do método de Marx, entre os quais destacamos os seguintes aspectos: do concreto ao abstrato, a essência e a aparência, a totalidade, o indivíduo e a sociedade, a dialética, as grandes metáforas de Marx, a crítica como método e, finalmente, o método de exposição. E na última parte trazemos as considerações finais.

As fontes do pensamento de Marx

O interesse de Karl Marx pela economia política se deu através dos chamados interesses materiais. Em sua atuação como redator do jornal Gazeta Renana, entre 1842-43, deparou-se com os debates no Parlamento Renano sobre o “furto” de lenha, que expressava no campo legislativo a contradição entre as tradições feudais do direito germânico e o direito burguês, por influência da Revolução Francesa, baseado na propriedade privada e na igualdade abstrata dos sujeitos. A cena de abertura do filme O Jovem Karl Marx (2017) ilustra a brutal repressão sofrida pelos camponeses que colhiam lenha seca nos bosques, e a forte impressão que isso deixa em Karl Marx.

A Alemanha, na primeira metade do século XIX, compartilhava a restauração dos povos modernos sem ter compartilhado as suas revoluções. Ou seja, na Alemanha o modo de produção capitalista não estava amplamente desenvolvido; a questão colocada era a do domínio da propriedade privada sobre a nacionalidade, enquanto na França e na Inglaterra estava em questão o domínio da sociedade sobre a riqueza, ou seja, a economia política. Entretanto, Marx (2010)MARX, K. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: Introdução. São Paulo: Expressão Popular, 2010. pondera, na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: Introdução, que, ainda que os alemães não fossem contemporâneos históricos, eram contemporâneos filosóficos da atualidade.

Daí a importância que a filosofia alemã teve na formação intelectual de Marx, sobretudo metodologicamente. Karl Marx bebeu da fonte da filosofia clássica alemã, especialmente Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Depois se aproximou do materialismo de Ludwig Feuerbach, em crítica ao idealismo de Hegel, aprofundando-o e levando-o às últimas consequências. Incorporando ao seu modo de pensar a dialética e o materialismo.

Karl Marx, desde sua crítica à filosofia alemã, aponta para a atividade humana sensível como atividade prático-crítica. Nesse sentido, propõe que “a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, no entanto, também a teoria se transforma em poder material assim que se apodera das massas” (MARX, 2010MARX, K. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: Introdução. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 44, grifo nosso). De maneira mais enfática, nas Teses sobre Feuerbach, decreta: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007., p. 535, grifo do autor). Colocando sua construção científica a serviço da transformação social.

A partir dos seus estudos de Hegel, Marx (2016)MARX, K. Prefácio de Marx ao livro Contribuição à Crítica da Economia Política [1959]. In: DANTAS, Gilson; TONELO, Iuri (org.). O Método em Karl Marx. São Paulo: Edições Iskra, 2016. p. 37-42. chegou à conclusão que as formas do Estado — relações jurídicas — não podem ser compreendidas a partir de si mesmas, mas por meio das relações materiais da vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de “sociedade civil”. Marx concluiu, então, que a anatomia da sociedade civil deveria ser procurada na economia política — na produção social da vida dos homens, ou seja, nas relações de produção.

A economia política inglesa se tornou objeto da atenção de Marx, no período em que esteve em Paris, através do texto de Friedrich Engels — Esboço para uma Crítica da Economia Política —, que anos depois Marx ainda se referia como um esboço genial; bem como o livro, também de Engels, sobre A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. O encontro desses dois intelectuais rendeu uma longa amizade, além de uma profunda parceria intelectual e política.

Karl Marx dedicou bons anos de estudo para assentar os elementos centrais de sua análise do modo de produção capitalista, tendo passado por Paris, Bruxelas e Colônia, fixou residência em Londres, a partir de 1849, onde pôde se dedicar sistematicamente ao estudo da economia política. Nesse sentido, os infortúnios causados pelos sucessivos exílios foram acompanhados, simultaneamente, de uma ampliação do leque de autores a quem Marx se pôs a estudar. Com isso, como bem destacou o revolucionário russo Vladimir Lenin (2017)LENIN, V. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo [1913]. Esquerda Diário. 4 jul. 2017. Disponível em: http://www.esquerdadiario.com.br/Lenin-As-tres-fontes-e-as-tres-partes-constitutivas-do-marxismo-1913. Acesso em: 18 ago. 2018.
http://www.esquerdadiario.com.br/Lenin-A...
, a estrutura teórica de Marx tem por base a filosofia alemã, o socialismo francês e a economia política inglesa, e corresponde à crítica e ao aprimoramento desses conhecimentos.

A economia política e a sua crítica

A economia política, de acordo com Friedrich Engels (2015)ENGELS, F. Anti-Dühring: A revolução da ciência segundo o senhor Engen Dühring. São Paulo: Boitempo, 2015., no Anti-Dühring1 1 Como ressalta José Paulo Netto (2015, p. 16): “Marx conheceu a íntegra do texto do livro de 1878, colaborou em sua reação e não manifestou reservas às reflexões de Engels”. Em apresentação ao livro, diz mais “Na segunda seção [economia política], em que Marx colaborou textualmente, Engels, em confronto com as proposições de Dühring, formula com precisão o objeto da economia política, seu método e seus problemas, e sintetiza algumas das categorias econômicas mais básicas de Marx” (PAULO NETTO, 2015, p. 18). , é a ciência que investiga as leis que governam a produção e a troca do sustento material da vida na sociedade humana. Por isso, quando Engels se refere ao aspecto econômico, pouco tem a ver com a forma que se entende hoje — uma economia técnico-matemática voltada à manutenção e ao aprofundamento da ordem capitalista —, mas enfatiza que “a economia não trata de coisas, mas de relações entre pessoas e, em última instância, entre classes; estas relações estão, porém, sempre ligadas a coisas e aparecem como coisas” (ENGELS, 2016bENGELS, F. Resenha de Engels ao livro de Marx Contribuição à Crítica da Economia Política [1859]. In: DANTAS, Gilson; TONELO, Iuri (org.). O Método em Karl Marx. São Paulo: Edições Iskra, 2016b. p. 89-101., p. 99). A economia política, no contexto em que Marx e Engels escreveram, dizia respeito à dimensão social dos fenômenos da produção/reprodução da vida material e da troca, de modo que o econômico não pode ser entendido por fora da dimensão social e política.

O desenvolvimento das ideias econômicas, conforme indica o economista russo Isaac Ilich Rubin (2014)RUBIN, I. I. História do Pensamento econômico. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2014., depende das formas econômicas e da luta de classes. Ou seja, as ideias econômicas não surgem do nada, mas advêm do desenvolvimento do seu objeto de estudo — a economia capitalista; e da agitação dos conflitos sociais, do campo de batalha entre as diferentes classes.

A economia política, então, surgiu e se desenvolveu como ciência da burguesia, num contexto em que esta classe estava em luta para ocupar a posição de dominante na economia, na sociedade e no Estado. A obra dos clássicos, no âmbito da economia política inglesa, tinha sem dúvida caráter científico, mas também era instrumento consciente na luta ideológica e na luta de classes da burguesia contra as velhas classes feudais. Por isso foi instrumento a serviço da transformação da realidade social e cumpriu seu papel para acelerar a derrocada da velha sociedade. Por exemplo, a defesa do laissez-faire e da eficiência da “mão invisível” se constituíram numa poderosa crítica à ordem social anterior (NUNES, 2007NUNES, A. J. A. Uma Introdução à Economia Política. São Paulo: Editora Quartier Lanin, 2007.).

Contudo, Karl Marx (2013)MARX, K. O Capital: Crítica da economia política: Livro 1: O processo de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., no posfácio da segunda edição d’O Capital, enfatiza que a economia política só pôde permanecer ciência enquanto a luta de classes estava latente, ou se apresentava de maneira isolada. Isso por ser burguesa e entender a ordem capitalista como a última e absoluta forma da produção social, e não como um estágio historicamente transitório de desenvolvimento.

Os clássicos do pensamento econômico, especialmente Adam Smith e David Ricardo, exemplificam isso. Para Marx, o valor científico desses pensadores é inegável justamente porque buscavam descobrir a conexão interna das relações de produção burguesas, conseguindo perceber, em alguma medida, a essência escondida por trás da aparência, reconhecendo e exprimindo algumas contradições da realidade (LÖWY, 1987LÖWY, M. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987.).

No entanto, com a conquista do poder político pela burguesia, a luta de classes assume formas cada vez mais acentuadas. Com isso, o desenvolvimento dos estudos da economia política se voltou ao interesse estrito de reprodução do capital, perdendo seu compromisso com a busca pela verdade. “Não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo” (MARX, 2013MARX, K. O Capital: Crítica da economia política: Livro 1: O processo de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 86).

Karl Marx (2011a)MARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011a., em oposição ao que chamou de economia vulgar, entende que a ciência histórica e social deve observar o desenvolvimento das categorias econômicas na realidade (concreto) e na mente (abstrato), de modo que essas categorias possam expressar formas e modos de existência, a fim de perceber com profundidade o funcionamento do modo capitalista de produção. Afinal, são as relações sociais de produção que criam as relações jurídicas, ou seja, não se pode explicar uma época de transformações a partir da sua consciência ou ideologia, mas sim explicar essa consciência (ou conjunto de ideologias) a partir das contradições da vida material — do conflito entre as forças produtivas e as relações de produção. Complementando: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência” (MARX, 2016MARX, K. Prefácio de Marx ao livro Contribuição à Crítica da Economia Política [1959]. In: DANTAS, Gilson; TONELO, Iuri (org.). O Método em Karl Marx. São Paulo: Edições Iskra, 2016. p. 37-42., p. 39).

Nesse ensejo, como aponta o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes (2009)FERNANDES, F. Nós e o Marxismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009., o pesquisador deve ter claro que a consciência é formada ideologicamente, por isso se deve buscar nos fatos, nas contradições da vida material, as tendências que retratam o que ocorre devido ao desenvolvimento da produção capitalista, ou à insuficiência desse desenvolvimento. O desafio teórico apontado por Virgínia Fontes (2008), historiadora brasileira, consiste em não se limitar a uma análise econômica abstrata, uma ficção estatístico-matemática que os economistas apresentam como se fosse o mundo real, na qual não há humanidade, mas cálculos de custos e benefícios. O desafio é, justamente, criticar essa “economia” insistindo na existência das relações sociais — portanto, da luta de classes — onde aqueles apontam unicamente números.

A crítica da economia política e da sociedade capitalista, por parte de Marx, não tem fundamento em um juízo moral sobre as injustiças do capitalismo. A economia política marxista centra sua atenção no processo de desenvolvimento das forças produtivas no âmbito do modo de produção capitalista que tem como resultado, pelas suas características intrínsecas, a agudização da luta de classes. Colocando como horizonte a possibilidade de a classe trabalhadora ter condições de superar as contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e a natureza das relações de produção2 2 As forças produtivas, enquanto expressão da relação homem/natureza, compreendem as causas determinantes da capacidade de produção, incluindo os recursos naturais e a técnica empregada. As relações de produção, por sua vez, expressam a relação entre os homens, possibilitando a compreensão das distintas posições ocupadas pelas classes sociais no âmbito de um mesmo processo (LÖWY; DUMÉNIL; RENAULT, 2015). Ou seja, no caso do modo de produção capitalista, demonstra como a propriedade privada dos meios de produção demarca a característica fundamental da classe burguesa, enquanto sua ausência é o que define os proletários, ou seja, aquela classe que nada possui além de sua força de trabalho, por isso, são obrigados a vendê-la aos capitalistas. , através da expropriação dos expropriadores (NUNES, 2007NUNES, A. J. A. Uma Introdução à Economia Política. São Paulo: Editora Quartier Lanin, 2007.).

O economista português António José Avelãs Nunes (2007)NUNES, A. J. A. Uma Introdução à Economia Política. São Paulo: Editora Quartier Lanin, 2007. destaca algumas características importantes da economia política marxista. A primeira é a recusa, de qualquer pretensão, da neutralidade que seja indiferente à luta de classes, ou seja, trata-se de ciência de classes, mais precisamente da classe trabalhadora contra a classe burguesa. A segunda é a postura, por um lado, de uma ciência teórica — voltada ao estudo das leis de movimento dos vários modos de produção — e, por outro, de uma ciência histórica, em que as categorias e leis (tendenciais) da economia são observadas no quadro do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Por fim, a economia política marxista se caracteriza por sua orientação sociológica, na qual a produção e reprodução da vida material são a base da vida em uma sociedade e toda a produção é, consequentemente, social.

O método de Marx

Não encontramos em Marx ou Engels nenhuma obra que sistematize de maneira manualesca seu método. A despeito disso, é possível garimpar algumas pistas em lugares dispersos, o que reforça a ideia de que o método, para Marx, é muito mais que um conjunto de regras formais que se “aplicam” a um “objeto recortado” para uma investigação determinada. Tem relação, muito mais, com uma ampla apropriação do conjunto de conhecimentos acumulados no sentido de apreender não a aparência ou forma dada do “objeto”, mas, sim, sua estrutura e sua dinâmica — apreendê-lo como processo, criticando e revisando o conhecimento acumulado (PAULO NETTO, 2011).

Não obstante, podemos encontrar elementos importantes do método de Marx no texto elaborado para servir de introdução ao seu livro Contribuição à Crítica da Economia Política, mas que, por zelo do autor, não foi publicado, compondo os Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858. Nesse escrito, há um trecho em que comenta o método da economia política, lançando luz sobre seu próprio método.

Marx começa por criticar os economistas do século XVII, os mercantilistas, que davam início a suas análises a partir de aspectos como a população, a nação, o Estado etc, para “descobrir” as relações gerais e abstratas como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc. Nesse caso, a representação era volatilizada em uma determinação abstrata. Por outro lado, os economistas clássicos partiam do simples — como trabalho, divisão do trabalho, valor de troca até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. Desse modo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. Esse último é o método que Marx reconhece como cientificamente correto (MARX, 2011aMARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011a.).

Com isso, o método científico correto parte do concreto, visto que:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. (MARX, 2011aMARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011a., p. 54).

E, em crítica ao idealismo de Hegel, prossegue: “o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo de pensamento de se apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto” (MARX, 2011aMARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011a., p. 54-55).

As categorias são formas no pensamento de apreensão da realidade3 3 De acordo com Marcelo Carcanholo (2013), as categorias possuem uma existência real – sendo propriedade do objeto – e possibilitam o entendimento desse determinado objeto. Por outro lado, os conceitos estão associados, em geral, a uma perspectiva idealista e uma construção ideal prévia de um sistema lógico-conceitual a partir do qual a realidade objetiva é apreendida. Desse modo, as categorias partem do concreto, enquanto os conceitos partem o abstrato/ideal. . Desse modo, as categorias devem ser utilizadas a partir do real e do concreto, em função deles e não o contrário. A pesquisa deve seguir pelo caminho de analisar a realidade — analisar a movimentação da luta de classes — e a partir dela extrair os elementos de representação do concreto, ou seja, o concreto pensado.

Isso não é o mesmo que dizer que o estudo deva se prender à aparência dos fenômenos, sem estar munido de uma grande bagagem teórica que lance luz sobre a análise; mas que a construção teórica deve estar a serviço de melhor representar o concreto, o movimento real. Ascender do singular para o geral, do concreto ao abstrato e deste de volta ao concreto pensado, são os percursos propostos por Karl Marx.

Aparência e essência

A investigação a partir do concreto não deve ser tomada como um exercício de apreciação da aparência dos fenômenos sociais. A aparência é apenas uma das dimensões da realidade tão verídica quanto sua oposição — a essência. Conforme Reinaldo Carcanholo (2003)CARCANHOLO, R. A. Sobre a ilusória origem da mais-valia. Crítica Marxista, v. 1, n. 16, 2003. p.76-95., economista brasileiro, a aparência deriva da observação da realidade de maneira parcial ou isolada da relação social; enquanto a essência deve ser entendida a partir da perspectiva da totalidade social.

Sobre a distinção entre essência e aparência, o economista trotskysta belga, Ernest Mandel (1982)MANDEL, E. O Capitalismo Tardio. São Paulo: Editora Abril, 1982., reforça que, para Marx, a ciência tinha um papel a cumprir, justamente, porque esses elementos (essência e aparência) não coincidem diretamente. O próprio Marx, no livro III d’O Capital, diz mais: “[...] toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação [aparência] e a essência das coisas coincidissem imediatamente” (MARX, 2017MARX, K. O Capital: Crítica da economia política: Livro 3: O processo global de produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 880).

Com isso, a ciência não tem o papel único de descobrir a essência das relações obscurecidas por sua aparência superficial, cabendo-lhe, também, explicar essa aparência (MANDEL, 1982MANDEL, E. O Capitalismo Tardio. São Paulo: Editora Abril, 1982.). Em outro lugar, Mandel (1998)MANDEL, E. El Capital: Cien años de controversias en torno a la obra de Karl Marx. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1998. pondera que o método de Marx trata de penetrar mais profundamente através das diversas camadas em sucessivas aproximações da realidade, entendendo que a distinção entre essência e aparência não quer dizer que a aparência seja menos real que a essência, refere-se apenas à manifestação visível do fenômeno, ou seja, são níveis distintos do processo de conhecimento social.

Isso significa que não se deve privilegiar a essência em detrimento da aparência, seria uma posição fundamentalista: “só a essência é verdadeira”; tampouco o oposto, manter-se apegado a aparência seria mero empirismo (CARCANHOLO, 2003CARCANHOLO, R. A. Sobre a ilusória origem da mais-valia. Crítica Marxista, v. 1, n. 16, 2003. p.76-95.). Nessa linha de raciocínio, indicamos que uma separação ou proposição de uma ruptura entre essência e aparência, apontando-os como distintos fenômenos, é tão antidialético quanto aceitar a aparência como todo o real. É preciso, na investigação, buscar a essência, a aparência e mediação entre elas.

Sobre a totalidade

A totalidade, como um todo de pensamentos, é resultado da cabeça pensante que se apropria do mundo, da forma que pode. Contudo, a sociedade deve estar sempre presente como pressuposto da representação (MARX, 2011aMARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011a.). Em Marx, a sociedade burguesa é uma totalidade concreta e dinâmica, que tem seu movimento marcado pela contradição de totalidades. Essas contradições — seus ritmos, condições e limites — dependem da estrutura de cada totalidade, cabendo ao pesquisador, em sua investigação, descobri-las (PAULO NETTO, 2011).

Lenin recupera essa forma de análise ao apontar para a “totalidade” como uma categoria basilar do legado de Marx e Engels. Evidencia, com isso, toda sua consequência revolucionária, integrando os problemas da acumulação de capital e da luta de classes como fenômenos que se condicionam reciprocamente (SAMPAIO JÚNIOR, 2011). Dessa forma, não se trata de produzir uma reflexão a partir do pensamento, da intuição, de tipos ideais, ou mesmo de utopias, mas, sim, de acompanhar a luta de classes como uma totalidade histórica, através da assimilação de dados científicos, buscando explicação para os fenômenos como tais (FERNANDES, 2009FERNANDES, F. Nós e o Marxismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009.).

Corroborando esse raciocínio, Ernest Mandel (1998)MANDEL, E. El Capital: Cien años de controversias en torno a la obra de Karl Marx. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1998. menciona que os problemas econômicos — e podemos acrescentar os políticos e os sociais —, ao serem analisados dialeticamente, não podem ser considerados em separado uns dos outros, mas que fazem parte de uma totalidade. Até porque, como enfatizou o filósofo venezuelano Ludovico Silva (2012SILVA, L. O Estilo Literário de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2012., p. 20-21), Marx não “era um economista puro, nem um sociólogo puro, nem um político puro: era um cientista social completo”.

Friedrich Engels (2012)ENGELS, F. Prefácio [1895]. In: MARX, Karl. As lutas de classes na França. São Paulo: Boitempo, 2012. salienta, no prefácio que fez ao livro As Lutas de Classe na França de Karl Marx, sobre a questão do método, que devido às limitações das técnicas que tinham à disposição, muitas vezes, o método materialista ficava circunscrito a análise dos conflitos políticos de embates de interesses das classes sociais e frações de classes, como se pode ver n’O 18 de Brumário de Luís Bonaparte e n’As Lutas de Classe na França, por exemplo. Mas isso não significa, seria um erro, uma preponderância do político sobre o econômico. No método de Marx, o econômico, o político e o social não podem e não devem ser separados, mas abordados como uma totalidade, no limite das técnicas disponíveis ao pesquisador4 4 Leon Trotsky (2008, p. 163) sublinha que a “luta de classes não é outra coisa que a luta pela mais-valia. Quem possui a mais-valia é o dono do Estado, tem a chave da Igreja, dos tribunais, das ciências e das artes”. Assim, economia, política, ciência, religião e cultura não estão separadas, mas fazem parte de uma totalidade, sob o auspício do modo de produção capitalista. .

Indivíduo e Sociedade

Das análises políticas feitas por Marx, na qual se destaca o 18 de Brumário, sobressai uma interpretação da relação entre “indivíduo e sociedade” que contraria muitas leituras mecanicistas do marxismo. Marx diz: “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011bMARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011b., p. 25). Ou seja, em Marx, ainda que renegue o individualismo metodológico (característico dos pensadores liberais), há espaço para os indivíduos fazerem sua própria história, porém as condições não são escolhidas pelos indivíduos em questão. Há uma mediação das classes sociais sobre suas ações, bem como pesa sobre a geração presente a tradição das gerações passadas.

Corroborando, Friedrich Engels (2016aENGELS, F. Carta de Engels a Joseph Bloch setembro 1890. In: DANTAS, Gilson; TONELO, Iuri (org.). O Método em Karl Marx. São Paulo: Edições Iskra, 2016a. p. 83-86., p. 84) diz que “a história é feita de maneira que o resultado final sempre surge da conflitante relação entre muitas vontades individuais”. Nesse sentido, “cada vontade individual é obstruída por outra vontade individual e o que emerge é uma vontade final não antecipada pelas singularidades envolvidas” (ENGELS, 2016aENGELS, F. Carta de Engels a Joseph Bloch setembro 1890. In: DANTAS, Gilson; TONELO, Iuri (org.). O Método em Karl Marx. São Paulo: Edições Iskra, 2016a. p. 83-86., p. 84). Assim é que a história procede na forma de um processo que é essencialmente sujeita às leis do movimento (ENGELS, 2016aENGELS, F. Carta de Engels a Joseph Bloch setembro 1890. In: DANTAS, Gilson; TONELO, Iuri (org.). O Método em Karl Marx. São Paulo: Edições Iskra, 2016a. p. 83-86.). Com isso, os rumos da história são determinados no âmbito da contradição entre muitas vontades individuais, produzindo, por sua vez, uma pressão social sobre essas mesmas vontades. Aí reside a tensão “indivíduo vs. sociedade”.

Alguns comentários sobre a dialética

Marx, por meio de seus trabalhos, nos ensinou a pensar a totalidade concreta e dinâmica que é a sociedade burguesa, entretanto não disponibilizou fórmulas/formas para determinar o movimento dialético, de modo que cabe a cada pesquisador, em sua própria pesquisa, a partir do concreto, desvendar esse movimento.

Quanto à dialética, Leon Trotsky, revolucionário russo, ressalta que esta ciência das formas do pensamento tenta alcançar a compreensão de processos complexos e profundos, entendendo que os acontecimentos têm existência no tempo e no espaço. E que até mesmo a própria existência é um processo ininterrupto de transformações. Ao contrário do pensamento vulgar, que se contenta com reproduções imóveis de uma realidade dinâmica, o pensamento dialético dá aos conceitos, através de correções e aproximações sucessivas, uma riqueza de conteúdo e de flexibilidade. Por isso não se pode falar sobre o capitalismo em geral, mas sobre um determinado capitalismo em um determinado estágio de desenvolvimento (TROTSKY, 2017TROTSKY, L. ABC da dialética materialista [1939]. Esquerda Diário, 26 jun. 2017. Disponível em: http://www.esquerdadiario.com.br/Leon-Trotski-ABC-da-dialetica-materialista. Acessado em: 30 mar. 2018.
http://www.esquerdadiario.com.br/Leon-Tr...
).

Outro russo, Ilarión Kaufmann, em resenha crítica à obra O Capital — como o próprio Marx destaca no posfácio da segunda edição da obra — ilustra perfeitamente o método dialético empregado ao entendimento das questões econômicas:

Para Marx, apenas uma coisa é importante: descobrir a lei dos fenômenos com cuja investigação ele se ocupa. E importa-lhe não só a lei que os rege, uma vez que tenham adquirido uma forma acabada e se encontrem numa inter-relação que se pode observar num período determinado. Para ele, importa sobretudo a lei de sua modificação, de seu desenvolvimento, isto é, a transição de uma forma a outra [...] o esforço de Marx se volta para um único objetivo: demonstrar, mediante escrupulosa investigação científica, a necessidade de determinadas ordens das relações sociais e, na medida do possível, constatar de modo irrepreensível os fatos que lhe servem de pontos de partida e de apoio [...] o que lhe pode servir de ponto de partida não é a ideia, mas unicamente o fenômeno externo. A crítica terá de limitar-se a cotejar e confrontar um fato não com a ideia, mas com outro fato [...]. O valor científico de tal investigação reside na elucidação das leis particulares que regem o nascimento, a existência, o desenvolvimento e a morte de determinado organismo social e sua substituição por outro, superior ao primeiro. E este é, de fato, o mérito do livro de Marx (KAUFMANN, 1872, p. 427-436 apudMARX, 2013MARX, K. O Capital: Crítica da economia política: Livro 1: O processo de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 89).

Com relação a esse comentário Marx menciona: “Ao descrever de modo tão acertado meu verdadeiro método, bem como a aplicação pessoal que faço deste último, que outra coisa fez o autor senão descrever o método dialético?” (MARX, 2013MARX, K. O Capital: Crítica da economia política: Livro 1: O processo de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 90).

Sobre a dialética, Florestan Fernandes (2012)FERNANDES, F. Marx Engels Lenin: A história em processo. São Paulo: Expressão Popular, 2012. esclarece que esse método dá ao pesquisador a capacidade de apanhar o que é dinâmico nas formas de organização e transformação históricas, possibilitando à ciência social ser não uma mera “ciência da ordem”, mas podendo se constituir como uma “ciência da revolução em processo”.

Ainda sobre o método dialético, Ludovico Silva (2012)SILVA, L. O Estilo Literário de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2012. explica que este método não tem nada de uma formulação estritamente lógica, um movimento puramente abstrato ou uma super razão implicada na história, como em Hegel. Em verdade, se constitui num método racional para abordar a história do ponto de vista da luta de classes e das relações de produção, ou seja, não se trata de explicar a história a partir de princípios ou ideias, mas, ao contrário, explicar os princípios e ideias através da história.

Esses comentários relativos à dialética dão pistas de como proceder diante do objeto de investigação, tratando-o não como algo estático, mas que tem sua existência em movimento, especificamente, o movimento da luta de classes e do próprio desenvolvimento desigual e combinado das relações de produção do capital. E mesmo as ideias devem ser entendidas diante da mobilidade que se opera na consciência, a partir dos arranjos e desarranjos entre classes e frações de classe. A própria análise do movimento histórico da formação econômico-social faz parte de uma totalidade histórica concreta e integrada.

As grandes metáforas de Marx

No seu livro O Estilo Literário de Marx, Ludovico Silva chama atenção, criticamente, para as grandes metáforas de Marx que foram tomadas por muitos marxistas como explicação científica acabada. Entre as metáforas que Ludovico Silva apresenta, destacamos duas que limitam a capacidade explicativa a partir do método de Marx: 1. A metáfora da “superestrutura”; 2. A metáfora do reflexo.

A metáfora que aparece no prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859 — em que Marx distingue a base (econômica) de uma superestrutura (social e política) — foi apropriada pelo esquematismo do marxismo vulgar (stalinista). Ludovico Silva (2012)SILVA, L. O Estilo Literário de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2012. enfatiza que a noção de superestrutura não passa de uma metáfora para Marx, usada em poucas ocasiões com fins estilísticos, e não se trata de uma explicação teórica. Pensar a teoria marxista, em termos “superestruturais”, nos obrigaria a imaginar que o mundo da ideologia estaria à parte, separado, flutuando acima da chamada estrutura social. Quando pensar dialeticamente, e a partir de uma totalidade, exige-se entender que a ideologia vive e se desenvolve na própria estrutura social.

Friedrich Engels, grande parceiro intelectual de Karl Marx, em carta a Joseph Bloch, no ano de 1890, apontando nessa trilha de raciocínio que estamos desenvolvendo, destaca que o elemento econômico, a chamada base, não é o único elemento determinante na sociedade capitalista, dizendo que “Nem eu e nem Marx jamais afirmamos”. Assim, se alguém distorce isso afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia (ENGELS, 2016aENGELS, F. Carta de Engels a Joseph Bloch setembro 1890. In: DANTAS, Gilson; TONELO, Iuri (org.). O Método em Karl Marx. São Paulo: Edições Iskra, 2016a. p. 83-86., p. 83).

Além dessa metáfora, Ludovico Silva se lança contra a perspectiva de que os aspectos ideológicos “refletem” a dimensão social da realidade, seguindo pelo caminho de sugerir que “nem a ciência, nem a arte ‘refletem’ realmente nada; em troca, não seria melhor dizer que a ciência e arte expressam uma realidade que é a mesma e cada uma o faz com uma linguagem ativa e não com reflexos passivos?” (SILVA, 2012SILVA, L. O Estilo Literário de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2012., p. 61). A ideologia como “reflexo” da realidade não passa de uma proposição passiva, uma mera fotografia da realidade, como “expressão”, por outro lado, tem uma dimensão ativa e passiva em relação dialética.

A crítica como método

A ideologia como produto social expressa as relações materiais dominantes. A ciência ideológica é, então, “a ciência posta a serviço do capital e submissa a seus ditames e necessidades” (SILVA, 2012SILVA, L. O Estilo Literário de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2012., p. 97). É exatamente o que Karl Marx chamou de “economia vulgar” ou Florestan Fernandes chamou de “ciência da ordem”.

Nessa esteira, como apontaram Marx e Engels, n’A Ideologia Alemã:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante [...]. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação (MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007., p. 47).

Todavia, uma proposta marxista de construção científica não segue pelo caminho de rejeitar o acúmulo produzido pelos chamados “ideólogos”, mas sim de propor uma crítica radical a esses trabalhos, no sentido dialético (LÖWY, 1987LÖWY, M. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987.). Ser radical, para Marx (2010)MARX, K. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: Introdução. São Paulo: Expressão Popular, 2010., significa agarrar a questão pela raiz.

Marx, desse modo, mantinha uma atitude crítica em relação aos intelectuais que mobilizou na construção da sua análise. Ele não propunha um “corte epistemológico” em relação àqueles que o precederam, mas lançava o que Michael Löwy (1987)LÖWY, M. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987. chama de Aufhebung (cancelamento) dialético, no sentido nega/conserva/supera. Por exemplo, quanto a David Ricardo, Marx faz uma radical ruptura de classe, ao tempo que propôs uma superação/continuidade ao nível científico.

José Paulo Netto (2011), intelectual brasileiro, nos diz que, para Marx, a crítica do conhecimento acumulado consiste em produzir um exame racional dos seus fundamentos, seus condicionamentos e seus limites — enquanto faz uma verificação dos conteúdos desses conhecimentos a partir dos processos históricos reais. Foi desse modo que Marx tratou Hegel e Feuerbach, na filosofia; Smith e Ricardo, na economia política; como também Owen, Fourier e demais socialistas utópicos.

Com isso, para o avanço no conhecimento nas ciências sociais e humanas, faz-se necessária a crítica como aspecto fundamental na construção científica independente da sua especialidade. Aspecto que é muito bem ressaltado pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci nos Cadernos do Cárcere. Ou seja, para a formulação do pensamento científico, a crítica não deve ter um caráter eventual ou acidental, mas se constituir como método de apreensão do conhecimento de caráter político e social (ALIAGA, 2017ALIAGA, L. Gramsci e Pareto: Ciência, história e revolução. Curitiba: Apris, 2017.).

Tanto que, no § 15 do Caderno 11, Gramsci nos deixa como indicação que ao fazer a crítica não devemos “escolher os adversários entre os mais estúpidos e medíocres, ou, ainda, escolher entre as opiniões dos próprios adversários as menos essenciais e as mais ocasionais” (GRAMSCI, 2015a, p. 123). Além disso, devemos ser justos com eles, de modo que “é necessário esforçar-se para compreender o que ele realmente quer dizer, e não fixar-se maliciosamente nos significados superficiais e imediatos de suas expressões” (GRAMSCI, 2015a, p. 123-124).

Com isto, o que está proposto é a elevação do debate para um patamar superior — científico. Como fez Marx ao escolher David Ricardo como alvo de suas críticas, cujo resultado foi uma teoria do valor trabalho qualitativamente superior. De modo que não fez a crítica pela crítica, mas pelo avançar da ciência econômica, história e social.

Gramsci, com isso, está interessado em apresentar-nos elementos para elaboração de um método adequado às ciências sociais, entendendo que qualquer teoria social é marcada por relações de forças sociais diversas. Assim, enquanto pesquisadores sociais, devemos direcionar nossas críticas às concepções com relevância histórica, a partir da crítica aos expoentes de maior relevância (ALIAGA, 2017ALIAGA, L. Gramsci e Pareto: Ciência, história e revolução. Curitiba: Apris, 2017.). Precisamente como fez Marx na sua crítica da economia política – O Capital.

O método de exposição

O método de investigação e de exposição são momentos distintos da pesquisa. Muitas vezes, a exposição é deixada de lado pela escassez de tempo, de modo que geralmente o resultado exposto fica circunscrito a uma descrição do percurso da pesquisa. Sobre essa distinção, no posfácio à segunda edição d’O Capital, Marx nos expõe que:

A investigação tem de se apropriar da matéria [Stoff] em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é realizado com sucesso, e se a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de se encontrar diante de uma construção a priori (MARX, 2013MARX, K. O Capital: Crítica da economia política: Livro 1: O processo de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 90).

Nesse sentido, o método de investigação diz respeito à discussão que propusemos, sobre a pesquisa, seus métodos e técnicas. Enquanto o método de exposição deve transformar os diversos dados, discursos, relações e processos sociais que compõem o corpo da investigação, num texto inteligível e acabado capaz de expressar o movimento real do objeto em análise. Nesse sentido, como destaca Ludovico Silva (2012)SILVA, L. O Estilo Literário de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2012., a ciência só tem a ganhar se, além do rigor metodológico e crítico, for acrescida de um rigor demonstrativo e ilustrativo.

Considerações finais

Não é uma tarefa simples dar uma forma sistemática ao método de Marx — algo que nem o próprio o fez ou buscou fazê-lo. Em vista disso, procuramos, no limite, lançar luz sobre alguns elementos da sua crítica da economia política como método.

Marx indicou o concreto como ponto de partida, propondo o uso de categorias em função do real, e não numa busca para moldar a realidade às teorias pré-estabelecidas. A pesquisa deve ter fundamento no real concreto, e somente a partir dele ir ao abstrato — enquanto forma teórica de apreensão intelectual desse concreto — para, em seguida, construir o concreto pensado. Nesse processo de apreensão da realidade social, o concreto, em geral, se mostra como aparência, cabendo ao pesquisador procurar descobrir a contraparte do fenômeno, sua essência encoberta, e a relação entre essência e aparência. Tudo isso através de aproximações sucessivas de reconstrução, no pensamento, da totalidade do fenômeno analisado.

Em complementaridade, o materialismo e a dialética dão ao investigador a capacidade de captar os processos dinâmicos de transformação da realidade social, a partir da prerrogativa de que a própria existência está em movimento e a análise do movimento histórico faz parte de uma totalidade concreta e integrada — sob influência decisiva do movimento da luta de classes e do próprio desenvolvimento desigual das forças produtivas e das relações de produção.

Finalmente, merece nota a importância da crítica como método de construção e consolidação do conhecimento científico nas áreas sociais e humanas. Elevando o nível do debate, superando as limitações dos autores submetidos à crítica, como Marx buscou fazer com os economistas políticos clássicos. Além disso, a crítica, como elaborada por Marx, tem um fundamento que aponta para a transformação social — uma atividade prático-crítica.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    Como ressalta José Paulo Netto (2015, p. 16): “Marx conheceu a íntegra do texto do livro de 1878, colaborou em sua reação e não manifestou reservas às reflexões de Engels”. Em apresentação ao livro, diz mais “Na segunda seção [economia política], em que Marx colaborou textualmente, Engels, em confronto com as proposições de Dühring, formula com precisão o objeto da economia política, seu método e seus problemas, e sintetiza algumas das categorias econômicas mais básicas de Marx” (PAULO NETTO, 2015, p. 18).
  • 2
    As forças produtivas, enquanto expressão da relação homem/natureza, compreendem as causas determinantes da capacidade de produção, incluindo os recursos naturais e a técnica empregada. As relações de produção, por sua vez, expressam a relação entre os homens, possibilitando a compreensão das distintas posições ocupadas pelas classes sociais no âmbito de um mesmo processo (LÖWY; DUMÉNIL; RENAULT, 2015LÖWY, M.; DUMÉNIL, G.; RENAULT, E. 100 Palavras do Marxismo. São Paulo: Cortez, 2015. E-book.). Ou seja, no caso do modo de produção capitalista, demonstra como a propriedade privada dos meios de produção demarca a característica fundamental da classe burguesa, enquanto sua ausência é o que define os proletários, ou seja, aquela classe que nada possui além de sua força de trabalho, por isso, são obrigados a vendê-la aos capitalistas.
  • 3
    De acordo com Marcelo Carcanholo (2013)CARCANHOLO, M. (Im)precisões sobre a Categoria Superexploração da Força de Trabalho. In: ALMEIDA FILHO, N. Desenvolvimento e Dependência: Cátedra Ruy Mauro Marini. Brasília: IPEA, 2013. E-book., as categorias possuem uma existência real – sendo propriedade do objeto – e possibilitam o entendimento desse determinado objeto. Por outro lado, os conceitos estão associados, em geral, a uma perspectiva idealista e uma construção ideal prévia de um sistema lógico-conceitual a partir do qual a realidade objetiva é apreendida. Desse modo, as categorias partem do concreto, enquanto os conceitos partem o abstrato/ideal.
  • 4
    Leon Trotsky (2008TROTSKY, Leon. O Marxismo e nossa Época [1939]. In: O Imperialismo e a Crise da Economia Mundial. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008. p. 157-190., p. 163) sublinha que a “luta de classes não é outra coisa que a luta pela mais-valia. Quem possui a mais-valia é o dono do Estado, tem a chave da Igreja, dos tribunais, das ciências e das artes”. Assim, economia, política, ciência, religião e cultura não estão separadas, mas fazem parte de uma totalidade, sob o auspício do modo de produção capitalista.
  • Agência financiadoraO presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • Aprovação por Comitê de ÉticaNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentido.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2021
  • Aceito
    20 Maio 2022
  • Recebido
    23 Jun 2022
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