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Transformações societárias: repercussões no serviço social

Societal transformations: repercussions on social work

Resumo

O presente artigo objetiva debater os impactos e os desafios postos ao Serviço Social em face das transformações societárias no capitalismo contemporâneo que têm se refletido em todos os aspectos da vida social. A análise deste trabalho fundamenta-se na pesquisa bibliográfica através de revisão de literatura das obras de Paulo Netto, Guerra, Iamamoto e Souza. A partir das análises, evidencia-se que a crise do capital gera transformações, as quais têm demandado alterações societárias de todas as ordens e dimensões da vida social, de que não se têm esquivado as profissões, sobremodo o Serviço Social. A profissão se insere no processo de precarização tanto na formação como no exercício profissional, através de vínculos flexíveis, instáveis e, muitas vezes, destituídos de direitos trabalhistas e previdenciários. Constatam-se os ataques às políticas sociais, com a mercantilização, a seletividade e a focalização destas, bem como a reposição de práticas e teorias conservadoras, que têm achado terreno fértil à sua disseminação.

Palavras-chaves:
Transformações societárias; Serviço Social; Crise

Abstract

This article discusses the impacts and challenges of social work in the context of societal transformations in modern capitalism, reflected in all aspects of social life. The analysis is based on bibliographic research through a literature review of the works by Paulo Netto, Guerra, Iamamoto, and Souza. The study observes that the crisis of capital triggers changes that have demanded broad societal transformations, including transformation in professions and, particularly, social work. The profession of social work is part of a broad process of labor precariousness, involving both training and professional practice. It is a process marked by flexible and unstable contracts, often without labor and social security rights. The study points out the attacks on social policies based on policy commodification, selectivity, and focalization. Also, it is possible to identify the resumption of conservative theories and practices, which have found fertile ground to be disseminated.

Keywords:
Societal Transformations; Social Work; Crisis

Introdução

Desde o final dos anos 60 e o início dos anos 70, o mundo contemporâneo tem adentrado naquilo que István Mészáros considera como uma “crise estrutural do capital1 1 A crise é caracterizada por Mészáros (2011) como estrutural porque seu caráter é universal, atinge a todas as esferas da produção e do trabalho, não se limitando a certos países como nas crises anteriores. Sua duração é extensa, permanente, e seu desdobramento, “rastejante”. Não pode, de acordo com o referido autor, deslocar suas contradições, porquanto se trata de “uma crise estrutural em que está em jogo a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo” (MÉSZÁROS, 2011, p. 797). ”. Esta tem demandado alterações societárias de todas as ordens e dimensões da vida social, afetando as profissões, sobremodo o Serviço Social. A literatura acerca da profissão tem buscado entender os fenômenos atuais, muitos transvestidos de novos, mas que buscam reafirmar velhas práticas no cenário contemporâneo.

A crise tem requisitado mudanças desde a produção até o setor de serviços, como o processo de reestruturação produtiva, que tem reorganizado as formas de trabalho e gestão. O padrão que se tem em voga é o de uma intensificação da precarização do trabalho, concretizada na terceirização e quarteirização do trabalho e no trabalho temporário, no qual a flexibilização dos vínculos, a alta rotatividade e a destituição de direitos trabalhistas e previdenciários têm sido a tônica2 2 O Estado brasileiro tem regulamentado essa precarização, um exemplo foi a aprovação da lei da terceirização - Lei n.º 13.429/2017 -, sancionada em março de 2017 durante o governo de Michel Temer, a qual dispõe sobre o trabalho temporário e passa a permitir a terceirização da atividadefim. Ainda no mesmo ano foi aprovada a Reforma Trabalhista, Lei n.º 13.467/2017, trazendo alterações no que se refere a jornada de trabalho, férias, trabalho intermitente, contribuição sindical, dentre outras mudanças. No governo de Jair Bolsonaro a reforma da previdência, Emenda Constitucional 103, de 12 de novembro de 2019, foi um dos pontos altos. A Reforma altera o sistema de previdência social do país com perdas que atingem de sobremodo a massa dos trabalhadores do setor público e privado. .

Mota e Amaral (2013) argumentam ser preciso levar em consideração que a intensidade e a densidade do processo de restauração do capital dependem da conjuntura histórica de cada país e região, contudo, apresentam três processos inter-relacionados: novos mecanismos de exploração da força de trabalho, que implicam diretamente as relações e condições de trabalho; o reordenamento na atuação do Estado, nas medidas de (des)regulamentação do trabalho, na supressão de direitos sociais e nos processos de privatização/ mercantilização na esfera pública; e, por fim, as mudanças culturais e ideológicas na sociabilidade das classes trabalhadoras, no seu modo de ser e viver.

Nesse processo, o Estado tem se adequado às requisições e demandas do mercado. Em consonância com os preceitos neoliberais, tem atuado com vistas à reposição das taxas de lucro do capital, abrindo caminhos para a exploração do capital em áreas até então de sua responsabilidade. Tal processo tem se dado com a privatização de empresas estatais e das políticas sociais; como exemplo, a entrega de serviços de saúde para serem geridos pelo setor privado, com o financiamento do Estado; bem como com as isenções e subvenções aos planos privados de saúde. No que se refere à educação, com o Programa Universidade para Todos (PROUNI), mediante o qual o Estado subsidia bolsas em instituições de ensino superior privadas, ao invés de ampliar as vagas nas universidades públicas.

Outro aspecto a ser pontuado refere-se à manifestação ideológica, ao conhecimento, à concepção de mundo e sociedade prevalente. Segundo Maranhão (2013), neste novo cenário atual, o mundo vive sob o impacto das transformações de um capitalismo em crise global, em que o pensamento irracionalista tem ganhado cada vez mais espaço nas ciências humanas e sociais.

A partir das reflexões de Lukács, Souza (2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.) observa que nos momentos de crise o capital tende a reforçar a perspectiva anti-histórica, negando a historicidade e metamorfoseando-a num tipo de pensamento que tende à destruição da razão. As relações sociais mediatizadas pela efemeridade e pelo fetiche da mercadoria, em que a razão tende a mistificar a realidade, e a apreensão dos fundamentos dos fenômenos passam a ser negadas.

O Serviço Social tem vivenciado esse processo de precarização (na formação e no exercício profissional) em face da mercantilização das políticas sociais, com a reposição de práticas e teorias conservadoras, o que se reflete tanto na formação como no exercício profissional. Os enfrentamentos das transformações societárias têm se tornado um desafio diante dos dilemas intrínsecos à profissão, o que Paulo Netto (2018) conceitua como “sincretismo”, propiciando o retorno de velhas práticas presentes na profissão, como também do conservadorismo, o qual tem ganhado terreno e aliados.

Transformações societárias em tempos de crise do capital

Para entender as profundas transformações societárias presentes em nossa sociedade, é preciso levar em consideração a crise do capital, que segundo Paulo Netto (2013) emerge desde os anos 1970 e tem redesenhado o perfil do capitalismo contemporâneo, o qual apresenta traços novos e inéditos. Conforme o autor, “estas transformações estão vinculadas às formidáveis mudanças que ocorreram no ‘mundo do trabalho’ e que chegaram a produzir as equivocadas teses do ‘fim da sociedade do trabalho’ e do ‘desaparecimento do proletariado como classe’” (2013, p. 20). Todavia, as transformações apesar de terem intrínseca relação com a produção, envolvem toda totalidade social.

São próprias deste sistema as crises cíclicas que, desde a segunda década do século XIX, ele vem experimentando regularmente. E que, seja dito de passagem, não conduzem o capitalismo a seu fim: sem a intervenção de massas de milhões de homens e mulheres organizados e dirigida para a sua destruição, o capitalismo, mesmo em crise, deixado a si mesmo só resulta em mais capitalismo (PAULO NETTO, 2013, p. 20, grifo do autor).

Ressalta o autor que há um tipo de crise que o capitalismo experimentou integralmente, por duas vezes, até hoje: “a chamada crise sistêmica, que não é uma mera crise que se manifesta quando a acumulação capitalista se vê obstaculizada ou impedida. A crise sistêmica se manifesta envolvendo toda a estrutura da ordem do capital” (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
, p. 415).

Localizando historicamente, o citado autor revela que a primeira dessas crises ocorreu em 1873, tendo a Europa como centro, e durou 23 anos, sendo marcada por uma depressão que se prolongou por mais de duas décadas. A segunda crise sistêmica deu-se em 1929, tendo se espraiado por todo o globo terrestre durante 16 anos.

Para Paulo Netto (2012), a crise que se vivencia tem natureza sistêmica. Foi sinalizada com a crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1987, embora aparentemente aparecesse como crises localizadas. Ainda de acordo com este autor, as crises que se seguiram, a dos Tigres Asiáticos, a crise da Bolsa de Nasdaq, a crise da bolha imobiliária e, mais recentemente, a crise do Euro, consideradas isoladas e independentes, fazem parte de uma só crise:

São indicadores da emergência de uma nova crise sistêmica do sistema capitalista e que apresenta traços inéditos em relação às duas anteriores. Aqueles que não compreenderem estas particularidades da crise contemporânea provavelmente vão considerar que há remédios para ela nas terapias (ainda e sobretudo de raiz keynesiana) adotadas no século XX. Estas terapias não estão funcionando e não vão funcionar (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
, p. 416).

O grande capital tem sido sistemático em sua restauração. O projeto neoliberal se constitui nessa tentativa, ancorado em três frentes: flexibilização, desregulamentação e privatização. A primeira se expressa na produção e nas relações de trabalho; a segunda caracteriza-se pela desregulamentação do mercado, das relações comerciais e financeiras; e por fim há a privatização do patrimônio estatal.

Conforme Paulo Netto (2012, p. 417):

Se esta última transferiu ao grande capital parcelas expressivas de riquezas públicas, especial, mas não exclusivamente nos países periféricos, a “desregulamentação” liquidou as proteções comercial alfandegárias dos Estados mais débeis e ofereceu ao capital financeiro a mais radical liberdade de movimento, propiciando, entre outras consequências, os ataques especulativos contra economias nacionais. Quanto à “flexibilização”, embora dirigida principalmente para liquidar direitos laborais conquistados a duras penas pelos vendedores da força de trabalho, ela também afetou padrões de produção consolidados na vigência do taylorismo fordista.

O processo de desregulamentação que tem hipertrofiado as atividades de natureza financeira, além da autonomização cada vez mais elevada de controles estatal-nacionais, tem resultado numa mobilidade de espaço e tempo extraordinária, ao tempo que na esfera produtiva tal mobilidade tem permitido ao capital a formação de uma rede de polos produtivos, supranacionais, passíveis de rápida reconversão.

Isso tem imbricação no trabalho com a economia de trabalho vivo, elevando a composição orgânica do capital e implicando o crescimento da força de trabalho excedentária. “De fato, o chamado ‘mercado de trabalho’ vem sendo radicalmente reestruturado e todas as ‘inovações’ levam à precarização das condições de vida da massa dos vendedores de força de trabalho: a ordem do capital é hoje, reconhecidamente, a ordem do desemprego e da ‘informalidade’” (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
, p. 417).

As transformações em curso têm interferido na estrutura de classes da sociedade burguesa, que vem se modificando com o desaparecimento de antigas classes e camadas sociais, segundo o autor. Alterações que aparecem no plano econômico-objetivo das classes e em suas relações, como no plano ideossubjetivo. Como resultado desse processo de divisão sociotécnica do trabalho, a classe operária tem experimentado mudanças significativas. Tais mudanças têm afetado também as camadas médias e tradicionais da burguesia (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
).

Outro aspecto para o qual o autor chama atenção é a imediaticidade posta como realidade, desqualificando a distinção entre aparência e essência. A realidade e sua complexidade passam a ser apreendidas de forma efêmera, descontínua e molecular, deslocando “a totalidade e a universalidade, suspeitas de ‘totalitarismo” (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
, p. 420).

Diante dessas transformações, o movimento pós-moderno tem ganhado terreno e se constituído num sintoma das transformações em curso na sociedade, correspondendo à própria estrutura fetichista da mercadoria. Paulo Netto (2012) ressalta que o movimento pós-moderno não é homogêneo.

[...] constitui um campo ideoteórico muito heterogêneo e, especialmente no terreno das suas inclinações políticas, pode-se mesmo distinguir uma teorização pós moderna de capitulação e outra de oposição. Do ponto de vista dos seus fundamentos teórico epistemológicos, porém, o movimento é funcional à lógica cultural do tardocapitalismo: tanto ao caucionar acriticamente as expressões imediatas da ordem burguesa contemporânea quanto ao romper com os vetores críticos da Modernidade (cuja racionalidade os pós modernos reduzem, abstrata e arbitrariamente, à dimensão instrumental, abrindo a via aos mais diversos irracionalismos) (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
, p. 420).

No campo político, as transformações sociais são geradoras de novas problemáticas. Alterações são sentidas na esfera da sociedade civil e do Estado, as quais se verificam nas suas dinâmicas e nas suas relações. Na sociedade civil, a burguesia financeira tenta encaminhar seus projetos criando canais e instituições que sirvam de disseminação e consolidação. As classes e camadas subalternas enfrentam crises como a dessindicalização, impasses nos partidos políticos democrático-populares e/ou operários) e a emergência dentro de seu espaço de “novos sujeitos coletivos”, reconhecidos nos novos movimentos sociais (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
). Pode-se acrescentar que a emersão desses movimentos está permeada pela imediaticidade, fragmentação posta para explicar a realidade em articulação estreita com o movimento pós-moderno.

Quanto ao Estado burguês, este experimenta mudanças em seu redimensionamento, com a diminuição de sua ação reguladora e legitimadora via políticas sociais, expressa nos ajustes sociais que visam à retirada de coberturas sociais públicas mediante o corte nos direitos sociais. O processo de ajuste busca diminuir o ônus do capital no esquema geral da reprodução da força de trabalho, dentro do trinômio assinalado por Paulo Netto: flexibilização, desregulamentação e privatização, os quais fazem parte do processo de globalização.

Nesse processo de complexificação das atividades econômicas, em escala planetária do capital monopolista, a intervenção estatal no nível macroeconômico se torna mais limitada, o que não quer dizer que não seja necessária, pelo contrário. “É evidente que o tardocapitalismo não liquidou com o Estado nacional, mas é também claro que vem operando no sentido de erodir a sua soberania. Porém, cumpre assinalar a diferencialidade dessa erosão, que atinge diversamente Estados centrais e Estados periféricos (ou mais débeis)”. (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
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, p. 422).

Paulo Netto (2012) considera que as transformações societárias em curso se configuram como uma série de vitórias do grande capital. Do ponto de vista político, para o autor, as medidas de ajustes dentro do circuito das três esferas flexibilização, desregulamentação e privatização são legitimadas formalmente na sociedade nos mecanismos eleitorais. As mudanças no campo ideocultural, fomentadas pelo movimento pósmoderno, contribuíram para a expansão do conservadorismo, enquanto a proposta socialista revolucionária foi deixada de lado, “posta no bivaque das velharias da Modernidade”. (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
, p. 423).

Como síntese, o autor apresenta algumas reflexões desse processo nos últimos trinta anos, como a de que existem polêmicas acerca da natureza e das complexas implicações dessas transformações. E acrescenta duas inferências, de seu ponto de vista, inquestionáveis. A primeira, que apesar de todas essas transformações em curso, nenhuma delas modificou a essência exploradora da relação capital/trabalho, pelo contrário, esta se acha cada vez mais universalizada e planetarizada. A segunda e última: a ordem do capital esgotou completamente as suas potencialidades progressistas, convertendo-se num vetor de travagem e reversão de todas as conquistas civilizatórias (PAULO NETTO, 2012PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002. Acesso em: 12 jan. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012...
).

No próximo item, far-se-á uma breve análise de como essas transformações sociais repercutem no Serviço Social, na esfera da formação profissional e em seus espaços sócio- ocupacionais.

As repercussões das transformações societárias no serviço social: sobre novos e velhos dilemas

As transformações vivenciadas pela sociedade nos últimos anos têm repercutido em todos os âmbitos sociais. As profissões estão inseridas nesse conjunto e complexo de determinações, e ao tempo que se transformam nesse processo, também exercem influência. Nesse sentido, busca-se analisar como o Serviço Social se localiza nesse contexto.

De acordo com a análise de Cardoso (2016CARDOSO, Franci Gomes. O Serviço Social como totalidade histórica em movimento no Brasil Contemporâneo. In: OLIVEIRA E SILVA M. L. (org.). Serviço Social no Brasil: história de resistência e ruptura com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016. p. 165-182.), em face desse contexto a atuação profissional do assistente social assume uma nova configuração diante das tendências de alterações do perfil do mercado de trabalho. Estas geram requisições tanto por parte do movimento do capital em crise como pelo processo de reorganização política das classes subalternas diante da precarização do trabalho e da fragmentação da força de trabalho.

As requisições do trabalho profissional estão presentes na esfera estatal e privada de modo peculiar, segundo a autora. O novo perfil do mercado de trabalho profissional nesses dois âmbitos apresenta como perspectiva a redução das demandas postas à profissão, no âmbito do setor público, advindas da reforma gerencial do Estado, da desregulamentação do trabalho e do corte de gastos sociais; em sentido diverso, ocorre a expansão das ofertas do setor privado (aqui entendido como empresarial e das entidades do terceiro setor) (CARDOSO, 2016CARDOSO, Franci Gomes. O Serviço Social como totalidade histórica em movimento no Brasil Contemporâneo. In: OLIVEIRA E SILVA M. L. (org.). Serviço Social no Brasil: história de resistência e ruptura com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016. p. 165-182.).

A reforma do Estado segue as orientações dos organismos internacionais, que recomendam um novo tipo de gerência pública, baseada no estilo de gerência das organizações privadas. Argumenta-se que a esfera pública requer exigências específicas, pois exige um conhecimento do contexto político e constitucional da gestão governamental; aprendizado para agir sob uma constante pressão política; habilidade para operar dentro de metas préfixadas por lei, em estruturas organizacionais sob o controle do sistema jurídico (IAMAMOTO, 2012IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2012., p. 125).

Iamamoto (2012IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2012.) observa que com a retração do Estado no campo das políticas sociais, amplia-se a transferência de responsabilidade para a sociedade civil no campo da prestação de serviços sociais, expressa nas parcerias entre Estado e Organizações Não Governamentais, as quais têm uma atuação abrangente, desde a formulação até a execução de programas e projetos sociais. Trata-se de uma das formas de terceirização da prestação de serviços sociais, evitando-se a ampliação do quadro de funcionários públicos (IAMAMOTO, 2012IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2012., p. 127, grifo da autora).

Iamamoto (2012IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2012.) tece observações no que diz respeito aos requisitos para o ingresso de assistentes sociais no setor empresarial:

Têm sido exigidos requisitos que extrapolam o campo de conhecimento para abranger “habilidades e qualidades pessoais” tais como: experiência, criatividade, desembaraço, versatilidade, iniciativa e liderança, capacidade de negociação e apresentação em público, fluência verbal, habilidade no relacionamento e “capacidade de sintonizar-se com as rápidas mudanças no mundo dos negócios” [...]. O assistente social tem sido solicitado ainda para atuar no campo de treinamento e reciclagem de pessoal, no desenvolvimento de programas voltados à saúde do trabalhador, coordenação de programas de escolarização, programas de atenção à saúde, envolvendo acompanhamento de pacientes, inserção em equipe interdisciplinar etc. (IAMAMOTO, 2012IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2012., p. 130-131).

Na esfera estatal, a redefinição do trabalho profissional perpassa as contradições entre as lutas populares pela manutenção e ampliação das garantias constitucionais e, ao mesmo tempo, as formas de controle e participação social, em face da política neoliberal de redimensionamento do Estado.

Outra autora que tem se dedicado às questões contemporâneas presentes no campo do Serviço Social, advindas com a crise do capital, é Guerra (2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.). Em sua análise, busca traçar um panorama de como esse processo tem se refletido na profissão.

A referida autora afirma que as tendências mais gerais para o mercado de trabalho, são resultantes das novas formas de gestão do trabalho e das relações que a partir dessas se estabelecem, como a autorresponsabilização pela empregabilidade.

[...] a incorporação de novas funções que se agregam às tradicionais (tendência que tem sido chamada de multifuncionalidade), a diluição da formação especializada e a equiparação entre diversas profissões do social (no que a autora tem considerado como um processo de desespecialização), a abstração da necessidade de formação profissional, dada a assunção de atividade simples (desprofissionalização), e, mais ainda, a intensificação do trabalho, a rotatividade, a exacerbação do individualismo e da competitividade (GUERRA, 2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 89-90).

Essa autora chama atenção para o fato de que esse processo tem raízes na forma como a profissão foi inserida na divisão do trabalho. “O assistente social é visto como aquele profissional que ‘faz’, derivando daí várias implicações. Nessa perspectiva, a profissão é vista como técnica ou tecnologia social colocada para a administração da pobreza e, supostamente, para mediatizar e/ou controlar os ‘conflitos sociais’” (GUERRA, 2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 91).

Guerra argumenta ser importante considerar que a imagem que a profissão reflete é, muitas vezes, identificada como uma vocação prática de ajuda e/ou militância, pautada por valores anticapitalistas românticos e humanista-cristãos.

Outro elemento que converge para as dificuldades no enfrentamento das transformações sociais é o anti-intelectualismo presente na profissão. “Há um descaso pela formação teórico-metodológica rigorosa, como resultado da formação doutrinária de influencia católica que marca a gênese da profissão” (Idem, p. 92). Esses pressupostos teóricos são os dogmas que não podem sem questionados. Entretanto, eles vêm sendo questionados, porém sem uma crítica teórica mais ampla da categoria profissional.

Para a autora, “a constante recorrência e a reivindicação por metodologias e procedimentos de intervenção previamente determinados encontram no atual modelo de política social seu aconchego” (GUERRA, 2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 93).

Com as políticas sociais orientadas pelo neoliberalismo, repõem-se as práticas centradas no sujeito e em suas famílias, sob um discurso de fortalecimento dos sujeitos para o seu empoderamento, ao invés do fortalecimento de ações coletivas via estratégias também coletivas.

No que diz respeito à inserção no mercado de trabalho, a autora aponta como tendência o crescente aumento de profissionais com pluriemprego, inseridos em duas ou mais políticas sociais, como decorrência dos baixos salários e dos vínculos instáveis, além da intensificação da carga horária. Esse processo aponta para outros, como a limitação do investimento em capacitação e na pesquisa, com o risco de mais estresse e adoecimento.

As transformações nos espaços sócio-ocupacionais decorrem do modelo de capitalismo vigente, em que o Estado, complexo mediador do capital, “tem confirmado cada vez mais sua personificação. Esse Estado, cada vez mais multifacetado, atende a diversos interesses quando realiza seu papel vital, o de garantir a maisvalia do trabalho excedente” (GUERRA, 2013, p. 96). Nesse processo de crise, de supercapitalização, sob o comando do capital financeiro, o Estado é uma mediação fundamental que atua na formação dos monopólios. De acordo com Souza (2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.):

Sem modificar sua função social central, que é garantir as condições gerais, externas, para a reprodução do capital, o Estado, sob o comando dos monopólios, passa a condensar funções políticas e econômicas [...]. Entre outras funções condensadas, destacam-se a garantia estatal de sobrevivência das empresas em dificuldades (por meio da socialização de perdas), os investimentos em complexos produtivos de altíssima composição orgânica de capital (dos mais variados setores: da mineração ao portuário, da malha rodoviária à importação de maquinário e tecnologia) e sua entrega para exploração monopólica (as privatizações são um exemplo), a aprovação imediata de linhas de crédito astronômicas para setores monopolizados, o lastro de lucro para as empresas, a preparação de força de trabalho altamente qualificada e sem custo para o mercado (as universidades públicas exemplificam isso), entre outras. Por essa via, o Estado se torna, a um só tempo, financiador e consumidor dos negócios da burguesia monopolista.

No que se refere ao Estado brasileiro, desde a reforma gerencial este vem deixando para o mercado tudo o que ele pode promover, em especial as políticas sociais, mediante a introdução da gestão privada nos serviços públicos e a adoção de critérios sob a lógica racional do mercado, visando à relação custo-benefício, em detrimento da relação universalização-direito.

Este Estado, sob a aparente neutralidade, tem ampliado sua dimensão de controle, ao tempo que flexibiliza sua dimensão social, resguardando a função de execução para o setor privado. Nesse processo de controle, a política de assistência social, segundo Guerra, tem tido destaque através do controle dos pobres e de respostas padronizadas. A autora aponta que dois movimentos passam a caracterizar as políticas sociais a partir dos anos de 1990: a assistencialização e a mercantilização, “somando a isso a repressão aos pobres, que de excluídos passam a ser concebidos como classes perigosas” (GUERRA, 2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 99).

Com esse modelo de Estado e de políticas sociais em voga, as requisições profissionais e políticas apresentadas às assistentes sociais voltam-se ao controle social, das quais são exemplos “a remoção compulsória (desalojamento), a internação compulsória, os depoimentos sem dano, a testagem toxicológica, o exame criminológico ao cumprimento de condicionalidades das próprias políticas, utilizando de várias formas de intimidação e pressão” (GUERRA, 2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 100).

Assim, os instrumentos profissionais são requisitados a favor da racionalização gerencial e do controle social.

Nessa direção, entrevistas, visitas, cadastros, estudos e exames são realizados com base em padronização e técnicas de caráter manipulatório que indicam o que e como arguir os usuários, o tipo de pergunta a ser feita, a entonação de voz etc., muitas vezes com fim investigatório. A visão é a de que pelo instrumento de coleta de dados ou de intervenção se verificará a verdade dos fatos, a periculosidade dos sujeitos, sua capacidade de “resiliência”, de “ressocialização”, de “empoderamento” (GUERRA, 2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 101).

Neste processo das políticas sociais, segundo Guerra (2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.), tem se ampliado a histórica tendência de assistencialização, com os programas de combate à miséria e a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o que tem levado à ampliação de postos de trabalho para a profissão. Essa política assistencializada, de caráter minimalista e emergencial, requer um determinado perfil profissional, o qual supõe a autora tem sido construído pelos cursos a distância.

No que se refere à formação, “no caso específico das assistentes sociais, o barateamento da formação constrói o perfil mais adequado de profissional para ‘operar’ as políticas sociais focalistas, precarizadas, assistencializadas e abstraídas de direitos sociais” (GUERRA, 2013, p. 103).

Outro elemento que tem sido requisitado nesse processo de crise é a mercantilização das políticas sociais, entre elas a educação, o que tem repercutido na formação profissional de novos assistentes sociais. A dinâmica desse processo tem sido estudada por alguns autores da área, seja na expansão desse mercado, seja nos impactos para a cultura profissional.

Na formação acadêmico-profissional em Serviço Social, o ensino privado tem se expandido e predominado em instituições não universitárias que não pressupõem o tripé ensino, pesquisa e extensão, especialmente sob a modalidade do Ensino a Distância (EAD)3 3 Segundo o Censo Superior de 2009, o curso de Serviço Social já ocupava o terceiro lugar em número de matrículas na modalidade de EAD (IAMAMOTO, 2017, p. 32 apud CFESS, 2014, p. 24). . A expansão desse nicho de mercado tem implicações na qualidade da formação, com o aligeiramento “no trato da teoria, na ênfase no treinamento e menos na descoberta científica. A massificação e a perda de qualidade da formação universitária facilitam a submissão dos profissionais às demandas e “normas do mercado”, tendentes a um processo de politização à direita da categoria” (IAMAMOTO, 2017IAMAMOTO, Marilda Villela. 80 anos do Serviço Social no Brasil: a certeza na frente, a história na mão. Serv. Soc. Soc. [online], n. 128, p. 13-38, 2017. ISSN 0101-6628. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.091. Acesso em: 6 mar. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.091...
, p. 32).

Para Iamamoto, este processo de mercantilização da formação no interior da profissão, além da degradação da qualidade do ensino, “é motivo de preocupação na defesa do legado ético-político construído pelo Serviço Social nas últimas décadas, num ambiente de avanço do conservadorismo na sociedade” (idem, ibidem).

O estudo de Peruzzo e Medeiros (2016) se detém no processo de interiorização e expansão da educação superior privada nos cursos de Serviço Social. Segundo elas, é na dialética entre a acumulação e a expansão do capital que se encontra o conteúdo de tal processo. O argumento das autoras é que a expansão dos cursos de graduação em Serviço Social obedece aos requisitos da necessidade de gestão dos processos de desenvolvimento econômico e da pobreza; e que o perfil profissional que tem sido formado por esses cursos atende a um perfil demandado pelo mercado de trabalho no campo do planejamento e da execução das políticas sociais.

Outro elemento entre a política social e a profissão refere-se ao modelo de política social posto pela Reforma Gerencial do Estado: a tendência à padronização, a tecnologização (podem-se citar como exemplos os preenchimentos de formulários eletrônicos, o alcance de metas), conferindo um caráter central à lógica gerencial. Por conseguinte, alerta a autora, a dimensão ético-política das profissões se fragiliza, tendo em vista que a resposta política “tem sido a de administrar sistemas, redes e registros, sendo referenciadas por indicadores sociais predeterminados, por metas previamente definidas e pelo conteúdo do controle social especificado em modelos” (PERUZZO; MEDEIROS, 2016, p. 105).

Guerra assevera que nesse contexto uma espécie de marxismo idealista permeia a profissão, e o projeto ético-político passa a ser uma pauta de orientações do dever-ser. Impõe uma visão possibilista diante dos avanços neoliberais, sob o argumento do que “fazemos o que é possível”. Fortalece a perspectiva voluntarista, por um lado, e por outro, o militantismo seja ele religioso ou político (GUERRA, 2016GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 92).

Cézar Maranhão é um dos intelectuais que têm se debruçado para entender as mudanças que se apresentam à profissão no cenário contemporâneo, entre elas a tendência à reposição do conservadorismo no Serviço Social. Segundo este autor, um dos traços do discurso contemporâneo dos assistentes sociais é a supervalorização dos tipos de conhecimento que redundam num resultado prático imediato para a atuação profissional (MARANHÃO, 2016MARANHÃO, Cézar. Uma peleja teórica e histórica: Serviço Social, sincretismo e conservadorismo. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 165). O autor enfatiza que a principal peleja de grande parte do Serviço Social durante as últimas décadas foi caminhar no sentido oposto a isso, buscando ampliar a perspectiva crítico-dialética de sua formação acadêmica.

Dessa maneira, ele menciona três problemas que constituem obstáculos para se romper com o lastro conservador do Serviço Social. O primeiro se refere ao caráter inerentemente sincrético da profissão, que traz como uma de suas consequências a reposição por meio do método formalista-agnóstico, o “sincretismo profissional” (PAULO NETTO, 1996). O segundo obsta a ruptura com a lógica conservadora; é o processo histórico de “aproximação enviesada” da profissão com os aspectos ontológicos e teórico-metodológicos da teoria social de Marx. A essas duas fontes limitadoras “somam-se a atual ampliação das características manipulatórias do capitalismo maduro e a correlação de forças das lutas de classes na atualidade” (MARANHÃO, 2016MARANHÃO, Cézar. Uma peleja teórica e histórica: Serviço Social, sincretismo e conservadorismo. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 167). Isso dificulta a construção do projeto político da classe trabalhadora e a elaboração de um conhecimento teórico para além dos aspectos imediatos e fenomênicos, capaz de desvendar o movimento concreto do real.

Maranhão (2016MARANHÃO, Cézar. Uma peleja teórica e histórica: Serviço Social, sincretismo e conservadorismo. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.) argumenta que no contexto neoliberal, as políticas sociais tornam-se cada vez mais focalizadas e seletivas, sob o discurso liberal do “desenvolvimento das capacidades humanas”, que reforça as intervenções por meio de ações assistenciais. O autor infere que tal contexto institucional tende a repor requisições e demandas sincréticas ao Serviço Social.

As mudanças sociais, sejam na forma de acumulação, sejam na atuação do Estado burguês e, consequentemente, na questão social, têm sido decisivas, segundo Souza (2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.), para elucidar a tese do sincretismo.

“A tese do sincretismo” ressalta a articulação ontológica do Serviço Social com a estrutura sincrética administrativa, edificada na sociedade burguesa consolidada, para intervenção na chamada “questão social” [...]. O reverso desse sincretismo no exercício se constitui por meio de complexas mediações, no sincretismo teórico ou mesmo ideológico, cuja expressão mais evidente é o ecletismo (SOUZA, 2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 114).

Souza (2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.) observa que é na própria estrutura da sociedade burguesa e do Estado, nas suas expressões contraditórias, que se dá a reposição dos fundamentos do sincretismo na profissão. Entretanto, salienta o autor que tal fato não significa a reiteração destes fundamentos, visto que as contradições próprias do exercício profissional não são eliminadas.

Dando continuidade às reflexões sobre o sincretismo, o autor evidencia que é na intervenção do Estado na “questão Social” que reside um dos fundamentos do sincretismo no Serviço Social - em especial, no exercício da profissão. Tal processo se dá, segundo ele, no contexto de concretização da política social no período dos monopólios, ao se efetivar como políticas sociais, fragmentando a “questão social” em problemas autonomizados e obscurecendo a “questão social”, tida como resultante global das contradições do sistema do capital (SOUZA, 2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.).

Nesse sentido, o que se diz sobre as contraditórias funções do Estado - atendem às necessidades do trabalho ao tempo que contribuem para a reprodução do capital - recai sobre o subsídio que fornece a construção para a hegemonia da classe dominante. Esta tenta obscurecer a determinação de classe do Estado burguês, defendendo um discurso de que o Estado atua como um mediador civilizacional que está acima das classes (SOUZA, 2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 129).

O Serviço Social, como profissão intrinsecamente vinculada às políticas sociais, herda e reproduz, na sua cotidianidade, essa estrutura interventiva. E o Estado, a tarefa de intervir sistematicamente sobre essas expressões. Outro componente do sincretismo no Serviço Social tem a ver com o ecletismo como contraface teórica.

Em geral, o ecletismo se revela como uma captura de fragmentos teóricos que servem para explicar, também fragmentariamente, a realidade imediata com que se defronta o profissional [...]. O sincretismo da prática não pode ser identificado como a raiz primordial das pelejas profissionais, ainda que alguns impasses derivem dele, mas como uma consequência da divisão social do trabalho na sociedade burguesa madura (SOUZA, 2016SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016., p. 121).

Segundo Souza (2013), as mediações contemporâneas, como a mercantilização da educação superior no Brasil, aliada às exigências quantitativas de produção intelectual das agências de fomento para a pesquisa e a interferência do mercado na pesquisa científica, agregam-se aos elementos que tendem a repor o ecletismo.

Considerações finais

As mudanças por que tem passado a profissão necessitam ser entendidas no contexto histórico, no movimento concreto da totalidade em que se acha inserida. Ela se efetiva no exercício profissional, nos movimentos organizativos da categoria e na formação profissional, sendo ao mesmo tempo coadjuvante e protagonista nesse processo.

As transformações societárias que o mundo vivencia no contexto da crise estrutural têm requerido respostas com vistas à manutenção da ordem vigente. Para tanto, intensificam-se os processos de exploração da força de trabalho, o desemprego estrutural, a adoção do receituário neoliberal expresso no reordenamento do Estado, a caça por novos mercados e os processos de privatização/mercantilização das políticas sociais.

Por sua vez, o Estado tem atuado gerenciando os impactos da crise, com medidas que tentam minimizar as expressões da questão social e os conflitos sociais emergentes. Diante de uma população cada vez mais destituída de emprego e de direitos, o Estado tem adotado políticas sociais cada vez mais restritivas, seletivas, focalistas e de caráter assistencialista, ao tempo que repassa parte da prestação de serviços sociais à sociedade civil, através das parcerias com Organizações Não Governamentais subsidiadas com recursos públicos.

É nesse bojo de mudanças operadas pela esfera produtiva e estatal que o Serviço Social tem vivenciado mudanças no interior da profissão. As repercussões têm se apresentado no âmbito do exercício profissional, na intensificação da precarização das condições de trabalho, na inserção precária no mercado de trabalho profissional com vínculos empregatícios cada vez mais flexibilizados e instáveis, nos baixos salários que têm levado muitos profissionais a se submeter a múltiplos vínculos etc.

Observa-se na profissão uma tendência à ampliação do pragmatismo, com a exaltação do saber prático, de um método que possa ser posto em prática. Esse processo permeia não só a profissão, mas o conjunto da sociedade burguesa, onde o conhecimento é restrito à imediaticidade e aos seus aspectos fenomênicos, interditando a apreensão do real em sua totalidade.

Outro polo que tem experimentado mudanças significativas é a formação profissional, com a crescente mercantilização do ensino dos cursos em Serviço Social nas modalidades EAD e semipresencial, tendo como consequência uma formação cada vez mais aligeirada, que não prioriza o tripé, ensino, pesquisa e extensão. É importante salientar que essas modalidades de ensino já superam os cursos presenciais. Os impactos desse processo na profissão não podem ainda ser dimensionados.

Nesse contexto de desmobilização e organização defensiva, de empobrecimento cultural recente do assistente social4 4 Souza (2013, p. 196). , de reposição do conservadorismo, os desafios estão postos à profissão e necessitam da construção e da intensificação de ferramentas que aprofundem a dimensão investigativa da profissão, articulando o desenvolvimento teórico-metodológico e o desvelamento das múltiplas contradições presentes no espaço profissional. Cumpre buscar o fortalecimento de entidades de representação da profissão, as quais têm desempenhado um relevante papel de resistência e direção em face do atual contexto.

Agradecimentos

Ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas, por propiciar inquietações, reflexões e debates profícuos em torno do Serviço Social. Aos Assistentes Sociais aguerridos que tem lutado e resistido, cotidianamente, a irracionalidade, as armadilhas do conservadorismo e aos desmontes das políticas. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

Referências

  • CARDOSO, Franci Gomes. O Serviço Social como totalidade histórica em movimento no Brasil Contemporâneo. In: OLIVEIRA E SILVA M. L. (org.). Serviço Social no Brasil: história de resistência e ruptura com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016. p. 165-182.
  • GUERRA, Yolanda. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.
  • IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2012.
  • IAMAMOTO, Marilda Villela. 80 anos do Serviço Social no Brasil: a certeza na frente, a história na mão. Serv. Soc. Soc. [online], n. 128, p. 13-38, 2017. ISSN 0101-6628. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.091 Acesso em: 6 mar. 2018.
    » http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.091
  • MARANHÃO, Cézar. Uma peleja teórica e histórica: Serviço Social, sincretismo e conservadorismo. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.
  • PAULO NETTO, José. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc. [online]. 2012, n. 111, pp. 413-429. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002 Acesso em: 12 jan. 2018.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002
  • SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação. O sincretismo no Serviço Social: uma abordagem ontológica. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela (org.). Cenários, contradições e pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016.

Notas

  • 1
    A crise é caracterizada por Mészáros (2011) como estrutural porque seu caráter é universal, atinge a todas as esferas da produção e do trabalho, não se limitando a certos países como nas crises anteriores. Sua duração é extensa, permanente, e seu desdobramento, “rastejante”. Não pode, de acordo com o referido autor, deslocar suas contradições, porquanto se trata de “uma crise estrutural em que está em jogo a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo” (MÉSZÁROS, 2011, p. 797).
  • 2
    O Estado brasileiro tem regulamentado essa precarização, um exemplo foi a aprovação da lei da terceirização - Lei n.º 13.429/2017 -, sancionada em março de 2017 durante o governo de Michel Temer, a qual dispõe sobre o trabalho temporário e passa a permitir a terceirização da atividadefim. Ainda no mesmo ano foi aprovada a Reforma Trabalhista, Lei n.º 13.467/2017, trazendo alterações no que se refere a jornada de trabalho, férias, trabalho intermitente, contribuição sindical, dentre outras mudanças. No governo de Jair Bolsonaro a reforma da previdência, Emenda Constitucional 103, de 12 de novembro de 2019, foi um dos pontos altos. A Reforma altera o sistema de previdência social do país com perdas que atingem de sobremodo a massa dos trabalhadores do setor público e privado.
  • 3
    Segundo o Censo Superior de 2009, o curso de Serviço Social já ocupava o terceiro lugar em número de matrículas na modalidade de EAD (IAMAMOTO, 2017, p. 32 apud CFESS, 2014, p. 24).
  • 4
    Souza (2013, p. 196).
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2019
  • Aceito
    17 Set 2019
  • Revisado
    11 Nov 2019
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