Acessibilidade / Reportar erro

A funcionalidade do salário por peça no trabalho mediado por plataformas digitais

Resumo:

Este artigo objetiva demonstrar a funcionalidade do salário por peça no trabalho mediado por plataformas digitais. A partir dos pressupostos da crítica marxiana da economia política, apresenta-se os fundamentos do processo de acumulação flexível, o tipo peculiar de tecnologia que fomenta e o avanço da precarização do trabalho. Posteriormente, problematiza-se o trabalho mediado pelas plataformas digitais como corolário desse regime de acumulação, em face da crise estrutural. Constata-se que a suposta mediação consiste em elaborado mecanismo de controle do trabalho, no qual o salário por peça exerce importante papel, mesmo sob a pecha do fim do assalariamento.

Palavras-chave:
Salário por peça; Plataformas digitais; Trabalho; Uberização

Abstract:

This article aims to demonstrate the functionality of piecework wages in work mediated by digital platforms. Based on the assumptions of the Marxian critique of political economy, it presents the foundations of the process of flexible accumulation, the peculiar type of technology that it fosters, and the advance of labor precarization. Subsequently, the work mediated by digital platforms is problematized as a corollary of this accumulation regime, in face of the structural crisis. It is found that the supposed mediation consists of an elaborate mechanism of labor control, in which the piecework wage plays an important role, even under the pretense of the end of salaried work.

Keywords:
Piecework wage; Digital platforms; Labor; Uberization

Introdução

Desde meados dos anos 1970, o mundo do trabalho vem passando por transformações que consubstanciam uma nova organização do trabalho, no bojo do capitalismo. No processo de reestruturação produtiva, as formas de acumulação flexível foram sendo consubstanciadas a partir do desenvolvimento dos meios de produção, com tecnologia de caráter dinâmico no que tange à relação espaço-tempo do trabalhador com o seu local e com a sua jornada de trabalho.

Voltaremos à questão da tecnologia e a dinâmica espaço-tempo ao longo da reflexão que desenvolvemos, mas, por ora, cabe sinalizar o caráter peculiar que a organização do trabalho passa a ter desde os anos 1970, com diversas metamorfoses em seu curso. Mais recentemente, desde o final da década de 2010, as plataformas digitais balizam as mudanças, embora com traços de continuidade no que diz respeito às bases da acumulação flexível.

Essas continuidades também dizem respeito às contradições entre o desenvolvimento dos meios de produção e as relações sociais, com aprofundamento da exploração e desigualdade. A precarização do trabalho ganha nova dimensão desde então, marcando uma fase de retrocesso de direitos trabalhistas e modificação da relação tradicional entre capitalista e trabalhadores empregados, determinada pelo novo regime de acumulação.

Não obstante, o trabalho assalariado/alienado/abstrato nos termos de Marx (1988b)MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. — aquele no qual ocorre a venda da força de trabalho e a subsunção da produção de valores de uso ao processo de valorização — permanece sendo o pilar dessas contradições, com vistas à produção e reprodução do capital, embora permanentemente mistificado. Ainda que sob formas diversas, o trabalho assalariado se efetiva na acumulação flexível como processo que possibilita a compra da força de trabalho por valor inferior ao que ela consegue produzir, ao ser consumida no processo. O salário, nas suas variadas faces, continua sendo expressão da exploração da classe trabalhadora, fundada na extração de mais-valia, ainda que sob a égide de novas tecnologias e relações supostamente modernizadas.

Com efeito, os fundamentos da forma salário, descritos por Marx (1988a)MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a., comparecem como decisivos para desmistificar a superação da cisão entre patrões e empregados, uma vez que a ideologia do empreendedorismo apregoa a modernização dessa relação, supostamente forjando um trabalho autogerido, logo, sem patrão. Ao desenvolvermos este ensaio, com o objetivo de demonstrar a funcionalidade do salário por peça no trabalho mediado pelas plataformas digitais, criticaremos essa ideologia, sobremodo demonstrando que a forma salário continua sendo decisiva no processo.

Para tal, convém resgatar, ainda que brevemente, o debate de Marx (1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a.) sobre o salário, em O Capital. Isso porque se deve considerar as duas formas elementares de salário: por tempo e por peça. Consoante Marx (1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a., p. 127), “a venda da força de trabalho se dá, como será recordado, sempre por determinados períodos de tempo. A forma transformada em que o valor diário, semanal etc. da força de trabalho se representa diretamente é, portanto, a do ‘salário por tempo’ [...]”.

Nessa forma de salário, os termos da lei do valor-trabalho ficam evidentes, uma vez que a grandeza de valor para qualquer mercadoria é o tempo de trabalho em média socialmente necessário para produzi-la. Por conseguinte, sendo a força de trabalho uma mercadoria, o seu valor é definido pela quantidade de trabalho necessária para lhe reproduzir enquanto tal: o conjunto de mercadorias para repor suas energias físicas e espirituais.

Claro que o salário exerce fetiche sobre a classe trabalhadora e, muitas vezes, pode ocultar a relação de exploração que lhe subjaz. Porém, tomando a lei do valor-trabalho como referência analítica, decompondo a jornada de trabalho “comum”, constata-se que ela é dividida em uma parcela de tempo na qual o trabalhador produz o valor equivalente à venda de sua força de trabalho (trabalho necessário) e uma parcela de trabalho excedente (trabalho não pago) (MARX, 1988bMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural, 1988b.).

Então, o salário pré-definido vinculado a um período também pré-definido (jornada de trabalho) carrega consigo a junção de dois momentos distintos, que o compõe. Desvelando a parcela de tempo que representa o trabalho não pago, evidencia-se o caráter de exploração contido na forma salário.

Por sua vez, o salário por peça é mais sofisticado, no que diz respeito a percepção do seu caráter de exploração nos termos da lei do valor-trabalho. Isso porque,

O salário por peça parece, à primeira vista, como se o valor de uso vendido pelo trabalhador não fosse função de sua força de trabalho, trabalho vivo, mas trabalho já objetivado no produto, como se o preço desse trabalho não fosse determinado, como o do salário por tempo, pela fração: Valor diário da força de trabalho/Jornada de trabalho de dado número de horas (MARX, 1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a., p. 133).

Contudo, o fato de o trabalhador receber por cada peça produzida (por tijolo fabricado, por quilos de fios de algodão trançados etc.) não elimina o fato de que, em cada peça, esteja cristalizado valor, medido em tempo de trabalho. A diferença é que o trabalhador é convencido de que, quantas mais peças produz, mais recebe. No entanto, esse possível aumento de seu salário continua sendo relativo ao tempo de trabalho, apenas variando de acordo com o tempo cristalizado em cada peça (valor), quantas unidades consiga produzir. Ou seja,

[...] é indiferente que se suponha que o trabalhador trabalhe 6 horas para si e 6 para o capitalista, ou que trabalhe de cada hora metade para si mesmo e metade para o capitalista, aqui tanto faz dizer que de cada peça individual metade é paga e metade não-paga, ou que o preço de 12 peças repõe apenas o valor da força de trabalho, enquanto nas outras 12 peças se corporifica a mais-valia [na hipótese de que em média 24 peças podem ser produzidas em 12 horas] (MARX, 1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a., p. 134).

Em cada peça está cristalizado o trabalho necessário e, também, o trabalho não pago e, com isso, quantas peças mais o trabalhador produza, mais trabalho não pago dele é extraído, isto é, mais explorado ele é. Trata-se apenas de uma metamorfose do salário por tempo, com incrementos do ponto de vista da captura da subjetividade operária. Por essas razões, “o salário por peça é a forma de salário mais adequada ao modo de produção capitalista” (MARX, 1988aMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a., p. 136).

O próprio salário por peça sofre metamorfoses, ganhando novas denominações ou sendo ocultado pelas ideologias que argumentam ter iniciado uma fase no qual não há patrões e nem relações de assalariamento. Como isso se expressa, contemporaneamente, no trabalho mediado pelas plataformas digitais é a questão que buscaremos problematizar a seguir.

Para tanto, apresentamos duas seções: na primeira, aprofundamos o debate sobre os fundamentos do regime de acumulação flexível e a precarização do trabalho que lhe é peculiar ante a crise estrutural do capital, a fim de situar as plataformas digitais como resultado desse processo; na segunda, abordamos as características gerais do trabalho mediado por essas plataformas, demonstrando a força determinante que a forma salário (por peça) continua a exercer no processo. Em ambas as seções, pautamo-nos pela perspectiva marxista, seja por meio de autores mais clássicos na ocasião dos fundamentos explicitados na primeira seção, seja por meio de autores que têm estudado as transformações mais recentes do mundo do trabalho.

A crise estrutural do capital como determinante de um novo patamar de precarização do trabalho

Na perspectiva de Mészáros (2009)MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. 1. ed. 3. reimp. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009., a crise que se estabelece desde meados da década de 1970 se diferencia das crises cíclicas anteriores, uma vez que possui caráter estrutural. Embora as crises, seja de qual for o tipo, sejam produto inerente às leis capitalistas, a crise estrutural se coloca, historicamente, como ponto culminante do esgotamento das estratégias do capital para conter a tendência decrescente da taxa de lucros.

Isso porque, anteriormente à crise estrutural, as limitações imediatas de cada dimensão fundamental do capital (produção, consumo, circulação/distribuição/realização) eram superadas na interação entre essas dimensões. Assim, as barreiras existentes em certa dimensão poderiam ser compensadas pelos incrementos trazidos por outra, em uma dinâmica recíproca. Todavia, essa dinâmica se reproduz de forma seguidamente ampliada a um ponto de as contradições internas das dimensões do capital se tornarem inadministráveis para o próprio capital. Com isso, a partir da década de 1970, o capital não consegue mais deslocar as contradições próprias de cada uma das suas dimensões fundamentais, evidenciando os seus limites absolutos. Por conta da ativação desses limites, a crise assume características distintas em face das crises cíclicas. Consoante Mészáros (2009)MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. 1. ed. 3. reimp. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009., a crise estrutural possui: (1) Caráter universal: não se limita a um setor econômico, ramo produtivo, financeiro ou complexo social. Trata-se de uma crise geral e que afeta a totalidade dos complexos sociais e as formas como eles interagem. (2) Alcance global: não se trata de uma crise regional ou localizada em alguns países, uma vez que ela não isenta nenhum Estado-nação, alcançando a totalidade do sistema do capital mundializado. (3) Escala de tempo permanente: à crise estrutural não sucede uma nova etapa de elevação da taxa de lucros, o que demarcaria uma escala de tempo temporária e cíclica. Ao contrário disto, a crise se cronifica, embora possa ter ciclos internos subordinados aos limites absolutos do capital ora ativados. (4) Curso rastejante: a crise estrutural tem um curso rastejante que contrasta com as erupções violentas das crises cíclicas. Mais uma vez, convém fazer a ressalva de que esse modo rastejante de se desdobrar pode coexistir com (sub)ciclos violentos nele contidos.

Não há precedência de crise semelhante, o que marca uma nova fase no interior do desenvolvimento capitalista. De acordo com Antunes (2009)ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. 10. reimp. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009., alguns fatos ou processos marcam essa passagem histórica, a exemplo da crise fiscal gerada no seio do Estado de Bem-Estar Social, onde ele existiu, creditada aos gastos públicos crescentes; a queda da taxa de lucro decorrente do aumento do preço da força de trabalho, cujo um dos ingredientes advinha das lutas sociais travadas na década de 1960 em torno de questões trabalhistas; a obsolescência do binômio taylorismo/fordismo, sobretudo pela retração do consumo, o que tornava insustentável a estratégia fordista de produção em massa, até porque essa estratégia era um dos fatores que produziram a retração; a hipertrofia financeira como reflexo das dificuldades para a rotação do capital, aumentando a especulação e a autonomia relativa do capital financeiro.

Diante de um desafio histórico sem precedentes, o capital coaduna um conjunto de respostas a fim de garantir sua reprodução ainda que sob crise permanente. Onde existia Estado de Bem-Estar Social, deu-se uma guinada neoliberal, cuja experiência inglesa (com Margaret Thatcher) e estadunidense (com Ronald Reagan) são emblemáticas. Nos Estados-nação nos quais as políticas sociais nunca chegaram a um patamar mais consistente, assiste-se um avanço ainda mais violento do neoliberalismo, com o fortalecimento dos mecanismos de heteronomia e subordinação internacional, sobretudo alimentadas pela dinâmica da dívida pública ante os baluartes do capital financeiro internacionalmente, o que dificulta avanços substanciais na área social (MÉSZÁROS, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. 1. ed. 3. reimp. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.; ANTUNES, 2009ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. 10. reimp. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.).

Na esfera produtiva, o capital se reestrutura, abandonando a primazia da acumulação rígida via taylorismo/fordismo. A retração do consumo, o aumento do valor do componente variável do capital e, consequentemente, a queda da taxa de lucro impeliram o capital a um novo regime de acumulação, de caráter flexível, pautado nas demandas mutantes do mercado e no contingenciamento da força de trabalho (HARVEY, 1992HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Editora Loyola, 1992.). Com isso, a ideia de trabalhador superespecializado passa a ser substituída pela ideia de polivalência, com constantes remanejamentos dos postos de trabalho ou com o acúmulo de funções nas células produtivas, conforme as necessidades do capital (ANTUNES, 2009ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. 10. reimp. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.; ALVES, 2010ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho. Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. Boitempo Editorial: São Paulo, 2010.).

O regime flexível demanda novas formas de controle da força de trabalho, mais sofisticadas do ponto de vista da subsunção ao capital. Isso porque a figura tradicional do gerente prescritor e regulador de tarefas se torna, cada vez mais, prescindível. Essa figura é substituída por estratégias que impelem os teams a se autocontrolarem de acordo com os parâmetros exigidos pelo mercado. Subjetivamente, consiste em um novo patamar de controle que leva o trabalhador a introjetar os interesses da empresa capitalista como se fossem os seus ou, o que é ainda pior, faz com que ele não se reconheça como trabalhador, mas como um agente livre no mercado que, supostamente, tratará de negócios que beneficiam igualmente aos polos da relação (ALVES, 2010ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho. Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. Boitempo Editorial: São Paulo, 2010.).

Nessa perspectiva, os trabalhadores passam a ser chamados de colaboradores ou são estimulados a se organizar sob uma dinâmica de autogestão (arranjos produtivos, cooperativas etc.), mas que apenas disfarça as metamorfoses sofridas no âmbito da subsunção ao capital. São estratégias para mistificar os reais interesses da classe trabalhadora, substituindo o horizonte da luta de classes pelo da negociação entre partes (des)iguais. Com isso, constitui-se um mosaico no qual a classe trabalhadora se insere na esfera produtiva ou no setor de serviços sob diversas formas que maquilam a relação tradicional entre patrão e empregado (TAVARES, 2004TAVARES, M. A. Os fios (in)visíveis da produção capitalista: informalidade e precarização do trabalho. São Paulo: Editora Cortez, 2004.).

A transformação dessa relação tradicional demandou a superação de barreiras jurídico-políticas outrora constituídas na luta de classes, através de conquistas e avanços parciais na seara estatal, agora destruídas pelas contrarreformas trabalhistas e outros processos de retrocesso no campo dos direitos sociais, levados a cabo sob o pretexto de modernização das relações de trabalho. Na verdade, constituem-se formas de legalizar as formas precárias de trabalho a que estão submetidos os trabalhadores, sem direitos, com contratos temporários ou assumindo os fantasiosos papéis de empreendedores (individuais ou organizados pelo novo associativismo/cooperativismo) forjados na ideologia da acumulação flexível (TAVARES, 2004TAVARES, M. A. Os fios (in)visíveis da produção capitalista: informalidade e precarização do trabalho. São Paulo: Editora Cortez, 2004.).

Com efeito, a precarização do trabalho assume um novo patamar a partir das respostas à crise estrutural, sendo uma estratégia fundamental para o barateamento da força de trabalho, para a quebra da organização política da classe trabalhadora e na flexibilização da produção, no sentido de reduzir custos e aumentar produtividade e lucros. Conforme Alves (2007)ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007., a precarização consiste em processo social estrutural, que precede à crise estrutural, mas passa a ser central para a reestruturação produtiva desde meados da década de 1970, marcando um novo período do capitalismo, direcionado ao regime de acumulação flexível.

Para Alves (2007)ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007., a precarização do trabalho é uma esfera de reposição política da precariedade inerente ao trabalho explorado, com efeitos presentes desde a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, mas que ganha maior eminência a partir do momento em que a esfera política expressa uma quadra histórica de maiores retrocessos e menores conquistas, invertendo a sensação dos períodos anteriores.

A questão do barateamento da força de trabalho comparece como elemento decisivo nessa processualidade, seja pelos mecanismos de retirada de rendimentos indiretos dos trabalhadores (políticas e direitos sociais), seja pela instabilidade gerada com os vínculos atípicos que são (re)inventados pelo capital. É nessa dinâmica que o salário por peça ganha relevância na flexibilidade típica do capitalismo contemporâneo, sobretudo porque as jornadas de trabalho formais, juridicamente delimitadas, são relegadas ao ostracismo ou refuncionalizadas, especialmente pelo seu prolongamento “informal” com o uso da tecnologia.

Desde os processos de automação nas fábricas de modelo toyotista até a explosão da internet no estabelecimento de uma nova relação entre espaço e tempo de trabalho, vê-se o aumento do roubo do tempo de vida, transformado, cada vez mais, em tempo de trabalho. A tecnologia cumpre papel fulcral nessa dinâmica, mesmo diante das jornadas formais de trabalho, pois viabiliza a existência de uma jornada paralela, ilimitada (ANTUNES, 2009ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. 10. reimp. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.; ALVES, 2010ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho. Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. Boitempo Editorial: São Paulo, 2010.). Os exemplos são diversos e cotidianos, como nos simples atos de responder a e-mails ou mensagens de celular referentes ao trabalho quando já se está em casa. Com os modelos de home office ou working from home, o imbricamento entre tempo de trabalho e tempo de vida (transformado em mais trabalho) tem dado mais alguns passos, sempre lastreado pelo desenvolvimento da tecnologia pensada para atender as demandas do capital.

Assim, em face da desregulação trabalhista, a jornada de trabalho regular e o salário conforme um tempo de trabalho pré-definido vão sendo deslocados a um patamar de menor relevância. Tanto na informalidade e contratos temporários, quanto na contratação dos (pseudo) empreendedores individuais ou coletivos, o prolongamento da jornada e a intensificação se encontram em determinação recíproca com o salário por peça, mesmo que travestido em novas roupagens face ao crescimento do setor de serviços.

Isso porque ao mistificar a relação entre salário e tempo de trabalho em média socialmente necessário para a produção das mercadorias, o salário por peça garante a prescindibilidade da limitação regular das jornadas ou de sua vinculação às métricas formais de tempo, ao menos, do ponto de vista da percepção imediata dos envolvidos. É claro, a lei do valor-trabalho permanece operante, cristalizando aquele que é a única medida possível de grandeza de valor, o tempo de trabalho, em cada peça/serviço produzida/o. Portanto, essa forma de salário encontra o regime de acumulação mais fecundo para a sua ampliação com a flexibilidade, consubstanciada na precarização do trabalho e, inclusive, invadindo os diversos complexos sociais, uma vez que se expressa em quantidades de procedimentos ou serviços executados nas novas atividades demandadas pelo capitalismo contemporâneo, para além do trabalho operário tradicionalmente exercido no chão da fábrica (TAVARES; LIMA, 2009TAVARES, M. A.; LIMA, R. O. T. de. A “liberdade” do trabalho e as armadilhas do salário por peça. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 170-177, 2009.).

Com a emergência das plataformas digitais, o trabalho precarizado atinge um novo patamar, com maior sofisticação das formas de controle da força de trabalho, via metamorfoses do salário por peça, consoante debatemos a seguir.

As metamorfoses do salário por peça e a precarização do trabalho em tempos de plataformas digitais

A segunda década do século XXI se constitui como um período de sofisticação dos mecanismos pelos quais a acumulação flexível se efetiva e, consequentemente, implicando novas formas de precarização do trabalho. Emerge um conjunto de atividades mediadas por plataformas digitais ligadas a grandes grupos tecnológicos, muitas vezes disponíveis por meio de aplicativos de celular e que forja a ideia de um suposto caminho para o empreendedorismo individual e a autogestão do trabalho (ANTUNES, 2019ANTUNES, R. Proletariado digital, serviços e valor. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida: o mosaico da exploração. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 15-23.).

Essa nova modalidade de mediação ganhou notoriedade a partir da empresa Uber, entre 2013 e 2015, quando motoristas com os seus carros próprios (ou alugados) começaram a se cadastrar na plataforma dessa empresa, sob a promessa de trabalharem para si mesmos. Assistiu-se a explosão desse tipo de serviço, com diversos consumidores fazendo o download do aplicativo da empresa, a fim de conseguirem corridas similares às que o serviço tradicional de taxi oferece, mas com menor preço e maior conforto (SLEE, 2017SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.).

O modelo se popularizou, surgindo plataformas concorrentes no mesmo setor e se expandido para outros segmentos, como em serviços de pequenos reparos domésticos, cuidadores, entregadores de alimentos ou outras mercadorias. A expansão desse modelo passou a ser chamada de processo de uberização, em alusão ao grupo pioneiro. Com isso, um contingente considerável de trabalhadores desempregados começou a se cadastrar nesses aplicativos/plataformas em face de uma procura crescente por serviços dessa modalidade, os mais diversos.

Em geral, esses indivíduos não são vistos como trabalhadores e as empresas detentoras dos (e que controlam os) aplicativos não são tidas como empregadoras, pois, supostamente, apenas medeiam o processo, permitindo o encontro de um consumidor que precisa de um serviço e um prestador livre, que é autogestor do seu trabalho. Aqui, argumentaremos que nem se trata de uma mera mediação, nem esses trabalhadores são autogestores do seu trabalho, ao contrário disso, estão imersos em níveis elevados de exploração e precarização do trabalho, nos quais o salário por peça (metamorfoseado) cumpre papel decisivo.

Antes de chegarmos à questão da forma de remuneração dos trabalhadores uberizados, é preciso destacar a complexificação que ocorre no âmbito do controle do trabalho por parte das empresas plataformizadas, com uma dinâmica espaço-temporal mais fluída. De acordo com Abilio (2019ABILIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019., p. 2),

O elemento central catalisado pelas plataformas são as novas formas de dispersar o trabalho sem perder o controle sobre ele. Essa possibilidade já era evidente nas cadeias produtivas globais e suas enormes redes de subcontratação (Bernardo, 2004; Bonacichi e Appelbaum, 2000; Klein, 2002). Entretanto, a dispersão/centralização agora se concretiza em uma multidão de trabalhadores subordinados a uma única empresa. Tal processo atualmente consolida o trabalhador como um autogerente-subordinado que já não é contratado, mas se engaja no trabalho via a adesão às plataformas.

Diante disso, destacamos que a uberização representa a continuidade da dinâmica posta pela acumulação flexível, mais ou menos, desde os anos 1970. Além disso, a tecnologia, sempre decisiva à subsunção do trabalhador ao capital, catalisa uma nova dinâmica espaço-temporal, não apenas por permitir o aceleramento das demandas, via comunicação mais rápida, mas também por viabilizar a descentralização e a distribuição dos trabalhadores e dos serviços por um espaço geograficamente ilimitado, tornando obsoleta a tradicional estrutura de empresa com local físico definido, reunindo trabalhadores sob o seu teto (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.).

Essa fluidez espaço-temporal contribui para fortalecer a ideia de que o trabalhador não está subordinado a empresa, sendo ele, supostamente, quem define sua jornada e o quanto pode ganhar. Entretanto,

a empresa-aplicativo em realidade é muito mais do que uma mediadora; a questão é que a subordinação e o controle sobre o trabalho são mais difíceis de reconhecer e mapear. Elementos centrais para tal reconhecimento: i) é a empresa que define para o consumidor o valor do serviço que o trabalhador oferece, assim como quanto o trabalhador recebe e, não menos importante, ii) a empresa detém total controle sobre a distribuição do trabalho, assim como sobre a determinação e utilização das regras que definem essa distribuição. (ABILIO, 2019ABILIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019., p. 3).

O fato é que a empresa/plataforma reúne uma série de dados que permite definir os mecanismos da organização do processo de trabalho, submetendo trabalhadores e consumidores às suas regras, mas sem precisar se responsabilizar pelas questões trabalhistas, nem pela qualidade do produto/serviço — seja num caso, seja noutro, a responsabilidade recai sobre o trabalhador, pseudo-empreendedor. Inclusive, essas plataformas criaram sistemas de avaliação no qual os consumidores atribuem notas aos trabalhadores e, a partir disso, elas conseguem alimentar o algoritmo que automatiza a distribuição dos serviços solicitados pelos consumidores de acordo com o ranking de avaliações (ABILIO, 2019ABILIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019.).

Os algoritmos acabam por traçar perfis de todos os envolvidos, inclusive dos consumidores, sendo também uma ferramenta comercial importante ante outras empresas que queiram anunciar seus produtos nas plataformas. Trata-se de uma sofisticada forma de controlar comportamentos e induzir consumos, exponenciada pela inteligência artificial e que encontrou a fluidez necessária nos espaços virtuais.

Os trabalhadores, portanto, ficam subordinados a esses mecanismos de controle, mesmo que muitas vezes eles mesmos não se percebam trabalhadores. Não à toa, surgem nomenclaturas diversas para essa modalidade de atividades, como Sharing Economy, criando a sensação ideológica de que há um processo de compartilhamento de interesses convergentes entre vários tipos de empreendedores; ou Gig Economy e Crowdwork, quando se tenta cunhar a ideia de trabalhadores livres e independentes acionados sob demanda, através das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).

Nesses moldes, não há contratos típicos de trabalho, a empresa/plataforma não possui obrigação trabalhista nenhuma e, com isso, o trabalhador está totalmente desprotegido, sem direitos. Trata-se, claramente, de uma forma de trabalho intensamente precarizada. Para Filgueiras e Antunes (2020FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020., p. 32),

[...] a chamada uberização do trabalho somente pode ser compreendida e utilizada como expressão de modos de ser do trabalho que se expandem nas plataformas digitais, onde as relações de trabalho são cada vez mais individualizadas (sempre que isso for possível) e invisibilizadas, de modo a assumir a aparência de prestação de serviços.

Entendido como prestação de serviço, o trabalho uberizado não pressupõe regulamentação de jornada de trabalho ou salário, até porque, repitamos, não há vínculo formal de trabalho. De forma complementar, diríamos que, na maioria das vezes, sequer há reconhecimento da existência de vínculo informal, pois a relação é tratada como se fosse estabelecida por agentes empreendedores livres no mercado.

O âmbito jurídico comparece, nesse processo, com alguma evidência, pois de fato há uma ruptura de direitos sociais outrora garantidos. No entanto, entendemos que a pedra de toque desse processo não é de natureza jurídica, mas econômica. Isso porque é a separação entre quem executa o trabalho e quem o controla (reflexo da cisão da sociedade em classes sociais) que determina a consubstanciação do trabalho uberizado, com destaque para o alto grau de complexidade que o fetichismo do salário assume nessas condições.

Como mostram Filgueiras e Antunes (2020FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.), esses trabalhadores, em grande parte das vezes, não conseguem atingir rendimentos equivalentes a um salário-mínimo, ainda que prolonguem suas jornadas (chegando a 11 horas diárias). Isso porque eles recebem por tarefa executada, por exemplo: por corrida do motorista ou por entrega do pedido do restaurante realizada pelo entregador de aplicativo. Para cada serviço individual realizado, o consumidor paga um valor (pela corrida ou pela entrega, para ficarmos nos mesmos exemplos), cujo um percentual (em média, de 12% a 27%) é retido pela empresa (aliás, percentual que é definido unilateralmente por ela.

Trata-se de uma forma camuflada de assalariar o trabalhador e, portanto, extrair mais-valia. Perceba-se que ao receber por tarefa executada, essa forma de pagamento se assemelha ao salário por peça, descrito por Marx (1988a)MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a.. Já fizemos menção ao fato dessa forma de trabalho mistificar a sua relação com o tempo de trabalho, porque não há valor pré-definido para uma jornada determinada, mas que, mesmo assim, permanece sob a égide da lei do valor-trabalho.

Também convém alertar para as metamorfoses que essa forma de salário sofre, sendo chamada de salário por produção em setores como a da cana-de-açúcar, por exemplo, quando a relação entre quantidade e salário passa a ser mediada por uma série de cálculos e artimanhas que tornam a quantidade de peças mais difícil de ser percebida pelo trabalhador1 1 Verçoza (2018) explica que o cortador de cana recebe por tonelada, sendo que a cana é medida por uma vara para definir quantos metros foram cortados. Há uma conversão de metros para tonelada na qual o trabalhador não conhece a relação. Em vários momentos, ocorre o roubo por parte do capitalista, como na medição com a vara ou na conversão de metros para tonelada. . Porém, na uberização, o grau de complexidade é ainda maior, porque além de mistificar a relação da remuneração com o tempo de trabalho, tenta-se anular a existência do salário. Isto é, se o motorista ou entregador não é trabalhador e se não há relação/vínculo de trabalho, tampouco deve existir salário, mas apenas ganhos proporcionais à produtividade do prestador de serviço, lucros de seu empreendimento individual.

Por conta da separação entre quem possui a tecnologia (e controla o trabalho) e quem executa, expressa em dada forma de salário, os trabalhadores são impelidos a prolongarem suas jornadas, a fim de aumentar seu rendimento, mas fadados a aumentarem sua exploração. Cada vez mais, o trabalhador uberizado vê a derruição dos limites entre o tempo de trabalho e o tempo de vida, uma vez que deve permanecer conectado por longos períodos, esperando ser demandado, período que geralmente é maior que aquele no qual executa a tarefa em si. Sob a necessidade de aumentar seu rendimento, o trabalhador, muitas vezes, fica conectado todo o tempo possível, excetuando os horários em que dorme e atende outras necessidades fisiológicas (quando não for possível sacrificá-las). Todo esse tempo consiste em trabalho não pago e que revela a complexidade da relação entre tempo e salário (por peça) estabelecida nessa forma precarizada de trabalho (ABILIO, 2019ABILIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019.; FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.).

Ademais, amplifica-se os obstáculos aos vínculos de identidade entre os trabalhadores, perpetuando a captura da subjetividade típica da acumulação flexível. O que é pior, cria-se um cenário de competitividade entre os trabalhadores, uma vez que eles estão à disposição desse mercado de trabalho, em uma espécie de leilão invertido que põe as demandas as quais uma fileira de desempregados é obrigada a abraçar sem pestanejar (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.).

Podemos dizer que as plataformas, por meio de sua tecnologia, atuam controlando o processo e criando as condições objetivas para que haja o prolongamento das jornadas de trabalho e o rebaixamento dos salários. Diga-se de passagem, a virtualização de partes do processo é de grande eficiência para o barateamento da força de trabalho e redução de outros custos da empresa, quando comparados a manutenção de uma grade estrutura física. Ademais, alguns custos, como a compra e manutenção do carro, da bicicleta ou do celular, são repassados ao trabalhador, compondo um mosaico no qual o salário é deteriorado.

Com efeito, não se trata de imposição da esfera jurídica, embora seja por ela legitimada, mas se trata de uma imposição da relação-capital. Por conta disso, as discussões da precarização do trabalho e, agora, da uberização, não podem ocorrer apenas pelo viés jurídico ou sociológico, uma vez que, esses caminhos, ainda que tragam argumentos relevantes, são insuficientes. A crítica radical à precarização/uberização deve ser particularidade de uma crítica mais ampla, crítica da economia-política, portanto, crítica do capital.

Considerações finais

Embora o processo de uberização pareça inaugurar uma fase da acumulação capitalista distinta em face dos processos anteriores, a exemplo do Toyotismo, arranjos produtivos locais, cooperativismo etc., uma análise pautada na crítica da economia política revela seu caráter de corolário do processo de acumulação flexível, em resposta à crise estrutural do capital, ainda que em um novo patamar tecnológico.

Essas tecnologias compõem um mosaico ideológico que propaga a autogestão do trabalho e o fim do salário, pois estaria mediando a relação entre prestador de serviço/empreendedor e consumidor. Constatamos que, na verdade, essas novas tecnologias, sobretudo ligadas à inteligência artificial e mecanismos de robotizar o controle espaço-temporal do trabalho por meio de algoritmos, determinam a subordinação do trabalhador às plataformas digitais.

Longe de desaparecer, a forma salário se metamorfoseou e permanece exercendo seu fetichismo sobre o trabalhador que, muitas vezes, não se percebe mais como assalariado. O salário por peça (sob novos moldes) marca a forma de pagamento desses trabalhadores vinculados às plataformas e equalizam a questão do prolongamento da jornada de trabalho e intensificação do ritmo. A máxima de Marx de que essa forma de salário é a mais adequada ao capitalismo continua ainda mais válida na era das plataformas digitais.

Agradecimentos

Agradeço aos camaradas de debate no Grupo de Estudo Trabalho Ser Social e Enfermagem(Getsse) da UFAL, campus Arapiraca; no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/UFAL; e no Coletivo Ofensiva Socialista. Os argumentos aqui expostos, certamente, amadureceram a partir dos debates desenvolvidos nesses espaços.

  • 1
    Verçoza (2018)VERÇOZA, L. Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde. Maceió: Edufal, 2018. explica que o cortador de cana recebe por tonelada, sendo que a cana é medida por uma vara para definir quantos metros foram cortados. Há uma conversão de metros para tonelada na qual o trabalhador não conhece a relação. Em vários momentos, ocorre o roubo por parte do capitalista, como na medição com a vara ou na conversão de metros para tonelada.
  • Agência financiadora: Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação: Não se aplica.
    Consentimento para publicação: Consentimento do autor.

Referências

  • ABILIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019.
  • ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007.
  • ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho. Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. Boitempo Editorial: São Paulo, 2010.
  • ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. 10. reimp. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • ANTUNES, R. Proletariado digital, serviços e valor. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida: o mosaico da exploração. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 15-23.
  • FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.
  • HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Editora Loyola, 1992.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1988a.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural, 1988b.
  • MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. 1. ed. 3. reimp. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
  • SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
  • TAVARES, M. A. Os fios (in)visíveis da produção capitalista: informalidade e precarização do trabalho. São Paulo: Editora Cortez, 2004.
  • TAVARES, M. A.; LIMA, R. O. T. de. A “liberdade” do trabalho e as armadilhas do salário por peça. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 170-177, 2009.
  • VERÇOZA, L. Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde. Maceió: Edufal, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    08 Mar 2022
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900 - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com