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Marx: universalidade filosófica e ciência positiva

Resumo:

Neste artigo, procuramos rastrear nos textos de juventude de Marx os nexos que tornam possível Marx fundar uma ontologia do ser social a partir de duas críticas a Hegel, e de sua crítica a Feuerbach. Argumentamos que Marx visualiza na realidade histórico-concreta alemã, e no seu contato posterior com a economia política clássica via Engels o fundamento de uma reorientação radical da filosofia. Momento em que Marx terá como necessidade inverter o sentido de sua crítica em relação à Hegel sem renunciar as suas descobertas fundamentais, isto é, a prioridade descoberta na sociedade civil como chave heurística. A partir dessa crítica Marx irá fundamentar uma estrutura abrangente de sistematização que tem como pressuposto uma reorientação radical da filosofia em um sentido realmente universal, fundamentando ao mesmo tempo uma ciência positiva.

Palavras-chave:
Ontologia; Hegel; Jovem Marx; Ciência positiva

Abstract:

In this article, we seek to trace in Marx's youthful texts the nexuses that make it possible for Marx to found an ontology of social being from two critiques of Hegel, and from his critique of Feuerbach. We argue that Marx visualizes in German historical-concrete reality, and in his later contact with classical political economy via Engels the foundation of a radical reorientation of philosophy. A moment in which Marx will need to reverse the direction of his critique of Hegel without renouncing his fundamental discoveries, that is, the priority discovered in civil society as a heuristic key. From this critique Marx will base a comprehensive structure of systematization that has as presupposition a radical reorientation of philosophy in a truly universal sense, founding at the same time a positive science.

Keywords:
Ontology; Hegel; Young Marx; Positiv Science

Introdução

A discussão presente pretende abordar a constituição da teoria marxiana, em específico a fundação de uma universalidade filosófica — a qual estará já fundamentada em sólidas bases em 1846 na Ideologia Alemã — sobre a qual se alça, em nossa concepção, uma ciência positiva capaz de superar problemas existentes na ciência moderna. Isto é, a divisão social do pensamento, em áreas diversas e fragmentadas que não compõem uma visão unitária do mundo.

Entretanto, não objetivamos aqui, mais que apontar, pelo interior do pensamento marxiano, os traços que a nosso ver prefiguram a instauração de um padrão filosófico-científico radicalmente novo. Padrão instaurado pela viragem filosófica marxiana a partir dos constituintes da sociedade burguesa e que anunciam uma ontologia unitária do ser. Base necessária para uma ciência positiva que possibilite perscrutar seus encaminhamentos de acordo com a totalidade constitutiva de uma tal ontologia.

Em suma, a superação do idealismo pelo materialismo, constitui, para Marx, a superação da filosofia como pensamento autocentrado e autosubstanciado. A partir do erigir de uma filosofia que tem como ponto fundamental uma ontologia materialista fundada no trabalho, se produz a reintegração da filosofia ao seio do universo prático da atividade humana. Isto é, a filosofia pode figurar como um problema antes de tudo teórico-prático, superando seu caráter especulativo e instaurando nesta filosofia uma universalidade concreta real como base de uma ciência positiva.

Este caminho parece-nos passar por continuidades e descontinuidades. Assim, por exemplo, a primeira crítica de Hegel por Marx a partir de Feuerbach condensa elementos que em seguida produzirão a própria superação de Feuerbach através de Hegel.

A primeira distância que Marx toma de Hegel, em fins dos anos 30 se condensa em sua própria tese de Doutorado, — A Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro — a valorização dada aos materialistas gregos é avessa a forma como Hegel os pensou. Para este, os materialistas da transição grega eram um pensamento de segundo escalão que correspondiam justamente a uma época inferior do mundo antigo. Em oposição a isso, Marx reconhece a grandeza desses pensadores.

Em segundo, existe um reconhecimento arguto da real limitação do pensamento hegeliano — é evidente que esse reconhecimento não leva imediatamente à superação dos problemas identificados —, em oposição aos jovens hegelianos que pensavam que em Hegel havia uma dualidade entre um pensamento esotérico e um exotérico, em que o primeiro era ateu e antimonarquista e o segundo religioso e monarquista, Marx recusa tal divisão e aponta as limitações do sistema como limitações do próprio fundamento teórico-prático da filosofia Hegeliana.

Esse apontamento já coloca para Marx problemas que nem compareciam na concepção dos jovens hegelianos que pensavam em libertar o pensamento de Hegel de seu lado exotérico1 1 É interessante notar como a Werkritik se utiliza da mesma divisão para avaliar a obra marxiana, em que para autores como Robert Kurz, Anselm Jappe etc. haveria dois Marx, um esotérico e outro exotérico. Um Marx que defenderia uma posição ontológica de trabalho e outro que na maturidade teria abandonado tal concepção por descobrir o automatismo do valor. Essa posição é exposta por Kurz em seu Manifesto contra o trabalho. Um texto que se contrapõe a essa questão é o livro de Sérgio Lessa Trabalho e Proletariado no Capitalismo Contemporâneo. e já demonstra a superioridade da sua concepção em relação aos críticos. Ao mesmo tempo, já é presente a tendência de uma reorientação filosófica ao remeter o pensamento em direção à realidade.

Feuerbach e Hegel

Essa posição marxiana que data da sua tese de doutorado, ou seja, a de que o problema da filosofia de Hegel deve ser buscado nos seus fundamentos socio-históricos, irá ser aprofundada na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel escrita em 1843. Aqui, já sob a influência de Feuerbach, Marx irá agudizar sua crítica da especulação. Marx identifica nesse momento a tendência de Hegel apontada por Feuerbach de transformar o empírico em resultado de um movimento lógico (MARX, 2005).

Marx ao invés de observar o empírico como resultado místico, já aponta para o acompanhamento das “lutas reais, com as quais a crítica deve se identificar, é visível a busca de um ‘novo princípio’” (LUKÁCS, 2007LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2007., p. 163), como podemos conferir:

Portanto, nada nos impede de vincular nossa crítica à crítica da política, à tomada de posição na política, e, desse modo, às lutas reais, com as quais a crítica deve se identificar. Então, não enfrentaremos o mundo de modo doutrinário, com um novo princípio: aqui está a verdade, ajoelha-te! Desenvolveremos para o mundo princípios novos que que extrairemos da própria realidade. Não lhe diremos: abandona tuas lutas, elas não passam de tolices; cabe a nós te fazer entender a verdadeira divisa do combate. Nós lhe mostraremos apenas por que efetivamente ele luta, já que mesmo a contragosto. A reforma da consciência consiste unicamente em tornar o mundo consciente de si mesmo, em despertá-lo do sono no qual sonha consigo mesmo e em explicar-lhe suas próprias ações. (MARX, 1975 apud LUKÁCS, 2007LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2007., p. 163).

Marx já avança em relação a Feuerbach ao aplicar a inversão materialista deste à política, enquanto Feuerbach não se desprende da esfera da religião, Marx já em 1843, tomando como ponto de partida a teoria da alienação deste, consegue visualizar a inversão entre sujeito e predicado do pensamento hegeliano.

Se Feuerbach se limita a condenar o sistema de Hegel por pensar que este quer fazer derivar do pensamento o ser e com isso fazer o mundo a realização do espírito, em suma de uma entidade divina, Marx aplicando a mesma crítica vai observar que Hegel opera a mesma inversão na relação entre Estado e Sociedade Burguesa2 2 A tradução poderia ser por Sociedade Civil, já que apenas no modo de produção capitalista a sociedade civil se diferencia do Estado com a alienação do poder político em uma esfera apartada da vida social. [Bürgerliche Gesellschaft]. A partir dessa inversão se explicitarão duas questões decisivas que indicam o caminho a ser trilhado para a fundação de uma ontologia do ser social.

Se já comparecem neste momento elementos e a indicação do materialismo, ainda falta um elemento central, a classe que é portadora do ponto de vista em que poderá se ancorar a nova concepção de mundo [Weltanschauung].

Esse elemento só comparecerá mais a frente, depois de Marx já ter perscrutado o terreno da sociedade civil e de sua relação com o Estado em Sobre a questão judaica, texto em que polemiza com Bruno Bauer, que escreveu um texto intitulado A questão judaica, onde este defende que o caminho da emancipação do judeu era o ateísmo, bem como a emancipação do Estado da religião era a realização da emancipação em geral.

Há duas críticas no texto de Marx que estão vinculadas, a primeira é o pano de fundo geral, e a crítica do idealismo de Bauer, onde este vê a emancipação como a realização do Conceito — que pela mediação da crítica a religião constrói o último degrau do caminho da consciência de si para consciência para-si do gênero humano — Marx vê uma contradição entre emancipação humana e política. E aponta que o fato de o judeu não poder se libertar do judaísmo deriva da própria natureza judaica3 3 No texto, Marx utiliza atividade judaica como a atividade egoísta que existe na sociedade civil como o Bellum omnium contra omnes. de sua atividade. A limitação não deriva de o Espírito ainda não ter atingido seu absoluto, mas, sim, do fato que a emancipação é política, e tal parcialidade deriva da própria natureza da classe que a fundamenta.

Tal emancipação ocorre fundada no fato de que a vida social aliena de si as suas próprias forças como forças políticas e que o Estado não é a universalidade universalizada, mas antes a particularidade universalizada. E que, portanto, o Estado constitui uma abstração em face ao egoísmo e ao particularismo real. Daqui nascem de um lado a alienação do indivíduo que se cinde entre citoyen e bourgeois, entre indivíduo público e privado, da mesma forma que a vida genérica se torna a irrealidade e a particularidade a vida real.

[...] Só assim, pela via dos elementos particulares, é que o Estado se constitui como universalidade. O Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da esfera estatal na sociedade burguesa, só que como qualidades da sociedade burguesa. Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. (MARX, 2010MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 40).

Aqui já aparece a busca de forças sociais reais, ainda que não explícitas, pois, apesar da divisão entre cidadão e burguês não adentrar na determinação fundamental das classes sociais, Marx identifica uma abstração real, uma alienação real. Tal alienação, identificada como fundada na autoalienação do trabalho vai reaparecer nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 44 do qual falaremos mais à frente. Todavia, para apontar a questão, lembremos que aqui Marx (2010MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 40) identifica que “a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele”.

Essa investigação o leva a compreender que o atual estágio histórico não é aquele da emancipação humana, mas sim da emancipação política e isso significa que a emancipação do judeu é apenas a completude da emancipação do Estado em relação a religião. É notável novamente a influência de Feuerbach, o Estado é uma alienação da sociedade civil, seu conteúdo perdido e alienado de si. Evidente que Marx já está muito acima da crítica de Feuerbach e não concordamos com aqueles que pensam em um suposto estágio Feuerbachiano de Marx.

Os problemas que são postos pela análise da sociedade civil como o polo gerador do Estado abrem o campo a ser desvendado de forma que necessariamente comparecem questões que nunca apareceriam na crítica da religião. A prova disto é o avanço de Marx em sua concepção de emancipação humana e emancipação política, bem como na visualização do Estado como corporificação de força social sob a forma de força política.

Devemos apontar aqui, rapidamente, como já comparece no Marx de então a sua orientação antiutópica, sua análise nunca se desprende das determinações do ser, não troca o ser pelo dever-ser por nenhum segundo.

As limitações deste momento do pensamento marxiano, apesar dos avanços, é como dissemos acima, a falta de um elemento fundamental. Isto é, o proletariado.

Em A crítica da filosofia do Direito de Hegel – Introdução comparece esse elemento como o fundamento de uma nova estruturação teórica. Marx encontra o sujeito da emancipação humana. Essa classe ainda não comparece como sujeito universal pela sua posição na produção da riqueza social. Antes se faz presente pela identificação entre sofrimento universal e a universalidade da emancipação humana.

Contudo, esse passo possibilita Marx a fundar sua ontologia do ser social. Se aqui o proletariado aparece como um sujeito ainda passivo, no ano de 1844 em que Marx encontrará com o proletariado francês, as sociedades secretas, Engels e a economia política, essa figura mudará radicalmente. Permanecerá como o fundamento intrínseco da teoria social marxiana, mas agora tomada como sujeito histórico que só pode romper suas “cadeias radicais” pela práxis revolucionária.

Filosofia e ciência positiva

Vale aqui, desenvolver dois aspectos ligados: a filosofia marxiana dos anos de 1844 e a ideia de ciência positiva exposta na Ideologia Alemã. Contra uma certa interpretação de Marx, entendemos que o pensamento marxiano não se instaura como uma antifilosofia, como alguns althusserianos nos dias de hoje pretendem, radicalizando a ignorância epistemológica de Althusser.

O que ocorre no pensamento marxiano, que desde 1837 buscava a ideia na realidade é a radicalização mesma dessa posição que se agudiza e aprofunda conforme seu contato com a filosofia se estreita e os problemas reais aparecem pedindo resolução. Essa inflexão é produto, primariamente das limitações filosóficas que não podem ser resolvidas no interior desse complexo problemático. A própria busca de sistematização por parte de Marx pede que os complexos particulares, os quais são seu objeto neste momento, sejam englobados em uma configuração totalizante.

Essa dimensão de totalização é um imperativo de todo e qualquer objeto parcial que se põe como coisa a ser desvendada em seu ser em-si. Marx ao captar tal determinação põe como possibilidade a reorientação radical de toda a estruturação da filosofia anterior. Se aqui se põe como problema fundamental o problema da universalidade da filosofia, é apenas e tão somente porque a filosofia se fundamenta em uma universalidade alienada.

A divisão social do trabalho aparece na história como um impedimento de realização daquela universalidade genuína da criação dos sistemas, que par excellence parciais, aqui só podem expressar seus problemas como movimento autoimanente e autônomo das determinações sociais que põem a filosofia como necessidade histórica, como complexo fundado em uma necessidade social, que em última instância deriva de uma necessidade material.

Se há uma negação de Marx em relação à filosofia, ela se expressa tão somente sob a base dessa alienação. A filosofia vista como campo autônomo que se automovimenta e se põe sob a sua própria base, resolve os problemas especulativamente e neste sentido essa universalidade se apresenta como uma falsidade.

Todavia, essa rejeição não leva Marx, em nenhum momento, a negar a sistematização de uma universalidade filosófica. Antes como nos diz Mészáros (2008MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Boitempo, 2008., p. 94): Marx estava “ciente que de que o desenvolvimento problemático da filosofia como universalidade alienada era a manifestação de uma contradição objetiva e tentava encontrar uma solução para essa contradição”.

Disto é simples Marx (2013MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 163) chegar à conclusão que: “A filosofia não pode se efetivar sem a suprassunção [Aufhebung] do proletariado, o proletariado não pode se suprassumir sem a efetivação da filosofia” não é simplesmente uma volição idealista da juventude. É antes disso uma reorientação da filosofia em relação a vida real, a posição de que a problemática da parcialidade posta e da universalidade exigida pela filosofia só pode se realizar praticamente.

Essa universalidade real e possível é apontada por Marx em a Ideologia Alemã quando diz que:

Essa “alienação” [Entfremdung] para usarmos um termo compreensível aos filósofos, só pode ser superada, evidentemente, sob dois pressupostos práticos. Para que ela se torne um poder “insuportável”, quer dizer, um poder contra o qual se faz uma revolução, é preciso que ela tenha produzido a massa da humanidade como absolutamente “sem propriedade” e, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riqueza e de cultura existente, condições que pressupõem um grande aumento da força produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento – e, por outro lado, esse desenvolvimento das forças produtivas (no qual já está contida, ao mesmo tempo, a existência empírica humana, dada não no plano local, mas no plano histórico-mundial) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas é posto um intercâmbio universal dos homens e, com isso, é produzido simultaneamente em todos os povos o fenômeno da massa “sem propriedade” (concorrência universal), tornando cada um deles dependente das revoluções do outro; e, finalmente, indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, são postos no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o comunismo poderia existir apenas como fenômeno local; 2) as próprias forças do intercâmbio não teriam podido se desenvolver como forças universais e, portanto, como forças insuportáveis; elas teriam permanecido como “circunstâncias” doméstico-supersticiosas; e 3) toda ampliação do intercâmbio superaria o comunismo local. O comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação “repentina” e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado a esse desenvolvimento. (MARX, 2007, p. 38-39).

É justamente tal universalidade real, que põe a possibilidade de uma base real para a filosofia. A realização da filosofia é uma tarefa prática, posta por indivíduos reais.

Não ocorre aqui a realização da filosofia sob a base de uma universalidade fictícia que se move sob a lógica englobando e fundando negativamente seus passos até a verdade absoluta. Marx capta a contradição objetiva que se expressa no complexo filosófico como a existência da divisão social do trabalho.

Com isso, desenvolve-se a divisão do trabalho, que originalmente nada mais era do que a divisão do trabalho no ato sexual e, em seguida, divisão do trabalho que, em consequência de disposições naturais (por exemplo, a força corporal), necessidades, casualidades etc. etc., desenvolve-se por si própria ou “naturalmente”. A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual. E a partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real – a partir de então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. “puras”. (MARX, 2007, p. 35).

O significado de “puras” não poderia passar despercebido, são justamente as formas de ideação que parecem autônomas do desenvolvimento real, das formas concretas desse desenvolvimento da humanidade. A particularidade como momento de expressão de todos os complexos parciais. É justamente aqui que se põe a absoluta inépcia do “marxismo” positivista, que quer declarar morta toda universalidade em troca das “ciências positivas”.

Não declaremos isso como apenas um problema de intencionalidade prévia daqueles que pendendo para as más querem injetar conteúdos estranhos ao corpus teórico marxiano. Mesmo Engels (1950, p. 24, tradução nossa) cai nesse problema, quando diz que o materialismo consistiria em “alle veritá relative per la via delle scienze positive e della sintesi dei loro risultati a mezzo del pensieri dialéctico4 4 “alcançar verdades relativas, através das ciências positivas e da soma de seus resultados por meio do pensamento dialético”. A opção pela edição italiana ocorreu apenas pelo fato de estar a mão (ENGELS, 1950, p. 24). .

Aqui o problema principal é declarar a filosofia como um mero aglomerado de partes, como uma organização das ciências positivas sem a capacidade ativa de desenvolver e retirar consequências de longo alcance de tais resultados. Engels aceita o pensamento dialético como mero apêndice de ciências particulares. E expurga a universalização e com isso qualquer sistematização mais abrangente das ciências.

É aqui que é possível debilitar o pensamento marxiano gravemente, visto que sem aquele sistema que Mészáros chama de primeira ordem de mediações, é impossível qualquer totalização abrangente consequente, e a impossibilidade de qualquer conteúdo ontológico.

Sem querer Engels introduz uma verificação gnosiológica ao imputar a generalização filosófica como soma de resultados das ciências particulares, sem função de universalização teórica abrangente, que constitui realmente uma ontologia.

Engels, no mesmo texto fala em fim da filosofia, o que não condiz com o próprio desenvolvimento teórico de Marx. Como diz Mészáros:

[...], ele [Marx] não só enfatizou a interdependência necessária do desenvolvimento total dos indivíduos e seu controle consciente da propriedade e da produção, mas também ressaltou que, desde que tais desenvolvimentos não se concretizem na vida real, a filosofia está fadada a continuar a ter uma existência isolada, em ver de se integrar à vida cotidiana e dessa maneira “se realizar. (MÉSZÁROS, 2008MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Boitempo, 2008., p. 97).

Pois o isolamento da filosofia é antes uma contradição interna da práxis social que não conseguiu produzir ainda uma universalidade real, baseada na superação da contradição entre trabalho manual e intelectual.

De outro lado, a positividade é que a filosofia pode e deve continuar a ser posta como mediação necessária para uma negação prática da parcialidade existente e cotidianamente reposta. Se de um lado a parcialidade se plasma, isso não significa aceitá-la como condição de existência do ser social, antes é só a universalidade que pode tornar conhecida e transformável a totalidade existente.

Dito isso, podemos dizer que sob a universalidade de uma ontologia do ser social, Marx fundou uma ciência positiva — para evitar mal-entendido, aqui ciência positiva nada tem de próximo ao positivismo e ao neopositivismo — esse padrão de cientificidade tem, desde o primeiro momento, a característica de buscar a síntese dos conteúdos sob exame.

A Universalidade Filosófica Marxiana

Para retomarmos a expressão marxiana de 1837, onde dizia em uma carta a seu pai que chegou “ao ponto de buscar a ideia na própria realidade” (MARX apud MÉSZÁROS, 2008MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Boitempo, 2008., p. 98), tal orientação indica a impossibilidade de permanecer nos limites da filosofia enquanto tal. Sem que a filosofia fosse contraposta, Marx foi forçado a adentrar em novas estruturas de totalização abrangentes, que ao mesmo tempo que punham a universalidade como momento necessário, expressava a necessidade de um conhecimento concreto sobre tal universalidade. Não era mais possível permanecer vinculado a especulação filosófica.

Além disto, este passo forçava Marx a resolver o problema da unitariedade teórico-prática. O desenvolvimento da práxis social real, colocava toda e qualquer solução teórica tendo como elemento crucial a sua transitoriedade, sua relatividade — sem qualquer brecha a relativismos — em relação ao desenrolar real da sociabilidade.

A filosofia se direcionava a uma positividade que externa a ela era seu conteúdo, como diz Chasin:

Para Marx, contudo, a aniquilação do pensamento especulativo, é um empreendimento imprescindível. Seu esmagamento é uma das condições para a instauração de um novo saber [...] Dar as costas aos automovimentos da razão e voltar-se para os automovimentos do mundo real, eis o giro marxiano. Calar o pensamento que só fala de si, mesmo quando deseja ardentemente “falar das pedras”, para deixar que as “pedras” falem pela boca da filosofia. Esganar a especulação filosófica que fala pelo mundo, para que o mundo possa falar de si pela voz, assim tornada concreta, da filosofia. (CHASIN, 1988CHASIN, J. (org.) Marx hoje. São Paulo: Ensaio, 1988., p. 44).

Marx ao buscar a ideia no real aponta a qualidade da sua inflexão ontológica. Tal inflexão imputa como necessidade interpretar o mundo até o fim, pois só assim é possível transformar o mundo até o fim. A crítica ontológica como necessidade histórica da revolução. A filosofia não faz a revolução, a filosofia encontra no seio do ser a necessidade histórica da revolução.

A ciência positiva marxiana consiste nesse saber ontologicamente fundado, que determina e rastreia os nexos determinativos do ser social em suas formas históricas particulares. Que encontra os nexos das potencialidades reais operantes na socialidade, que determinam as formas e as tendências de desenvolvimento e socialização dos homens em seu pôr-se enquanto generidade autoconstituída.

Nesse sentido específico, a superação real do capital significa a aposentadoria da produção científica marxiana, sem significar a aposentadoria da impostação filosófico-científica de caráter ontometodológico. Isto deriva, fundamentalmente do sistema de totalização aberto fundado por Marx.

Como nos diz Mészáros

Na verdade, a influência infinitamente incomparável de Marx sobre o conjunto da história dos homens não pode ser separada do fato de que ele tenha redefinido radicalmente a filosofia como um empreendimento coletivo, para o qual muitas gerações contribuem com sua parte, de acordo com os requisitos e potencialidades de sua situação. (Nesse sentido, quando falamos sobre uma reorientação radical de toda a estrutura do conhecimento, enquanto grande empreendimento coletivo, só pode existir marxismo e não “marxismos”. (MÉSZÁROS, 2008MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Boitempo, 2008., p. 100).

Poderia parecer estranho dizer que só existe marxismo, e não marxismos, mas como o próprio Mészáros explica, os marxismos são frutos de especificidades sociopolíticas que se alteram, se reconceptualizam conforme evoluem as condições das quais são produtos históricos. A significação do marxismo enquanto teoria que constitui uma estruturação com uma angulação radicalmente diferente é um fato que deriva da própria impostação ontológica marxiana do ser.

Isto é, a teoria materialista da objetividade não é apenas um componente teórico de Marx, mas uma fundamentação radicalmente nova que ao encontrar os nexos ontológicos do ser social, a prioridade ontológica da objetividade, não pode mais retroceder ao nível da filosofia encastoada em si mesma.

O resumo dessa concepção nos dá Marx,

O ser objetivo [é] o homem real, o homem de carne e osso, que está na terra firme e redonda, aspirando e expirando forças da natureza. [...] Ele age objetivamente, o que não poderia fazer se a objetividade não fosse sua determinação essencial. Ele cria e põe objetos somente porque ele mesmo é criado e posto por objetos, porque é antes de mais nada natureza. No ato de pôr algo, portanto, ele não abandona sua “atividade pura” para produzir um objeto; ao contrário, seu produto objetivo atesta simplesmente sua atividade objetiva, sua atividade enquanto atividade de um ente natural objetivo. [...] Ser material, natural, sensível, ou ter diante de si um objeto material, natural para um terceiro, tudo isso é a mesma coisa. [...] Um ser não objetivo é um não-ser. (MARX apud LUKÁCS, 2007LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2007., p. 189).

A partir dessa determinação fundamental Marx pôde tirar as consequências teóricas desse fato ontológico. A partir disso, não é de se espantar a impossibilidade de Marx de desenvolver essa estrutura abrangente e ao mesmo tempo conseguir desenvolver todas as questões historicamente específicas.

Sobre a base geral de uma ontologia do ser social, a concreção cientifica se operacionaliza, a chave heurística marxiana tomada erroneamente como uma decisão subjetiva, — lembremos de Weber apontando que Marx partiu de uma escolha dentre outras possíveis na análise do surgimento do capitalismo. Assim, claro, Weber traz a questão para o seu campo, discutindo a questão como se a escolha da pesquisa partisse de um juízo de valor e não de uma impostação objetiva concreta sobre o qual o juízo se faz — a partir dessa impostação ontológica precisa, qual seja, a de que os homens se autoproduzem a partir do trabalho e assim produzem também, com mediações sempre mais sociais, suas formas de consciência social.

Nunca é demais relembrar esse ponto, a descoberta do trabalho como categoria fundamental e responsável primária pela autoentificação do gênero humano, em suma, do homem enquanto humanidade posta. Descoberta que se deve a Hegel, mesmo que de forma idealista e travestida de trabalho do Conceito, é fundamental para a superação por Marx tanto do idealismo hegeliano, quanto do sensualismo feuerbachiano.

Para exemplificar, basta-nos relembrar que Hegel só retorna ao debate do Jovem Marx nos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844. Desde 1843, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que Hegel não comparece explicitamente nos textos marxianos. E apenas em 44 é que esse retorno vai se operar.

Marx nos explicita esse motivo ao realizar a síntese de sua impostação filosófica já em início de 46, isto é, a data mais ou menos próxima das Teses ad Feuerbach. Como se segue:

O principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível, não como prática: não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição ao materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo – que, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis [sinnliche Objekte], efetivamente diferenciados dos objetos do pensamento: mas ele não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva [gegenstandliche Tatigkeit]; Razão pela qual ele enxerga, n’essência do cristianismo, apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano, enquanto a prática é apreendida e fixada apenas em sua forma de manifestação judaica, suja. Ele não entende, por isso, o significado da atividade “revolucionária”, “prático-crítica”. (MARX, 2007, p. 533).

Esses defeitos descobertos por Marx não derivam simples e diretamente das três fontes constitutivas do Marxismo, como por muito foi elencado por Lênin. A impostação tem uma profundidade mais acentuada.

Quando Marx, em 44, se confronta com a economia política clássica, ele tem que finalmente discutir a categoria trabalho. E quando se põe a discuti-la — e aqui lembremos que Marx está debatendo a partir da filosofia, não se apropriou ainda do conteúdo da economia política a ponto de formular uma crítica interna — o faz rastreando as determinações fundamentais de tal categoria no seio do próprio ser onde esta categoria se faz presente.

Ele, primariamente, ao se confrontar com a Práxis, a relação sujeito–objeto, não pode se manter nos marcos do materialismo de Feuerbach, em que a objetividade é sempre uma objetividade morta, sem história, contemplativa. Marx tem que retornar a Hegel, e é por isso que a última parte dos Manuscritos econômico-filosóficos de 44 termina com uma discussão com a Fenomenologia do Espírito.

Como podemos ver, Marx irá ressaltar o grande avanço de Hegel:

A grandeza da Phänomenologie de Hegel e do seu resultado final – da dialética, da negatividade como princípio motor e gerador – é, portanto, por uma lado, que Hegel apreende a autogeração do homem como um processo, a objetivação (Vergegenständlichung), como desobjetivação (Entgegenständlichung), como exteriorização e como superação dessa exteriorização; que ele, portanto, apreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem real, como resultado do seu próprio trabalho. (MARX, 2015MARX, Karl. Cadernos de Paris e Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Expressão Popular, 2015., p. 370).

A exaltação da descoberta de Hegel não ocorre por acaso, ela permite Marx fundar a sua sistematização, sua concepção de história, sua ontologia a partir de um solo muito seguro. A descoberta que os homens se autoproduzem sob a mediação do trabalho é a chave para o sistema marxiano.

Não por acaso, é justamente o que permite a crítica ao próprio Hegel, que identifica objetivação [Vergegenständlichung] com alienação [Entfremdung], como diz o próprio Marx:

Toda a história da alienação e de sua reapropriação [aparece como] a história da produção do pensamento abstrato, ou seja, absoluto, do pensamento lógico, especulativo. [...] O que constituía a essência da alienação e que faz da sua superação necessária não é o fato de que o ser humano se objetive desumanamente em oposição a si mesmo, mas que ele se objetive diferenciando-se do pensamento abstrato e em oposição a ele. (MARX, 1962 apud LUKÁCS, 2007LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2007., p. 188).

É assim que Hegel concebe a objetividade em geral como alienação, já que sua filosofia tem como fundamento a alienação real. Desta forma, misticamente Hegel suprime toda objetividade na transcendência5 5 O conceito de Aufhebung é um dos mais difíceis de se traduzir ao português, simplesmente porque não há palavra que consiga expressar seu movimento interno. Aqui escolhemos o termo conforme Mészáros (2008) costuma utilizar, sem nenhum retorno a Kant, o verbo transcender parece uma boa opção de tradução. [Aufhebung] do Espírito Absoluto.

Marx pôde transcender o idealismo objetivo de Hegel, justamente ao conceber o trabalho a partir do par modal; objetivação e exteriorização6 6 Sem entrar na discussão, só apontamos que a questão do significado da objetivação e da exteriorização no quadro teórico-conceitual marxiano, bem como a tradução dessas categorias são objetos de debate do texto de Sérgio Lessa no posfácio do livro de Marx Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos publicado pela Expressão Popular e a posição de Mônica Hallak em sua dissertação com o título A diferença entre as categorias Lebensäusserung, Entäusserung, Veräusserung e Entfremdung nos Manuscritos de 1844 de Karl Marx. . E conceber a alienação em termos negativos, que se põe sob formas específicas, sob relações sociais de produção onde o trabalho é subjugado por seu próprio produto. E que não aparece como autoprodução humana, mas como algo externo e alheio.

Ao equacionar desta forma, foi possível, primariamente, resolver tanto a gênese ontológica, quanto o desenvolvimento da relação sujeito — objeto, tentativa que comparece em Hegel. Concomitantemente, o desenvolvimento histórico da humanidade tornou-se compreensível sem a necessidade de nenhuma esfera teológica em que necessariamente as teleologias da história, as teodiceias tivessem que se fazer presentes.

É autoevidente que essa superação, como já denotamos acima, depende de fatores objetivos e subjetivos. Primeiro, necessita que o trabalho tenha se tornado uma categoria plenamente social, que venha a luz sob essa forma social a partir de uma personificação particular, e que esse “ponto de vista” se faça presente. Ou seja, a teoria marxiana, a ontologia marxiana só é possível pelo sujeito que possui uma potência realmente universal, pela posição do trabalho em antagonismo ao capital que começa a surgir. Em segundo, pela própria filosofia clássica alemã, pelo socialismo utópico francês e pela economia política clássica. Queremos ressaltar aqui, que esse amálgama constitutivo da teoria marxiana, apesar de imprescindível, não é o que realiza o salto fundamental no pensamento de Marx. Sem a descoberta daquela relação fundante do trabalho e da concomitante superação do idealismo e da contemplação materialista não seria possível a teoria marxiana alçar seu patamar teórico-científico.

Lukács aponta essa questão quando diz que:

[...]: já os manuscritos de 1843 revelam, de modo bastante claro, que o materialismo dialético não é de modo algum uma síntese eclética de dialética hegeliana e materialismo feuerbachiano; ao contrário, eles demonstram que a inversão da filosofia hegeliana, a “colocação sob os próprios pés” do que estava de cabeça para baixo, modificou qualitativa e fundamentalmente a dialética enquanto tal. O marxismo não nasce simplesmente da decisão de cancelar a mistificação do “espírito do mundo” e de outros conceitos deste tipo, mas conservando, ao mesmo tempo, o método de Hegel, combinado de modo eclético, no melhor dos casos, com um material recolhido das ciências naturais, com análises econômicas e sociológicas etc. Trata-se, ao contrário, de desenvolver um método fundamentalmente novo, oposto à dialética hegeliana. (LUKÁCS, 2007LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2007., p. 150).

Marx inicia seus passos para a fundação de um sistema novo de totalização, ancorado no proletariado como a classe universal como comparece no próprio texto de 1843. Essa inversão materialista abre a superação não apenas do idealismo hegeliano, mas as diferentes formas de idealismo ao ter em seu seio, são, segundo Lukács (2007LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2007., p. 148) “os princípios fundamentais de uma superação geral e abrangente de qualquer forma de idealismo no plano dos conceitos”.

Essa superação se deve sobretudo ao modo de ser do próprio idealismo, que separa sujeito e predicado e hipostasia as determinações predicativas como se possuíssem existência autônoma. Essa determinação perpassa o idealismo enquanto tal.

Considerações finais

Nos parece claro, dessa forma que Marx não fundou uma antifilosofia, o que significa imediatamente a supressão da universalidade teórica, pois qualquer antifilosofia precisa se manter no nível da particularidade de modo que não podem existir determinações universais, tendo que negar mesmo o caráter de abstrações razoáveis das determinações históricas, assim como o próprio caráter fundante do trabalho.

Não há hierarquização categorial dada a partir de níveis de ser e a análise adentra no acidentado terreno do socio-centrismo, no qual o autoengendramento do ser social a partir de sua própria interioridade se torna absolutamente indiscernível. Já que a natureza é excluída do quadro teórico e com isto qualquer diferenciação e articulação possível do ser social em relação a natureza é desprezado como metafísica.

Isto acarreta problemas que não podem ser nem minimamente tratados em um artigo, podemos apenas assinalar que a perca do sujeito histórico e a transmutação do espírito absoluto em capital como sujeito absoluto que impõe de forma irremediável seus imperativos de modo a suprimir o momento subjetivo da processualidade histórica. A partir desse momento as classes sociais passam a ser uma espécie de autômato, apêndice do capital.

Se reinsere a estrutura como uma cela da qual não se pode fugir e sumido o sujeito histórico real, o capital aparece como o seu próprio coveiro, sem necessidade do proletariado. Sustenta-se, então, a tese de que o capital conduz a sua própria superação por contradições internas7 7 Esse complexo de problemas ainda precisa ser analisado cuidadosamente, partindo da juventude de Lukács, passando pela Escola de Frankfurt e chegando a Wertkritik, pois o sociocentrismo existente em História e consciência de classe parece ser o ponta pé inicial e constitutivo dessas escolas do pensamento. Podemos aqui apenas sinalizar que a WertKritik se insere exatamente neste movimento. Desde Gorz e seu adeus ao proletariado, até Kurz onde afirma que as lutas de classes são aspecto secundário e o movimento do capital é o principal. E ponderando uma identidade entre capital e trabalho, donde o último constituir apenas e tão somente um momento do primeiro. .

Agradecimentos

Agradecemos aos nossos orientadores e amigos Sérgio Lessa, Ivo Tonet e Maria Gabriela Guillen Carias pelos frutíferos debates e pelas polêmicas.

  • 1
    É interessante notar como a Werkritik se utiliza da mesma divisão para avaliar a obra marxiana, em que para autores como Robert Kurz, Anselm Jappe etc. haveria dois Marx, um esotérico e outro exotérico. Um Marx que defenderia uma posição ontológica de trabalho e outro que na maturidade teria abandonado tal concepção por descobrir o automatismo do valor. Essa posição é exposta por Kurz em seu Manifesto contra o trabalho. Um texto que se contrapõe a essa questão é o livro de Sérgio Lessa Trabalho e Proletariado no Capitalismo Contemporâneo.
  • 2
    A tradução poderia ser por Sociedade Civil, já que apenas no modo de produção capitalista a sociedade civil se diferencia do Estado com a alienação do poder político em uma esfera apartada da vida social.
  • 3
    No texto, Marx utiliza atividade judaica como a atividade egoísta que existe na sociedade civil como o Bellum omnium contra omnes.
  • 4
    “alcançar verdades relativas, através das ciências positivas e da soma de seus resultados por meio do pensamento dialético”. A opção pela edição italiana ocorreu apenas pelo fato de estar a mão (ENGELS, 1950ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e il punto d’aproddo della filosofia clássica tedesca. Editori Riuniti: Roma, 1950., p. 24).
  • 5
    O conceito de Aufhebung é um dos mais difíceis de se traduzir ao português, simplesmente porque não há palavra que consiga expressar seu movimento interno. Aqui escolhemos o termo conforme Mészáros (2008)MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Boitempo, 2008. costuma utilizar, sem nenhum retorno a Kant, o verbo transcender parece uma boa opção de tradução.
  • 6
    Sem entrar na discussão, só apontamos que a questão do significado da objetivação e da exteriorização no quadro teórico-conceitual marxiano, bem como a tradução dessas categorias são objetos de debate do texto de Sérgio Lessa no posfácio do livro de Marx Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos publicado pela Expressão Popular e a posição de Mônica Hallak em sua dissertação com o título A diferença entre as categorias Lebensäusserung, Entäusserung, Veräusserung e Entfremdung nos Manuscritos de 1844 de Karl Marx.
  • 7
    Esse complexo de problemas ainda precisa ser analisado cuidadosamente, partindo da juventude de Lukács, passando pela Escola de Frankfurt e chegando a Wertkritik, pois o sociocentrismo existente em História e consciência de classe parece ser o ponta pé inicial e constitutivo dessas escolas do pensamento. Podemos aqui apenas sinalizar que a WertKritik se insere exatamente neste movimento. Desde Gorz e seu adeus ao proletariado, até Kurz onde afirma que as lutas de classes são aspecto secundário e o movimento do capital é o principal. E ponderando uma identidade entre capital e trabalho, donde o último constituir apenas e tão somente um momento do primeiro.
  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimos dos autores.

Referências

  • CHASIN, J. (org.) Marx hoje São Paulo: Ensaio, 1988.
  • ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e il punto d’aproddo della filosofia clássica tedesca. Editori Riuniti: Roma, 1950.
  • LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
  • MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • MARX, K. ENGELS, F. A Ideologia Alemã São Paulo: Boitempo, 2007.
  • MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • MARX, Karl. Cadernos de Paris e Manuscritos Econômico-Filosóficos São Paulo: Expressão Popular, 2015.
  • MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Boitempo, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    04 Mar 2022
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