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Armadilha da identidade e crítica ao empreendedorismo social: a exploração da opressão

Resumo:

Objetiva-se refletir sobre como o desdobramento das questões identitárias encontrou terreno fértil para difusão social ao ser combinado com a ideologia do empreendedorismo, como se a solução para as opressões passasse pela disseminação de um pretenso espírito empreendedor como meio de inclusão das minorias sociais que historicamente têm tido dificuldades para vender e reproduzir sua força de trabalho. Tais práticas culminaram o chamado empreendedorismo social que engloba variantes como empreendedorismo negro, na favela, feminino, entre outros e que vem sendo aludido por setores progressistas como uma ação inclusiva e de combate ao preconceito. Dentre as reflexões, demonstra-se que se trata da expressão da conjugação eficaz do capital ao se valer da opressão constituída historicamente para ampliar a exploração e alerta-se, que desconsiderar as condições materiais de existência, ocultando a ampliação da exploração dessas populações, pode se tornar uma armadilha que amplia a opressão, eis a armadilha da identidade.

Palavras-chave:
Armadilha da identidade; Crítica ao empreendedorismo; Exploração

Abstract:

The objective is to reflect on how the unfolding of identity issues found fertile ground for social diffusion when combined with the ideology of entrepreneurship, as if the solution to oppressions passed through the dissemination of an alleged entrepreneurial spirit as a means of inclusion of social minorities that historically have struggled to sell and reproduce their workforce. Such practices culminated the so-called social entrepreneurship that encompasses variants such as black, favela, female entrepreneurship, among others, and which has been alluded by progressive sectors as an inclusive action to combat prejudice. Among the reflections, it is shown that it is the expression of the effective conjugation of capital when using the oppression historically constituted to expand the exploitation and it is warned that disregarding the material conditions of existence, hiding the expansion of the exploitation of these populations, can become a trap that magnifies oppression, that is the mistaken identity.

Keywords:
Mistaken identity; Criticism of entrepreneurship; Exploration

Introdução

No Brasil, o debate acerca da relação entre raça, classe e gênero, conta com formulações formidáveis como em Lélia Gonzalez (2020)GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2020. ou em Clóvis Moura (2019)MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019., ou mesmo em Saffioti (1987)SAFFIOTI, H. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. apenas para mencionar três teóricos de cariz marxista. Há, portanto, uma tradição e igualmente um potencial para subsunção, considerando o estágio atual do desenvolvimento das forças produtivas.

Os desdobramentos recentes da luta de classe trouxeram a necessidade de recuperar e aprofundar o debate entre classe e raça, assim como fez Haider (2019)HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019. em sua obra, quando recusa a santa trindade gênero, raça e classe, sem, contudo negar as identidades como concernentes à subjetividade dos indivíduos. O autor explica que a identidade não pode ser o ponto de partida da análise, pois é, sim, uma mediação necessária para compreender as relações de opressão a partir do modo como as relações de (re)produção conformam a subjetividade.

Social e econômico, portanto, não são esferas separadas da vida, são partes constitutivas das abstrações demandadas para apreender o movimento do real; diante do atual estágio da sociabilidade capitalista, a armadilha da identidade pode tomar a constituição da singularidade isolando-a das demais determinações constitutivas do que Marx (2015)MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2015. nomeia como generidade humana.

Neste artigo, nos interessa particularmente refletir sobre como o desdobramento das questões identitárias encontrou terreno fértil para crescimento alinhado com a ideologia do empreendedorismo, como se a solução para as opressões (racismo, sexismo) passasse pela disseminação de um pretenso espírito empreendedor como meio de inclusão das minorias sociais que historicamente têm tido dificuldades para vender e reproduzir sua força de trabalho.

E, ao mesmo tempo, seria um meio de resolver problemas sociais por meio de iniciativas empreendedoras (COLLAVO, 2018COLLAVO, T. Unpacking social entrepreneurship: exploring the definition chaos and its consequences in England. Journal of Entrepreneurship, Management and Innovation, v. 14, n. 2, p. 19-47, 2018.; DEES, 1998; GARCIA et al., 2021GARCIA, A. S. et al. Produção científica sobre empreendedorismo social e construção de uma agenda para pesquisa futuras: um Estudo Bibliométrico na base Web Of Science (1994-2018). Administração Pública e Gestão Social, v. 13, n. 1, 2021.; GIBBONS; HAZY, 2017GIBBONS, J.; HAZY, J.K. Leading a Large‐Scale Distributed Social Enterprise. Nonprofit Management and Leadership, [s. l.], v. 27, p. 299-316, 2017., LOPES et al., 2020LOPES JR, D. S. et al. Fatores socioeconômicos como motivadores para o empreendedorismo social. Revista de Ciências da Administração, Florianópolis, v. 22, n. 56, p. 75-90, 2020.; LUMPKIN; BACQ; PIDDUCK, 2018LUMPKIN, G. T.; BACQ, S.; PIDDUCK, R. J. Where Change Happens: Community‐Level Phenomena in Social Entrepreneurship Research. Journal of Small Business Management, v. 56, n. 1, p. 24-50, 2018.; SILVA, 2018SILVA, J. R. Empreendedorismo social: redes de relacionamento entre os stakeholders e parcerias para formação de competências pessoais e sociais no Instituto Favela da Paz. Dissertação (Mestrado) – Curso de Administração, Universidade Paulista, São Paulo, 2018.). À guisa de exemplo: o empreendedorismo negro seria parte da solução para o racismo.

Interessante notar que esses autores são aceitos por parte da academia como sendo do campo progressista, ao sustentarem uma distribuição econômica inclusiva, contudo, em analogia ao que aponta Marx (2017)MARX, K. Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo, 2017. sobre os economistas filantropos, esses progressistas” do empreendedorismo social, terminam sendo mais burgueses que outros, como exporemos. Assim, nosso objetivo consiste em elaborar uma crítica acerca da ideologia do empreendedorismo (FERRAZ, 2021FERRAZ, J. M. Para além da prática empreendedora no capitalismo brasileiro. São Paulo:Almedina, 2021.), sobre o que vem sendo chamado empreendedorismo social (SILVA, 2018SILVA, J. R. Empreendedorismo social: redes de relacionamento entre os stakeholders e parcerias para formação de competências pessoais e sociais no Instituto Favela da Paz. Dissertação (Mestrado) – Curso de Administração, Universidade Paulista, São Paulo, 2018.; VALE, 2014VALE, G. M. V. Empreendedorismo, marginalidade e estratificação social. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 54, n. 3, p. 310-321, 2014.; GRIFFITHS; GUNDRY; KICKUL, 2013GRIFFITHS, M. D.; GUNDRY, L. K.; KICKUL, J. R. The socio‐political, economic, and cultural determinants of social entrepreneurship activity: An empirical examination. Journal of Small Business and Enterprise Development, v. 20, n. 2, p. 341-357, 2013.; NAUDÉ, 2011NAUDÉ, W. Entrepreneurship is not a binding constraint on growth and development in the poorest countries. World Development, v. 39, n. 1, p. 33-44, 2011.), considerando a armadilha da identidade (HAIDER, 2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.).

Faltam estudos que tratem das questões do trabalho junto às questões identitárias (FERRETTI; SOUZA, 2020FERRETTI, A. S. Z.; SOUZA, E. M. Resistir para existir: compreensão dos discursos sobre gênero e empreendedorismo a partir de uma perspectiva crítica. In: ENAPAD, 64, 2020, evento on-line. Anais ..., 2020. p. 1-16.; MARLOW; MARTINEZ, 2018), especialmente diante do quadro da crescente pauperização do trabalho (ANTUNES, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.) como movimento em consonância com as chamadas políticas neoliberais (SAAD FILHO, 2015), que apresentam o empreendedorismo como sendo uma das alternativas, senão a única, para os problemas econômico-sociais destes tempos (FERRAZ; FERRAZ, 2021FERRAZ, J. M.; FERRAZ, D. L. S. Do espírito do capitalismo ao espírito empreendedor: a consolidação das ideias acerca da prática empreendedora numa abordagem histórico-materialista. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/83811. Acesso em: 11 jan. 2022.
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), por isso, precisamos fazer a crítica, colocando a opressão e a exploração dinamizada em uma abordagem histórico-materialista. Ademais, o fomento ao empreendedorismo social vem sendo ampliado, sobretudo nos países periféricos, mas trata-se de categoria arbitrária (CUNHA, 2010CUNHA, E. P. Marx e a organização como abstração arbitrária. In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS DA ANPAD, 6., 2010, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis, p. 1-7, 2010.), que mais esconde do que explica, devemos, portanto, examiná-lo criticamente.

Para realizarmos o objetivo anunciado nos valemos de uma análise imanente (CHASIN, 2009CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.) de artigos e livros em busca de apreender como essas pesquisas explicam a relação entre empreendedorismo social e questões identitárias. Para isso, o artigo está organizado da seguinte maneira, após essa introdução apresentamos a discussão acerca da armadilha da identidade e na sequência discorremos acerca da crítica ao empreendedorismo social e por fim, expomos as reflexões gerais nas considerações finais.

A armadilha da identidade diante da diversidade na classe trabalhadora

Partamos de uma definição inicial de identidade como “a formação de múltiplas formas de ser que se sobrepõem e não eliminam uma ou outra e que são determinadas constantemente pelas relações sociais” (SALVAGNI, 2020SALVAGNI, J. As caminhoneiras: uma carona nas discussões de gênero, trabalho e identidade. Cadernos EBAPE. BR, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 572-582, 2020., p. 575). Ou, como Haider (2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019., p. 45) salienta, “identidade é um fenômeno real: ela corresponde ao modo que o Estado nos divide em indivíduos, e ao modo que formamos nossa individualidade em resposta a uma ampla gama de relações sociais”. Tanto Salvagni quanto Haider tomam caminhos particulares para denotar o aspecto social que engendra a identidade, o que nos possibilita perceber que o modo como se dão as relações sociais entre os indivíduos age sobre o ser social e sobre a subjetividade de cada um (FERRAZ, 2019FERRAZ, D. L. S. Sequestro da Subjetividade: Revisitar o Conceito e Apreender o Real. REAd: Revista Eletrônica de Administração, Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 238-268, 2019.).

A formação da subjetividade como uma relação social dialética cujo momento preponderante é dado pela objetividade — pelas condições concretas para viver — já foi apontada por Marx (2013)MARX, K. O capital: crítica da economia política, livro 1, o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. e por Lukács (2010)LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo, 2010.. Na sociabilidade capitalista, o mercado é meio socializador onde as pessoas compram e vendem as mercadorias necessárias para reproduzir sua existência. É por meio dessas múltiplas e complexas relações que nossa subjetividade vai sendo engendrada, feita e refeita constantemente, de modo que os preconceitos e as opressões “entram na conta” das trocas realizadas. É desse modo que surgem as políticas identitárias, formadas por grupos de pessoas que têm sido oprimidas e igualmente vem sendo os indivíduos mais pauperizados nas relações de trabalho (SAFIOTTI, 1987).

Porém, o que tem ocorrido, conforme Haider (2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019., p. 47), é o esvaziamento das pautas identitárias que se afastam das questões essenciais e colocam o ideal do homem branco heterossexual burguês para preencher o vazio, “codificando as demandas que vêm de grupos marginalizados ou subordinados como política identitária, a identidade branca masculina é consagrada com o status de neutra, geral e universal. Sabemos que isso não é verdade”.

A opressão, desse modo, precisa ser tratada considerando a exploração (HAIDER, 2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.; SAFIOTTI, 1987), pois opressões não são coisas dadas, são construções históricas, que têm sido reforçadas para ampliar a exploração e dividir o movimento dos/as trabalhadores/as, ao pinçar a identidade em um plano abstratamente individual, desconsiderando as relações sociais que produzem o preconceito e a opressão.

O paradigma da identidade reduz a política a quem você é como indivíduo e a ganhar reconhecimento como indivíduo, em vez de ser baseada no seu pertencimento a uma coletividade e na luta coletiva contra uma estrutura social opressora. Como resultado, a política identitária paradoxalmente acaba reforçando as próprias normas que se propõe a criticar (HAIDER, 2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019., p. 49-50).

Quando a afirmação das identidades se torna centrada na individualidade e na subjetividade, apartada da estrutura econômica-social que engendra essa identidade, como se uma identidade (negra, LGBT1 1 Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros (transexual e travesti). , branco, heterossexual), fosse coisa dada acima dos condicionantes materiais da sociedade hodierna, temos a Armadilha da Identidade (Haider, 2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.). Haider (2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019., p. 45) assinala: “[...] não aceito a divina trindade da ‘raça, gênero e classe’ como categorias identitárias. Essa ideia de Espírito Santo da Identidade, que ganha três formas divinas consubstanciais, não tem lugar na análise materialista”. Para ele, é por meio da historicidade que é possível superar as noções individualistas que isolam classe, gênero ou raça, abstraindo-as e cindindo-as, assim, das condições que as produziram. As relações capitalistas de produção — cuja fonte de sobrevivência é a exploração da força de trabalho — não definem os indivíduos e sua identidade, mas formam a estrutura que apresenta os limites na constituição de sua subjetividade. A classe trabalhadora, nesse sentido, é formada pela diversidade de indivíduos com suas singularidades.

Considerando o caráter diverso e heterogêneo da classe trabalhadora é necessário compreender a diversidade no interior da classe. A complexidade da reprodução do capital subsome igualmente relações de poder que antecedem o modo capitalista para criar hierarquias e abrir barreiras entre explorados e oprimidos. Com isso, as opressões que atravessam a classe trabalhadora: o patriarcado, o machismo, as questões raciais, a família heteronormativa se tornam pontos de afastamento e não de convergência na luta contra a desumanização provocada pelo estranhamento. (FERRAZ; FERRAZ, 2021FERRAZ, J. M.; FERRAZ, D. L. S. Do espírito do capitalismo ao espírito empreendedor: a consolidação das ideias acerca da prática empreendedora numa abordagem histórico-materialista. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/83811. Acesso em: 11 jan. 2022.
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, p. 252).

Por outro lado, a representatividade — enquanto possibilidade de se ver nas esferas socialmente relevantes — tem oferecido um pouco de alento a esses grupos, dada a marginalização das minorias, “a rejeição e o sofrimento psíquico em casa, no trabalho e na vida pública, que faz com que esses grupos enxerguem na apropriação das pautas por reconhecimento pelo mercado uma possibilidade de reduzir o impacto subjetivo do preconceito” (GOIS; FERRAZ, 2021GOIS, P.; FERRAZ, J. M. Introdução ao pinkwashing: Representatividade e marcas engajadas. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 88-103, 1 jul. 2021., p. 96), o que para Schulman (2016), não passa de um paliativo, incapaz de superar a condição de opressão. De modo que a política de identidade vai sendo paulatinamente despolitizada e, igualmente, mercantilizada.

Uma pesquisa realizada pela Edelman Trust e Barometer — consultoria em relações públicas e marketing —, que demonstra que 97% dos consumidores consultados/as (brasileiros/as, inclusive) anseiam por marcas mais engajadas (MONTESANTI, 2020MONTESANTI, B. Brasileiros esperam marcas mais engajadas, aponta levantamento. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 nov. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/11/brasileiros-esperam-marcas-mais-engajadas-aponta-levantamento.shtml. Acesso em: 04 jan. 2021.
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), ou seja, há uma demanda mercadológica para as questões sociais, que como em todo mercado, oscilará de acordo com a oferta e demanda.

“Ademais, se a inclusão e a aceitação se desse apenas para quem consegue comprar ou vender esse ou aquele produto (inclusive a própria força de trabalho), não seria os indivíduos/grupos que estariam sendo aceitos, mas o seu dinheiro” (GOIS; FERRAZ, 2021GOIS, P.; FERRAZ, J. M. Introdução ao pinkwashing: Representatividade e marcas engajadas. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 88-103, 1 jul. 2021., p. 96). Assim, à lógica da produção capitalista condiciona os termos do engajamento em questões sociais e assim oculta as contradições, esconde a sociedade patriarcal, racista e preconceituosa que aceita, tolera (HAIDER, 2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.), como se a diferença fosse um problema e não exatamente o que nos torna únicos.

Em Marx (2013)MARX, K. O capital: crítica da economia política, livro 1, o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., há a explanação da diferença substantiva entre trabalho e força de trabalho, isto é, há a capacidade humana de transformar a natureza – transformando a si mesmo no processo – para suprir suas necessidades do estômago ou da imaginação; enquanto há, no capitalismo, a venda dessa capacidade de trabalhar, o que Marx nomeou força de trabalho e marca seu avanço genial em relação aos economistas políticos de seu tempo (WELLEN, 2008WELLEN, H. A. R. Contribuição à crítica da ‘economia solidária’. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 11, n. 1, p. 105-115, 2008.). Tal distinção entre trabalho e força de trabalho é essencial, pois do ponto de vista da contribuição produtiva, todos os indivíduos podem ser igualados como meios de produção, enquanto do ponto de vista da venda da força de trabalho, não. Safiotti (1987), a partir de Marx, nos lembra que o valor da força de trabalho é socialmente determinado, é por isso que homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras têm salários diferentes mesmo realizando a mesma atividade laboral.

A opressão consiste na desumanização do outro, que é visto como inferior, como coisa, como é costumaz na lógica da sociedade capitalista. Opressão, portanto, não se trata apenas de preconceito, mas de um efeito real que impacta na produção da vida cotidiana, e que se eleva a partir do modo como a dinâmica de produção de valor engendra as diferenças entre indivíduos enquanto mercadoria força de trabalho, por isso mulheres negras ganham menos que homens brancos, como supramencionado. Temos com isso que um horizonte emancipatório descolado das condições econômicas de (re)produção da vida pode ter um efeito oposto e intensificar a pauperização dos grupos que defende incluir, concordando com Haider (2019)HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019..

É importante destacar, seguindo Gonzalez (2020)GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2020., Moura (2019)MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019., Haider (2019)HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019., Davis (2018), Safiotti (1987), que há uma simbiose entre opressão e exploração, não sendo possível estabelecer uma hierarquia, tampouco desconsiderar qualquer um dos aspectos no exame das condições contraditórias, a grande dificuldade nessa crítica é que a existência entre opressão e exploração não é harmônica e nem pacifica e o capital tem se valido desses conflitos para pautar as disputas políticas e mercantilizar a luta por emancipação. E tem funcionado.

Contribuição à crítica do empreendedorismo social

O termo empreendedorismo tem sido difundido à exaustão nas últimas décadas, um de seus derivados, o chamado empreendedorismo social, ganha força na década de 1990 (COLLAVO, 2018COLLAVO, T. Unpacking social entrepreneurship: exploring the definition chaos and its consequences in England. Journal of Entrepreneurship, Management and Innovation, v. 14, n. 2, p. 19-47, 2018.; LUMPKIN; BACQ; PIDDUCK, 2018LUMPKIN, G. T.; BACQ, S.; PIDDUCK, R. J. Where Change Happens: Community‐Level Phenomena in Social Entrepreneurship Research. Journal of Small Business Management, v. 56, n. 1, p. 24-50, 2018.), e se apresenta como sendo uma “alternativa pela busca de resolução de demandas, despontando a partir de iniciativas que prezam pela inclusão social e valorização de pessoas e atividades que foram negligenciadas pelo mercado e Estado” (LOPES et al., 2020LOPES JR, D. S. et al. Fatores socioeconômicos como motivadores para o empreendedorismo social. Revista de Ciências da Administração, Florianópolis, v. 22, n. 56, p. 75-90, 2020., p. 76).

Podemos observar o discurso da política neoliberal nas entrelinhas, que avança sobre as minorias sociais, sob a justificativa de solução para problemas sociais, isto é, hipoteticamente visando o ganho coletivo (GARCIA et al., 2020), admite-se o lucro, mas ele aparentemente não seria a finalidade da ação. Com isso, aceita-se que exista uma profunda desigualdade econômico-social entre brancos e negros, por exemplo, que poderia ser mitigada com iniciativas empreendedoras sob medida para cada opressão.

Vamos analisar se há, de fato, alguma diferença e entre o empreendedorismo e sua versão social antes de avançar sobre opressão e exploração. O Quadro 1, adaptado a partir de Silva (2018)SILVA, J. R. Empreendedorismo social: redes de relacionamento entre os stakeholders e parcerias para formação de competências pessoais e sociais no Instituto Favela da Paz. Dissertação (Mestrado) – Curso de Administração, Universidade Paulista, São Paulo, 2018., apresenta um resumo dos elementos que distinguiriam o chamado empreendedorismo [privado] do empreendedorismo social, o autor argumenta que o segundo excede o primeiro, na medida em que pode unir negócios lucrativos com um impacto positivo na sociedade. Seria um modelo de negócio híbrido (SMACHYLO; KHALINA; KYLNYTSKA, 2018SMACHYLO, V.; KHALINA, V.; KYLNYTSKA, Y. Development of the social entrepreneurship in Ukraine as an innovative form of the business. Marketing and Management of Innovations, n. 1, p. 235-246, 2018. https://doi.org/10.21272/mmi.2018.1-17.
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). Tomaremos, linha por linha, a análise das alegações.

Quadro 1
- Comparativo entre empreendedorismo privado e empreendedorismo social

Comecemos pela primeira linha: alguém dentre os empreendedores (privados) afirmaria que seu negócio é individual? Certamente responderia que não, uma vez que com a sua empresa ele promove empregos, atende às necessidades dos clientes e cria soluções. A alusão ao caráter individual, portanto, se dá quanto à apropriação do lucro, por se dar privadamente, mas a realização da produção é social, mesmo para o empreendedor privado. Então a não ser que o empreendedor social distribua seus lucros para os/as trabalhadores/as envolvidas na produção, sua apropriação é igualmente individual.

Sobre o foco (na segunda linha), mesmo os empreendedores sociais competem, e por isso, são levados a buscar um diferencial competitivo, mesmo que se destine a uma prestação de serviço coletiva.

Sobre o lucro (terceira linha), há controvérsias. À guisa de exemplo, há ideólogos da burguesia que advogam por um Capitalismo de Valor Compartilhado (CVC), relacionando lucro com questões sociais, sendo esse o caminho para o enfrentamento da crise atual (PORTER; KRAMER, 2011PORTER, M. E.; KRAMER, M. R. The Big Idea: Creating Shared Value. How to reinvent capitalism—and unleash a wave of innovation and growth. Harvard Business Review, Cambridge, v. 89, n. 1-2, 2011.), dentre as praticantes desse CVC, está a Nestlé (2021, tradução nossa), gigante capitalista multinacional do segmento de alimentação, que afirma:

Acreditamos que nossa empresa terá sucesso no longo prazo, criando valor, tanto para nossos acionistas quanto para a sociedade. Chamamos essa abordagem de Criação de Valor Compartilhado (CVC). CVC é o princípio de como fazemos negócios. Nosso impacto positivo na sociedade se concentra em possibilitar vidas mais saudáveis e felizes para indivíduos e famílias, em ajudar no desenvolvimento de comunidades prósperas e resilientes e em administrar os recursos naturais do planeta para as gerações futuras, com um foco particular na água. Essas áreas de impacto estão interligadas e estão firmemente incorporadas ao nosso objetivo empresarial: melhorar a qualidade de vida e contribuir para um futuro mais saudável.

Em outro exemplo, Collins e Porras (2020)COLLINS, J.; PORRAS, J. I. Feitas para durar: práticas bem-sucedidas de empresas visionárias. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020., na mesma linha, afirmam que empresas visionárias não são movidas à lucro, mas por uma ideologia forte. Podemos sugerir que mesmo os empreendedores privados podem ter outros indicadores que não apenas o lucro, enquanto não é possível que os empreendedores sociais se mantenham caso não aufiram lucro.

Quem defende o empreendedorismo como saída para a crise, em especial o empreendedorismo social sustenta que este tem, nas ações coletivas e nos interesses sociais, sua grande diferença, enquanto no empreendedorismo privado, o individualismo e os interesses particulares são prevalecentes, mas nem por isso aquele pode ser explicado como filantropia ou assistencialismo (SILVA, 2018SILVA, J. R. Empreendedorismo social: redes de relacionamento entre os stakeholders e parcerias para formação de competências pessoais e sociais no Instituto Favela da Paz. Dissertação (Mestrado) – Curso de Administração, Universidade Paulista, São Paulo, 2018.). Porém, os grandes capitalistas se apresentam como operadores sociais da justiça e da riqueza coletiva, o que enfraquece a defesa dos virtuosos empreendedores sociais. A justiça social, portanto, aludida pelo empreendedorismo social, mas também pelos empreendedores não-sociais (o que seria um paradoxo), não os distingue, mas os iguala, ao menos no plano aparente, uma vez que o que guiaria todos os negócios seria um mundo socialmente melhor e mais justo. Nesse sentido, Cunha (2016CUNHA, E. P. Ensino da administração política e consciência de classe. Revista Brasileira de Administração Política, Salvador, v. 9, n. 2, 2016., p. 37) arremata:

E mesmo as mais recentes investidas do empreendedorismo, mesmo daquele que quer ser “social”, não se coloca fora dessa primeira tendência dado que paga tributo ao ideário gerencial proveniente também das corporações (técnicas de mercado, competição, individualismo etc.), além – o que é mais importante – de ser uma renovação do ideário do pequeno proprietário em tempos de crise da sociabilidade do capital.

Outro ponto similar, seria no aspecto humanístico do empreendedorismo social, por isso Paiva Jr. e Guerra (2010, p. 270) acreditam que os críticos do empreendedorismo social precisariam ter uma perspectiva mais ampla, pois uma visão curta “fragiliza sua potencialidade no sentido de contribuir para o desenvolvimento local e para a emancipação de grupos sociais periféricos”, perdendo, assim, a oportunidade de promover o desenvolvimento social por meio de um empreendedorismo humanizado, ressignificando as relações e os limites entre público e privado, e criando um ambiente de cidadania e cooperação. Enquanto Vale (2014)VALE, G. M. V. Empreendedorismo, marginalidade e estratificação social. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 54, n. 3, p. 310-321, 2014. explica que o empreendedorismo social seria uma possibilidade para as pessoas que não conseguiram seguir carreiras tradicionais ou mesmo que não puderam ascender economicamente, conseguir mobilidade social.

Empreendedores sociais seriam os agentes que unem paixão com a missão social associada com inovação e disciplina (DEES, 1998), é por isso que Griffiths, Gundry e Kickul (2013, tradução nossa) afirmam, que “em vez de se concentrar exclusivamente na criação de valor financeiro, o empreendedorismo social centra-se na criação de valor social para membros marginalizados da sociedade”, isto é, reforça-se do argumento da inclusão pela atividade virtuosa desses indivíduos, de modo que já pressupõem silenciosamente que eles ganharão pouco dinheiro, mas o que importa é que estarão praticando o bem e que estarão incluídos no maravilhoso mundo da extração do valor.

Essa tal missão social e os grupos socialmente minoritários, como na definição de Gibbons e Hazy (2017)GIBBONS, J.; HAZY, J.K. Leading a Large‐Scale Distributed Social Enterprise. Nonprofit Management and Leadership, [s. l.], v. 27, p. 299-316, 2017., que salientam a importância de transmitir confiança para integrar os excluídos, não é mais do que uma ideologia ainda mais perversa que a da prática empreendedora (FERRAZ; FERRAZ, 2021FERRAZ, J. M.; FERRAZ, D. L. S. Do espírito do capitalismo ao espírito empreendedor: a consolidação das ideias acerca da prática empreendedora numa abordagem histórico-materialista. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/83811. Acesso em: 11 jan. 2022.
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), que mobiliza a exploração de negros e negras, mulheres em geral, moradores de favela, para criar um ciclo de conformação e precarização devastador. Os empreendedores sociais (empreendedorismo negro, empreendedorismo feminino etc.) seriam os agentes do capital — o mercado — agindo para remediar as falhas do Estado, como? Transformando a precariedade em negócio.

Finalmente, quanto à última linha referente ao empreendedorismo social do Quadro 1, que aponta que Visa resgatar pessoas da situação de risco social e promovê-las para gerar capital social, emancipação e cidadania, temos a própria definição do que seria o empreendedorismo social, e o ponto nevrálgico no que concerne à sua efetividade, pois se tirarmos empreendedorismo social e colocarmos Estado a explicação também serviria.

Espinosa-Cristia e Bernasconi (2020)ESPINOSA-CRISTIA, J. F.; BERNASCONI, O. Nem Política, nem Sociedade: Questionando a Justificativa de Políticas Públicas Pró-Empreendedorismo no Chile. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 60, n. 2, 131-143, 2020., analisando a situação do Chile com sua política neoliberal, demonstram como o empreendedorismo tem sido um discurso demandado para perpetuação do neoliberalismo e do autoritarismo que lhe é característico. Fica ocultado o caráter ideológico, contrariando o que Garcia et al. (2020) sustentam acerca da defesa do empreendedorismo como saída econômica para a crise que se apoia no desemprego e da desigualdade social como plano político.

Cria-se um ciclo vicioso de desalento em que o empreendedorismo pari passu com o neoliberalismo se apresenta como o caminho para o crescimento econômico (CARMO et al., 2021CARMO, L. J. O. et al. Empreendedorismo como uma Ideologia Neoliberal. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 18-31, 2021.). E é por se manter restrito à lógica de produção capitalista que o empreendedorismo social parece ser acometido do mesmo limite que a economia solidária: transforma valor de troca em solidariedade e qualidades solidárias em mercadoria (WELLEN, 2008WELLEN, H. A. R. Contribuição à crítica da ‘economia solidária’. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 11, n. 1, p. 105-115, 2008.).

Uma pequena parte dos pesquisadores da temática vem alertando para os efeitos nocivos do empreendedorismo (inclusive o social) no mundo. Atems e Shand (2018)ATEMS, B.; SHAND, G. An empirical analysis of the relationship between entrepreneurship and income inequality. Small Business Economics, Bloomington, v. 51, n. 4, p. 905-922, 2018. destacaram, com base em dados dos Estados Unidos, que há uma relação entre empreendedorismo e desigualdade de renda. Enquanto Doran et al. (2018)DORAN, J.; MCCARTHY, N.; O’CONNOR, M. The role of entrepreneurship in stimulating economic growth in developed and developing countries. Cogent Economics & Finance, [s. l.], v. 6, n. 1, 2018., que analisaram dados de mais de cinquenta países e encontraram que, em países com rendas mais baixas, o empreendedorismo intensifica a pobreza. Ou seja, em regiões onde as condições para reproduzir a existência são mais severas, o empreendedorismo não gera nem o “crescimento econômico” que promete (ALVAREZ; BARNEY, 2014ALVAREZ, S. A.; BARNEY, J. B. Entrepreneurial opportunities and poverty alleviation. Entrepreneurship Theory and Practice, v. 38, n. 1, p. 159-184, 2014.), nem contribui para a melhoria das condições de vida (ANDERSON; OBENG, 2017ANDERSON, A. R.; OBENG, B. A. Enterprise as socially situated in a rural poor fishing community. Journal of Rural Studies, [s. l.], v. 49, p. 23-31, 2017.). E ainda que tentem justificar tal tendência por conta das péssimas condições para empreender (SARKAR; RUFIN; HAUGTEN, 2018), a situação é bem mais complexa, pois como Matos e Hall (2019) apontaram, empreendimentos relacionados com redução da pobreza, não tem sido capaz de se configurarem em um negócio que gere lucro, trata-se de em um ciclo vicioso.

Fica a questão: se o empreendedorismo tem efeitos distintos em resposta à região e ambiente onde está inserido; se as minorias sociais são também os grupos mais explorados nas relações capitalistas de produção, a tendência é que não seja efetivo no caso dos países com economia dependente, como é o caso do Brasil, assim, qual o motivo que leva a ideologia do empreendedorismo a continuar se propagando como tábua de salvação?

O empreendedorismo — deem a ele o nome de social ou de privado —, tem nas relações capitalistas sua base para produzir e quem o sustenta crê que é o instrumento necessário para reduzir (e não acabar) as iniquidades hodiernas. Parte dessa lógica é inerente ao chamado espírito empreendedor, que é a representação da subjetividade capitalista, especialmente nas últimas décadas, quando o empreendedorismo é defendido como se fosse a tábua de salvação contra a miséria, e não parte da produção da exploração. (FERRAZ; FERRAZ, 2021FERRAZ, J. M.; FERRAZ, D. L. S. Do espírito do capitalismo ao espírito empreendedor: a consolidação das ideias acerca da prática empreendedora numa abordagem histórico-materialista. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/83811. Acesso em: 11 jan. 2022.
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).

Diferente do que sustentam Ferretti e Souza (2020)FERRETTI, A. S. Z.; SOUZA, E. M. Resistir para existir: compreensão dos discursos sobre gênero e empreendedorismo a partir de uma perspectiva crítica. In: ENAPAD, 64, 2020, evento on-line. Anais ..., 2020. p. 1-16., o problema da junção entre empreendedorismo e gênero [e adicionaríamos, raça], não decorre de um viés econômico apartado do social; ou de crítica os discursos sobre uma matriz hegemônica (homem branco heterossexual) para criar a imagem de sucesso que seria resolvido com mulheres empreendedoras radicais, ambos elementos são manifestações do mesmo movimento: a opressão sendo demandada para possibilitar a ampliação da exploração, e o empreendedorismo pode ser um meio bastante eficiente para isso. Ademais, separar o econômico do social só seria possível abstraindo a realidade. Assim, resolver a opressão apenas no plano aparente, no nível do discurso, se resume apenas a tolerar e aceitar as diferenças, sem alterar as estruturas sociais que produzem as relações de opressão (HAIDER, 2019HAIDER, A. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.). “No lugar das diferenças serem aceitas como parte constitutiva da pluralidade da vida em sociedade, uma igualdade apenas formal é encetada nos discursos acerca da inclusão, conciliando os interesses a partir das demandas do mercado.” (GOIS; FERRAZ, 2021GOIS, P.; FERRAZ, J. M. Introdução ao pinkwashing: Representatividade e marcas engajadas. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 88-103, 1 jul. 2021., P. 91).

Do começo ao fim, a lógica subjacente à prática empreendedora não se distingue substancialmente da moral relatada em Adam Smith (1983)SMITH, A. A riqueza das nações investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983., quando examina o surgimento da sociedade capitalista, e postula o individualismo como elo social. Em outras palavras, a filosofia liberal é base sobre a qual se erguem as noções de sociedade, de riqueza e de humanidade dos filantropos do empreendedorismo. Portanto, ainda que fosse genuíno o anseio dos reformistas por desenvolvimento social, o capital, enquanto força social, permanece se apoderando de homens e mulheres que precisam vender sua força de trabalho, das suas dores, das suas cores e da sua condição; mais capitalismo, desse modo, não pode ser solução para os problemas que o capitalismo criou. Só é possível almejar uma transformação social, em termos práticos (MARX, 2015MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2015.), a partir do que engendra as iniquidades, portanto, reduzir ou gerenciar a opressão se diferencia qualitativamente de acabar com ela. A luta contra racismo deve se dar ombreada com a luta contra o capitalismo.

Considerações finais

Este ensaio teve por objetivo elaborar uma crítica acerca da ideologia do empreendedorismo, considerando a armadilha da identidade, sobre o que vem sendo chamado empreendedorismo social. Buscamos situar dois grandes temas que costumam ser tratados separadamente: a questão identitária e o empreendedorismo social. Dentre as principais conclusões apontamos o paradoxo da identidade, pois a opressão existe, contudo, sua manutenção é perpassada pelo modo como a sociabilidade capitalista produz seus indivíduos: mercantilizando objetos, serviços e afetos. Então há uma questão identitária, mas ela não se resume ao mérito mercantil do indivíduo. E nesse caminho, o empreendedorismo social tem sido apresentado como um caminho um meio de inclusão e de superação das opressões de raça, gênero, de orientação sexual, entre outras.

A inclusão das minorias sociais na sociedade via empreendedorismo social conjuga as esferas do reconhecimento e a reprodução material da existência, por isso buscamos demonstrar que se trata da expressão da conjugação eficaz do capital ao se valer da opressão constituída historicamente para ampliar a exploração. Se o capital depende da sua reprodução e ampliação constante, não exclui ninguém, embora se valha das diferenças nesse processo, assim os grupos marginalizados podem, a partir da lógica individualizante, ser inseridos no mercado apesar do que são, sendo forçosamente aceitos como iguais dada sua capacidade de valorizar o valor, e desiguais, no momento de apropriar da produção social.

A classe trabalhadora é diversa, plural e heterogênea e isso precisa ser considerado. A vida de uma mulher trabalhadora negra e lésbica que mora na periferia não tem qualquer semelhança com um homem trabalhador branco heterossexual da zona sul, exceto em uma questão que é constitutiva do engendramento da existência humana do nosso tempo: ambos, enquanto classe trabalhadora, precisam vender diariamente sua força de trabalho para conseguir adquirir os bens e serviços que demandam para sobreviver, ainda que em condições desiguais. A luta contra opressão, portanto, não pode se dar sem considerar a luta contra exploração.

É nesse contexto que o empreendedorismo social é apresentado como solução para o desemprego estrutural, mas também para a opressão, dando a impressão de que o esforço individual e o sucesso capitalista acabariam com o preconceito, surgindo, assim empreendedorismo negro, feminino, periférico, entre os setores progressistas. O empreendedorismo social é um meio de ampliar a reprodução do capital ao ampliar o contingente de trabalhadores e trabalhadoras que serão inseridos na dinâmica de mercado com o valor de sua força de trabalho abaixo do mínimo necessário, no mesmo movimento em que rebaixa o salário médio da classe. Se defende a justiça social enquanto, na verdade, é um meio que possibilita ao capital ampliar a exploração.

Ademais, vale ressaltar que quando se advoga pelo empreendedorismo social como um instrumento para a redução do impacto desses problemas decorrentes da redução do Estado pela pauta neoliberal, termina-se praticando aquilo que se critica: centralizar o individualismo como solução para problemas que são sociais. A luta contra opressão tem sido cooptada com maestria por aqueles que Fraser (2020)FRASER, N. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. chamou neoliberais progressistas, embora o termo pareça contraditório resume bem a possibilidade de os capitalistas mobilizarem o preconceito, o sofrimento e a opressão para a manutenção do sistema.

O que estamos buscando demonstrar é que capitalismo e emancipação humana são opostos, pois não há capitalismo sem opressão. Na medida em que a luta deixa de ser conduzida pelos grupos sociais que a encapam para serem individualizadas ou terceirizadas ao mercado, a pauta da identidade é esvaziada de sua força transformadora e se converte em uma mercadoria ou apenas um meio que possibilita a ampliação da exploração. Alertamos para o perigo de apoiar a luta contra as opressões sobre a atraente política capitalista de inclusão, sob a ameaça de cairmos na armadilha da identidade — uma vez que não seriam os indivíduos que pautariam a agenda de luta, mas o capital e sua sanha pela reprodução ampliada. Se atentarmos ao quadro mais amplo da sociedade, são exatamente esses grupos que morrem mais pela violência, que perfazem os menores salários e são também os que trazem em seu corpo e sua história a força e a coragem para enfrentar as agruras do capital.

Finalmente, para estudos futuros sugerimos que sejam realizadas pesquisas que analisem na produção de conhecimento e nas relações de trabalho, como o empreendedorismo tem sido defendido, adotado, fomentado englobando classe, gênero e raça, a partir de abordagens histórico-materialistas.

Agradecimentos

Agradeço às demais pesquisadoras/es e às/aos discentes da Rede TraMa (UFRN e UFMG) pelos diálogos, estudos e pesquisas acerca da luta de classes no Brasil e na América Latina.

  • 1
    Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros (transexual e travesti).
  • Agência financiadoraPró-reitoria de Pesquisa da UFRN. Projeto de pesquisa PVE17515-2020: “A especificidade do desenvolvimento econômico dependente no Brasil de pós-1970 em seu liame com o progresso tecnológico”, período de execução: dezembro de 2020 a julho de 2022.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimento da autora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2021
  • Aceito
    12 Dez 2021
  • Revisado
    15 Fev 2022
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