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Prevalência racial e de gênero no perfil de docentes do ensino superior

Resumo:

A partir de uma abordagem interseccional e da análise dos microdados do Censo da Educação Superior, referente ao ano de 2018, este estudo teve por objetivo verificar o perfil racial e de gênero de docentes do magistério superior de instituições públicas e privadas. Para tanto, buscou-se, por meio de testes estatísticos e modelos de análise multivariada, verificar se existe primazia racial ou de gênero, além de prevalência de outros quesitos na ocupação do cargo de docência superior. Constatou-se a existência de disparidades raciais e de gênero na docência superior, sendo prevalentes os docentes brancos e do sexo masculino. Além disso, observaram-se associações significativas em relação à interseção de gênero e raça na ocupação deste espaço. A idade e a atuação profissional e o fato de ser uma instituição pública ou privada condicionaram as chances de homens não brancos e de mulheres em geral atuarem no ensino superior. Esses elementos sustentam a tese de primazia racial e de gênero amplamente discutidas na literatura especializada.

Palavras-chave:
Gênero; Raça; Ensino superior; Interseccionalidade; Assimetrias sociais

Abstract:

From an intersectional approach and the analysis of microdata from the “Censo da Educação Superior” - Census of Higher Education - of 2018, this study aimed to verify higher education professors' racial and gender profiles from public and private institutions. Therefore, we sought, through statistical tests and multivariate analysis models, to verify whether there is a racial or a gender prevalence, as well as other aspects in professional higher education. The existence of racial and gender disparities in higher education was detected, with the prevalence of white and male professors. In addition, significant associations were observed at the intersection of gender and race in this space. Age, professional activity, and being it a public or a private institution conditioned the chances of non-white men and women, in general, of working in higher education. These elements confirm the thesis of racial and gender primacy widely discussed in the specialized literature.

Keywords:
Gender; Race; University education; Intersectionality; Social asymmetries

Introdução

A sociedade brasileira se caracteriza por níveis significativos de desigualdades sociais, sendo que essas assimetrias, presentes em diferentes esferas sociais, resultam de construções sócio-históricas acerca do patriarcado. O patriarcado condicionou as mulheres à condição de subalternidade no mercado de trabalho e, inclusive, no ambiente universitário. Além disso, o campo científico é um espaço de disputa em que são valorizadas a objetividade, abstração, racionalidade, lógica e universalidade, características tradicionalmente associadas ao sexo masculino.

Lado outro, nas análises das desigualdades sociais, a categoria gênero não pode ser considerada homogênea, uma vez que existem assimetrias intragênero, isto é, dentro da categoria mulher, que constituem e condicionam vivências hierarquizadas e em configurações diversas para diferentes mulheres (PASSOS; SOUZA, 2019PASSOS, L.; SOUZA, L. Normas de gênero e a heterogeneidade das mulheres: vivências distintas no mercado de trabalho e nos cuidados. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 21., p. 1-22, 2019, Poços de Caldas. Anais [...]. Poços de Caldas: ABEP, 2019.). Portanto, é impossível um diagnóstico apropriado das assimetrias sociais presentes na sociedade a partir da análise de somente uma variável, de modo isolado, tendo em vista que, a articulação de diferentes marcadores sociais, atuam no ordenamento das estruturas sociais, tais como classe, raça e gênero (BIROLI; MIGUEL, 2015BIROLI, F.; MIGUEL, L. F. Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na reprodução das desigualdades. Mediações-Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 20, n. 2, p. 27-55, 2015.).

Os marcadores sociais de gênero e raça, portanto, são delimitadores de espaços e, por isso, se deve considerar a dimensão espacial das relações raciais e de gênero. Essa espacialização se reflete nas diferentes configurações dos espaços sociais em que se observa a demarcação diferenciada de lugares entre homens e mulheres e/ou brancos e negros, sendo que sobre as mulheres negras incidem os efeitos tanto do racismo quanto do sexismo. A este respeito, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2017)INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das desigualdades de gênero e raça - 1995-2015. Brasília: Ipea, 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca.pdf. Acesso em: 11 nov. 2020.
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indica que, entre 2005 a 2015, a taxa de analfabetismo foi maior entre mulheres negras e homens negros, as taxas de desocupação feminina e a atuação no trabalho doméstico remunerado também foram maiores para as negras, sendo que elas apresentavam maior proporção no emprego doméstico sem carteira assinada, observando-se a manutenção do padrão em que o maior rendimento é percebido pelo homem branco e o menor pela mulher negra (com a mulher branca e o homem negro com a segunda e terceira posições, respectivamente).

Essa realidade também se reflete nas instituições públicas e privadas, as quais têm contribuído como produtoras e reprodutoras de desigualdades raciais através da hierarquização do campo científico, tendo privilegiado os saberes e conhecimentos eurocêntricos. No que tange às organizações públicas, o reconhecimento dessas assimetrias, no âmbito institucional, culminou na promulgação da Lei nº 12.990/2014 que trata da reserva, aos negros, de 20% das vagas em cargos e empregos públicos da Administração Pública Federal (BRASIL, 2014BRASIL. Lei n.º 12.990, de 09 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Brasília, DF: Presidência da República, 2014. Não paginado. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm. Acesso em: 15 nov. 2019.
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).

Entretanto, em que pese a promulgação da Lei de Cotas para concursos públicos representar um avanço na equalização das desigualdades raciais na Administração Pública Federal, sua aplicabilidade não tem sido efetiva para ingresso na carreira docente, posto que a maioria dos editais preveem apenas 01 (uma) vaga, sendo que para aplicação dos 20% previstos na Lei seria necessário a disponibilização de três ou mais vagas (BRASIL, 2014BRASIL. Lei n.º 12.990, de 09 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Brasília, DF: Presidência da República, 2014. Não paginado. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm. Acesso em: 15 nov. 2019.
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).

Cabe destacar que a Lei nº 12.288/2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, traz que é responsabilidade do poder público promover ações que propiciem, aos negros, igualdade de oportunidades de acesso ao mercado de trabalho, inclusive através da efetivação de medidas que fomentem a igualdade nas admissões das repartições públicas e incentive as instituições e empresas privadas a adotarem práticas similares. Para além disso e considerando que as mulheres negras apresentam dupla desvantagem social, de gênero e de raça, o Estatuto estabelece, ainda, que seja assegurado “o princípio de proporcionalidade de gênero entre os beneficiários” (BRASIL, 2010BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Não paginado. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 24 maio 2021.
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). Entretanto, dados da pesquisa de Mello e Resende (2019)MELLO, L.; RESENDE, U. P. Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os. Sociedade e Estado, Brasília, v. 34, n. 1, p. 161-184, 2019. apontam que as universidades não têm sequer aplicado a reserva de vagas prevista na Lei, portanto, pode-se pressupor que a proporcionalidade de gênero também não tem sido adotada.

Diante do exposto, a partir da consideração de gênero e raça como marcadores sociais de desigualdades que definem a posição que os indivíduos ocupam no mercado de trabalho, em especial na docência superior, o presente estudo, de abordagem quali-quantitativa e estratégia exploratório-descritiva, teve por objetivo analisar a prevalência racial e de gênero no perfil dos docentes das Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras, a partir de uma perspectiva interseccional.

Como base de dados foram utilizados os microdados do Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), referente ao ano de 2018, sendo as análises realizadas a partir dos microdados de 271.514 docentes ativos nas Instituição de Ensino Superior (IES), sendo excluídas as informações dos docentes falecidos ou afastados (para qualificação, exercício em outro órgão, para tratamento de saúde ou outros motivos) e de professores com vínculo de visitantes, além das categorias “Docente não quis declarar raça/cor” e ‘não dispõe da informação (Não resposta)” da variável raça/cor (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
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, p. 14).

As variáveis utilizadas se referem ao sexo, raça/cor, escolaridade, idade, categoria administrativa da IES, regime de trabalho, atuação em curso de ensino a distância (EAD), extensão, gestão, graduação presencial, pós-graduação EAD, pós-graduação presencial, curso sequencial, pesquisa e recebimento de bolsa de pesquisa. Cabe sublinhar que a análise dos dados foi realizada no software Stata, versão 14.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos), sendo realizados os seguintes procedimentos estatísticos: análise descritiva, teste do Qui-quadrado e regressão logística, com os resultados apresentados em formato de tabelas (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
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).

A análise estatística exploratória foi utilizada para descrever o perfil demográfico do professor do magistério superior (sexo, raça/cor e idade), a formação acadêmica (escolaridade) e o perfil profissional (categoria administrativa da IES, regime de trabalho e atuação profissional), com as informações sumarizadas e apresentadas em formato de frequência relativa. Além disso, para verificar a existência de associações significativas entre as variáveis estudadas, foi utilizado o teste do Qui-quadrado (χ2) de Pearson (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
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).

Ao passo que, para análise da associação entre as variáveis de interesse, por se tratar de desfecho com quatro categorias (mulher branca e não branca e homem branco e não branco) foi realizada uma regressão logística multinomial (mLogit) a fim de verificar se as variáveis explicativas idade, escolaridade, categoria administrativa da IES e atuação profissional apresentariam poder preditivo em relação à amostra analisada, sendo raça_sexo a variável dependente do modelo Logit. Salienta-se que a regressão logística multinomial foi estimada pelo comando mlogit do Stata, sendo homem branco a categoria de referência na análise (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
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).

O artigo foi estruturado em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais: nas três primeiras seções foram traçadas considerações sobre a teoria interseccional, o caráter sexista e racista do campo científico e de produção de conhecimento e a respeito da aplicabilidade da Lei nº 12.990/2014 em concursos públicos para docentes. Na quarta seção foram apresentados os resultados das análises que evidenciam as assimetrias raciais e de gênero na docência superior brasileira.

Teoria interseccional

A interseccionalidade é uma categoria teórica que tem sido bastante utilizada pelas feministas contemporâneas e que possibilita o entendimento das sobreposições das diferentes formas de subordinação presentes na sociedade. O termo foi cunhado a partir da crítica das feministas negras de que o discurso feminista desconsiderava outros marcadores sociais, a exemplo do recorte racial e da classe, ao contemplar somente a realidade das mulheres brancas e de classe média (ACKER, 2006ACKER, J. Inequality regimes: Gender, class, and race in organizations. Gender & Society, California, v. 20, n. 4, p. 441-464, 2006.).

A este respeito, Lorde (2019)LORDE, A. Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. In: HOLLANDA, H. B. (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. aponta que a invisibilidade da mulher negra na política feminista resulta da concepção errônea da existência de uma universalidade na categoria mulher, considerando apenas as experiências e vivências das mulheres brancas. Por outro lado, a política antirracista desconsiderava a perspectiva do gênero e priorizava somente a questão racial (LORDE, 2019LORDE, A. Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. In: HOLLANDA, H. B. (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.). Portanto, uma vez que a raça é um eixo de poder que impacta, consideravelmente, na invisibilização e marginalização das mulheres negras, as concepções feministas construídas a partir da concepção universal da categoria mulher ignoravam as opressões sociais impostas às mulheres negras.

A partir dessas mesmas considerações, em 1991, o artigo “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color”, de Kimberlé Crenshaw (2002)Crenshaw, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171, 2002., apresentou uma análise crítica sobre a forma como a vivência e as estratégias de enfrentamento às violências eram experienciadas de modo diferente por mulheres negras e brancas, tendo em vista o entrelaçamento de raça e gênero. Para Crenshaw (2002)Crenshaw, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171, 2002.:

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 2002Crenshaw, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171, 2002., p. 177).

A experiência da mulher negra é moldada, coletivamente, por múltiplos sistemas de opressão, tais como pelo patriarcado, pelo racismo, pela exploração de classe (COLLINS, 2017COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 6-17, 2017.). Os vários âmbitos de estruturação da sociedade, bem como os diferentes e dinâmicos cenários relativos às lutas de classe, possibilitam vincular outros marcadores sociais, a exemplo da raça, à construção social do gênero, posto que o entrelaçamento desses marcadores ocasiona o acirramento dos contextos de dominação (SANTOS; OLIVEIRA, 2010SANTOS, S. M. M.; OLIVEIRA, L. Igualdade nas relações de gênero na sociedade do capital: limites, contradições e avanços. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 13, p. 11-19, 2010.). Assim, partindo da consideração que o racismo e o sexismo permanecem condicionando as oportunidades das mulheres negras em ocuparem postos no mercado de trabalho, realidade essa que se repete nas instituições de educação superior enquanto lócus privilegiado de construção e produção da ciência e do conhecimento científico, a teoria interseccional é uma ferramenta indispensável para o entendimento do lugar dessas mulheres no espaço acadêmico.

Gênero e raça no campo científico e de produção de conhecimento

O campo científico, enquanto uma construção humana, não é isento de diferentes formas de opressões e preconceitos, sejam raciais, de classe, nacionalidade, geração, gênero etc. (SILVA; RIBEIRO, 2014SILVA, F. F.; RIBEIRO, P. R. C. Trajetórias de mulheres na ciência: “ser cientista” e “ser mulher”. Ciência & Educação, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 449-466, 2014.), pois “a ciência também é uma construção social e histórica, produto e efeito de relações de poder [...]” (SILVA, 2012SILVA, F. F. Mulheres na ciência: vozes, tempos, lugares e trajetórias. 2012. 147 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde) – Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2012., p. 55). Pode-se acrescentar, ainda, que a dimensão racial, enquanto um eixo de poder estruturante e em associação com o gênero, perpassa a construção e organização do campo científico, ocasionando a marginalização e invisibilização da mulher negra.

Assim, o ambiente universitário foi construído como um espaço de segregação racial, em que é frequente a invisibilidade da mulher negra na docência universitária de instituições de ensino públicas e privadas. A este respeito, Crisóstomo e Reigota (2010)CRISOSTOMO, M. A. S.; REIGOTA, M. A. S. Professoras universitárias negras: trajetórias e narrativas. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, v. 15, n. 2, p. 93-106, 2010. revelam que, de acordo com uma de suas entrevistadas, na faculdade particular em que trabalhava, em Sorocaba/SP, dos 328 docentes, 41,77% eram mulheres e, dentre essas, os autores encontraram somente três negras atuando na docência universitária, ou seja, 0,91% em relação ao quantitativo total. Ao passo que na Universidade Federal de Brasília (UNB), o perfil racial da docência revelou que, dos 2.785 professores da instituição, 7% eram mulheres negras (pretas e pardas), 9,8% homens negros (pretos e pardos), 28% mulheres brancas e 32% homens brancos (SILVA, 2019SILVA, E. C. Trajetória profissional de mulheres negras docentes na Universidade de Brasília (UnB): estratégias e resistências. 2019. 101 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2019.).

Este cenário também foi observado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em que docentes negras e negros correspondiam a somente 18,85% do total de 1.252 professores das duas áreas de conhecimento analisadas, com o quadro docente constituído de 38,58% de professoras brancas e 42,57% de professores brancos (BRITO, 2017BRITO, A. E. C. A balança de Efa: uma análise quantitativa de raça e gênero sobre a inserção de negros e negras no magistério superior da UFBA (2016-2017). Revista Gênero, Niterói, v. 18, n. 1, p. 6-25, 2017.). Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), as docentes negras correspondiam a 5,4% do total de professores da instituição (SILVEIRA, 2020SILVEIRA, T. M. Docências negras no ensino superior: o caso da Universidade Federal de Pelotas. 2020. 100 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2020.) e na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) constituíam apenas 2,3% do universo de 434 docentes (SOARES; SILVA, 2018SOARES, C. B.; SILVA, F. F. Professoras universitárias negras rompendo a fronteira da invisibilidade. In: SEMINÁRIO CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE, 7.; SEMINÁRIO INTERNACIONAL CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE, III.; LUSO-BRASILEIRO EDUCAÇÃO EM SEXUALIDADE, GÊNERO, SAÚDE E SUSTENTABILIDADE, 3, p. 1-8, 2018, Natal. Anais [...]. Natal: UFRN, 2018.).

Os dados apresentados demonstram que gênero e raça, enquanto construções sociais e históricas, condicionam a participação das mulheres negras na docência superior. Neste sentido, dispositivos legais reparativos, a exemplo das Políticas de Ações Afirmativas, em conjunto com outras medidas políticas, despontam como uma das possíveis estratégias para redução das assimetrias raciais nos cargos de docência universitária, concorrendo para o acesso da população negra à carreira docente, via concursos públicos (BRITO, 2017BRITO, A. E. C. A balança de Efa: uma análise quantitativa de raça e gênero sobre a inserção de negros e negras no magistério superior da UFBA (2016-2017). Revista Gênero, Niterói, v. 18, n. 1, p. 6-25, 2017.). Entretanto, considerando que as trajetórias das mulheres negras são marcadas pela dupla discriminação, racial e de gênero, é imprescindível adotar uma perspectiva interseccional na implementação e monitoramento de políticas públicas voltadas para a população negra.

Concursos públicos para docentes e a aplicabilidade da Lei nº 12.990/2014

A Lei nº 12.990/2014 é um dos possíveis caminhos para redução das disparidades raciais nas instituições de ensino públicas. Promulgada em 09 de junho de 2014 e tendo por base a classificação de raça/cor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir da autodeclaração do candidato, a Lei de Cotas para ingresso no serviço público federal está longe de alcançar sua aplicabilidade no que tange aos concursos para ingresso na carreira docente (BRASIL, 2014BRASIL. Lei n.º 12.990, de 09 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Brasília, DF: Presidência da República, 2014. Não paginado. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm. Acesso em: 15 nov. 2019.
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).

A este respeito, Mello e Resende (2019)MELLO, L.; RESENDE, U. P. Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os. Sociedade e Estado, Brasília, v. 34, n. 1, p. 161-184, 2019. salientam a ausência de consenso na aplicação da referida lei nos concursos para docentes, em que os editais, na maioria das vezes, oferecem um número de vagas inferior ao estabelecido legalmente (três ou mais vagas) ou que se observa uma interpretação equivocada da legislação, com a não reserva de vagas para os negros em editais que contemplam mais de três vagas, mas em diferentes áreas de conhecimento.

Neste sentido, na análise dos editais para concursos de docentes em 63 instituições de educação superior públicas brasileiras, das 18.132 vagas oferecidas, houve a reserva de somente 964 vagas para negros (cerca de 5,3%), sendo que algumas instituições atenderam ao preestabelecido em lei (reserva de 20% das vagas em seus editais), enquanto outras não atenderam à reserva de nenhuma vaga para os candidatos negros (MELLO; RESENDE, 2020MELLO, L.; RESENDE, U. P. Concursos públicos federais para docentes e ações afirmativas para candidatos negros. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 50, n. 175, p. 8-28, 2020.). Já com relação à reserva de vagas para a carreira docente no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT), os autores apontam que, das 5.197 vagas oferecidas em 38 institutos federais, apenas 624 foram reservadas para candidatos negros (aproximadamente 12%). Cabe salientar ainda que, estes números não correspondem ao quantitativo de negros efetivamente nomeados, tendo em vista a possibilidade de não existência de candidatos negros inscritos ou aprovados nos certames, mesmo com a reserva de vagas (MELLO; RESENDE, 2020MELLO, L.; RESENDE, U. P. Concursos públicos federais para docentes e ações afirmativas para candidatos negros. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 50, n. 175, p. 8-28, 2020.).

Portanto, em que pese o aumento do quantitativo de negras e negros nos cursos de graduação das universidades públicas federais, consequência da Lei 12.711/2012, se constata uma reduzida representatividade negra em cursos de pós-graduação stricto sensu, o que, consequentemente, repercute em seu acesso à carreira docente (MELLO; RESENDE, 2019MELLO, L.; RESENDE, U. P. Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os. Sociedade e Estado, Brasília, v. 34, n. 1, p. 161-184, 2019.). Neste sentido, os autores destacam a importância de implementação de políticas afirmativas para ingresso nos cursos de pós-graduação, bem como a necessidade de realização de novas análises que verifiquem, não só o perfil racial dos candidatos, dos aprovados e dos nomeados nas vagas reservadas para negros na carreira docente, mas também que interseccionem outros marcadores sociais, tais como sexo, idade, titulação, dentre outros, no levantamento do perfil desses candidatos.

Perfil racial e de gênero de docentes da educação superior

A análise do mercado de trabalho, bem como das repercussões da divisão sexual e racial do trabalho, a partir do recorte de raça e gênero, evidenciam uma intensa assimetria entre mulheres e homens e entre mulheres negras e mulheres brancas, posto que as desigualdades e exploração/opressões de raça, gênero e classe foram as bases sobre as quais se assentaram as relações sociais brasileiras (PASSOS; NOGUEIRA, 2018PASSOS, R. G.; NOGUEIRA, C. M. O fenômeno da terceirização e a divisão sociossexual e racial do trabalho. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 21, p. 484-503, 2018.). Neste contexto, o perfil demográfico dos docentes amostrados revelou que 53,79% eram do sexo masculino e que o magistério superior era um espaço privilegiado da branquidade com 76,67% professores autoclassificados como brancos (agrupamento de brancos e amarelos). No que se refere à variável idade (em anos), esta não apresentou distribuição normal segundo o teste de Kolmogorov-Smirnov (p<0.0001), sendo que a normalidade dos dados seria indicada caso o valor de p fosse igual ou superior a 0,5. Nesse sentido, estes dados foram descritos em mediana e intervalo interquartílico (IQR) que nada mais é do que o percentil 75 e o percentil 25 dos dados, sendo atualmente mais utilizado do que o valor mínimo e máximo. Logo, os dados indicaram que, no ensino superior, havia maior proporção de professores com idade entre 36 e 52 anos (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
https://download.inep.gov.br/microdados/...
).

Em relação à formação acadêmica, como apresentado na Tabela 1, a maioria dos docentes possuíam mestrado ou doutorado como nível máximo de escolaridade (41,89% e 39,11%, respectivamente), sendo que a maioria atuava em instituições privadas (63,16%), em cursos de graduação presencial (96,05%) e em regime de trabalho de tempo parcial (30,64%) ou em tempo integral com regime de dedicação exclusiva (25,33%) (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
https://download.inep.gov.br/microdados/...
).

Tabela 1
- Análise descritiva dos dados.

Ainda com relação à escolaridade e a atuação na docência superior, é importante considerar as interfaces entre gênero e raça, tendo em vista que, conforme Queiroz e Santos (2016)QUEIROZ, D. M.; SANTOS, C. M. As mulheres negras brasileiras e o acesso à educação superior. Revista da FAEEBA-Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 25, n. 45, 2016., as assimetrias no acesso à educação superior e em ocupações de alto prestígio social são condicionadas por estes marcadores sociais, caracterizando estes espaços como lugares privilegiados de brancos e de homens. Assim sendo, segundo a Tabela 2, observa-se que as mulheres negras apresentaram as menores taxas relacionadas à formação acadêmica, com menor proporção entre os docentes com graduação (15,30%), especialização (11,84%), mestrado (11,92%) ou doutorado (8,54%). Além disso, o magistério superior permaneceu, predominantemente, branco e masculino (41,07%) quando comparado ao quantitativo de mulheres negras (10,61%) e homens negros (12,72%), com as mulheres brancas correspondendo a 35,6% do contingente total (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
https://download.inep.gov.br/microdados/...
).

Tabela 2
- Quantitativo de docentes, por raça e sexo, de acordo com a escolaridade, categoria administrativa da IES e regime de trabalho.

Estes resultados vão ao encontro daqueles encontrados por Ghirardi et al. (2013)GHIRARDI, J. G. et al. Observatório do ensino do Direito. Quem é o professor de Direito no Brasil? São Paulo: FGV, 2013. que, em sua análise dos dados do Censo da Educação Superior 2012 e considerando somente os professores com a informação racial, observaram que a docência superior era formada, majoritariamente, por homens brancos. Verifica-se que este fenômeno é um reflexo do que acontece no mercado de trabalho brasileiro em que, de acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2017)INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das desigualdades de gênero e raça - 1995-2015. Brasília: Ipea, 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca.pdf. Acesso em: 11 nov. 2020.
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
, existe uma hierarquia ocupacional com os homens brancos presentes no topo das ocupações profissionais e as mulheres negras na base. A este respeito, Ratts (2003)RATTS, A. J. P. Gênero, raça e espaço: trajetórias de mulheres negras. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 27., 2003, Caxambu. Anais [...]. Caxambu: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, v. 27, p. 1-21, 2003. aponta que a hierarquia de gênero conforme a raça, resulta da correlação entre gênero e raça e se desenha com a primeira posição ocupada pelo homem branco, a segunda pela mulher branca, seguida do homem negro e com a mulher negra em último lugar.

A fim de analisar se a formação acadêmica explicaria os perfis racial e de gênero do ensino superior, analisou-se a escolaridade segundo cada grupo racial, verificando-se que, desconsiderando outras variáveis como classe social, tal diferença pode ser explicada pela relação entre nível de instrução e classificação racial, tendo em vista que 40,78% dos homens brancos e 35,39% das mulheres brancas tinham mestrado, doutorado ou especialização; ao passo que dentre os não brancos, 12,57% dos homens e 10,49% das mulheres possuíam estes mesmos níveis de instrução (BRASIL, 2019BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2018. Brasília, 19 de setembro de 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/microdados/microdados_educacao_superior_2018.zip. Acesso em: 11 nov. 2020.
https://download.inep.gov.br/microdados/...
).

A Tabela 3 apresenta os resultados da associação entre raça e variáveis de interesse, de acordo com o sexo. Entre as mulheres foram observadas diferenças significativas para a escolaridade, o regime de trabalho, a categoria administrativa da IES e a atuação profissional. O mesmo se observou entre os homens, exceto para atuação em Pós EAD e atuação sequencial. Tanto entre mulheres quanto homens, os indivíduos não brancos possuem menor nível de escolaridade e menor percentual de participação em qualquer categoria administrativa.

Tabela 3
- Associação entre escolaridade, regime de trabalho, categoria administrativa e atuação profissional de interesse, conforme o sexo e a raça dos servidores.
Tabela 4
- Regressão Logística Multinomial para a variável Raça_Sexo.

A análise de regressão permitiu evidenciar que, no que tange à escolaridade, não houve diferenças significantes entre homem não branco e mulher branca e não branca quando comparados à categoria de referência, embora observou-se uma diferença significativa de gênero e raça quanto à categoria administrativa da IES, idade dos docentes e atuação profissional dentro da IES, considerando as atividades de ensino, pesquisa e extensão.

Na categoria administrativa da IES, homens e mulheres não brancos tinham uma menor chance de estarem em uma instituição privada e em outras categorias de instituições do que homens brancos. Por outro lado, a mulher branca possuía maior chance de estar em uma instituição privada em relação a todas as categorias, inclusive em relação à categoria de referência. Corroborando esse resultado, Arboleya e Meucci (2015)ARBOLEYA, A.; MEUCCI, S. Trajetórias de docentes negros no ensino superior brasileiro e a construção de significados para o mérito “incomum”. In: REUNIÃO EQUATORIAL DE ANTROPOLOGIA, 5.; REUNIÃO DE ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE, 14., 2015, Maceió. Anais [...]. Maceió: UFAL/UNIT, 2015. destacaram que os dados do Censo da Educação Superior 2012 apontaram a sub-representação negra na docência superior, com os negros correspondendo a 13,22% de um total de 378.939 docentes e um quantitativo de 40% de subnotificações. Além disso, a menor chance de participação negra em instituições privadas pode ser uma expressão do racismo estrutural, como explicado por Almeida (2019)ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., com a avaliação dos atributos fenotípicos e estéticos para ocupação de postos de trabalho.

Em relação à idade, para cada ano adicional, a chance do docente ser homem e não branco foi de 0,97 vezes à chance de ser homem branco, de mulher branca foi de 0,99 vezes e de mulher não branca foi de 0,97 vezes em relação à categoria de referência, ou seja, menor a chance de ser homem não branco, mulher branca e não branca.

Ao passo que na atuação profissional, a chance do homem não branco e da mulher branca e não branca atuarem na extensão foi maior quando comparado ao homem branco; na gestão, a mulher branca possuía menor chance de atuação do que a categoria de referência; curiosamente, homem não branco e mulher branca e não branca possuíam maior chance de atuarem na graduação presencial quando comparado ao homem branco; na pós-graduação EAD, a chance do homem não branco atuar foi maior do que a categoria de referência; na pós-graduação presencial, a chance do homem não branco e da mulher branca e não branca foi menor em relação ao homem branco; e a chance de ter uma bolsa de pesquisa entre homem não branco e mulher branca foi menor em relação à categoria de referência.

No que tange à atuação em pesquisa e gestão, os resultados corroboraram com o que a literatura aponta quanto à predominância de homens brancos nestes espaços considerados de maior prestígio social (SIQUEIRA et al., 2016SIQUEIRA, R. F. B. et al. A presença de docentes mulheres em cargos gerenciais nas universidades federais do estado de Minas Gerais. Revista Gestão Universitária na América Latina-GUAL, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 49-69, 2016.). A este respeito, Morcelle, Freitas e Ludwing (2019) destacam a sub-representação de mulheres, em especial as negras, no campo científico brasileiro, desde a iniciação científica até a distribuição de bolsas de produtividade em pesquisa, com as mulheres negras percebendo somente 3% das bolsas de pesquisas na área de Ciências Exatas.

Sublinha-se que, embora não tenha sido possível encontrar outras pesquisas para comparar a prevalência de gênero e raça na docência superior, pode-se assinalar que tais achados revelam o viés androcêntrico e eurocêntrico no ambiente universitário pois, como destacado por Löwy (2009)LÖWY, I. Ciências e gênero. In: HIRATA, H. et al. (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 40-44., o fazer científico, desde sua gênese, foi feito pelo sexo masculino, caracterizando a ciência como um campo de disputa entre mulheres e homens. Além disso, podem ser considerados uma expressão do racismo à brasileira que se manifesta na violência simbólica e estrutural e que reitera a “crença no mito de supremacia branca que transversaliza instituições, profissões e demarca estruturas de poder que responsabiliza os/as negros/as pelos fracassos socioeconômicos herdados historicamente” (SILVA; LIMA, 2021SILVA, H. C. B.; LIMA, T. C. S. Racismo institucional: violação do direito à saúde e demanda ao Serviço Social. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 24, p. 331-341, 2021., p. 332).

Considerações Finais

Este artigo se propôs, a partir de uma abordagem interseccional, analisar o perfil de gênero e raça dos docentes das Instituições de Ensino Superior brasileiras. Nesse sentido, considera-se que os espaços de produção do conhecimento privilegiam a perspectiva androcêntrica e eurocêntrica, o que foi demonstrado pela existência de diferenças raciais e de gênero na academia, em especial no magistério superior, sendo observadas associações significativas em relação ao gênero, à raça e à intersecção dessas duas categorias na ocupação deste espaço, posto que tal cargo é ocupado majoritariamente por homens brancos. Além disso, observou-se que a categoria administrativa da IES, a idade e atuação profissional atuam como condicionantes na chance de homens negros e mulheres negras e brancas de atuarem na docência superior, quando comparados à categoria de referência (homem branco).

Considerando a perspectiva metodológica, a inter-relação entre gênero e raça constitui uma estratégia profícua para a análise das desigualdades de inserção e posicionamento no mercado de trabalho, posto que o ingresso neste espaço e, em especial, no magistério superior é marcado tanto pelo gênero quanto pela raça, o que limita as possibilidades de as mulheres negras acessarem os espaços de produção do conhecimento. Como indicam os resultados, em que pese às assimetrias de gênero, as mulheres brancas se encontram melhor representadas, tanto no magistério superior quanto em relação ao nível de escolaridade, em comparação a homens negros e mulheres negras, com essas ocupando a última posição.

Gênero e raça permanecem atuando como marcadores sociais de diferença que, ao intercruzarem-se, geram assimetrias distintas na participação de mulheres e homens no mercado de trabalho, como demonstra o perfil da docência superior, resultando em espaços racializados e sexualizados, caracterizados pela dicotomia feminino/masculino e/ou brancos/negros. Lado outro, se observa que as esferas institucionais refletem o que ocorre na sociedade de modo geral, através da perpetuação das desigualdades raciais e de gênero nessa esfera.

Conclui-se que diferentes marcadores sociais atuam no acesso a cargos docentes da educação superior, sendo necessária a análise sistemática desses indicadores a fim de equalizar essas desigualdades. Além disso, apesar de a Lei nº 12.990/2014 representar um importante instrumento normativo para garantia da representatividade negra em instituições públicas de educação superior, no que tange à docência, esse dispositivo legal não vem apresentando eficácia e aplicabilidade significativas. Nesse sentido, sugere-se a realização de novos estudos, considerando a inter-relação entre gênero e raça na análise dos concursos públicos para ingresso na educação superior, a fim de avaliar a efetividade das políticas públicas vigentes e para a proposição de novas ações que reduzam as disparidades raciais e de gênero ainda presentes no âmbito institucional.

Agradecimentos

Agradecemos a leitura e observações realizadas pela professora Andréia Queiroz Ribeiro (DNS/UFV). Contudo, ressaltamos que as análises e conclusões apresentadas é de inteira responsabilidade dos autores.

  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimento dos autores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    14 Fev 2022
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