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Destruir o Estado, emancipar os trabalhadores! Lições da Comuna de Paris de 1871

Resumo:

Objetivou-se discutir a relevância histórica da Comuna de Paris de 1871, ainda que um século e meio a separe do tempo presente. Para tanto, procedeu-se revisão bibliográfica de obras de autores anarquistas e comunistas e, fundamentalmente, exaustiva análise da obra de Marx, especialmente de A guerra civil na França, escrita por ocasião dos eventos da Comuna. Concluiu-se que a insurreição do proletariado, ocorrida durante a Comuna de Paris, ensejou um momento histórico decisivo de contestação da sociedade de classes, da propriedade privada e das formas burguesas de organização social. Nesse sentido, o retorno ao evento histórico da Comuna lança luzes à compreensão dos desdobramentos da sociedade capitalista, os rumos percorridos pelas lutas do proletariado e o papel ocupado pelo Estado.

Palavras-chave:
Estado; Revolução; Comuna de Paris

Abstract:

The objective was to discuss the historical relevance of the Paris Commune of 1871, even though a century and a half separates it from the present time. To this end, a bibliographic review of works by anarchist and communist authors was carried out and, fundamentally, an exhaustive analysis of Marx's work was carried out, especially A civil war in France, written on the occasion of the events of the Commune. It was concluded that the insurrection of the proletariat, which took place during the Paris Commune, gave rise to a decisive historical moment of contestation of class society, private property and bourgeois forms of social organization. In this sense, the return to the historical event of the Commune sheds light on the understanding of the developments of capitalist society, the paths taken by the struggles of the proletariat and the role played by the State.

Keywords:
State; Revolution; Paris Commune

Introdução

Neste texto pretende-se ressaltar a importância da Comuna de Paris após um século e meio de história. Considera-se que a primeira experiência de um governo dos trabalhadores, baseado, portanto, na autogestão por parte dos produtores, incrustou a bandeira da liberdade e da superação da sociedade de classes no âmbito das sociedades europeias e, mais tardiamente, das demais sociedades. Tratou-se de um evento sem precedentes e que revelou o caráter opressivo e alienante das instituições burguesas. A Comuna deixou claro fundamentalmente que o Estado é o Estado da classe dominante na medida em que opera segundo os interesses daqueles que detém a riqueza e, em especial, os meios de produção.

Não obstante o trabalho ideológico realizado a fim de que o Estado fosse apresentado enquanto esfera neutra e que, portanto, pairava acima das classes sociais, a Comuna de Paris, a despeito da breve experiência, retirou-lhe as máscaras e evidenciou que sua burocracia, seu aparato de segurança, sua educação e tudo o mais que o constitui convergem num objetivo: assegurar a dominação política e a exploração econômica de que são reféns os trabalhadores, do campo e da cidade. Daí a necessidade de se tratar desse evento histórico passados 150 anos.

A partir dele é facilitada a compreensão dos rumos que tomou o pensamento e a prática política de esquerda na Europa, principalmente. Notadamente o fato de que tenham sido abandonados, por considerável parte da esquerda, os princípios da autogestão em nome de organizações burocráticas como sindicatos e partidos políticos. E, ainda, o fato de que no último quarto do século XIX o capitalismo tenha assumido uma forma predominantemente monopolista, ensejando conflitos entre as principais economias à época, o que concorreu para os eventos no início do século seguinte.

Assim, a Comuna de Paris, passados 150 anos, lança luzes sobre a compreensão da sociedade de classes, sobre o caráter opressivo e mistificador da burocracia, o que levou ao surgimento das chamadas vanguardas e seus aparelhos, bem como o caráter de classe do Estado burguês, cuja dissolução deve dar lugar a uma sociedade sem classes e, por isso, sem Estado. Lança luzes, finalmente, sobre os desdobramentos econômicos e políticos no decorrer do século XX, como os rumos tomados pelo regime soviético que, ao contrário da propaganda, nada tinha de comunista, mas tratava-se de um modelo político e econômico baseado na exploração dos trabalhadores e no autoritarismo segundo as decisões de uma elite político-partidária.

A Comuna de Paris permite compreender, também, os conflitos interestatais que tiveram, na primeira e na segunda guerras mundiais, seus momentos mais dramáticos e que impactaram na organização política dos trabalhadores, seja desvirtuando seus propósitos, seja dotando suas organizações de maior compreensão dos interesses burgueses investidos nos conflitos. Cento e cinquenta anos separam o nosso tempo do tempo da Comuna, mas os fundamentos daquela sociedade, tais como a propriedade privada, o Estado e o conflito de classes, ainda que metamorfoseados, permanecem vivos e isto por si só — assim entendemos — já é uma justificativa bastante plausível para a reflexão que se propõe.

A tentativa de fornecer uma resposta entabulou uma reflexão sobre a importância da Comuna para a discussão sobre o Estado, o trabalho, a educação/ciência e o caráter internacional da revolução do proletariado. Para tanto, consultamos algumas obras de autores marxistas, sendo que a obra A guerra civil na França, do próprio Karl Marx, foi fundamental. Dela extraímos informações tanto de sua versão oficial quanto de seus dois rascunhos a fim de fundamentar as reflexões que seguem e que serão expostas em quatro partes, além das considerações finais.

A Comuna de Paris e a destruição do Estado

Considerada a primeira experiência histórica de um governo autogerido pelos próprios trabalhadores, a Comuna de Paris, deflagrada em Paris no ano de 1871, foi responsável pela dissolução do Estado. Ainda que temporariamente, tal feito atestou o potencial revolucionário dos trabalhadores e deu provas de que o Estado não se trata de uma entidade indestrutível e sob a qual os indivíduos devem se curvar. Ao se organizarem de forma livre e autogerida, os trabalhadores deixaram atônitos os seus apologetas; mostraram que os princípios que regem a associação livre dos produtores, explorados de uma maneira espontânea e coletiva, não possuem qualquer semelhança com aqueles que dirigem o poder estatal e sua burocracia.

O fato de que tais princípios tenham sido reforçados nos últimos 150 anos nutriu a crença de que sem ambos não é possível a vida em sociedade. Contudo, os inúmeros conflitos de classes, ocorridos nos mais diversos cantos do mundo, apenas fornecem substância para a sua crítica, a crítica de seus fundamentos, de seu caráter autoritário e burguês. Seus tentáculos invadem praticamente todas as instâncias da vida social. Por meio da educação visa o adestramento dos trabalhadores e por meio da religião a sua subserviência às hierarquias terrenas. Na polícia encontra o seu instrumento de vigilância e punição e em seu exército a defesa dos interesses da burguesia perante qualquer ameaça externa.

O objetivo principal da sociedade capitalista é garantir o funcionamento de uma sociedade baseada no trabalho alienado, na separação entre proprietários e não proprietários. “O poder estatal que aparentemente pairava acima da sociedade, era, na verdade, o seu maior escândalo e a incubadora de todas as suas corrupções”. (MARX, 2011MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 56). A Comuna de Paris evidenciou o caráter de classe do Estado, cuja burguesia dele lançou mão para oprimir os trabalhadores e promover o massacre de homens, mulheres e crianças. Nos últimos 150 anos, esse Estado foi aperfeiçoado com o fito de assegurar os interesses da burguesia. Para tanto, aprimorou a sua burocracia e aperfeiçoou os seus instrumentos de dominação, controle, violência e punição. E, principalmente, engendrou novos mecanismos para sustentar a acumulação de capital por parte das burguesias.

Daí a fundamental missiva de Marx de que não caberia ao proletariado simplesmente apropriar-se do Estado. Se a história revela uma postura distinta por parte da classe isto se deve muito mais à conduta oportunista de determinados indivíduos e seus instrumentos de ascensão ao poder (especialmente os partidos políticos) do que por qualquer outro motivo. Enquanto os trabalhadores, honestos e dedicados, se alimentavam do sonho e da esperança da revolução, muitas vezes colocando em risco suas próprias vidas, certas “lideranças” vociferavam palavras de ordem na tentativa de conduzirem as massas a um novo tipo de Estado não menos autoritário e belicoso.

Mas o proletariado não pode, como o fizeram as classes dominantes e suas diferentes frações rivais nos sucessivos momentos de seu triunfo, simplesmente se apossar desse corpo estatal existente e empregar esse aparato pronto para seu próprio objetivo. A primeira condição para a manutenção do poder político é transformar [a] maquinaria estatal e destruí-la – um instrumento de domínio de classe”. (MARX, 2011MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 169).

Como é bastante conhecido, com raras exceções não foi isto o que se passou nos últimos 150 anos. Não foram poucas as vezes em que as chamadas vanguardas, supostamente irmanadas do propósito revolucionário, solaparam os movimentos dos trabalhadores. Tal foi o que se passou na experiência soviética, circunstância na qual a burocracia do partido bolchevique se sobrepôs aos conselhos constituídos por trabalhadores, denominados sovietes. Segundo as esclarecedoras palavras de Tragtenberg (2008TRAGTENBERG, M. Reflexões sobre o socialismo. 8. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008., p. 48): “Em outros termos, ao perderem sua autonomia, os sovietes desaparecem como representativos do proletariado. Lenin e Trotski criam algo original: uma república soviética sem sovietes”. Ao tecer comentários sobre a revolução russa e os ensinamentos que esta trouxe para os anarquistas, Guérin (1980GUÉRIN, D. As ideias força do anarquismo. In: MALATESTA et al. O anarquismo e a democracia burguesa. São Paulo: Global Editora, 1980., p. 32-33):

A emancipação efetiva só pode ser realizada por uma ação direta dos interessados, dos próprios trabalhadores agrupados e não por intermédio da bandeira de qualquer partido político ou de uma formação ideológica, mas apenas nos seus próprios organismos de classe (sindicatos de produção, comitês de fábrica, cooperativas etc.) na base de uma ação concreta e da autoadministração, ajudados, mas não governados, pelos revolucionários trabalhando no próprio seio das massas e não fora delas ou sobre elas.

O Estado, seguindo as ordens de seus dirigentes, e sob o domínio implacável de Lenin e, depois, de Stalin, promoveu verdadeiras carnificinas em solo russo e nas porções territoriais daqueles países que foram, doravante, anexados. Dois fatos não deixam dúvida sobre o autoritarismo daquele regime: a rebelião de Kronstadt, ocorrida em 1921, e que resultou no massacre de marinheiros que lutavam pela retomada do poder por parte dos sovietes; e a Revolução Makhnovistchina, deflagrada por camponeses em solo ucraniano e cujo objetivo era realizar a autogestão social dos meios de produção.

Esta Revolução, a Makhnovistchina, bem-sucedida em muitos aspectos (as trocas entre os produtos advindos do campo e aqueles fabricados na cidade, a experiência de uma educação libertária, a autonomia das comunidades agrárias, dentre outras) foi encerrada em 1920, quando o Exército Vermelho dizimou as milícias camponesas (TRAGTENBERG, 2008TRAGTENBERG, M. Reflexões sobre o socialismo. 8. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008.). É incontestável que o modelo soviético, o qual sempre se arvorou referencial para outras sociedades, aniquilou o comunismo em seu fundamento: não foram os trabalhadores os protagonistas de um projeto revolucionário, mas o Estado, o qual, por meio de sua burocracia, liquidou as experiências autogestionárias e, em nome do partido, instaurou um regime bastante autoritário e violento.

A Comuna de Paris e a superação do trabalho alienado

Seguramente, o principal feito da Comuna de Paris tratou-se do fato de ter sido um governo dos operários, orientado segundo as necessidades dos trabalhadores e não do capital. Assim, qualquer decisão, além de partir dos próprios trabalhadores, visava o bem comum, respeitando alguns princípios como a igualdade de salários e de jornada de trabalho, além da igualdade de gênero. O trabalho ocupa centralidade na vida humana. Por meio dele os indivíduos travam relação com a natureza, entre os próprios homens e edificam um determinado modus vivendi.

A Comuna de Paris colocou por terra o trabalho alienado e, com ele, a subsunção do homem pelo capital. Fez com que o trabalho se voltasse ao projeto de emancipação humana, ou seja, fosse revestido de autonomia e liberdade e não violação e cerceamento. “Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho”. (MARX, 2011MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 59).

Aqui nem o político se sobrepõe ao econômico, nem o econômico se sobrepõe ao político, “[...] elas representam uma unidade no processo da luta dos trabalhadores. Nesse sentido, pode-se dizer que a vanguarda da classe é a própria classe”. (TRAGTENBERG, 2008TRAGTENBERG, M. Reflexões sobre o socialismo. 8. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008., p. 11). Os trabalhadores, de forma direta, livre e espontânea é que decidem o que produzir e sob quais condições. A maior lição histórica da Comuna foi a sua própria realização. Breve, porém carregada de sentido emancipatório, a Comuna promoveu uma cisão nas experiências das lutas operárias e, com esta cisão, fez com que emergisse uma forma de expressão política forjada na coletividade e na combatividade.

O modo pelo qual os trabalhadores realizavam a produção dispensou, naquela experiência, falsas intermediações. Nenhum espaço foi cedido à vanguarda exatamente porque houve a compreensão de que os trabalhadores devem representar a si próprios e a seus próprios interesses. “O instrumento político de sua escravização não pode servir como o instrumento político de sua emancipação”. (MARX, 2011MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 169).

Há que se ter em conta que pelo próprio contexto, a Comuna foi influenciada por várias concepções políticas, tais como o mutualismo dos proudhonistas, o blanquismo, o anarquismo de Bakunin e o próprio comunismo defendido por Marx. Durante alguns momentos, parece ter prevalecido uma certa estratégia blanquista, dada a importância da figura política da Auguste Blanqui e cujo encarceramento pelas forças do governo de Thiers, instalado em Versalhes, mobilizou as massas insurgentes em Paris. Durante outros, no entanto, os ideais anarquistas parecem ter prevalecido, não obstante a heterogeneidade da Comuna no tocante às motivações políticas de seus adeptos. Quanto aos membros do Comitê Central, o qual rapidamente transmitirá o poder a uma Comuna eleita, Achcar (2009ACHCAR, G. A Comuna de Paris, 1871. In: LÖWY, M. (org.). Revoluções. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 26) afirma que: “A maioria adere aos ideais anarquistas, próximos da teoria de Proudhon ou de Bakunin. Uma minoria no Comitê Central afirmava-se partidária de Blanqui, os outros membros são simplesmente republicanos mais ou menos radicais, muitos deles nostálgicos do jacobinismo”.

Assim, a Comuna não pode ser caracterizada como fundamentalmente blanquista ou anarquista. As condições de sua germinação, como se sabe, foram bastante complexas. Ela se deu nos estertores da Guerra Franco-Prussiana e reunia trabalhadores das fábricas, artesãos, bem como profissionais razoavelmente escolarizados e mesmo alguns intelectuais e escritores. Ao seu fracasso seguiu-se um paulatino aparelhamento e burocratização das lutas dos trabalhadores. Tratou-se de um mecanismo importante no processo de cooptação de parte da classe, o que levou ao surgimento de sindicatos profissionais e de partidos políticos supostamente de esquerda e alinhados às causas dos trabalhadores. Quanto aos sindicatos, deve-se considerar que estes “[...] são produtos históricos da luta operária, mas seu papel é negociar o preço da força de trabalho, e, embora seja um momento da luta, não ultrapassa os marcos da sociedade existente.” (VIANA, 2020VIANA, N. Karl Korsch e a Comuna revolucionária. In: KORSCH, K. A Comuna revolucionária. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020., p. 33-34).

O resultado desse processo foi perverso para os trabalhadores, bastando considerar os rumos ocupados pelas revoluções ulteriores. Tal foi, ainda, o que se deu com a vida cotidiana de modo geral, paulatinamente capturada pelos efeitos da burocracia estatal moderna, ou, nas palavras de Lefebvre (1968)LEFEBVRE, H. La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris: Gallimard, 1968., a sociedade burocrática de consumo dirigida, o que fica patente quando se problematiza os rumos tomados pela educação e pela ciência, assunto sobre o qual trataremos em seguida.

Cabe compreender que a experiência da autogestão proporcionada pela Comuna de Paris encetou uma situação revolucionária a partir dos trabalhadores e por meio da superação do trabalho alienado, da propriedade privada. “A propriedade privada resulta, portanto, por análise, do conceito de trabalho exteriorizado, isto é, de homem exteriorizado, de trabalho estranhado, de vida estranhada, de homem estranhado”. (MARX, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 87). Com efeito, foram criadas condições para a realização do trabalho com vistas ao atendimento das necessidades coletivas e não da acumulação de capital, um trabalho destinado aos anseios dos trabalhadores e não à produção de mercadorias que sequer seriam destinadas ao atendimento de suas carências.

Em suma, a experiência revolucionária da Comuna consistiu na negação e na superação do trabalho alienado, cuja centralidade na vida do capital é indiscutível. Desfeito o fundamento da produção sob o modo de produção capitalista, o trabalho alienado, mudanças também ocorrerão no âmbito da reprodução da vida cotidiana. Superada a instância do valor de troca, a produção e a reprodução da vida dar-se-ão com base no imperativo do valor de uso e amiúde se moverão segundo o reino da liberdade e da emancipação humana.

A Comuna de Paris e a educação libertária

Um dos maiores feitos da Comuna de Paris tratou-se da ruptura com um modelo social erigido com base nas hierarquias burocráticas e religiosas, o que se fez notar no âmbito da educação. A experiência dos comunardos propiciou um modelo libertário de educação, isto é, uma educação que não se colocara a serviço dos interesses da burguesia e, por isso, dava como naturais processos e relações sociais. A educação passou a ser investida de outro sentido porque as relações a princípio o foram. Aquela é produto desta, assegurando determinado status quo. Calcada sob outros pilares, ela deixou de fomentar preconceitos de classes e falsas associações entre indivíduos e conhecimentos.

Assim, o saber deixou de ser um instrumento de opressão e dominação voltado aos próprios trabalhadores. De igual maneira, ele foi desalojado do poder de Estado na exata medida em que nenhum aparato burocrático supostamente inacessível e inalterável o teria como guardião. Com ele o positivismo sofreu rotundo fracasso, afinal a garantia de sua crescente importância e de seu triunfo consistia no fortalecimento do Estado burguês e, portanto, do aperfeiçoamento dos instrumentos de dominação dos trabalhadores. “O positivismo contém implicitamente uma versão ‘cientificista’ da tecnocracia”. (LEFEBVRE, 1969LEFEBVRE, H. Posição: contra os tecnocratas. São Paulo: Editora Documentos, 1969., p. 170).

É claro que o projeto de uma educação libertária e libertadora demandou por parte dos operários algumas medidas de ordem mais pragmática, e outras mais profundas. Marx sumariza algumas delas, como a facilitação ao seu acesso por meio da doação gratuita dos materiais escolares aos professores e alunos. Sabe-se que o difícil acesso à educação e o caráter de seu próprio conteúdo impediam a permanência dos trabalhadores e de seus filhos. E, ainda, perpetuava uma organização social ancorada na opressão burguesa, em seus valores e seus preconceitos.

Promoveu-se uma ruptura com o modelo educacional empregado nas Universidades e, principalmente, foi quebrado o vínculo entre o parasitismo de seus quadros e as relações promíscuas com os interesses da Igreja e do Estado. Os títulos deixaram, ainda que temporariamente, de representarem distintos níveis sociais por meio dos quais as burocracias e os chamados homens de ciência exerciam vergonhosa e despudoradamente sua opressão velada e estabeleciam irretocável subserviência aos donos do poder e do capital.

Eles sentem que somente a classe trabalhadora pode emancipá-los do domínio do padre, converter a ciência de instrumento de dominação de classe em força popular, converter os próprios homens de ciência de alcoviteiros do preconceito de classe, parasitas estatais ávidos de cargos e aliados do capital em livres agentes do pensamento! (MARX, 2011MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 136-137).

Eis o sentido de uma educação libertária. Ela é livre não porque propõe novos conteúdos ou novas abordagens, mas porque se realiza no interior de um processo revolucionário e não de uma sociedade burguesa, orientada segundo os ditames da acumulação de capital. Ela opera segundo os interesses da coletividade, de sua organização e de sua emancipação. Daí que somente assim ela possa ser verdadeiramente revolucionária e permita que sejam abandonadas uma série de mistificações geradas e nutridas pela sociedade burguesa ao longo dos tempos.

A educação que emancipa deve constituir uma aliança com o trabalho que torna homens e mulheres livres. Vida, educação e trabalho numa sociedade gerida pelos trabalhadores deixam de ser instâncias separadas e destinadas aos propósitos da produção e acumulação de capital e tornam-se meios para a efetiva e verdadeira apropriação do tempo por parte dos indivíduos. Somente livre do mecanismo despótico do projeto de acumulação capitalista é que se ensina e se aprende com vistas à emancipação humana. Do contrário, a educação jaz em sua condição de mercadoria e, com ela, mais e mais água é lançada no moinho do capital em que homens e mulheres são não apenas triturados, mas suas consciências são capturadas segundo os interesses por maiores lucros.

Na sociedade capitalista a educação é voltada à produtividade do trabalho e não à produção e à criação. Os sentidos e as habilidades não são desenvolvidos de modo a aprimorar as capacidades e faculdades humanas de compreensão de sua existência. Pelo contrário, os corpos são submetidos não apenas aos processos esfalfantes do trabalho alienado, mas a razão é, também, subjugada aos interesses da fábrica e, com isto, é forjada e retroalimentada uma ideologia sob o nome e a vestimenta que lhe conferem a chamada ciência.

O trabalho — seus fundamentos, como ele se organiza — está na gênese de um determinado modelo de sociedade, de educação e de ciência. A experiência soviética, a qual reivindicava o comunismo, empregou o taylorismo às últimas consequências. Não mediu esforços na racionalização dos processos de trabalho a fim de produzir riqueza e fortalecer o Estado. O resultado foi a destruição dos comitês de fábricas e, com eles, da autogestão nas empresas. (TRAGTENBERG, 2008TRAGTENBERG, M. Reflexões sobre o socialismo. 8. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008.). A exploração dos trabalhadores antes exercida pelo capital privado deu lugar à exploração encetada pelo Estado e mediada pelo despotismo de sua burocracia.

De Paris para o mundo: o caráter internacional da Comuna

Tudo se inicia numa importante capital europeia, referência pela riqueza cultural, mas também por seu poder econômico e militar. Contudo, as condições internacionais, os arranjos de poder no território europeu, deflagram, em 1870, um conflito entre o Reino da Prússia e o Império francês. O rápido desenvolvimento do capitalismo de modo geral e o alemão, em particular, terá como resultado uma forte disputa em torno dos lucros e, décadas mais tarde, a emergência do capital monopolista como sua forma predominante. Terá, também, como resultado o imperialismo por meio do qual as principais economias passam a competir umas com as outras e a disputar mercados.

Concomitantemente, as principais classes sociais — burguesia e proletariado — vão se tornando cada vez mais nítidas, sendo que o assalariamento e a subsunção do trabalho à propriedade privada alcançam posição hegemônica no que tange às relações sociais de produção. Ademais dessas transformações, o modo de produção capitalista passa a ocupar patamares ainda mais expressivos de abrangência mundial, integrando povos e mercados os mais longínquos e, com isto, imprimindo profundas transformações nas sociedades.

Mundial em sua dinâmica, o capitalismo será responsável pelo surgimento de inúmeros conflitos sociais, mas também conflitos entre Estados nacionais, principalmente entre aqueles cujo desenvolvimento das forças produtivas tenha se dado com maior êxito. Não por acaso, é na Europa que, no limiar do século XX, eclode uma guerra de caráter mundial. De outra parte, o proletariado também busca se organizar mundialmente, sendo a Comuna de Paris a expressão mais avançada dessa natureza internacional ou internacionalizante da luta do proletariado.

De Paris para o mundo. Foi naquela cidade, palco de reformas urbanas levadas a cabo segundo as necessidades da reprodução de uma sociedade capitalista, que se processou a experiência mais radical da luta perpetrada pelo proletariado, fornecendo inspiração para trabalhadores de todo o mundo, e instaurando, no urbano, um novo sentido para a vida cotidiana. “Não foi sem motivo que Haussmann, com suas avenidas largas e retas, dissolveu os bairros fervilhantes e tortuosos, os ninhos do mistério e do folhetim, os jardins secretos da conjuração popular”. (CASSOU, 1936 apud BENJAMIN, 2009BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009., p. 831).

A Comuna de Paris teria, em sua breve duração, recuperado o movimento pulsante, a fantasia, o gozo, a alegria e a festa que caracterizavam as ruas, becos e vielas de Paris antes das reformas empreendidas por Haussmann. Mas não apenas. Teria sido a Comuna de Paris uma festa? Assim conceberam vários pensadores, a exemplo de Henri Lefebvre e dos situacionistas de modo geral. Todavia, a Comuna foi mais do que isto, ela imprimiu mudanças profundas na relação trabalho-vida cotidiana e garantiu, ainda que parcialmente, a emancipação de homens e mulheres das relações sociais alienadas de outrora. Nesse particular, são bastante esclarecedoras as afirmações de Viana (2021VIANA, N. A Comuna e a contestação. In: CONCEIÇÃO, M. V. (org.). O significado da Comuna de Paris. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2021., p. 16):

A Comuna de Paris não foi festa, não foi trabalho, não foi cotidiano. Ela foi a recusa desses elementos separados, pois quando os indivíduos estão transformando o mundo e a si mesmos, estão trabalhando arduamente e com a sensação de alegria que se pode ter numa festa. Não se supera o capitalismo generalizando um momento dele e sim abolindo ele em sua totalidade e gerando uma nova sociedade, radicalmente diferente e que transforma os momentos, mudando o seu significado.

Assim, a nova sociedade em formação a partir da experiência revolucionária da Comuna e que teve as ruas de Paris como palco promoveu, pela primeira vez na história do proletariado, um urbanismo revolucionário, segundo as palavras de Debord, Kotányi e Vaneigem (2021)DEBORD, G.; KOTÁNYI, A.; VANEIGEM, R. Sobre a Comuna. In: CONCEIÇÃO, M. V. (org.). O significado da Comuna de Paris. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2021.. Naquela cidade trabalhadores de diversos países se irmanavam do mesmo projeto, da mesma causa e, para tanto, não se apresentavam com base em nenhuma nacionalidade. Para o proletariado, a cidade era o mundo e esta não servia ao capital, mas aos próprios indivíduos.

A causa compartilhada pelos comunardos era a emancipação humana. Movidos por ela, nenhuma condição era evocada a não ser o fato de que eram trabalhadores. Não havia espaço para mistificações no âmbito das relações sociais. A verdade do proletariado mundial desmascarava a mentira dos nacionalismos e a sustentação que este fornecia ao projeto burguês em escala planetária. “Sob a mira do mesmo exército prussiano que havia anexado à Alemanha suas províncias francesas, a Comuna anexou à França os trabalhadores do mundo inteiro.” (MARX, 2011MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 63). E, ainda, conforme Marx (2011MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 141):

Proclamando em alto e bom tom suas tendências internacionais – porque a causa do produtor é por toda a parte a mesma e seu inimigo o mesmo, qualquer que seja sua nacionalidade (seja qual for seu traje nacional) –, Paris proclamou como um princípio a admissão dos estrangeiros na Comuna, elegendo inclusive um operário estrangeiro (um membro da Internacional) para seu Conselho Executivo, e decretou [a destruição do] símbolo do chauvinismo francês: a coluna Vendôme!”

A condição do apátrida inexistia na Comuna, dado que a pátria dos comunardos tratava-se do mundo. Tal situação só pudera ser garantida porque os pilares daquele Estado estavam sendo paulatina e vigorosamente destruídos. Sem ele, suas funções caiam por terra e, com isto, novas formas e conteúdos eram engendrados. A destruição do Estado implicava no fim da separação entre este e a sociedade civil e das formas burguesas de poder, como a separação entre poderes e a burocracia. Trabalhadores de outras nacionalidades encontravam na Comuna seu verdadeiro lar, porque a cidade deixara de ser a tranquila morada da burguesia, cujas funções existiam segundo os anseios de seu capital.

Vida, trabalho, cotidiano, lazer, tempo e espaço se amoldavam a uma nova realidade. Com isto, as mentiras do mundo burguês, suas fantasias, mistificações e farsas ruíam na medida em que os projetos, anseios e expectativas dos operários ganhavam vida pela forja da autenticidade e da verdade que caracterizavam sua permanente luta. Tratava-se de uma outra cidade, com outro modelo de educação, outra forma de exercício do poder, investida de uma segurança conduzida pelos próprios trabalhadores e destinada a ser palco da liberdade. Nos dizeres de Achcar (2009ACHCAR, G. A Comuna de Paris, 1871. In: LÖWY, M. (org.). Revoluções. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 25-26):

Essa é efetivamente a Paris dos trabalhadores – operários, empregados de escritório, artesãos e pequeno-burgueses – que se insurgiram, sob o comando de um Comitê Central da Guarda Nacional, cujos membro são na maioria operários e mais de dois quintos filiados à Associação Internacional dos Trabalhadores, a famosa AIT, dirigida de Londres por um exilado alemão de nome Karl Marx.

Parafraseando Marx e Engels (2010)MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2010., o espectro do Comunismo rondava, firme como nunca, a Europa. E, com ele, seus ideais de igualdade, superação da sociedade de classes, destruição da propriedade privada e do Estado. A Comuna durou 72 dias, tempo suficiente para que os atos praticados pelos comunardos, seus acertos e seus equívocos, abrissem trilhas no caminho que seria ulteriormente percorrido pelo proletariado em todo o mundo. Viana (2020)VIANA, N. Karl Korsch e a Comuna revolucionária. In: KORSCH, K. A Comuna revolucionária. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020. arrola algumas revoluções que, embora interrompidas, tiveram os conselhos operários como base, tais como a experiência húngara, em 1956, e a polonesa, em 1980. Em todas elas: “A autêntica meta final da luta proletária de classes não é um determinado estado, por ‘democrático’, ‘comunal’ ou ‘conselhista’ que seja, mas a sociedade comunista sem classe e sem estado [...]”. (KORSCH, 2020KORSCH, K. A Comuna revolucionária. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020., p. 94).

Considerações finais

Um século e meio separa nossa época da Comuna de Paris. Tal foi a grandeza e a importância dessa experiência revolucionária que várias revoluções posteriores tiveram, nela, sua fonte de inspiração. A experiência revolucionária dos sovietes, embora precocemente abortada, evoca a luta dos Comunardos. Não seria exagero inferir que os desdobramentos da Comuna, dentre os quais a formação e a consolidação dos sindicatos e a emergência dos partidos políticos de esquerda, conduziram à malfadada experiência soviética. Esta fornece um contraponto à Comuna, ou seja, que a conquista do poder e não a sua destruição/superação não consiste em um projeto verdadeiramente revolucionário.

Pelo contrário, sindicatos e partidos políticos apenas compõem a engrenagem do Estado e, com efeito, jogam água no moinho do modo de produção que explora e oprime trabalhadores. Reforçam, ademais, o trabalho alienado e as relações sociais de produção conforme os propósitos do capitalismo. O projeto de emancipação humana passa pela destruição do Estado e de sua burocracia. Embora breve, a Comuna materializou esse projeto. Eliminou o exército permanente e estabeleceu uma segurança constituída por trabalhadores; promoveu mudanças radicais na educação, como a separação entre o ensino e a igreja; igualou salários e reduziu as jornadas de trabalho, bem como extinguiu a separação entre poderes.

Em suma, a Comuna tratou-se do momento mais vigoroso da luta do proletariado durante o século XIX. Paris foi convertida no lar dos trabalhadores, lugar de vida e de trabalho, mas também de luta e de festa, onde o projeto emancipatório irmanou homens e mulheres franceses e estrangeiros e solapou as estruturas do Estado e os pilares que sustentavam a burguesia. Durante 72 dias os comunardos deram provas de que, além de internacional, sua luta não visava tomar o poder, mas superá-lo e, além dele, sua sociedade correspondente, a sociedade de classes. Com isto, buscavam alterar o modo como produziam sua existência, as relações sociais de produção e os fundamentos de sua reprodução.

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Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Aceito
    12 Dez 2021
  • Revisado
    02 Mar 2022
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