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Marxismo e Serviço Social: palestra do Professor José Paulo Netto

Marxism and Social Work: lecture by Professor José Paulo Netto

Resumo:

Os manuscritos ora apresentados constituem a transcrição — ainda que com algumas adaptações — da palestra proferida pelo Professor José Paulo Netto, em 29 de setembro de 2020. Desde logo, informamos ao leitor que o presente texto passou pelo crivo do palestrante que, depois de atenta leitura, aprovou-o para publicação. A atividade supracitada foi organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, da Universidade Federal de Santa Catarina. Como já estávamos enfrentando a crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, a palestra foi realizada na forma de um Webinário, com a minha mediação. Na ocasião, o Professor José Paulo Netto abordou o tema Marxismo e Serviço Social: elementos para pensar a pesquisa, a produção do conhecimento e os desafios do trabalho dos assistentes sociais. Como destacamos já à época, o professor José Paulo Netto tem um carisma inquestionável e uma competência intelectual amplamente reconhecida. Trata-se de uma exposição sobre o tema feita por um dos mais importantes marxistas da atualidade no Brasil. Suas contribuições ultrapassam as fronteiras do Serviço Social, tanto brasileiro como latino-americano, caribenho e europeu. José Paulo Netto tem contribuído para o debate da teoria social marxista e, por isso, tem também reconhecimento em outras áreas do conhecimento, o que acaba por fortalecer o próprio Serviço Social brasileiro, haja vista que é um agente desta categoria. Quem o conhece sabe que a sua produção intelectual é acompanhada pela militância política, no contexto das lutas anticapitalistas. Não por acaso, José Paulo Netto recebeu a insígnia de ser um marxista sem repouso, não só pela sua contribuição no âmbito da academia, mas também pela sua capacidade de problematizar e colocar luzes sobre as pautas e as lutas da classe trabalhadora. A exposição de José Paulo Netto que agora chega ao público também em forma de uma publicação escrita por esta edição da Revista Katálysis foi realizada num período imediatamente precedente à publicação daquela que já tem sido reconhecida como uma de suas mais importantes produções intelectuais. Trata-se do seu livro Marx: uma biografia, que foi lançado no final de 2020 e que deu forma a um sonho que perseguia o autor desde a sua adolescência. Este sonho, talvez mais do que poderia ele imaginar, tem ganhado força social na medida em que tem suscitado nos estudiosos do marxismo, principiantes ou não, questionamentos importantes sobre o nosso tempo histórico a partir da obra e da vida de Karl Marx, o que evidencia a atualidade do seu pensamento para orientar as lutas pela emancipação humana.

Palavras-Chave:
Marxismo; Serviço Social; Teoria Social

Abstract:

The following manuscript results from the transcription — albeit with some adaptations — of the lecture given by Professor José Paulo Netto, on September 29, 2020. The text was reviewed by the speaker himself, who, after careful reading, approved it for publication. The aforementioned event was organized by the Postgraduate Program in Social Work, at the Federal University of Santa Catarina. Since we were already facing the global health crisis resulting from the Covid-19 pandemic, the lecture was held in a Webinar format and coordinated by me. During the occasion, Professor José Paulo Netto addressed the theme entitled Marxism and Social Work: reflections on research, knowledge production, and the challenges of social workers' practice. As we pointed out at the time, Professor José Paulo Netto has undeniable charisma and widely acknowledged intellectual competence. The theme was tackled by one of the most important Marxists in Brazil today. His contributions surpass the boundaries of Social Work, both Brazilian and Latin American, Caribbean and European. José Paulo Netto has enriched Marxist social theory in general and, therefore, he also has an impact on other areas of knowledge, which further strengthens the Brazilian Social Work, since he is a representative of this category. Those who know him are aware that his intellectual career is accompanied by a life of political militancy, in the context of anti-capitalist struggles. Not by chance, José Paulo Netto has received the title of being a restless Marxist, not only for his efforts in the academic field, but also for his capacity to challenge and shed light on the agendas and struggles of the working class. This lecture by José Paulo Netto which now is brought to the general public in the form of a written piece, published in this issue of Katálysis Journal, was held right before the release of what has already been recognized as one of his most important intellectual works. His book Marx: a biography, which was released in late 2020 and fulfilled one the author’s teenage dream. This dream come true, perhaps more than he could have imagined, has gained social force to the extent that it has raised in scholars of Marxism, beginners or not, relevant questions about our historical time from the work and life of Karl Marx, which highlights the relevance of his thought to guide the struggles for human emancipation.

Keywords:
Marxism; Social Work; Social Theory

José Paulo Netto: Em abril de 1989, a Revista Serviço Social e Sociedade, de número 30, publicou um pequeno texto meu, que resultava de uma intervenção num evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde à época eu trabalhava. Tempos saudosos!. Eu reli esse texto cujo título era: O Serviço Social e a Tradição marxista. A leitura dele me deixou por um lado muito confortado, porque na sua essencialidade, hoje, eu não teria que fazer nenhuma modificação substancial quanto ao seu conteúdo. Quero lembrar que é um texto que foi publicado em abril de 1989, antes de um bocado de coisas que aconteceram e que formataram a nossa contemporaneidade. Muita água correu por debaixo da ponte, mas eu fiquei confortado porque percebi que as teses essenciais que eu formulei naquela época se revelaram consistentes. Quero recuperar uma delas antes de avançar aqui.

Era um momento de muito otimismo no país, otimismo no Brasil. Estávamos concluindo a chamada transição democrática e nos aproximávamos do processo eleitoral que seria realizado em novembro de 1989. Havia fortes demandas e expectativas democráticas e eu participava ativamente dos processos políticos à época. Era um momento no qual a atenção sobre o marxismo estava em alta, mas eu sustentava uma ideia ou uma hipótese de trabalho que me parece correta até hoje: O Serviço Social não é uma teoria. O Serviço Social se apoia em teorias. O Serviço Social é, substantiva e propriamente, uma profissão e, enquanto profissão, não haverá um Serviço Social marxista (NETTO, 1989NETTO, José Paulo. O serviço social e a tradição marxista. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.º 30, p. 89-102, maio/ago., 1989., p. 101). Na época, isso causou um mal-estar em diversos companheiros meus. Repito: eu defendi que o Serviço Social não era e que nunca seria uma profissão marxista. Ora, não há um exercício médico marxista, por exemplo. As profissões têm um estatuto diferente, embora criadas por opções políticas e considerações teóricas, elas têm um estatuto diferente das teorias sociais. Vista a quase 40 anos de distância, essa tese pode parecer óbvia. Não era na época em que ela foi enunciada. Eu diria que, essencialmente, é o que eu continuo defendendo até hoje. Não há um Serviço Social marxista e suponho que não haverá.

Mas a interlocução entre o Serviço Social, enquanto profissão, e a tradição marxista, esta é extremamente importante. Ela já se configurava nos anos de 1980, prosseguiu e hoje se encontra bastante vulnerabilizada. E por quê? Porque o quadro histórico-conjuntural de hoje é muito diferente.

Neste sentido, eu quero começar chamando atenção para alguns traços da conjuntura histórica que estamos vivendo. O primeiro traço que me parece extremamente importante é o enorme avanço do irracionalismo no domínio da cultura, da política e das práticas sociais. Nada me parece mais expressivo do que esse irracionalismo — que é um fenômeno mundial e não algo específico do Brasil, mas que no Brasil tem expressões muito evidentes. E a primeira delas é a inteira desqualificação da ciência e da teoria. Eu nunca pensei, nem na minha juventude, nem na minha maturidade, que pudesse ouvir seriamente alguém discutir se a terra tem forma arredondada ou se ela é plana. Hoje, o terraplanismo navega fácil por aí.

Quando falamos sobre a desqualificação da ciência e da teoria estamos, ao mesmo tempo, falando da desqualificação de suas agências. Uma agência fundamental da ciência e da teoria é a universidade. Entre nós, a universidade hoje é vista como suspeição. Estamos embarcados num regresso ao pior da Idade Média.

Do ponto de vista político também são óbvias as manifestações desse irracionalismo ou dessa cultura, desse caldo de cultura que desqualifica a ciência e a teoria. Chamaria atenção para a desconsideração das conquistas científicas traduzidas na nossa vida cotidiana sobre a necessidade do controle mínimo das práticas destruidoras do meio ambiente e da saúde humana. No contexto pandêmico, constatamos que há hoje, no mundo e no Brasil, movimentos antivacinas, o que se revela algo assustador. No plano político, identificamos manifestações claras desse regressionismo que constitui quase uma restauração de concepções políticas medievais. Um dos grandes avanços na história no Ocidente foi a laicização do poder político, a separação entre igreja e Estado. Esta é uma conquista que vem da Revolução Francesa, uma conquista da burguesia revolucionária. O que nós estamos assistindo hoje é um processo de erosão da laicidade do Estado, com todas as implicações que isso tem. Para mim, formado nas tradições da modernidade, isto representa um salto para o reino das trevas.

As expressões gerais disso todos nós sabemos quais são, pois as estamos vivendo. Por exemplo, a intolerância que está marcando as relações humanas, inclusive no nível micro-sociológico. As pessoas não se veem hoje partilhando a possibilidade de um mundo comum. Adversários, dissidentes e oponentes são tratados como inimigos a serem destruídos, liquidados. Na verdade, estamos vivendo um tempo de desqualificação de valores civilizatórios e universalistas. Chamo a atenção para apenas um dos fenômenos que mostram como a conjuntura que vivemos hoje é muito diversa daquela dos anos de 1980, quando estudei aquela relação entre a tradição marxista e o Serviço Social: trata-se do valor da igualdade que, não por acaso, estava inscrito nas bandeiras da Revolução Francesa. Quero lembrar que esta foi, em termos de conteúdo de classe, uma revolução burguesa – e, por isto, a igualdade proclamada e defendida era uma igualdade limitada, própria de um processo de emancipação política (que não se identifica sumariamente à emancipação humana). Pois bem: até mesmo esta igualdade restringida, embora importantíssima, vem sendo desqualificada diuturna e cotidianamente. E não apenas num plano cultural, num plano imaginário, num plano ideal, mas no plano da vida social concreta. Tudo isso se dá num marco, num terreno comum de toda a profissionalidade do Serviço Social, na base comum do Serviço Social: a chamada questão social. E isto se dá num marco em que a questão social se agrava em todas as latitudes, todas!

Todas as pesquisas, não importa a origem institucional delas, têm mostrado que nos últimos 30 anos, não por acaso os anos de vigência do chamado neoliberalismo, em todos os quadrantes do mundo, em todas as latitudes, se concentra a riqueza, a renda, a propriedade e o poder político. Quero lembrar e problematizar com vocês, só para a gente não ficar trabalhando nas alturas, os programas de combate à pobreza. Em 2000, os Estados, a maioria esmagadora dos Estados componentes da organização das Nações Unidas, colocou objetivos para o milênio. Eram chamados os objetivos do desenvolvimento do milênio. Fez-se um programa de intervenção, de combate à pobreza absoluta — não a pobreza, mas a pobreza absoluta — para um período de 15 anos. Dito de outro modo, esses Estados assumiram o compromisso segundo o qual no lapso temporal de 15 anos a pobreza absoluta estaria suprimida. Quero insistir, não é a supressão da pobreza, mas a supressão da pobreza absoluta. Pois bem, em 2015 ou 2016, a própria organização das Nações Unidas reconheceu que o programa — embora tenha apresentado alguns índices com desenvolvimento positivo — estava comprometido. Esse objetivo, agora em 2015/2016 foi aprazado para 2030. Notem, nós estamos lidando com aquilo que eu chamo de “enxugar gelo”. A miséria absoluta cresce e ela não tem sido reduzida em escala mundial. Há indicadores da sua redução em alguns espaços geopolíticos mas, quando considerada na sua globalidade, ela continua nos assombrando.

Nós vimos há poucos dias declarações de autoridades brasileiras chamando a atenção para o fato de que a nossa agricultura, nossas atividades agropecuárias, são uma espécie de reserva alimentar do mundo. Já o são hoje. E o país onde se tem isso é aquele onde a miséria absoluta avança, onde há milhões de pessoas morrendo de fome. Estamos realmente num quadro em que a questão social tem se agravado. Mais, ela se agrava num marco de regressão política, de ameaças à convivência democrática e às instituições democráticas. Tais processos são também visíveis em escala mundial, portanto não se trata de fenômenos localizados. O fenômeno mostra uma tendência de ameaças às instituições democráticas que é mundial. Conhecemos um país, inclusive, em que movimentos antifascistas tendem a ser criminalizados!

Quando antifascistas são postos na conta de criminosos, estamos à beira da barbárie social. É verdade que nós não devemos confundir a espuma do rio com o movimento do rio. Nós não estamos vivendo uma conjuntura que haverá de eternizar-se. Quando contemplamos o mundo contemporâneo e vemos as enormes ameaças e mesmo regressões de valores universalistas e civilizatórios, nós vemos também movimentos de resistência. Vemos movimentos que se opõem à essa trajetória regressiva. A realidade é contraditória, abriga possibilidades alternativas. É preciso conservar e fazer avançar o rigor da análise para poder compreender que esse período que estamos vivendo é um período marcadamente de transição. Uma forma de gerir a vida social, ou melhor, formas de gerir a vida social estão se esgotando e formas novas ainda não adquiriram a densidade que permita sua viabilização. É, ainda, um momento em que sociopatias, anomalias da vida social, tendem a emergir com muita brutalidade, com muita violência.

Há que ter, no plano da análise teórica, instrumentos capazes de identificar e problematizar essas tendências agora operantes. Tudo o que nós conhecemos das sociedades humanas — e esse “tudo” não é pouca coisa, mesmo que não conheçamos tudo — nos ajuda a ter não apenas algumas convicções, mas também algumas esperanças. Não é a primeira vez que a humanidade se encontra no limite da barbárie, ao borde da barbárie. Porém, em todas as vezes em que isso ocorreu, as tendências que se opuseram à barbarização da vida social acabaram triunfando. Eu não sou otimista para depois de amanhã, penso mesmo que teremos vários anos de duras batalhas contra as tendências regressivas. Contudo, estou convencido de que há suportes sociais sólidos sobre os quais podemos organizar a resistência contra a barbárie.

Isto posto, eu quero voltar à relação entre Serviço Social e tradição marxista, embora não nos mesmos termos em que a coloquei há quase 35 anos. Avançando, quero relembrar alguns elementos históricos que nos permitem olhar e examinar como ela se apresenta hoje.

Quero começar lembrando que a tradição marxista e a tradição profissional do Serviço Social nos mostram que elas provêm e estão enraizadas em espectros culturais muito distintos. Eu diria que, no limite, são espectros quase excludentes. Se nós observarmos a tradição marxista na sua gênese, lá no século XIX, vamos ver que ela é herdeira das tradições humanistas próprias do Renascimento, enriquecidas pela Ilustração e fortalecidas pelas conquistas da Revolução Francesa. Nada é mais característico da tradição marxista do que seu conteúdo moderno. Aliás, a tradição marxista é claramente filha da modernidade ocidental.

Quero chamar a atenção para algo que é óbvio para os estudiosos da minha geração, mas talvez não o seja para os estudiosos mais jovens. A tradição marxista é o que há de mais ocidental possível. Ela não é algo estranho à cultura ocidental, mas um fruto legítimo, um fruto característico da modernidade ocidental, ainda que não seja o seu único rebento. Pensem, nesse sentido, na tradição liberal clássica. É óbvio que não estou me referindo, aqui, aos chamados neoliberais. Isso aí é uma gente de outra estirpe. Refiro-me à tradição liberal, aquela que remonta, por exemplo, a John Locke. Esta tradição liberal é também constitutiva da modernidade ocidental.

É preciso insistir neste ponto porque, nos últimos dez ou quinze anos, generalizou-se – e não só no Brasil – um curioso processo de ressignificação de conceitos e categorias. É paradigmático o que se passou, e se passa, com o conceito de ideologia. Então, especialmente nos anos 1990, dizia-se que as ideologias estavam anacrônicas, eram trastes superados. A ideologia, ou melhor, as ideologias eram fenômenos do século XIX e de parte do século XX. Todavia, nos anos mais recentes, a ideologia voltou a frequentar os noticiários dos jornais, das mídias... E ela (ou elas) voltou (voltaram) como se estivessem absolutamente vivas e atuantes. Por isto, assiste-se a uma verdadeira guerra: agora, é preciso combater – mas combater a ideologia ... dos outros. A minha é a “boa”, a “saudável” ideologia... – a dos outros é perigosa, é um horror, deve ser criminalizada. Se eu não compartilho, por exemplo, da chamada ideologia de gênero, há que combatê-la! Mas a retórica que faz a apologia do tradicionalismo, da família tradicional, patriarcal, bíblica – esta ideologia que sequer se reconhece como ideologia, esta é saudável! Nós estamos vivendo, e é preciso ter clareza disso, um período de ilegítimas ressignificações. Ilegítimas!

Outra resignação, tão ilegítima quanto fantástica, é a da noção de reforma social. Ao longo da segunda metade do século XIX e até o último quarto do século XX, por reforma se compreendeu o reconhecimento e a extensão de direitos sociais. O reformismo era um vetor que conduzia à afirmação e à ampliação de direitos. Enfim, a partir das duas últimas décadas do século passado, operou-se a ressignificação ilegítima da reforma e do reformismo social – por reforma se entende o quê? Entende-se, sob o verniz de uma pretensa luta contra privilégios, a supressão de direitos sociais (e não só) duramente conquistados em lutas sociais que se travaram por décadas. Basta considerar o conteúdo sócioeconômico das chamadas reformas previdenciária e trabalhista conduzidas no Brasil para aferir a sua verdadeira significação: são, antes de tudo e de mais, contrarreformas.

A própria ideia de democracia, assim como a mesma concepção de política — que vem lá dos Gregos, polis, o serviço à comunidade – passam, igualmente, por ressignificações que as desqualificam. Não são tempos fáceis e, sobretudo, são tempos que intentam problematizar aquelas tradições intelectuais — como a tradição marxista — que se caldearam, que se constituíram no eixo da modernidade ocidental. Quero insistir em que não é só a tradição marxista que se desqualifica mediante este processo, mas ainda própria tradição liberal, com as transformações que experimentou desde o século XIX. No debate contemporâneo mais sério e honesto, encontram-se hoje teóricos liberais que estão horrorizados com o mal chamado neoliberalismo. Este, no seu núcleo duro, não é parte senão desnaturada e unilateral da tradição liberal; é outra coisa: é vetor contributivo de regressão social. Mas esta não é a oportunidade para tratar desse tema.

Quero retomar um pouco o eixo da minha conversa. Já assinalei que a tradição marxista brota, cresce e floresce no âmbito da modernidade racionalista, ilustrada. A tradição da qual provém o Serviço Social é outra. É a tradição da reação católica que emerge a partir de Leão XIII. Esta é a tradição de que parte o Serviço Social que chega ao Brasil, mas não é a única que nutriu o Serviço Social. O Serviço Social não emerge e se constitui como profissão apenas nos países de tradição católica. É preciso lembrar a emergência do Serviço Social em países de cultura provindas da Reforma. É por isto que, na história do Serviço Social, verifica-se uma clara clivagem entre o Serviço Social de matriz europeia, fundamentalmente de origem franco-belga, e o Serviço Social que vai se desenvolver, por exemplo, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Há uma clivagem entre eles, ainda que, a partir dos anos 1940/1950, ela se reduza progressivamente, inclusive pela emergência do hegemonismo mundial dos Estados Unidos (e que teve implicações no Serviço Social brasileiro).

Interessa-me assinalar que o Serviço Social que chega ao Brasil nasce no caldo da ideia de uma recristianização no mundo. Vem da tentativa da igreja católica, em especial de Leão XIII, de reconquistar camadas trabalhadoras que estavam escapando do seu controle. Isso põe entre Serviço Social e tradição marxista uma clivagem que foi extremamente importante. No campo da tradição marxista, essa clivagem contribuiu para a constituição de um tratamento do Serviço Social unilateral, pois não se compreendeu as potencialidades da reforma social que estavam contidas na gênese da profissão. E, da parte da tradição do Serviço Social, isso gestou um caldo de cultura extremamente conservador – não apenas conservador, mas um caldo de cultura fronteiriço ao reacionarismo.

Sabemos que embora na vida política frequentemente as fronteiras entre conservadorismo e reacionarismo sejam muito esbatidas, ser conservador não significa necessariamente ser reacionário. O reacionário é um restaurador, tem a nostalgia do Antigo Regime. Lamenta, por exemplo, o tempo em que o poder das igrejas era não apenas espiritual, mas também temporal. O reacionário luta contra a laicização. Isso não é verdade para conservadores. O campo conservador — embora frequentemente conservadores se unam a reacionários — detém e mantém uma projeção reformista para sociedade. É preciso deixar isso muito claro: o Serviço Social, com o seu conservadorismo, também abrigou tendências sociais reformistas. O Serviço Social não surge como fruto do reacionarismo, brota como fruto do conservadorismo. Mas o seu reformismo conservador abriu uma fratura muito clara entre ele e a tradição marxista. Se os marxistas miravam o Serviço Social com suspeição e desprezo, os assistentes sociais conservadores encaravam o marxismo como caso de polícia. É claro que, aqui, estou caricaturando para marcar os extremos. Havia gradações, mas o fato é que isso praticamente impediu, pelo menos até o início dos anos 1950, no mundo inteiro, inclusive no Brasil, uma interlocução qualquer entre a tradição marxista e o Serviço Social enquanto profissão.

Já no final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960, o panorama mudou – e por um conjunto de fatores. Em primeiro lugar porque a tradição marxista foi obrigada a reconhecer que em seu nome gravíssimos erros políticos e sociais foram cometidos. Os marxistas foram obrigados a verificar, por exemplo, que a experiência do stalinismo violara as mais fundas tradições humanistas e críticas que tinham raízes em Marx. Os marxistas experimentaram um processo de mudança. Por seu turno, o conservadorismo tradicional do Serviço Social sofreu uma grande deterioração. Basta pensar, por exemplo, nos rumos tomados pelos católicos com a ação de João XXIII, com a igreja conciliar e pós conciliar. A igreja católica, que historicamente teve a sua hierarquia – quando não o grosso dos seus clérigos – comprometido com poderes políticos conservadores e/ou reacionários, também mudou.

A partir dos anos de 1960, a igreja católica passou por significativas transformações que afetaram também diretamente o laicado. Estou me referindo a igreja católica, mas isso vale igualmente para segmentos de igrejas provenientes da Reforma, que também passaram por verdadeiras metamorfoses. A partir de então — e, aqui, penso especialmente nos desdobramentos no Serviço Social brasileiro — a igreja católica se transformou. Não se pode dizer que, a partir dos anos de 1960, a igreja católica foi um suporte do conservadorismo e do reacionarismo político.

Outras modificações societárias, no mundo inteiro, contribuíram para diminuir aquela clivagem histórica entre Serviço Social e tradição marxista: os movimentos revolucionários no Terceiro Mundo, em especial na América Latina; as mudanças no público do Serviço Social — predominantemente feminino —, até então muito doméstico, muito voltado para dentro de si mesmo; as modificações que começam a operar nesses anos 1960 no mercado de trabalho do assistente social e que alteram profundamente o papel e a posição sócio-ocupacional dos assistentes sociais. Quero lembrar a vocês que, quando entrei na faculdade, ainda existia o mito do assistente social como profissional liberal... A realidade era bem outra: era a de um profissional assalariado – realidade que, reconhecida, alterava profundamente o horizonte político-ideológico dos assistentes sociais.

Em suma, o que quero dizer-lhes é que, nos anos 1960, aquela fratura histórica entre tradição marxista e Serviço Social vinha se esbatendo. Não foi por acaso, portanto, que às vésperas da década de 1970, no mundo e na América Latina, criaram-se condições para uma interlocução entre Serviço Social e tradição marxista.

Cumpre fazer aqui algumas ponderações a respeito daqueles anos. A interlocução a que me refiro se processou no mundo inteiro. Entre nós, frequentemente se tem uma visão provinciana, endogenista, da história da nossa profissão. Pensa-se geralmente o Serviço Social no Brasil ou, quando muito, na América Latina. A verdade é que, à época, no mundo inteiro abre-se a interlocução entre tradição marxista e Serviço Social. Não posso aqui me deter sobre as condições que propiciaram a abertura referida (na Europa, os impactos de maio de 1968; na América do Norte, as lutas pelos direitos civis e contra a guerra do Vietnã). Ocorreu especialmente na França de maneira muito marcada, na Itália, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Isso expressa o quê? Que aquelas transformações que a tradição marxista vive, especialmente depois da crítica ao stalinismo, e as transformações que igrejas vivem no período pós-conciliar interagiram e introduziram alterações e diferenciações, seja na tradição marxista, seja no corpo do Serviço Social.

Na Itália, já mesmo no período de resistência ao fascismo, correntes católicas tinham um diálogo forte com correntes comunistas. Neste mesmo país, inclusive, criou-se no período do pós-guerra uma designação muito curiosa, a dos catto-comunisti, os católicos comunistas que não deixaram de ser católicos, mas tinham um diálogo com a tradição comunista e práticas políticas comunistas. Todavia, ali o desenvolvimento do Serviço Social era muito débil. Na Inglaterra, a experiência do Welfare State facilitou a interlocução do Serviço Social com a tradição marxista – interlocução que ali se desenvolveu bastante. Nos Estados Unidos, o Serviço Social sempre foi muito diferenciado e os processos vivenciados pela profissão jamais derivaram na formação de uma qualquer homogeneidade; de fato, tendências progressistas no interior do Serviço Social existiram entre os anos 1920-1950 e os anos 1950; mas, como sabemos, foram tendências asfixiadas, sufocadas pelo conservadorismo – e não se esqueça o que significaram os anos do macartismo nos Estados Unidos. Entretanto, havia uma diferenciação interna nos dois campos – Serviço Social e tradição marxista – que, nos anos 1960, se tornou visível e muito significativa, facilitando a interlocução entre ambos. Observemos que a experiência da Europa, nórdica e ocidental, foi muito diversa; no norte, as políticas social-reformistas que vinham dos anos 1930 favoreceram a interlocução mencionada; no coração europeu – a República Federal alemã (a antiga Alemanha Ocidental) – mantinha restrições à atividade pública dos comunistas, o que obviamente interditou, em termos práticos, a interlocução a que estamos nos referindo; e, enfim, as ditaduras fascistas de Portugal e Espanha só foram derrotadas em 1974 e 1975 – e só então, nestes dois países, pode se iniciar uma interação democrática e produtiva entre os sujeitos sociais envolvidos na interlocução mencionada.

Aqui na América Latina esse fenômeno da interlocução foi muito forte, especialmente no período da chamada reconceituação. Quando se analisa o fenômeno, seja do lado da tradição marxista, seja do lado do Serviço Social, o que se percebe é que essas possibilidades de interlocução também foram propiciadas pelas modificações ocorrentes na formação dos assistentes sociais. Até os anos de 1960, esta era uma formação muito doméstica, voltada para dentro de si. Mesmo na Europa e até nos Estados Unidos, muito mais na Europa que nos Estados Unidos, a formação acadêmica dos assistentes sociais era muito isolada. Na Europa se mantiveram até os anos 1980 as diferenças na formação profissional entre o nível técnico, tipicamente de ensino médio profissional, e a formação acadêmica stricto sensu, que concedia à graduação uma licenciatura. Na América Latina, nos anos 1960/1970, houve uma verdadeira transformação em boa parte das escolas de Serviço Social. Ela resultou sobretudo, naqueles anos, da conjunção de iniciativas de vanguardas docentes e discentes, nas quais o protagonismo do movimento estudantil foi absolutamente importante. Conheço com mais profundidade o que ocorreu no Brasil, mas processo similar deu-se também na Argentina, no Uruguai e no Chile. No caso brasileiro, o processo foi protagonizado por figuras que ingressaram nas escolas por volta de 1960, cuja militância no movimento estudantil, frequentemente no movimento estudantil católico, abriu as portas para o diálogo com o marxismo.

Eram jovens estudantes que, à época, não se transformaram necessariamente em marxistas e, quando docentes, também não aderiram ao marxismo – contudo, passaram a ter uma interlocução que não existia antes com a tradição marxista. Isso foi reforçado também no interior das universidades pela crise das ciências sociais acadêmicas. Mas além dos grandes sociólogos dos anos 1960, o processo também envolveu alguns pedagogos e economistas. Uma das implicações daquela crise foi a erosão das fronteiras tradicionais das ciências sociais. A demarcação acadêmica dos seus territórios, antes muito nítida e definida, se foi esbatendo. No meu tempo de estudante, qual era o “objeto” dos antropólogos, senão o cuidado com “sociedades primitivas”? E com o que os antropólogos passaram a se ocupar nas duas décadas seguintes? Com a cultura, urbana e não apenas a das populações “atrasadas”. Este é um bom exemplo da erosão dos limites científicos e teóricos convencionais. E uma tal erosão acabou por favorecer, já em fins dos anos 1960, uma interlocução acadêmica com a tradição marxista.

Estou convencido de que o estabelecimento dessa interlocução — que é muito visível a partir nos 1970, que não é um fenômeno particular do Brasil, mas é um fenômeno mundial — foi muito produtivo para os dois campos: Serviço Social e tradição marxista (NETTO, 1989NETTO, José Paulo. O serviço social e a tradição marxista. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.º 30, p. 89-102, maio/ago., 1989., p. 99-100). Do ponto de vista dessa tradição, começou-se a desmontar e, efetivamente a romper, com o estereótipo do assistente social como “a moça que o governo ou patronato paga para moderar os trabalhadores”. Essa visão trazia, em si, também, o menosprezo pela formação intelectual do assistente social e era dominante no campo marxista. Ora, os jovens assistentes sociais (e não só os jovens) se comprometeram, primeiro, com as exigências intelectuais, de sua formação e, segundo, com a consequência das suas práticas políticas – e, ao fazê-lo, obrigaram os marxistas a ter uma relação nova com os assistentes sociais e sua profissão. A interlocução beneficiou a todos: os marxistas superaram os seus preconceitos e, por seu turno, os assistentes sociais, particularmente os mais jovens, deixaram de ver o marxismo como “ideologia ateia” e inimiga da “civilização cristã e ocidental” – passaram a vê-lo como uma teoria social com a qual é possível aprender. Eu diria que houve ganhos dos dois lados. De qualquer maneira, há um ponto a ser ressaltado aqui: nos mais diferentes quadrantes, todas essas novas condições ocorreram (e continuam a ocorrer nos dias de hoje) processualmente.

Interessa-me nesta oportunidade especialmente o Serviço Social no Brasil. Quando examinamos o seu desenvolvimento nos anos 1960-1970, verificamos distintas dimensões nessa processualidade. Constatamos, por exemplo, mudanças na alocação sócio-profissional dos assistentes sociais e vemos que os assistentes sociais passam a se reconhecer como profissionais assalariados. Por outro lado, eles começam a ter exigências intelectuais novas. Penso que isso resta evidente quando se analisa o interesse pelos cursos de pós-graduação. O interesse do Serviço Social pela pós-graduação é, no Brasil, um fenômeno dos anos de 1970. No entanto, só se torna um fenômeno significativo, massivo, a partir do final dos anos de 1980. O assistente social passa a não querer ser apenas a força de trabalho prática que aplica um conhecimento elaborado no âmbito das ciências sociais. Ele passa a querer dominar, controlar os conteúdos dessas ciências. E, em consequência, ele passa a desenvolver uma visão diferente da sua prática profissional. Não estou querendo dizer aqui que houve uma mudança substantiva na prática profissional – mas que os assistentes sociais começaram a ter uma concepção diferente do que a sua prática profissional lhe oferecia. Esta prática passou a ser tomada por eles como um campo que, tratado teoricamente, pode/poderia produzir conhecimentos. Isso é algo absolutamente importante. Penso que essa concepção nova, emergente, relativa às suas práticas, de assistentes sociais com suas práticas não vai gestar, se tratada teórica e sistematicamente, como sustentaram alguns, uma “teoria” do Serviço Social. Está aqui um ponto de polêmicas.

O Serviço Social construirá uma teoria própria? Penso que não. Quando fiz esta reflexão – e continuo a fazê-lo –, meus companheiros assistentes sociais questionaram/questionam: não temos teoria? Minha resposta foi e é negativa. Mesmo quando o assistente social elabora teoricamente objetos da sua prática, mesmo quando dispõe de instrumentos crítico-analíticos e teóricos para dilucidar objetos da sua práxis, ele está produzindo conhecimentos sociais. E isso é algo legítimo tanto ou mais do que o que se vê em relação a qualquer outro profissional que trate teoricamente o seu campo de intervenção. E, de fato se gestou, de maneira rigorosa e sofisticada, uma massa crítica no Serviço Social a partir dos anos de 1980. O profissional assistente social se tornou um interlocutor teórico das ciências sociais. E este assistente social de perfil novo — não quero dizer que a prática foi renovada ainda, mas vou chegar lá — travou uma interlocução com o marxismo, enquanto teoria social macroscópica (NETTO, 1989NETTO, José Paulo. O serviço social e a tradição marxista. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.º 30, p. 89-102, maio/ago., 1989., p. 99), que foi extremamente útil para o Serviço Social. Isso não transformou o Serviço Social em um Serviço Social marxista, mas ela ofereceu a assistentes sociais, inclusive aqueles que não eram e não são marxistas, instrumentos de análise que lhe abriram a via para um conhecimento mais preciso do seu objeto de intervenção.

Reitero: tal interlocução foi útil para os dois campos, para a tradição marxista e para o Serviço Social. O Serviço Social (isto é: o assistente social) começou a produzir conhecimentos sobre o seu objeto de intervenção, sobre seu objeto histórico de intervenção – a assistência social. Trata-se de conhecimentos de que o assistente social até então não dispusera. Eu afirmaria que a tradição marxista (isto é: os teóricos marxistas) verificou os avanços do Serviço Social nesta direção, compreenderam a sua relevância e também passaram a adquirir conhecimentos novos. Quando, nos anos 1980-1990, intelectuais do Serviço Social, alguns marxistas, outros não marxistas, mas que tinham uma interlocução com a tradição marxista, começaram a tratar a assistência social como um campo a partir do qual se poderia produzir conhecimentos, eles não estavam elaborando um conhecimento teórico do Serviço Social. Estavam produzindo conhecimentos teóricos sobre um processo social da maior significação. Este foi um enorme avanço do Serviço Social, um verdadeiro salto de qualidade. Foi uma primeira conquista dessa interlocução entre Serviço Social e tradição marxista e que me parece válida para hoje, mesmo na conjuntura histórica tão diferente que estamos vivendo (e assinalarei diferenças): com efeito, marxistas e assistentes sociais puderam conhecer concretamente as possibilidades e os limites de um significativo espaço de intervenção.

Estes conhecimentos produzidos por assistentes sociais não são “teoria(s)” do Serviço Social. São conhecimentos que passam a constituir a massa crítica das ciências e teorias sociais e, logo, incidem no campo da tradição marxista. Pouco importa se os assistentes sociais que se envolveram na produção desses conhecimentos eram marxistas ou não – alguns o eram, vários não, provindos de outros lugares do espectro científico e/ou sócio-político. De qualquer modo, valeram-se objetivamente de instrumentos analíticos que o diálogo franco com a tradição marxista lhes tornou acessíveis. Eu diria que isto foi absolutamente importante. E diria mais: continua sendo absolutamente importante nos dias de hoje – a interlocução entre o Serviço Social e a tradição marxista, realizada sem apriorismos e preconceitos de parte a parte, continua sendo um terreno extremamente fecundo para as duas tradições.

É evidente que as condições histórico-sociais e político-culturais para o prosseguimento dessa interlocução se transformaram sensivelmente. É impossível, nesta oportunidade, aprofundar a discussão acerca de tais transformações. Apontarei sumariamente uns poucos dos seus constitutivos.

A primeira questão a se levar em conta são as mudanças que afetam a universidade pública. Todos conhecem a minha posição, expressa desde longa data, de defesa, em todos os níveis, da escola pública, gratuita e laica. Nada tenho contra o ensino privado e/ou confessional, mas também nada tenho a seu favor: se uma congregação religiosa ou um grupo de empresários capitalistas quiser abrir a sua escola, de qualquer nível, que possam fazê-lo livremente – mas que nenhum dinheiro do erário público/estatal, nenhum centavo lhes seja prodigalizado (nem, obviamente, favores fiscais/tributários). Quero, todavia, acrescentar nesta defesa da escola pública mais um qualificativo: que seja, em todos os níveis, uma competente. Não creio enganar-me se desconfio que a escola pública e, em particular, a universidade pública, nos últimos 20 anos sofreu tantos ataques, tantos recortes, tantos processos de sucateamento que inevitavelmente isso comprometeu a sua competência. A contrarreforma universitária começou no governo do “príncipe da sociologia brasileira” — Fernando Henrique Cardoso. O seu ministro da educação, que foi reitor de uma universidade — Paulo Renato de Souza, que Deus o tenha —, por volta de 1997 iniciou uma contrarreforma universitária que avançou sob todos os governos subsequentes e parece que hoje atinge o seu cume, com cortes orçamentários e a propagação de uma visão distorcida e negativa a respeito do papel desta instituição. E, especificamente na área das ciências sociais e humanas, a ação destrutiva se processou (e processa) não somente por medidas governamentais, mas também pelo viés da degradação cultural e ideológica que é própria do capitalismo tardio. Várias modas formatadas em moldes modernosos (e profundamente ideologizados) — vocês podem dar o nome que quiserem: p. ex., crises paradigmáticas, pós-modernidades — que vieram depois dos anos de 1980 corroeram ou afetaram duramente algumas ciências ou algumas teorias que eram e são fundamentais para a formação cultural dos profissionais. Poucas ciências sofreram ou foram abaladas tanto quanto a história e a economia: historiadores voltaram-se para narrativas e economistas viraram meros consultores (quando não operadores diretos) de investimentos em bolsas de valores; quando chegam a ministros de Estado, geralmente têm como aval o seu êxito enquanto gestores de grupos bancário-financeiros e pretendem conduzir as finanças públicas segundo a lógica privado-empresarial – os resultados são conhecidos e sabemos do custo altíssimo a onerar o pato de sempre, a massa trabalhadora.

Parece-me que, nesses últimos 20 anos, o padrão do trabalho intelectual na universidade foi bastante degradado. Temos hoje um público universitário — no qual está incluído o público do Serviço Social — que, para estabelecer uma interlocução qualquer com a tradição marxista, não dispõe dos recursos culturais necessários para isso. Também o corpo docente vê-se em dificuldades, seja pela sua própria formação (a renovação geracional levou à docência quadros muito jovens e, em grande proporção, já fruto da contrarreforma de fins dos anos 1990), seja pela precarização da carreira acadêmica. Ademais, e por seu turno, a tradição marxista perdeu muito da sua gravitação nos círculos intelectuais. Assim, a interlocução tão necessária entre tradição marxista e Serviço Social fica muito prejudicada – interlocutores de ambos os lados, mas marcadamente do lado do Serviço Social, contam com menores recursos culturais.

Há, no entanto, um outro elemento a considerar: a mais recente vaga de satanização da tradição marxista. É possível constatar este fenômeno especialmente nos anos mais recentes. O marxismo deixou de ser uma tradição cultural, um acervo teórico que pode e deve ser criticado nas suas bases teóricas e passou – de modo muito vulgar, ignorante e grosseiro – a ser estigmatizado quase no limite da sua criminalização. Este processo foi facilitado, em alguma medida, pelas modernosidades já referidas; mas a sua vigência (certamente tão destrutiva quanto temporária) deita raízes no irracionalismo que mencionei na abertura desta intervenção.

Voltemos, contudo, a um dos ganhos passados do Serviço Social na sua interlocução com a tradição marxista: a produção de conhecimentos sobre a assistência social. Parece-me que os avanços e conquistas realizados pela reflexão teórica de assistentes sociais viram-se problematizados nos últimos quinze anos pela priorização quase absoluta da intervenção profissional neste campo. A meu modesto juízo, esta priorização, privilegiando a assistência, derivou no equívoco de supô-la, tácita ou expressamente, um meio para a transformação social substantiva (isto é: estrutural) – equívoco que subsidiou políticas públicas no Brasil e foi retroalimentado por elas. Esta priorização quase absoluta tendeu a converter a prática assistencial (não só necessária, mas legítima enquanto vinculada a direito social) num neo-assistencialismo. E um de seus rebatimentos se evidencia no que me parece ser uma redução (também ela equivocada) da análise e da prática profissional dos assistentes sociais. Este fenômeno não se verifica apenas no Brasil – eu diria que se trata de um fenômeno internacional; sem poder discuti-lo nesta oportunidade, não posso deixar de sugerir que ele se insere no quadro atual dos reformismos social-democratas, cada vez mais minimalistas.

É preciso considerar ainda outras mudanças no campo do Serviço Social no Brasil. Eu diria que, nos anos 1980/1990, as concepções dos assistentes sociais — mas não só deles entre os trabalhadores e analistas da vida social — eram concepções que traziam um horizonte universalista. Já na entrada do presente século, em decorrência de um avanço positivo, a meu ver, de demandas de segmentos sociais muito determinados começaram a surgir outras pautas. Podemos pensar, por exemplo, nas demandas feministas e na luta feminista que é uma luta que importa pela sua dimensão universal. Emergiram pautas ligadas a gênero, a tradições culturais específicas e várias outras. O desenvolvimento dessas pautas e dessas agendas a mim parece um ganho muito importante na luta em defesa da democracia e de horizontes universais. Entretanto, nos últimos anos, parte significativa dessas pautas tomou vieses identitários. Estas pautam tendem — não estou dizendo que necessariamente — a deslocar os horizontes universalistas, corporativizando demandas. Estou absolutamente convencido de a perda do horizonte da universalidade é uma perda da densidade democrática dessas pautas. Corporativizadas, tendem a ser incorporadas e neutralizadas na dinâmica da sociabilidade burguesa — aliás, isto já está a ocorrer — em prejuízo de demandas, organizações e instituições que guardam seu horizonte universalista.

No âmbito do Serviço Social essa corporativização tem influído com força, mas tenho a estou convicção de que o Serviço Social reuniu forças ao longo dos últimos 50 anos para resistir a essa ofensividade do identitarismo. Quando reli aquele meu artigo de 1989, um dos confortos que eu tive foi o de ver que nele eu já chamava a atenção para o risco da corporativização de demandas. Refletia sobre como isso, de alguma maneira, implodiria demandas universalistas. Isso me confortou muito e eu pensei: caramba, foi uma das poucas vezes que eu acertei...

Por outro lado, preciso dizer que fiquei preocupado porque o que vejo hoje é o identitarismo associado ao neoconservadorismo no Serviço Social. Não o conservadorismo antigo, mas um novo tipo de conservadorismo que parece algo que deveria preocupar os segmentos profissionais de vanguarda. Percebo a existência de pautas excludentes, pouco abertas a demandas mais amplas a discutir. Devemos observar que tais pautas, por mais radicais com que se apresentem — o radicalismo verbal e retórico é uma das coisas mais fáceis do mundo — podem segregar o ovo da serpente.

Enfim, concluo esta intervenção sem exorbitar o tempo que vocês me concederam. Peço-lhes desculpas: vocês ouviram um velho pensador que só tem a lhes oferecer mais dúvidas do que qualquer tipo de receita para solucioná-las. De todo modo, se estas palavras forem um fermento para que sejam desenvolvidas outras ideias e concepções, estarei satisfeito. A última coisa que eu gostaria de fazer no mundo é cabeças. Creio que o grande prazer da vida é a gente pensar autonomamente, mas pensar autonomamente não quer dizer pensar solipsisticamente, individualisticamente. É pensar sem gurus, sem precisar de gente que nos conforte – mas de gente que nos fustigue, nos instigue, nos conclame e nos estimule a desenvolvermos ideias. O bom do diálogo entre diferentes não é a pretensão de convencimento de um em relação ao outro. O bom de um diálogo entre interlocutores diferentes é propiciar a cada um deles a possibilidade de desenvolver melhor e submeter à sua própria crítica as ideias que professam.

Muito obrigado.

Jaime Hillesheim: Muito obrigado professor! Se estivéssemos em um auditório certamente todas as pessoas estariam aplaudindo, haja vista as manifestações registradas pelo chat no nosso canal do YouTube. Foi, como não poderia deixar de ser, uma fala brilhante e que trouxe muitos elementos para pensarmos a realidade social, sempre na perspectiva da sua transformação, especialmente nesse momento em que a classe trabalhadora vive importantes processos regressivos. Sua fala também aponta para dilemas e desafios profissionais que de fato só poderão ser enfrentados com a radicalidade própria da perspectiva teórico-metodológica marxiana.

José Paulo Netto: Você me permite uma pequena observação? Você falou no início da sua apresentação sobre a biografia de Marx sobre a qual eu trabalhei nos últimos tempos e eu gostaria de dar uma informação para vocês: a publicação dessa biografia está programada para muito breve. É a minha modesta, porém muito séria, contribuição e socialização do conhecimento sobre a vida de Marx. O livro tem mais de 800 páginas e se intitula: Karl Marx: uma biografia (NETTO, 2020NETTO, José Paulo. Marx: uma biografia. São Paulo: Boitempo, 2020.). Então quero dizer que ele já está, nos velhos tempos dos autores da tipografia, no prelo. Obrigado por me permitir esse comercial.

Jaime Hillesheim: Não por isso, professor! Muitas perguntas chegaram aqui e nós as organizamos em dois grandes blocos em virtude da natureza delas. As primeiras perguntas foram assim formuladas: 1) Dado o avanço do neoconservadorismo no interior da profissão, como também na sociedade brasileira, como pensar a resistência político-organizativa?; 2) As características particulares do capitalismo dependente no Brasil, nos termos de Florestan Fernandes, trazem também singularidades para interlocução entre o Serviço Social e a tradição marxista?; 3) É possível dizer que o sincretismo continua sendo um traço medular, constitutivo do Serviço Social enquanto profissão? Isso se reatualiza na profissão no cenário pós anos 60, pós reconceituação?; 4) Como o professor avalia o ensino do marxismo na graduação e a mediação do marxismo no cotidiano do trabalho dos profissionais?; 5) Como lidar com a precarização da formação em Serviço Social, na qual claramente não há o aprofundamento e entendimento de suas bases histórica e ético-política?

José Paulo Netto: Serei telegráfico para podermos ir para um segundo bloco. Quero começar com uma questão da maior importância, que foi a primeira: sobre o neoconservadorismo na sociedade e no Serviço Social. Eu quero dizer que é umas das questões mais sérias com as quais os setores democráticos, especialmente os setores democráticos mais avançados, têm que lidar. E, notem, não falarei agora de neoconservadorismo, falarei conservadorismo da sociedade brasileira. A nossa sociedade é uma sociedade extremamente conservadora. Esses fenômenos mais grosseiros que estamos assistindo, como a do desembargador que na praia de Santos desqualifica o policial que estava cumprindo com o seu dever; a moça que aqui no Rio de Janeiro pergunta ao policial que estava tentando acabar com a violação da lei do distanciamento social em face da pandemia nos bares: “o senhor sabe com quem está conversando?”. Isso é histórico entre nós. Isso é herança de quatro séculos de escravatura. Estamos numa sociedade que emergiu de um escravismo colonial que fez o diabo com os negros e que hoje questiona essa coisa mínima que são as cotas.

O conservadorismo na nossa sociedade é algo brutal. Ele andou escondido nos últimos 15 ou 20 anos. Agora, com as condições políticas que estamos todos conhecendo, ele veio à tona. No Serviço Social existe um conservadorismo mais sofisticado, que posa de pós-moderno, que cita autores da moda, que usa os jargões da mídia. É em face disso que temos que batalhar. Como vamos enfrentar isso? Eu diria tem que ser uma luta dirigida com claras palavras de ordem, claras. Vidas negras importam, como importa a luta das mulheres, mas sem perder o horizonte da universalidade. Isso aí é a expressão de um claro domínio de classe. Há que colocar as questões vinculadas às classes sociais. Ainda que esse conservadorismo seja transversal às classes, há quem ganhe com ele. Esse enfrentamento é dificílimo! Quero dizer para vocês que essa é uma tarefa de gerações. Eu vou repetir, de gerações. Contudo, isso não pode nos desanimar nessa luta. Não podemos subestimá-la, julgando que gritar muito contra ela resolve. Não resolve não. Este é um trabalho que deveria começar dentro de casa, nas famílias, mas eu diria que dificilmente começa no interior dessa instituição porque as famílias são majoritariamente conservadoras. Está aqui outra das muitas razões pelas quais defendo a escola pública, gratuita e laica. É lá na escola pública, onde branco, preto, pardo, mestiço têm que conviver. Eu vivo isso na própria carne: tenho duas netas — de sangue, são da minha companheira; socialmente, que é o que conta, são minhas netas — que nunca conviveram diretamente com pretos. Elas têm 10 anos. A escola que frequentam, uma escola caríssima, obviamente não tem alunos negros. Como é que se faz? Dá para visualizar a luta que temos pela frente?

Alguém questionou sobre a particularidade do capitalismo dependente e citou nosso grande e querido mestre Florestan Fernandes. Isso tem a ver com a precarização da formação. Quem está estudando Florestan Fernandes na universidade? Na graduação? O silêncio responde eloquentemente. É evidente que estamos falando de um tipo de conservadorismo que é muito próprio não de uma sociedade burguesa avançada. Mas, não nos iludamos, a sociedade do capitalismo desenvolvido tem muito de conservadorismo, assim como tem de racismo. No entanto, nelas as tarefas da luta democrática e antirracista são diferentes. Aqui, lembrem-se de Millôr Fernandes: a convivência é boa entre brancos e negros, impera uma democracia racial “porque o preto sabe o seu lugar”. Como dizia o professor Florestan Fernandes, nem a emancipação política que falava Marx foi realizada aqui. O resultado da revolução burguesa que Florestan estudou no Brasil foi a ditadura de 1964. Uma das particularidades históricas brasileiras é que, se a nossa burguesia teve em certo momento algum ímpeto emancipatório, foi algo efêmero e pontual. Hoje, sua grande tarefa consiste, ademais da exploração do trabalho, em assaltar o fundo público. É curioso: vocês estão assistindo a denúncias de corrupção para tudo quanto é lado, mas são agentes políticos os acusados. A nossa grande burguesia tem o que a ver com isso?

Alguém interveio muito simpaticamente, falando do sincretismo. Essa é uma das ideias pelas quais eu fui mais criticado no interior do Serviço Social... Felizmente há algumas teses, inclusive no exterior, que se valem dessa forma para entender o Serviço Social. Eu ainda estou convencido de que a ideia de pensar o Serviço Social tematizando o sincretismo me parece fecunda.

Vejamos a questão da precarização da formação. Creio que vocês perceberam que eu considero este um dos problemas mais graves dentre os que nos afligem. Não quero falar aqui da universidade privada, pois já disse que sou, em todos os níveis, pelo público, gratuito, laico e competente. Tenho em relação à universidade privada a mesma posição que mantenho diante de negócios capitalistas; igual que estes, tais universidades são empresas cujo objetivo é gerar lucro (participam de negociações bursáteis). Vejam: moro no Rio de Janeiro, numa área que tem muitos shoppings centers e em vários deles há luxuosas instalações universitárias, funcionando ao lado de lojas ditas de grife, de restaurantes caríssimos, que servem à pretensa elite e uns magnatas da política (um deles, uma churrascaria, tem o nome – só pode ser uma ironia dos proprietários – de Pobre Juan). A universidade privada no Brasil, salvo exceções que se contam em poucos dedos, é um negócio como qualquer outro. É óbvio que não comprometo neste negócio lucrativo o grosso dos professores que nelas trabalham e que, na sua maioria, têm a sua alocação sócio-profissional fortemente precarizada. Sei que são trabalhadores submetidos a condições muito difíceis.

Ficou claro para vocês que me preocupa o déficit cultural das novas gerações acadêmicas – não só do Serviço Social, mas também do Serviço Social. Eu diria que a solução para a superação deste déficit demandará profundas e estruturais modificações do Estado brasileiro, não contempladas nas “reformas” em curso. Não creio que, no curso prazo, esse problema só vai se agravar.

Em relação ao questionamento acerca do ensino do marxismo na graduação, eu quero lhes dar uma ilustração da minha postura pessoal. Conversem com ex-alunos meus, alguns vocês têm hoje como seus professores. Marxista convicto e confesso (uso aqui uma auto-definição do grande sábio peruano que foi José Carlos Mariátegui), nunca me vali da cátedra acadêmica para fazer proselitismo político e/ou partidário. Não sou weberiano, mas aprendi muito estudando Weber: com ele, firmei a convicção de que a cátedra não é espaço para discursos partidários. Quem foi meu aluno pode atestar que, em cursos sobre método nas ciências sociais, mesmo abordando Marx, aliás parte do programa, fiz questão de tematizar a importância de Durkheim e Weber. Sou inequivocamente contra a utilização da universidade como escola de partido. Para lecionar marxismo, temos as escolas dos partidos de esquerda. O que cumpre à universidade é oferecer uma informação correta e pluralista das matrizes das ciências sociais. Há que tratar Marx com honestidade, há que tratar Durkheim com honestidade, há que tratar Weber com honestidade. Os cursos de introdução à sociologia, de economia política, de antropologia têm que abordar esses teóricos na sua inteireza, na sua relevância e nas suas diferenças. E na pós-graduação, especialmente no doutorado, há que retomá-los, mas envolvendo nos debates autores do século XX (Talcott Parsons, Wright Mills, Alvin Gouldner, A. Touraine, P. Bourdieu, N. Luhmann, J. Habermasntem et alii); no doutorado, há que cuidar da cultura acadêmica contemporânea.

Sou contra a escola de partido – sou favorável a que partidos e organizações políticas e sindicais tenham as suas escolas (aliás, participei de algumas delas). Mas me oponho a que se utilize a escola pública para fazer proselitismo e propaganda (procedimento típicos de serviçais da burguesia). Todos os meus alunos na graduação e na pós-graduação sabiam perfeitamente que estavam lidando com um marxista que não escondia a sua condição. Sabiam até mais, inclusive da minha filiação político-partidária; mas não levei ninguém para o meu partido – se alguém chegou a ele, foi com as suas próprias pernas.

Jaime Hillesheim: Faremos apenas mais um bloco de questões e desde já pedimos desculpas a quem nos acompanha na transmissão deste webinário porque não conseguiremos apresentar todas as questões enviadas. As questões deste segundo e último bloco são as seguintes: 1) Quais exemplos o Serviço Social pode absorver das resistências camponesas como aquelas dos anos de 1950? Estou pensando na atuação dos assistentes sociais nos municípios que vão na verdade constituir o território do colonialismo e das políticas públicas; 2) Como o professor analisa a questão da consciência política dos trabalhadores brasileiros na atualidade? Tivemos avanços?; 3) Caro mestre José Paulo Netto, enquanto docente universitária, como podemos enfrentar a desqualificação das ciências e o adoecimento da classe trabalhadora?; 4) Quais são as estratégias para a rearticulação das forças políticas socialistas no contexto de Bolsonarismo e enfrentamento da pseudoesquerda institucional? Qual o provável futuro do PT e da CUT?; 5) É possível uma leitura crítica da realidade social brasileira por parte dos assistentes sociais sem a leitura e a compreensão dos estudos de Marx e Engels? 6) Como é a sua análise em relação aos mais de 250 anos de escravidão indígena no Brasil, como pensar, a escravidão indígena na época que estamos falando da realidade brasileira e latino-americana?

José Paulo Netto: São demasiadas questões para o tempo que nos resta – e para os meus próprios conhecimentos. Por isto, serei necessariamente breve e seletivo.

Começarei pela questão da escravidão indígena no Brasil. Devo dizer-lhes que só recentemente, graças a um livro editado pela Expressão Popular, vinculada ao MST, é que eu tomei consciência da magnitude e da brutalidade da escravidão indígena no Brasil. É claro que estudando o Brasil colonial eu me deparei com o papel da escravidão dos povos autóctones, mas ignorava a sua dimensão. O tema ainda está na agenda dos meus estudos meu. Há pouco tempo tomei consciência da magnitude do fenômeno e, portanto, sobre ele ainda sou muito ignorante. Mas estou fazendo o possível para, mesmo velho, preencher essa lacuna.

Quanto à questão sobre possíveis ensinamentos do movimento camponês para o Serviço Social, quero dizer, à partida, que historicamente, no Brasil, o Serviço Social deu muito pouca importância aos camponeses (entendendo camponeses no sentido moderno da palavra, não no sentido em que Marx o tratou nos seus ensaios sobre a França). Para superar o seu geral desconhecimento neste domínio, penso que o primeiro passo que os assistentes sociais que têm interesse nele é se aproximar e conhecer a experiência do MST. O MST é um movimento social seríssimo, que tem uma produção sobre a vida camponesa e a sua memória histórica; o MST não é o único nesta área, há outros, mas eu o menciono porque possui caráter massivo e nacional e é o mais conhecido. Para se ter uma ideia da generalizada ignorância profissional reinante entre nós acerca da história dos camponeses brasileiros, evoco a lembrança de dois companheiros, assistentes sociais sérios: um trabalhava no Paraná e outro em Goiás – e ambos se surpreenderam quando lhes dei uns poucos informes sobre as lutas de Porecatu e Trombas/Formoso.

A questão formulada a respeito da consciência da classe trabalhadora brasileira hoje nos estimula a pensar sobre a necessidade de se fazer pesquisas como aquelas que foram feitas no final dos anos de 1970 e no princípio dos anos de 1980 por pesquisadores como Celso Frederico – tanto a dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Celso Frederico tiveram esta questão como seu objeto central. Mas, como diria um estudioso do assunto, Ricardo Antunes, muita coisa mudou no “mundo do trabalho”. Atualmente, muitos pesquisadores estão investigando o tema e há uma produção significativa à nossa disposição, em especial focada em determinadas categorias de trabalhadores. Mas eu diria que não temos um quadro suficiente que nos autorize a falar — eu, pelo menos, não me sinto autorizado para fazê-lo — sobre “a consciência política” dos trabalhadores brasileiros. Porém, não quero deixar de lembrar que, quando se tem um nível de desemprego como o que estamos vivendo hoje, quando se presencia uma imensa pauperização dos trabalhadores, é uma ilusão, perigosa ilusão, imaginar que essa massa monumental de desempregados e homens e mulheres famélicos sirva como base para transformações políticas progressistas. Basta conhecer um pouco da história dos fascismos clássicos para ver onde eles reuniram suas forças de choque. Por isto, quando vemos as tarefas que temos pela frente, podemos perceber que são tarefas urgentes e de largo fôlego.

Em relação ao questionamento sobre as estratégias socialistas e o futuro do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), o que eu tenho a dizer é que eu gostaria muito que o PT tivesse futuro. Penso que o Brasil necessita de um grande suporte sindical para viabilizar um partido social-democrata de massas, algo que o PSDB nunca foi. Quanto ao futuro do PT, parece-me que pouco tem a ver com o socialismo. Nunca identifiquei o PT como um partido socialista, embora a agremiação tenha contado, especialmente do seu nascimento à passagem dos anos 1980-1990, com expressivos e sérios segmentos e figuras socialistas. No que toca a Lula – que eu quero ver em liberdade, vítima que é de perseguição política – nunca tive quaisquer ilusões sobre a sua consciência política própria de trade-unions

No que se refere à CUT, ela me parece meio em hibernação. Desempenhou um papel importante em momentos passados. Tanto quanto de um importante partido social-democrata — mas um partido social-democrata sério — precisamos de uma central de trabalhadores que aposte na unidade (não necessariamente na unicidade) dos movimentos dos trabalhadores, sem hegemonismos, disputando a hegemonia na ação e não querendo decretá-la.

Não posso deixar de assinalar que vejo como obrigação e dever dos partidos e organizações de esquerda investir fortemente na educação política dos trabalhadores, na sua formação política. Não passa de puro anacronismo imaginar que militante de esquerda é aquele sujeito que fica agitando uma bandeira vermelha e rugindo palavras-de-ordem em passeatas e comícios. Há que formar, qualificar politicamente os militantes. Daí a minha referência e o meu grande respeito pelo MST, que vem conduzindo um trabalho sério de formação dos seus quadros.

Em relação à questão de como vamos reagir aos processos de desqualificação das ciências, que são parte da vaga irracionalista em curso, eu diria que cabe mobilizar e organizar os seus sujeitos profissionais (no Brasil, seu espaço de inserção constitui-se básica, mas não exclusivamente, de instituições de caráter público: universidades, centos de pesquisa). Trata-se de tarefa difícil, mas inteiramente viável: para a maior parte desses sujeitos, a defesa da racionalidade científica e do desenvolvimento da pesquisa transcende cortes de natureza político-ideológica.

Quanto ao adoecimento da população trabalhadora, quer-me parecer que deve ser abordado no quadro de uma ampla e sistemática defesa/ampliação do aparato físico e do quadro dos servidores profissionais das instituições públicas que atendem à população brasileira. Trata-se aqui, prioritariamente, de defender o SUS e travar/reverter todas as medidas de privatização (abertas ou tácitas) impostas ao sistema público. Ao mesmo tempo, há que impor as devidas sanções legais aos grupos monopolistas, cada vez mais sob controle internacional, da que exploram a medicina suplementar.

Esta última questão põe sobre a mesa a problemática central que enfrentamos na hora presente: a defesa da democracia no Brasil. Só a luta pela preservação e ampliação da democracia pode oferecer à nossa decisão de resistir perspectivas de futuro. Entendo que a luta pela democracia no Brasil é uma luta que tem que envolver diferentes tipos de democratas. O essencial, a meu ver, é compreender que a necessária unidade das forças democráticas não pode ser vista como uma identidade – identidade é uma coisa, unidade é outra. Unidade é unidade do diverso. Sem ocultar nossa identidade, temos que nos unir aos democratas não pensam exatamente como nós. A luta para resistir até 2022, assegurando o processo eleitoral nos constitucionais, só será exitosa se contar com a unidade de todos os democratas. Estou convencido de que resistiremos mediante a construção de uma grande frente democrática. Urge unir agora democratas de todos os matizes. O depois será decidido pela nossa capacidade de mobilização e organização – o depois virá, em larga medida, da conquista de uma hegemonia que haverá de ser conquistada no processo já em curso e no qual hegemonismos prévios são inaceitáveis.

Ora bem: penso ter falado e respondido, ainda que telegraficamente, aos que me deram a honra de questionar. Não quero terminar sem lhes dizer que estou muito feliz por esta oportunidade de compartilhar com vocês umas poucas das minhas reflexões. Eu quero terminar dizendo para vocês que estou muito feliz de ter tido essa oportunidade de falar para vocês. Agradeço muito pela audiência que, segundo o Jaime, tivemos durante esta intervenção. Ao pessoal da graduação, digo-lhes que, passada a pandemia, e se eu sobreviver a ela, me convidem que participarei de uma atividade com vocês. Lembro especialmente aos assistentes sociais que todos os avanços do Serviço Social no Brasil foram resultados de esforços coletivos. Temos que aprender a ter posições que expressem nossas convicções pessoais, mas temos que ter disposição para o trabalho coletivo, para participar das organizações da categoria, participar dos Conselhos Regionais de Serviço Social, participar dos processos de dão representatividade às autarquias que presentificam a categoria profissional. Não podemos pensar o Serviço Social no Brasil sem o sistema CFESS/CRESS, não podemos deixar de lado o importante movimento estudantil, a ENESSO.

Que vocês tenham saúde em primeiro lugar, sejam solidários e entendam que a luta pela democracia para os brasileiros e para os assistentes sociais, é oxigênio. O Serviço Social só pode se vitalizar sob a vigência da democracia. Qualquer atentado à democracia é um atentado contra o presente e o futuro do Serviço Social.

Muito obrigado, boa tarde! Muita saúde para vocês e suas famílias.

Jaime Hillesheim: Chegamos ao final deste webinário e gostaríamos de mais uma vez agradecer ao professor José Paulo Netto pela sua presença abrilhantando esta iniciativa. Esta intervenção estava sendo bastante aguardada não só por nós aqui, mas por muita gente em todo o País. Queremos agradecer a todas as pessoas que nos acompanharam pelo canal do You Tube, ao corpo docente e discente dos cursos de graduação e pós-graduação em Serviço Social da UFSC e também ao Conselho Regional de Serviço Social da 12ª Região. E, por último e não menos importante, gostaria de agradecer à professora Luziele Maria de Souza Tapajós, minha fiel assessora para assuntos relacionados à tecnologia, e que esteve nos bastidores criando as condições para que esta atividade ganhasse essa dimensão pública de socialização do conhecimento. Sem mais delongas, professor, um grande abraço.

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    Consentimento para publicaçãoConsentimento dos autores.

Referências

  • NETTO, José Paulo. O serviço social e a tradição marxista. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.º 30, p. 89-102, maio/ago., 1989.
  • NETTO, José Paulo. Marx: uma biografia. São Paulo: Boitempo, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
  • Revisado
    11 Jul 2022
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