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Razões (e práticas) de Estado: os mal-estares entre a liberdade e a segurança jurídica

Reasons (and practices) of the State: the discomforts between freedom and legal certainty

Resumo

Trata-se das práticas contemporâneas do Estado brasileiro, especificamente sobre o conflito entre a liberdade e a segurança jurídica, e de qual modo esta tensão fez-se presente nas orientações político-jurídicas de formação e desenvolvimento do Estado de Polícia, posteriormente, do Estado de Direito, e a repercussão atual junto ao Direito Administrativo, notadamente ao serem atribuídos os papeis entre o Estado e a livre-iniciativa.

Palavras-chave:
razões (e práticas) de Estado; liberdade; segurança jurídica; Estado de Polícia; Estado de Direito

Abstract

This article is about contemporary actions performed by the Brazilian State, focusing specifically on the conflict between freedom and legal certainty, and how this tension shows itself in the political and legal guidelines for the formation and development of the Law Enforcement State, later State of Law, and the current repercussions on Administrative Law, particularly when there are roles assigned amongst state and free enterprise.

Keywords:
reasons (and practices) of the State. freedom. legal certainty; Police State; Rule of Law

1. INTRODUÇÃO

Pretendo neste artigo refletir sobre as práticas contemporâneas do Estado brasileiro, mais especificamente sobre o conflito, presente desde a formação do próprio Estado Moderno, entre a liberdade e a segurança jurídica. Sem dúvida, múltiplas poderiam ser as abordagens possíveis a respeito da liberdade, e igualmente acerca da segurança jurídica, mas o caminho que me proponho trilhar segue com este recorte em particular, a perceber o conflito entre dois valores, liberdade e segurança, e de qual modo esta tensão faz-se presente nas orientações político-jurídicas de formação e desenvolvimento do Estado de Polícia, posteriormente, do Estado de Direito, e a repercussão junto ao Direito Administrativo, notadamente ao serem atribuídos os papeis entre o Estado e a livre-iniciativa.

Mas adianto, para que os objetivos aos quais me proponho fiquem claros desde o início, o meu escopo não é relacionar o que é (ou deve ser) serviço público, o que pode - e como pode - contar com a colaboração de particulares em sua execução, e o que necessariamente deve ser reservado à sociedade civil. Antes, preocupa-me - é o enfoque deste artigo - refletir sobre o que precede à tomada de decisões públicas sobre estas definições, isto é, as colisões entre a liberdade e a segurança jurídica na formação e realização da identidade do Estado.

Contextualizado o propósito que me move - o conflito entre liberdade e segurança jurídica na formação e desenvolvimento do Estado de Direito contemporâneo e as missões atribuídas à organização estatal e as atividades dispostas à autonomia privada -, adianto ainda que o escopo em particular não pode ser a vã pretensão de assinalar soluções prontas e definitivas, mas sim tentar algo contribuir ao entendimento das angústias por quais vivemos quando pensamos as nossas práticas de governo, os antagonismos e conflitos - às vezes quase esquizofrênicos - que perpassam as decisões dos governos em todas as suas esferas (federal, estaduais e municipais), pois talvez tenhamos condições, ao nos conscientizarmos das tensões que nos impulsionam - liberdade e segurança jurídica -, de redefinirmos algumas metas e percursos, e cientes de que não é pela interdição ao diálogo - digo, a negação deste conflito - que se pode melhorar o nosso país.

As escolhas e as práticas do Estado brasileiro acerca do que deve competir ao Estado realizar, o que deve contar com a participação de particulares, ou mesmo o que deve ser atribuído à livre-iniciativa não são singelas, mas representam um conflito arquetípico, a tensão entre a liberdade e a segurança jurídica, disputas que compõem a estrutura de nossas mentalidades desde o aparecimento do Estado Moderno, recebem tratamentos diferenciados no curso da história; por isto, não podemos negar, castrar, mas reconhecer estas potências, pulsões em parte conscientes, outro tanto inconscientes, uma força motriz que nos faz caminhar.

2. RAZÕES DE ESTADO

Em geral, considera-se que o Estado Moderno forma-se durante a Idade Média. Os feudos - organizados para a proteção aos moradores da região contra o ataque de povos guerreiros, os “bárbaros” - ordenam-se, agrupam-se, sob a tutela de alguém que detinha maior extensão de posse sobre as terras na região, e ao se elaborar a noção de soberania da qual se reconhece a formação de reinos independentes, e ainda ao se desenvolver a mentalidade de uma representação divina, por herança de Adão, a um líder determinado, advêm os núcleos políticos conhecidos por Estados de Polícia.

Traço marcante a influenciar a formação desta nova fase do estado civil é o medo, individual e coletivo, de risco à vida. Aspira-se por proteção, deseja-se segurança, ainda que por esta sensação de estabilidade - de uma rotina que não se encontre diuturnamente ameaçada por um ataque brutal e invencível de violência - haja a necessidade de comprometer-se a liberdade. Os moradores dos feudos, os que pedem a proteção - a quem de algum modo se organizou um pouco melhor, apropriou-se de parcelas maiores de terra, antes subjugou alguns aos seus interesses, pessoas que lhe servem -, abrem mão de sua liberdade, querem proteção. Núcleos rurais formam-se marcados por relações de domínio, não apenas sobre as terras, mas entre as pessoas, domínio e servidão. Aliena-se a liberdade em troca de segurança.

Uma pulsão de busca por sobrevivência, encontro de alguma paz que reside na estabilidade - o que se pode esperar - da rotina que faz parte da vida. Quer-se viver numa sociedade onde o alto preço da servidão justifica-se pela sensação de proteção.

A violência e as guerras são recorrentes na origem e na formação política dos povos. Para Francis Fukuyama a relação entre a violência e a organização das primeiras sociedades, e mesmo depois junto ao Estado moderno, revela uma constatação histórica. Diz ele

As fraquezas e falhas em todas as explicações de foco primordialmente econômico apontam para a violência como fonte óbvia da formação de Estados. Isto é, a transição de tribo para Estado envolve perdas enormes de liberdade e igualdade. É difícil imaginar uma sociedade abrindo mão de tudo isso em troca dos ganhos potencialmente grandes da irrigação. Deve haver muito mais em jogo e isto pode ser mais facilmente explicado pela ameaça à vida representada pela violência organizada1 1 FUKUYAMA, Francis. As Origens da Ordem Política: dos tempos pré-humanos até a Revolução Francesa. Trad. Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. p. 105.

De fato, na Idade Média - momento referencial do qual partimos nesta análise - o temor pela vida conduz à estruturação de um modelo de organização política, o Estado de Polícia, primeira expressão do Estado Moderno, na condição de recurso à segurança, mas ao preço da liberdade de quem a ele submete-se.

A respeito, Dalmo de Abreu Dallari esclarece:

O que acontece a partir do século X foi que cessaram as incursões de grupos armados que a história registra como invasões bárbaras, um período em que povos do Norte da Europa, entre eles os hunos chefiados por Átila, invadiram a Europa, chegaram até Roma, praticando muitas violências, destruindo, saqueando, violentando mulheres e matando pessoas indefesas, gerando medo e sentimento de insegurança. Isso acabou favorecendo a instituição do feudalismo, porque as populações que se sentiam inseguras e ameaçadas procuravam a proteção de um senhor mais forte, um senhor poderoso que dominava uma vasta extensão de terras, o seu feudo, e tinha homens armados a seu serviço. Esse era o senhor feudal, que governava os seus domínios sem qualquer limitação com poder absoluto2 2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado, Federalismo e Gestão Democrática. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago (Orgs.). Direito e Administração Pública. Estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 58. .

O Estado Moderno forma-se e desenvolve-se, portanto, sob as referências da vassalidade (elemento pessoal) e do benefício (elemento real). O colonato era a divisão da terra em duas partes, uma ao senhor (proprietário), outra em lotes atribuídos aos camponeses que eram obrigados a entregar ao senhor uma parcela de sua produção. O ato de submissão ao patronato chamava-se commendatio (recomendação): pedia-se a proteção à vida em troca da vitaliciedade do serviço a ser prestado com absoluta fidelidade ao protetor. O comitatus (ou companheirismo), um momento subsequente, foi a tradição de jovens disporem-se sob a tutela de reis, duques e outros nobres para serem instruídos no serviço de guerra em permuta a honras e riquezas; prestava-se, em ato solene, o juramento de lealdade; uma vez mais, fidelidade. O caráter servil da commendatio é substituído pela honra e a lealdade do comitatus.

Ainda sobre o companheirismo anota Florivaldo Dutra de Araújo:

Outra raiz da vassalidade foi o instituto germânico do ‘companheirismo’, ou ‘Gefolgschaft’ (em alemão), ou ‘comitatus’ (em latim) O ‘companheirismo’ nasce com a antiga tradição dos povos germânicos, de colocar jovens sob tutela de reis, duques e outros nobres, para que fossem instruídos no serviço de guerra e, assim, adquirissem honras e riquezas3 3 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 50. .

Desenvolve-se a vassalidade clássica na qual, em palavras do historiador Marc Bloch, “(...) mais do que nunca o homem procura um chefe, os chefes procuram homens”4 4 BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Trad. Liz Silva. Lisboa, 2009. p. 194. . Duas formas, portanto, de submissão: a “servidão” dos recomendados, hereditária, e a “vassalagem clássica” restrita à vida dos envolvidos, por isto digna e propícia ao serviço - honroso - de guarda.

A segurança desejada gradualmente se elabora, não mais apenas em relação à preservação da vida, mas ainda à estima social, à tradição de prestígio que se edifica junto à família e a ideia de pertencimento a determinado grupo social, à memória dos antepassados, expectativa das novas gerações, mas se prossegue ao custo da liberdade que se cede junto ao compromisso de servir a certo senhor e a determinado rei.

Os benefícios, acrescenta Florivaldo Dutra de Araújo, decorrem do companheirismo5 5 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 52. . Com o tempo passou-se a admitir a possibilidade de algumas transferências destes benefícios, a transmissão por herança, além de terras, templos, mosteiros, rendas, direitos alfandegários, moedas, e ofícios (cargos) públicos (bispados, marquesados e condados). Enfim, a liberdade consolidou-se como moeda de troca pela estabilidade e o prestígio que eram encontrados na relação de vassalagem.

Jacob Burckhardt, renomado historiador, ao cuidar da análise dos diversos Estados da península italiana no século XIV, realça que a receita mais importante à manutenção das pequenas organizações político-sociais que se erigiam era a venda de cargos públicos com a renovação atual - costume particularmente desenvolvido na região -, e dentre as alternativas à venda encontravam-se os cargos de coletores alfandegários, administradores de territórios, notários, juízes e governadores ducais de cidades de província6 6 BURCKHARDT, Jacob. O Estado como Obra de Arte. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. p. 49. .

O desejo de segurança inicialmente quase restrito à manutenção da vida contra a violência nos campos gradualmente se estendeu à condição econômica. Formou-se, por conseguinte, uma classe privilegiada junto ao monarca, o condutor principal da política e do governo no Estado de Polícia. Surge a nobreza. A liberdade deste grupo em particular foi então suavemente recuperada, equacionada em sua submissão à vontade real - à fidelidade de servir em guerras e de proteger o reino - em câmbio de uma vida econômica estável, razoavelmente segura.

Mas os súditos (camponeses, comerciantes, artesãos) prosseguiram com a liberdade cada vez mais sufocada; a servil condição, progressivamente mais submissa e sujeita aos caprichos do rei e dos nobres, era a única estabilidade ofertada. Restava a certeza (segurança?) de que a vida com proteção em relação aos ataques e à dilapidação de outros povos condicionava-se à renúncia quase absoluta da liberdade.

Tempos de falsas ilusões sobre liberdade e segurança. Eram suficientes algumas representações, tal como anota Johan Huizinga:

O homem medieval pensa no cotidiano usando os mesmos moldes de sua teologia. O fundamento, tanto aqui como lá, é a arquitetura do idealismo que a escolástica chamava de realismo: a necessidade de isolar cada noção e dar-lhe uma forma de entidade, para então organizá-las em vínculos hierárquicos, e com elas sempre voltar a erigir templos e catedrais, como uma criança que brinca com seus blocos de montar7 7 HUIZINGA, Johan. O outono da idade média. Trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 375. .

Retrato da época, pois a forma de viver em sociedade reflete-se nas tradições culturais e na formação do pensamento religioso dos povos, no modo de reproduzir e entender as relações pessoais e as convicções íntimas, o pensador Erasmo de Rotterdam (1466-1536) polemiza com Martinho Lutero (1483-1546) o que se deveria entender por liberdade. Pondera Erasmo de Rotterdam que se o homem pode pecar então deve ser reconhecido que é moralmente livre, detém livre-arbítrio, mas Martinho Lutero, preconizador da reforma protestante, diz que há no homem uma congênita disposição ao pecado, e por isto a capacidade de fazer o bem não decorre do livre-arbítrio, mas da ajuda de Deus, e só a ele pertence o livre-arbítrio, e o que restaria ao ser humano, pois, é o servo-arbítrio, a sujeição à vontade divina. A liberdade de Erasmo de Rotterdam representava à época um estado de incerteza - o que fazer com o livre-arbítrio, como assumir a responsabilidade pelas escolhas feitas -, a segurança de Martinho Lutero - seria Deus a salvar independentemente das decisões feitas - sufocava o livre agir. Ilustração do que se vivia na sociedade política, o conflito entre liberdade e segurança em suas plurais dimensões.

O movimento racionalista que se desenvolve a partir do século XVII permitirá mais adiante o combate à ignorância do regime vigente, do totalitarismo e dos desmandos do poder político sob o arremedo de justificativa no mandato divino do rei, permitirá ainda a luta contra os privilégios, abusos e ostentações de toda ordem da nobreza; um recurso em tentativa à superação do sofrimento do povo a quem foi suprimida a liberdade e desconhece-se o que seja a justiça social.

Entre os seus protagonistas, Thomas Hobbes (1588-1679) não acredita que o homem seja um animal político, como se apregoa na filosofia política de Aristóteles, mas entende que se vive em sociedade em razão do pacto de poder que é firmado, isto porque - justifica o iluminista - no estado de natureza prevalece a “guerra de todos contra todos”, o “homem é o lobo do homem”, e apenas o contrato social pode preservar a própria vida. No discurso deste pensador:

Portanto, tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção8 8 HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 109. .

Propugna-se que a realização da paz e a manutenção da vida num ambiente hostil e de ascendente embate podem ser alcançadas por meio do contrato social que marca a passagem do estado de natureza ao estado civil. O pacto político seria o instrumento a promover a segurança jurídica - do mundo em que se pode viver, dos direitos naturais que devem ser reconhecidos -, ainda que à custa, supostamente mínima, da liberdade. Mas o governante, na leitura de Hobbes, mantém-se à margem do vínculo, não se subordina aos limites traçados, o que significa dizer que mantém o Estado - mantido o personalismo do poder - a autoridade que sufoca.

Com John Locke (1632-1704) combate-se o absolutismo. O seu contrato social estende-se: inclui a liderança do governo. Ele critica a tese então vigente de uma suposta linhagem de poder absoluto originada com Adão; tal como Hobbes, também Locke recusa o instinto político (aristotélico), mas discorda que no estado de natureza os homens vivam necessariamente em situação crescente de guerra entre si. Pode haver a guerra, mas se trata de uma possibilidade que também pode existir no estado civil. De todo modo, a preservação dos direitos naturais igualmente passa a depender do contrato civil, pois por este se alcança a segurança na preservação dos direitos inerentes à condição humana. Justifica-se que se renuncie a parcela da liberdade - de uma suposta liberdade absoluta no estado de natureza - para atingir-se a certeza da liberdade remanescente. Afirma ele então que “(...) o ‘governo civil’ é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza (...)”9 9 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 391. ; e adiante:

Evitar esse estado de guerra (no qual não há apelo senão aos céus, e para o qual pode conduzir a menor das diferenças, se não houver juiz para decidir entre os litigantes) é a grande ‘razão pela qual os homens se unem em sociedade’ e abandonam o estado de natureza10 10 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 400. .

Uma das expressões do direito natural à liberdade devem ser os frutos da força de trabalho empreendida, o que o levará a qualificar, por consequência, a propriedade como um direito natural. Diz John Locke:

O ‘trabalho’ de seu corpo e a ‘obra’ de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua ‘propriedade’.

(...)

O ‘trabalho’ que tive em retirar essas coisas do estado comum em que estavam ‘fixou’ a minha ‘propriedade’ sobre elas11 11 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 409 e 410. .

A influência direta de John Locke décadas adiante na Revolução Francesa (1789) e na materialização do advento do Estado de Direito é incontrastável: na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, editada pela Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária, em agosto de 1789, anunciam-se os direitos universais que decorrem dos direitos naturais do homem. Em seu art. 2º prescreve-se: “O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Quatro direitos naturais, supostamente inerentes à condição humana, elementos então que precedem o Direito posto e não podem por este ser olvidados: liberdade, segurança, resistência à opressão, e a propriedade. O último artigo ainda entroniza a propriedade; art. 17: “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente comprovada, o exigir evidentemente, e sob condição de justa e prévia indenização”.

A relação causal defendida por John Locke alcançará a concretização na fundação do Estado de Direito: a liberdade é o pressuposto da força de trabalho cujo resultado, em homenagem a esta mesma condição humana (liberdade), implica atribuir a mesma importância ontológica à propriedade. Um tributo - pensava-se - que a segurança do contrato social prestava à liberdade.

Sem dúvida, em precisa análise de Alysson Leandro Mascaro, “A finalidade precípua do contrato social é, para o pensamento de Locke, a garantia da propriedade privada”12 12 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 175. .

Em Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a percepção deste conflito - liberdade e segurança - é bem diversa. A segurança prometida pelo contrato social não se revela um meio de salvação a um estado originalmente indesejável, mas antes um instrumento necessário diante de uma progressiva corrupção da condição humana ao se deixar de ser, em razão da convivência em sociedade, um “bom selvagem”. Pois a fonte da desigualdade entre os homens deveria ser procurada junto aos próprios homens. Em Ensaio sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens o filósofo recorda a estátua de Glauco que o tempo, o mar e as tempestades a desfiguraram tanto que se assemelhava menos a um deus do que a um animal feroz, e do mesmo modo a alma humana, diz ele, é alterada em sociedade por causas as mais diversas, em mudanças sucessivas e permanentes; portanto, a constituição humana reclama a busca da origem das diferenças entre os homens que no estado de natureza eram tão iguais entre si.

Uma das causas apontadas por este notável pensador são os “laços da servidão” que se formam da “dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os unem”. Servidão que apresenta por uma de suas raízes o momento em que alguém, tendo cercado um terreno, disse “Isto é meu”, e como afirma Rousseau, encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar que isto fosse possível. Eis o fundador da sociedade civil: a ideia de propriedade enquanto recurso de servidão e desigualdades entre os homens. Prossegue Jean-Jacques Rousseau para considerar que desde o instante em que os homens perceberam que era útil ter provisões para além de suas necessidades a igualdade desapareceu, a propriedade foi introduzida, e “(...) o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas”. Desta cultura de terras advém a sua partilha, por conseguinte, a propriedade, uma das fontes das desigualdades entre os homens.

Para fugir dos “laços de servidão” é que se justifica o contrato social. Uma promessa de liberdade e de segurança. A tentativa de aproximação simultânea de forças que até então se mostraram antagônicas.

A par da Revolução americana com a independência das colônias (1776) e a promulgação de sua Constituição (1787) - na qual as ideias dos iluministas serviriam de inspiração - o fim do século XVIII ainda se notabilizaria pela Revolução Francesa (1789) que consagrou a superação do Antigo Regime, o Estado de Polícia, primeiro modelo do Estado Moderno, por uma nova era, a do Estado de Direito. Em 1791, o livreiro-editor Antoine Momoro, que havia lutado contra o Antigo Regime, sobretudo por meio da impressão e da venda a preços módicos de textos que apoiavam a revolução, e por isto se tornou conhecido como “o primeiro impressor da liberdade”, cunhou o que seria a divisa da República, Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Mas a liberdade foi o grande mote dos revolucionários. O Estado do século que se segue, o XIX, ingressaria para a história como o Estado de Direito Liberal. A burguesia instala-se em substituição à nobreza. Manejam-se instrumentos teóricos, jurídicos, econômicos e políticos, justificadores da mínima intervenção do Estado nas relações particulares. Prevaleceu a ideologia do capital na gênese do Estado de Direito. Não bastaria a inerência do direito de propriedade à condição humana (art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), ainda seria a propriedade, um bem material, engrandecida e imaculada enquanto valor “sagrado” (art. 17).

A segurança prometida pela Revolução pretendia conviver harmonicamente com a liberdade (Rousseau). Mas foram outras as liberdades que prevaleceram. A liberdade das relações mercantis, impulsionada pelas Revoluções industriais que transformavam o mundo desde o século XVIII, a liberdade de vínculos promíscuos entre o Estado e os detentores dos meios de produção, o que levaria ao Estado gendarme a direcionar a sua força contra o povo e a servir à elite burguesa, a liberdade de uma Administração patrimonialista na qual as políticas públicas são direcionadas ao fomento do capital em benefício exclusivo da classe privilegiada por controlar os recursos financeiros dos quais dependem os Estados, enfim, estas eram as liberdades que atingiriam o zênite de segurança. Certeza, preservação, segurança - proteção física, proteção ao patrimônio - de poucos.

Como afirma Paulo Bonavides:

Mas, no momento em que se apodera do controle político da sociedade, a burguesia já se não interessa em manter na prática a universalidade daqueles princípios, como apanágio de todos os homens. Só de maneira formal os sustenta, uma vez que no plano de aplicação política eles se conservam, de fato, princípios constitutivos de uma ideologia de classe13 13 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2004. p. 42. .

Da Administração patrimonialista que se constrói no século XIX -servidora do capital, preocupada em manter a segurança financeira e a ampla liberdade da burguesia - lembro os projetos do Imperador Napoleão III, em 1853, de gestão da cidade de Paris para os quais convidou Georges-Eugène Haussmann a quem foi confiado o encargo de cuidar das obras públicas da cidade. Como destaca David Harvey, “Haussmann entendeu claramente que sua missão era ajudar a resolver o problema do capital e do desemprego por meio da urbanização”14 14 HARVEY, David. O Direito à Cidade. In: Revista Piauí, nº 82, julho. Rio de Janeiro: Alvinegra, 2013.passim. . A reconstrução de Paris demandou expressivo volume de recursos financeiros e mão de obra, pois se anexaram subúrbios, bairros foram transformados, as vias principais reconstruídas, e para tanto foi preciso contar com a participação significativa de instituições financeiras e de crédito. Observa David Harvey:

O sistema funcionou muito bem por uns quinze anos, e envolveu não só a transformação da infraestrutura urbana como também a construção de um novo modo de vida e uma nova personalidade urbana. Paris tornou-se a Cidade Luz, o grande centro de consumo, turismo e prazer; os cafés, as lojas de departamentos, a indústria da moda, as grandes exposições - tudo isso modificou a vida urbana de modo que ela pudesse absorver o dinheiro e as mercadorias, por meio do consumismo.

Mas foi então que o sistema financeiro especulativo e as instituições de crédito superdimensionadas quebraram, em 1868. Haussmann foi demitido; Napoleão III, em desespero, foi à guerra contra a Alemanha de Bismarck e saiu derrotado15 15 HARVEY, David. O Direito à Cidade. In: Revista Piauí, nº 82, julho. Rio de Janeiro: Alvinegra, 2013.passim. .

O Estado de Direito Liberal não havia resolvido, ao menos em favor da sociedade em geral - e não de uma classe privilegiada -, as tensões entre liberdade e segurança. O que deveria competir ao Estado enquanto sua missão em prol do povo e dos menos favorecidos, quais os planos a serem delineados - em benefício de quem - de modo a efetivar a libertação da miséria e a estabilidade das relações sociais e jurídicas, permaneciam anseios sem resolução. No Antigo Regime o desejo por segurança levou à submissão quase absoluta, alguns poucos (a nobreza) mantiveram as suas personalíssimas formas de liberdade, agora com o Estado de Direito Liberal do século XIX, a Administração patrimonialista que se edifica, mudam-se as fórmulas, os discursos, a liberdade reformula a segurança, o contrato social eleva-se a símbolo da consciência das massas de uma função estruturante de liberdade e segurança que não se realiza.

Carlos Amadeu Botelho Byington, fundador da psicologia simbólica junguiana, ampliou o significado de símbolo para “símbolo estruturante” que contém as representações psicológicas de todas as coisas e vivências e seus respectivos significados subjetivos e objetivos, conscientes e inconscientes. Esclarece ele que as funções estruturantes da psique podem ter expressões normais ou defensivas, o que depende do modo como atuam no eixo simbólico da consciência e do inconsciente. As defesas são anormais, portanto, patológicas16 16 BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2008. p. 74. .

O Estado de Direito Liberal tornou-se um símbolo estruturante, a liberdade e a segurança algumas de suas principais funções estruturantes, e o liberalismo no século XIX o único sistema estruturante. Mas a relação de domínio e o controle ególatra dos meios de produção da burguesia deitaram as suas raízes sob a própria estrutura político-organizacional, formou-se a Administração patrimonialista, o Estado gendarme, o que levou a provocar uma função estruturante defensiva da liberdade e da segurança. Uma patologia.

A gravidade dos resultados provocados pelo Estado de Direito Liberal encontra-se na permanência dos seus efeitos, o que levou a erigir uma “Sombra Cronificada”, situação que se dá quando “(...) a fixação das defesas permanece e se estrutura na personalidade ou na cultura (...)”17 17 BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2008. p. 75. .

Percebe-se, portanto, que muitas das “razões de Estado” do realismo político de Nicolau Maquiavel (1469-1527), símbolo do início do Estado Moderno sob o modelo absolutista (Estado de Polícia), persistiram no Estado de Direito Liberal, ora maquiadas por artifícios de retórica das luzes da razão, ora declaradamente assumidas sem pudor ou preocupação em relação ao infortúnio do povo que continuava sem efetiva liberdade ou segurança em suas relações de trabalho, sociais, enfim, necessidades (moradia, saúde, educação) incertas, agônicas, distantes.

Maquiavel enaltecia entre as qualidades de um Príncipe que “(...) seria bom ser considerado liberal”18 18 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. Trad. Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 75. , mas enquanto conviesse à manutenção do poder. A dificuldade desta “liberdade condicionada” do Estado de Direito do século XIX, instável e reservada a poucos, tornou-se uma função estruturante defensiva que causou reações à época imprevisíveis. Faltou perceber o que o próprio Maquiavel, quem sabe inconscientemente, havia alertado: “(...) os homens ferem ou por medo ou por ódio”19 19 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. Trad. Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 34. .

3. PRÁTICAS DE ESTADO E MAL-ESTARES.

O nome de Maquiavel e as suas ideias persistem no Estado de Direito não por simples lembrança ou reflexão histórica de seu pensamento. Mas pela atualidade do maquiavelismo na vida política dos povos. Como diz Leo Strauss:

Maquiavel é o único pensador político cujo nome está em uso corrente para designar um tipo de política, que existe e continuará existindo, independentemente de sua influência, uma política guiada com exclusividade por questões de conveniência, que usa todos os meios, legais ou ilegais, ferro ou veneno, para atingir sua meta - sendo esta o engrandecimento de um país ou pátria -, mas também usando a pátria a serviço do autoengrandecimento do político, ou estadista, ou partido de cada um20 20 STRAUSS, Leo. Nicolau Maquiavel. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Coords). História da Filosofia Política. Rio de Janeiro: Gen, 2013. p. 268. .

As “razões de Estado” prosseguem no Estado de Direito Liberal. Se não mais a serviço de um monarca, um “déspota esclarecido”, então de uma classe que se fixa em torno do capital, e por isto traveste seus interesses privados em anseios públicos. A burguesia alia-se à ordem política e juntos, o Estado e o capital, dilaceram os sonhos de outros tempos. O descompasso entre a liberdade anunciada - a que se realizaria sob a segurança do Estado de Direito - e a opressão social agrava-se. O fracasso das aspirações do ideário revolucionário - liberdade, igualdade e fraternidade - foi sentido por todo o século XIX.

As Revoluções de 1830 e 1848 na França, país berço das esperanças de uma transformação político-social, ilustram a história. O autoritarismo grassava os países da Europa, a grave crise econômica - em virtude das péssimas colheitas agrícolas, sobretudo a praga da batata e a crise do trigo - fazia sucumbir principalmente as classes menos favorecidas, e a ausência de efetiva representação política do povo agravava a desesperança. No ano de 1848 sucessivos movimentos de revolta contra o Governo francês (e ainda em outros países europeus), a conhecida Primavera dos Povos, mobilizados sobretudo por trabalhadores e camponeses contra o capitalismo reinante, foram sufocados pela Guarda Nacional. Na França, o Partido da Ordem, formado por integrantes da burguesia preocupados em proteger a propriedade, conduzia a Constituinte e opunha-se às ideias socialistas. Representações populares, como a Comissão de Luxemburgo, e líderes revolucionários a exemplo de Pierre-Joseph Proudhon, anarquista que condenava a propriedade ao qualificá-la como “um roubo”, todos eles seriam duramente combatidos. Se barricadas foram levantadas nas ruas, se a Primavera dos Povos representou, nas palavras de Eric Hobsbawm, a primeira revolução potencialmente global21 21 HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital. Trad. Luciano Costa Neto. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 33. Segundo o autor, reflexos deste movimento no Brasil podem ser reconhecidos na insurreição de 1848 em Pernambuco. , por outro lado os movimentos da época foram, particularmente na França, emblema de liberdade, mas violentamente sufocada por ações armadas lideradas pelo general Louis-Eugène Cavaignac em nome da segurança - da ordem pública - que deveria ser mantida pelo Estado de Direito.

Considere-se a Revolução de 1848 na França. Não contava com uma ideologia. Tal como anota J. Hampden Jackson, o que se reclamava era “pão e trabalho”; o desemprego havia subido de 8.000 trabalhadores em março para 50.000 no mês seguinte, e 100.000 em junho; os pobres deslocavam-se de todas as regiões da França a Paris para exigir trabalho22 22 JACKSON, J. Hampden. Marx, Proudhon e o Socialismo Europeu. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1963. p. 65. . O empenho da força de trabalho não seria o consectário inevitável da “liberdade natural” segundo John Locke? O que se reclamava era a ausência de atividades de sustento próprio, da manutenção da vida e da família, a incapacidade de subsistência. Enfim, a derrocada do ideal libertário.

Reage-se com vigor contra o capitalismo e a propriedade, símbolos de uma suposta liberdade que viria com a segurança do contrato social ultimado no Estado de Direito, símbolos então questionados pelos movimentos sociais da época, mas ainda por uma legião de pensadores que voltam a iluminar as razões de Estado.

“Um espectro ronda a Europa - o espectro do comunismo”, escreveriam Karl Marx e Friedrich Engels, em fevereiro de 1848, no início do Manifesto do Partido Comunista. A história das sociedades, dizem eles, é história das lutas de classes: a burguesia e o proletariado. O preço do trabalho, asseveram, é igual ao custo de sua produção, e a condição essencial da existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação de riquezas em mãos de particulares, a formação do capital que depende, por sua vez, do trabalho assalariado. Se a Revolução Francesa propôs-se abolir a propriedade feudal - o que o fez em simples substituição pela propriedade em favor da burguesia -, o que se quer com o comunismo é a abolição deste segundo estágio, a propriedade burguesa.

Na literatura, Leon Tolstoi retrata a sua crítica à propriedade, um “baixo instinto animal”, em narrativa conduzida por um cavalo na novela Kholstomer:

Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra seu, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligarem-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser eu propriedade de um homem. As palavras meu cavalo, referindo-se a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras minha terra, meu ar, minha água.

No entanto, elas exerceram sobre mim enorme influência. Sem cessar pensava nelas e só depois de longo contato com os seres humanos pude explicar-me a significação que, afinal, lhes é atribuída. Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, aos seus semelhantes e aos cavalos.

Além disto, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra meu a um número maior de cosias, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum tempo proveito direto; mas verifiquei que isso não era exato.Muitas pessoas das que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu - e não só em relação a nós, cavalos - não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz minha casa mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la. O comerciante diz minha loja, ou meus tecidos, por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-lhes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de cosias: é meu. Agora estou persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens. Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos dizer, com segurança, que entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com os quais tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos.

Uma alternativa à reconciliação da segurança com a liberdade no Estado de Direito, tentativa de revisão das práticas de Estado - tão movidas por razões maquiavélicas -, foram os movimentos nacionalistas a partir de 1860. Esclarece Eric J. Hobsbawm que a palavra “nacionalismo” surge pela primeira vez no fim do século XIX e serve a descrever grupos ideólogos de direita na França e na Itália que reagiam contra os estrangeiros, liberais e socialistas, e defendiam a expansão de seus próprios Estados. Posteriormente, a palavra passou a ser utilizada para simbolizar todos os movimentos que defendiam a “causa nacional”, a formação independente de seu Estado, “(...) alguns que se identificavam com a direita, outros com a esquerda, e outros, ainda, indiferentes a ambas”23 23 HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios. Trad. Sieni Maria Campos; Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 228-229. .

Mas J. Hampden Jackson pondera que os movimentos nacionalistas da época dividiam-se: para uns o movimento nacionalista representava a libertação do povo dos opressores capitalistas estrangeiros, para outros os trabalhadores perderiam o contato com os seus irmãos estrangeiros, o que significaria a redução da força de resistência, por conseguinte maior facilidade no domínio do poder pela burguesia nacional24 24 JACKSON, J. Hampden. Marx, Proudhon e o Socialismo Europeu. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1963. p. 109. .

Definitivamente, o papel do Estado de Direito, no início do século XX, encontrava-se em crise. Qual liberdade? Segurança em favor de quem? Sem trabalho, ausentes quaisquer condições dignas de moradia, saúde, educação, os movimentos anarquistas das últimas décadas expunham à crítica qual a razão de ser do Estado de Direito. Iniciam-se então, nos países ocidentais em geral, diversos movimentos por reformulação do papel do Estado - de Liberal a Social - por meio de novos modelos constitucionais, o que são conhecidas as Constituições do México de 1917 e de Weimar de 1919.

Mas o mal-estar persiste.

O início do século XX é igualmente marcado por uma nova era de compreensão das razões que animam o ser humano. Razões mais profundas. Sigmund Freud revelaria, no despertar deste novo milênio, um universo completamente desconhecido, o subconsciente: denomina-se Id, como afirma Joseph Campbell25 25 CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. Trad. Frederico N. Ramos. São Paulo: Ágora, 2008. p. 79. , o “eu-quero” que se encontra no inconsciente, onde haveria os instintos de vida (Eros) e morte (Tânatos), uma orientação pelo princípio do prazer; as contenções e restrições formuladas pelo meio em que se vive - família, sociedade - realizam-se pelo Superego, o “eu-não-devo”; ao Ego compete mediar o Id e o Superego, um guia segundo o princípio da realidade.

Diz Sigmund Freud que o princípio do prazer estabelece a finalidade da vida, por isto domina o desempenho do aparelho psíquico. Mas o seu programa não está em acordo com o mundo; a felicidade vem da satisfação repentina de necessidades que são altamente represadas26 26 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 30. . Em suas palavras: “O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido - ou melhor, não somos capazes de - abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização”27 27 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 40. .

A leitura, a descoberta, do inconsciente parece de algum modo sinalizar à humanidade as causas de muitos conflitos que a ordem política carrega consigo. O Estado de Direito, primeiro Liberal, e no curso da primeira metade do século XX majoritariamente Social na acolhida deste modelo por diversos países - foi o caso do Brasil, notadamente a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas (a partir de 1930) -, expressa a crise permanente entre a liberdade que pretende simbolizar o prazer, a felicidade desejada, e a necessidade de sua contenção pela segurança para conformar a vida em sociedade.

Neste sentido, para Herbert Marcuse28 28 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010. , se Freud entende a modernidade como a superação do princípio do prazer, de parte da felicidade e da liberdade, para o predomínio do princípio de realidade no qual a causa e o escopo são o prestígio à segurança - com as consequentes privações dos nossos “impulsos naturais” que resultam nas doenças da alma -, por outro lado é possível a constituição de uma sociedade não-repressiva. A repressão - marco da modernidade - pode ser abolida.

Os dois planos de Freud - ontogenético: a evolução do indivíduo reprimido; filogenético: a evolução da civilização repressiva - desenvolvem-se sob implicações mútuas, o que leva ao abandono da felicidade e à geração do sentimento de culpa. Mas para Herbert Marcuse o princípio de realidade deve ser compreendido como o princípio de desempenho que se formata pela dominação e a alienação que se encontram na organização social do trabalho, o que é possível reformulá-lo de modo a ser “(...) qualitativamente diferente e não-repressivo”29 29 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010. p. 123. . A redução quantitativa da energia de trabalho, a superação dos controles repressivos impostos pela civilização (moderna) à sensualidade, são alguns dos caminhos necessários30 30 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010. p. 169 em busca de uma “cultura não-repressiva”, pensada por Schiller, conforme anota Herbert Marcuse31 31 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010. p. 174. .

Ainda na primeira metade do século XX a influência do positivismo clássico e do pensamento social em disputa com o liberalismo que havia predominado no século anterior levou Léon Duguit a desenvolver na França a chamada Escola do Serviço Público. Alinhada ao modelo do Estado Social o realismo jurídico que orienta esta doutrina firma-se na apuração empírica das necessidades sociais. O serviço público, por esta proposta, é o próprio fundamento e legitimação do Estado - é a fundamentação para uma teoria do Estado. O serviço público é compreendido como uma atividade cujo contorno jurídico deve ter por principal preocupação mais do que o respeito à liberdade dos cidadãos, deve-se trazer a igualdade, ou, pelo prisma por qual proponho neste artigo, a segurança a todos de mesmo acesso às necessidades que importam à constituição da dignidade humana.

Um mal-estar que insiste.

Pois a equação entre a liberdade e a segurança no Estado de Direito Social continuam a não se harmonizar. Afinal, o que deve competir ao Estado, o que deve ser assumido sob sua titularidade de modo a conferir a liberdade efetiva a quem não detém propriedades, não controla o capital? O que se deve deixar à livre-iniciativa? Entre o que o Estado deve definir por sua missão - e de que modo deve fazê-lo - e o que deve deixar ao mercado - mas qual seu papel ao regulá-lo - há conflitos permanentes, oscilações que marcam o curso do século XX entre a Administração burocrática e a Administração gerencial (neoliberal), angústias entre o prazer dos gestores do capitalismo e a realidade que se impõe de ser premente o amparo aos desfavorecidos, aos que amargam a miséria, aos que sofrem a ausência de acesso mínimo aos direitos sociais.

Para Zygmunt Bauman o mal-estar da modernidade decorria de uma espécie de segurança que tolerava a liberdade pequena em busca da felicidade individual, e o mal-estar da pós-modernidade (o que deve ser considerado o período que se inicia na década de sessenta do século XX) advém de uma liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual muito pequena32 32 BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 10. . Em certa passagem, diz: “A pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar”33 33 BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 26. .

É a angústia dos Estados e das sociedades contemporâneos.

Por um lado, o anseio por se desapegar do controle, da intervenção, do domínio público sobre o privado, um desejo por liberdade, suposto prazer, impressão equivocada de que a felicidade poderia ser encontrada na satisfação pessoal - caminhadas individuais, a trajetória do herói - em superação aos tradicionais papéis atribuídos ao Estado Social nos quais se sintetizava a promessa de segurança à realização dos mínimos valores existenciais.

De outro, o receio do excesso de segurança que sufoca a liberdade. O medo de uma “ordem” segura. Ou, nas palavras de Zygmunt Bauman, de uma ordem contida na “pureza”:

A pureza é uma visão das coisas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem - isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Não há nenhum meio de pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem atribuir às coisas seus lugares “justos” e “convenientes” - que ocorre serem aqueles lugares que elas não preencheriam “naturalmente”, por sua livre vontade. O oposto da “pureza” - o sujo, o imundo, os “agentes poluidores” - são coisas “fora do lugar”. Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em “sujas”, mas tão-somente sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza. As coisas que são “sujas” num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar - e vice-versa. Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte de sapatos, eles recuperam a prístina pureza. Uma omelete, uma obra de arte culinária dá água na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro34 34 BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.14-15. .

O Estado que não quer nada fora do lugar, que ojeriza a “impureza”, toma para si - diz: porque o escopo é a segurança dos seus - o controle sobre a vida dos cidadãos. Quer definir o que pode, quando e de qual modo, diz saber o que é o melhor, pretende a totalidade.

De todo modo, as reações defensivas - funções estruturantes defensivas (Carlos Byington) - não são nada alvissareiras. Zygmunt Bauman percebe-as: “(...) a tendência a coletivizar e centralizar as atividades de “purificação” destinadas à preservação da pureza, enquanto de modo algum extintas ou exauridas, em nosso tempo tendem a ser cada vez mais substituídas pelas estratégias de desregulamentação e privatização”35 35 BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 22. .

Os Estados contemporâneos identificam-se, ao menos em sua maioria no ocidente, por regimes democráticos. Muitos ainda se afirmam predominantemente sociais. É o caso do Brasil. A Constituição da República Federativa do Brasil assevera em seu preâmbulo o compromisso com os direitos individuais e sociais, a liberdade e a segurança36 36 Na íntegra: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. .

É preciso, portanto, o enfrentamento dos mal-estares do mundo contemporâneo - a dificuldade não é exclusiva do povo brasileiro. Um autoconhecimento que deve ser assumido. O preâmbulo da Constituição simboliza a inscrição do pórtico do Templo de Apolo em Delfos, singularmente percebida por Sócrates, uma inspiração a ser trilhada: “Conhece-te a ti mesma, República brasileira”.

Alternativa - defensiva - ao enfrentamento do (in)consciente republicano é a permanência do mal-estar, talvez por outros matizes, novos mal-estares adaptados a demandas globalizadas, a submissão ao espetáculo do consumismo e das satisfações ególatras, um estado de vivências que se contenta com um Estado envolvido apenas em seguir mais uma recomendação maquiavélica, “(...) manter o provo entretido com festas e espetáculos (...)37 37 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. Trad. Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 108-109. .

4. CONSCIÊNCIAS E RUMOS

Debaixo dágua tudo era mais bonito mais azul mais colorido só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Debaixo dágua se formando como um feto sereno confortável amado completo sem chão sem teto sem contato com o ar

Mas tinha que respirar

A letra da música Debaixo d’água de Arnaldo Antunes elabora com intensidade um símbolo da tensão entre a segurança e a liberdade. Símbolo que retrata o propósito desta análise sobre os papeis do Estado de Direito, o que lhe compete reservar para si - uma promessa de segurança jurídica na perspectiva adotada neste artigo, promessa dos direitos individuais e sociais que podem ser a todos concedidos, assegurados -, o que pode (deve) dispor à livre-iniciativa, o quanto deve contar com os particulares em parcerias à realização do interesse público.

Não há como se posicionar imarcescível num dos extremos. É a primeira lição que se pode colher da história do Estado Moderno.

É preciso conscientizar-se, conscientizarmo-nos, de que liberdade e segurança jurídica são dois valores que se conflitam necessariamente. Deve-se buscar o equilíbrio, mas sem se iludir: quanto mais cedo (liberto), tanto mais se é incerto (inseguro) sobre o que se pode alcançar. A liberdade irrestritamente disposta pode levar ao manejo de reações ególatras de ambição e indiferença com os outros, funções estruturantes defensivas (Byington). A segurança irrefletida e sofregamente desejada, apegada, sufoca - outra função defensiva - a necessidade de respirar.

Outra lição que decorre da conscientização deste conflito inerente à condição humana são os múltiplos significados de liberdade e segurança jurídica. Liberdade ora simboliza a limitação do poder, o despojar-se do jugo opressor do Estado, ora dissimula o poder tirânico do capital e a indiferença em relação às misérias sociais. Segurança ora retrata a proteção confiada ao Estado de Direito, o pacto social, ora escamoteia o domínio do poder político sobre a vida privada sob a suposta certeza do que melhor serve a cada qual independentemente de sua vontade.

O que leva então ao terceiro ensinamento que a história oferece: a necessidade do diálogo, a construção dialética da liberdade e da segurança jurídica, o que deve o Estado definir para si, quando e de quais modos deve contar com os particulares, o que deve deixar à livre iniciativa. A interdição ao diálogo - sob rótulos predefinidos dos oponentes - pouco ou nada contribui à conscientização dos conflitos e dos sentidos de liberdade e segurança jurídica.

A afirmação do Estado de Direito não é suficiente à superação das razões de Estado descritas realisticamente por Maquiavel. As práticas continuam, muito embora sob outros invólucros, discursos mais sofisticados, até sensíveis. Por isto, insisto, as nossas práticas devem ser prioritariamente conscientizadas; as razões de Estado, subliminares à retórica democrática da Constituição Federal de 1988, precisam ser desveladas.

Anomias, estado(s) de exceção, violência(s) simbólica(s) são elementos incontrastáveis de nossas razões e práticas jurídico-políticas contemporâneas, e a crise de representatividade - com tal fragor que se torna um dos principais dínamos dos movimentos sociais deflagrados a partir de junho de 2012 por todo o país - revela a premência de revisão de nossa ideia de democracia e da definição das políticas públicas.

Se nas últimas décadas, sob o rótulo de uma “abertura democrática”, surgiram ou se aperfeiçoaram instrumentos à interlocução com a sociedade - por eleições, audiências públicas, fim da censura -, igualmente se desenvolveram novos mecanismos de alienação, muito mais sutis do que os recursos linguísticos anteriormente utilizados, refinados ao se encobertarem as reais intenções de apropriação e manutenção, a qualquer custo, do poder e do exponencial aumento de lucros. Apelos à liberdade?

São poucos os discursos de Estado - em comparação às falas politicamente corretas de que se vale - que declaram com todas as letras o preconceito, a indiferença em relação aos menos favorecidos, as intenções (ou obsessões) por trás da realização de específica política pública ou de reforma legislativa, ou que simplesmente reconhecem o compromisso de submissão à força do capital. Mesmo os instrumentos de controle social - a exemplo da mídia, notadamente a televisiva - aliam-se a este pacto de alienação.

A razão instrumental, serva das razões de Estado, aperfeiçoou-se. No âmbito jurídico-político a totalidade, construída por arremedos de diálogo, simulacros de pesquisas, aparentes vivências democráticas, prossegue a representar os interesses particulares de grupos que se devotam a si. O de sempre. Mas por um novo contrato social que se estabelece no regime democrático do século XXI cujos “bons selvagens” salvaguardam seus particulares anseios, e por isto se cercam de discursos voltados à sociedade que em vez de resultarem em ações erigem-se feito muralhas à proteção do que realmente conta e não é revelado. Apelos à segurança jurídica?

Muitos são na atualidade os interlocutores políticos - não apenas os políticos por profissão -, há intelectuais, acadêmicos, pensadores, ícones a pretender a comprovação de que a democracia funciona, mas em realidade protagonizam a perpetuação dos fossos cultural, social e econômico, da crise de cidadania, porque tendo cercado o novo terreno político não são poucos os que afirmam “Isto (agora) é meu” e encontram - o que mostra a atualidade de Rousseau - pessoas que acreditam.

A definição de políticas públicas em educação (sistemas de avaliação, ações afirmativas), saúde (delegações do serviço a organizações sociais, contratação temporária de profissionais de outros países), planos urbanísticos (definição de potencial construtivo, zoneamentos, projetos de revitalização em áreas centrais das cidades), obras públicas de infraestrutura e transportes (rodovias, trem de alta velocidade), privatizações e descentralizações do serviço público em geral, segurança pública (maioridade penal, qual o papel da polícia militar) reclama por necessário antes se compreender qual liberdade realmente se oferece, qual segurança jurídica existe nestas reformulações de pacto(s) social(is). Não se deve perder de vista a presciência de Zygmunt Bauman: “O mundo pós-moderno está-se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível38 38 BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 32. .

Para este percurso e os próximos estágios do Estado de Direito o que não se pode ter é o apego, totalizante e irredutível, de exatos discursos conhecidos ou de levianas promessas de completas (e irrealizáveis) transformações, como se não houvesse sempre algo a perder, liberdade ou segurança jurídica.

  • 1
    FUKUYAMA, Francis. As Origens da Ordem Política: dos tempos pré-humanos até a Revolução Francesa. Trad. Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. p. 105.
  • 2
    DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado, Federalismo e Gestão Democrática. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago (Orgs.). Direito e Administração Pública. Estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 58.
  • 3
    ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 50.
  • 4
    BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Trad. Liz Silva. Lisboa, 2009. p. 194.
  • 5
    ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 52.
  • 6
    BURCKHARDT, Jacob. O Estado como Obra de Arte. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. p. 49.
  • 7
    HUIZINGA, Johan. O outono da idade média. Trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 375.
  • 8
    HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 109.
  • 9
    LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 391.
  • 10
    LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 400.
  • 11
    LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 409 e 410.
  • 12
    MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 175.
  • 13
    BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2004. p. 42.
  • 14
    HARVEY, David. O Direito à Cidade. In: Revista Piauí, nº 82, julho. Rio de Janeiro: Alvinegra, 2013.passim.
  • 15
    HARVEY, David. O Direito à Cidade. In: Revista Piauí, nº 82, julho. Rio de Janeiro: Alvinegra, 2013.passim.
  • 16
    BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2008. p. 74.
  • 17
    BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2008. p. 75.
  • 18
    MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. Trad. Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 75.
  • 19
    MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. Trad. Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 34.
  • 20
    STRAUSS, Leo. Nicolau Maquiavel. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Coords). História da Filosofia Política. Rio de Janeiro: Gen, 2013. p. 268.
  • 21
    HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital. Trad. Luciano Costa Neto. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 33. Segundo o autor, reflexos deste movimento no Brasil podem ser reconhecidos na insurreição de 1848 em Pernambuco.
  • 22
    JACKSON, J. Hampden. Marx, Proudhon e o Socialismo Europeu. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1963. p. 65.
  • 23
    HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios. Trad. Sieni Maria Campos; Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 228-229.
  • 24
    JACKSON, J. Hampden. Marx, Proudhon e o Socialismo Europeu. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1963. p. 109.
  • 25
    CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. Trad. Frederico N. Ramos. São Paulo: Ágora, 2008. p. 79.
  • 26
    FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 30.
  • 27
    FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 40.
  • 28
    MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010.
  • 29
    MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010. p. 123.
  • 30
    MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010. p. 169
  • 31
    MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010. p. 174.
  • 32
    BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 10.
  • 33
    BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 26.
  • 34
    BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.14-15.
  • 35
    BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 22.
  • 36
    Na íntegra: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.
  • 37
    MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. Trad. Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 108-109.
  • 38
    BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 32.

5. REFERÊNCIAS

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  • BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
  • BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal Trad. Liz Silva. Lisboa, 2009.
  • BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2004.
  • BURCKHARDT, Jacob. O Estado como Obra de Arte. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.
  • BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2008.
  • CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação Trad. Frederico N. Ramos. São Paulo: Ágora, 2008.
  • DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado, Federalismo e Gestão Democrática. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Direito e Administração Pública Estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013.
  • FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • FUKUYAMA, Francis. As Origens da Ordem Política: dos tempos pré-humanos até a Revolução Francesa. Trad. Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
  • HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital Trad. Luciano Costa Neto. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
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  • HUIZINGA, Johan. O outono da idade média Trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
  • JACKSON, J. Hampden. Marx, Proudhon e o Socialismo Europeu. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.
  • LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe 3. ed. Trad. Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2010.
  • MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2016
  • Aceito
    29 Set 2016
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