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Das multidões acontecimentais à política pós-acontecimental

From eventful crowds to post-eventful politics

RESUMO

No presente ensaio trata-se de pensar uma multidão acontecimental que enfrente o surgimento do bolsonarismo a partir de uma retomada das teorias da multidão desenvolvidas durante o século XX. Acontecimento é pensado aqui a partir da filosofia de Badiou; atravessaremos a psicologia das multidões, a ênfase de Freud nas lógicas sociais a partir do laço libidinal, a retomada freudiana de Laclau pensando num continuum das lógicas sociais de organização multitudinal, o foco de Jodi Dean na relação entre a multidão acontecimental e a forma partido e, finalmente, a dialética da emergência em Safatle a partir do trabalho do negativo.

PALAVRAS-CHAVE
Multidão; acontecimento; comunicação e política.

ABSTRACT

This essay focuses on thinking about an eventful crowd that faces the emergence of bolsonarism from a resumption of crowd theories developed during the 20th century. Event is thought here based on Badiou’s philosophy; we will go through the psychology of crowds, Freud’s emphasis on social logics based on the libidinal bond, Laclau’s Freudian resumption thinking about a continuum of social logics of multitudinal organization, Jodi Dean’s focus on the relationship between the eventful crowd and the party form and, finally, the dialectic of emergence in Safatle from the work of the negative.

KEYWORDS
Crowd; event; communication and politics.

Debruçar-se sobre essa multidão ajuda a desmantelar a subjetividade fantasmagórica do indivíduo ao localizar na multidão a dinâmica de um sujeito coletivo.

(DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 118).

A década de 2010-2020 trouxe ao campo político brasileiro a presença das multidões; em 2013 emergiu uma multidão acontecimental que, no pós-acontecimento, deu lugar à emergência do sujeito obscuro, fascista, culminando na eleição de Bolsonaro em 2018, mas também à ativação de vários agentes conservadores que ganharam proeminência nas redes sociais, como o Movimento Brasil Livre (MBL), por exemplo. Angela Alonso fala do espólio de junho de 2013:

O país caiu num furacão político desde então, com dois outros ciclos de protesto, em 2015 e 2016, um impeachment, em 2016, a virada da sequência de governos de esquerda para o outro polo do espectro político, em 2018, e o retorno do PT ao poder, com a eleição de 2022. Muita coisa mudou no caminho. [...] Começou o declínio dos movimentos socialistas como os campeões da mobilização social. Alinhados com o governo, deixaram a rua. Espaço logo povoado, mas não por um único ator, fosse “nova esquerda”, fosse “nova direita”. (ALONSO, 2023ALONSO, Angela. Treze: a política de rua de Lula a Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 290).

Examinamos no livro Comunicação em rede na década do ódio (PRADO; PEREIRA; PRATES, 2022PRADO, José Luiz Aidar; PEREIRA, Heloisa; PRATES, Vinicius. Comunicação em rede na década do ódio. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2022.) esse processo de “desacontecimentalização” da multidão de 2013, estudando alguns casos, como o do MBL, os perfis falsos da extrema direita, o uso do significante “povo brasileiro” durante o impeachment da presidente Dilma Rousseff etc. No presente texto buscaremos retomar/elaborar a teoria da multidão na forma de ensaio, interessando sobretudo investigar modos de apreensão para pensarmos uma multidão acontecimental, entendendo acontecimento a partir da filosofia de Alain Badiou. Não retomaremos, portanto, o exame do processo político de constituição das multidões brasileiras de extrema direita, tarefa anteriormente realizada, mas examinaremos o conceito de multidão no campo democrático a partir de uma retomada das teorias que vêm abordando o tema desde o fim do século XIX no sentido de repensarmos numa chave progressista os devires das multidões acontecimentais, inclusive as multidões em rede. Nosso foco não é, então, as multidões bolsonaristas, mas seu enfrentamento, o que não é possível, no entanto, sem considerar o processo de formação dos laços que ligam as pessoas nesses grupos e os laços verticais com seus líderes. No caso do bolsonarismo isso é importante, porque, como diz Nunes:

[...] Laclau tende a exagerar a passividade das coisas e a espontaneidade das lideranças, minimizando os laços horizontais entre as pessoas e superestimando o vínculo vertical com o chefe ou o significante vazio que elas compartilham. A verdade tende a ser mais prosaica: em vez da nomeação como ato fundador que inaugura uma cadeia causal linear, um processo circular de retroalimentação por meio do qual as pessoas começam a gravitar em direção umas às outras e a representar a si mesmas nesse movimento, até que uma ou mais representações “colem” como aquilo que dá sentido a sua unidade. Embora a operação política “de cima para baixo” tenha sido essencial para moldá-lo, o bolsonarismo deve ser visto como o encontro, sob a égide dos grupos políticos que se aglutinaram em torno da campanha de Bolsonaro, de uma série de tendências sociais que já estavam há algum tempo imbuídas de um certo tropismo mútuo. (NUNES, 2022NUNES, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre o bolsonarismo e um mundo em transição. Edição kindle. São Paulo: Ubu, 2022., p. 21).

Para compreender essa novidade das multidões reacionárias bolsonaristas, ou seja, essa gravitação horizontal mútua na circulação intensa das redes, envolvendo elevado piso eleitoral da população, teremos de recuar até o final do século XIX e o início do XX, em que a psicologia das multidões construía o discurso conservador sobre o poder aterrorizante das multidões, numa corrente de pensamento que foi de Taine (2011)TAINE, Hyppolite-Adolphe. Les origines de la France contemporaine. Paris: Bouquins, 2011., passando por Le Bon (2008)LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008., Tarde (2005)TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005. e chegando a Ortega y Gasset (1980)ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Alianza, 1980.. Nesse alinhamento a multidão era entendida como a reunião dos muitos em que o indivíduo razoável perde, ao agregar-se, o verniz civilizatório e regride na escala evolutiva, sendo dominado pelas pulsões mais primárias e violentas, colocando o mundo em perigo. Freud dialogou com essa psicologia, mas a atravessou pela psicanálise e propôs deslocamentos tais que apontaram para outros rumos políticos. Desde o final dos anos 1990 novos autores enfrentaram essa temática, trazendo outros aportes e novas perspectivas para o entendimento das multidões, entre os quais, Žižek (2014)ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Pereita. São Paulo: Boitempo, 2014., Laclau (2013)LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., Butler (2018)BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., Badiou (2012BADIOU, Alain. A hipótese comunista. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2012.; 2019BADIOU, Alain. Petrogrado, Xangai: as duas revoluções do século XX. Tradução de Celia Euvaldo. São Paulo: Ubu, 2019. (Coleção Explosante).) e Jodi Dean (2022)DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022.. Nossa questão é: como essa retomada poderia nos ajudar a compreender, na atualidade, os fenômenos brasileiros de multidão nas redes e fora dela? Como pensar, a partir daí, a emergência de uma multidão acontecimental? Essa multidão pode ser pensada apenas a partir dos laços com o líder ou também a partir de laços horizontais entre os membros? Em que a circulação em rede altera essas emergências? Como a questão do afeto, da pulsão e do gozo entra nessa reflexão?

Da perspectiva de um pensamento progressista, o que interessa é perguntar se um movimento de multidão pode ensejar transformações sociais democráticas permanentes, para além da impermanência de um ajuntamento ou de uma ocupação (assembly). Dito a partir da filosofia de Badiou (1996BADIOU, Alain. O ser e o evento. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 1996.; 2008BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: el ser y el acontecimiento, 2. Traducción de María del Carmen Rodrigez. Buenos Aires: Manantial, 2008.; 2018aBADIOU, Alain. Can politics be thought?. Translated by Bruno Bosteels. Durham: Duke University Press, 2018a.; 2018b), nossa questão pode ser assim colocada: um ajuntamento de pessoas pode ensejar um processo de subjetivação política, de transformação progressista e democrático iniciado pelo acontecimento de multidão, para além das redes?

As elites se assustam com as multidões

Gustave Le Bon esteve entre os primeiros divulgadores da psicologia conservadora das multidões. Escreve seu livro Psicologia das multidões em 1895, falando de crise de época em função de dois fatores: a destruição das crenças religiosas, políticas e sociais e a criação de novas condições de vida e pensamento pela ciência e indústria. Isso teria conduzido a um período de transição e anarquia, tendo surgido um novo poder, o das multidões. Dizia ele: é na alma das multidões que o destino das nações se prepara. Ele encarna o medo que as elites tinham dos trabalhadores desde a Comuna de Paris, em 1870.

Para Le Bon as reivindicações das multidões tendem a destruir a sociedade para reconduzi-la ao comunismo primitivo. Quando as forças morais da sociedade perdem vigor, a dissolução final é efetuada pelas multidões inconscientes e brutais: elas atuam como micróbios que debilitam a sociedade. São seduzidas apenas por impressões, por imagens fáceis, pelas palavras fortes do líder. A personalidade consciente de cada indivíduo que entra na massa desaparece. Forma-se o que Le Bon chama de multidão psicológica, dominada pelo inconsciente da raça, pelos impulsos afetivos, por estímulos intensos, em especial os violentos. Diz Le Bon (2008LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 33): “é sobretudo pelos elementos inconscientes que compõem a alma de uma raça que todos os indivíduos dessa raça se parecem”. As multidões acumulam não a inteligência, mas a mediocridade.

Entre as características específicas da multidão, estão: 1) na multidão o indivíduo adquire um sentimento de poder invencível (pelo número) que lhe permite ceder a instintos que, sozinho, teria refreado; 2) há o contágio mental, associado à hipnose. Na multidão todo sentimento e todo ato são contagiosos, a ponto do indivíduo sacrificar seu interesse pessoal pelo coletivo; 3) sugestionabilidade: o sujeito pode ser colocado num estágio em que perde sua personalidade consciente e fica num estado de fascinação (causado pelo efeito-multidão) semelhante ao do hipnotizado. Paralisado em sua consciência, ele se torna escravo do inconsciente, que o hipnotizador dirige como desejar.

Assim, a psicologia das multidões, diferentemente do pensamento progressista anarquista e socialista do século XIX, viu na multidão um perigo para a vida civilizada, mas não enfrentou o mal-estar da cultura, por não enfrentar o trabalho do negativo.

Da sugestão à libido e às multidões organizadas

Freud parte de Le Bon em seu texto de 1921 “Psicologia das massas e análise do Eu” (FREUD, 2011bFREUD, Sigmund. Psicologia das massas. In: Sigmund Freud. Obras Completas. Volume 15. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.), mas não opera com uma divisão entre psicologia individual e psicologia das massas. Ele discorda de muitas leituras da psicologia das multidões que explicam as mudanças psicológicas do indivíduo ao entrar nas massas, incidindo seu exame nos laços entre os membros de um grupo, principalmente em termos da organização da multidão: o que os mantém juntos? A leitura tradicional falava na intensificação do afeto e na inibição do pensamento. Ao invés de aceitar a sugestão e o contágio, Freud fala em libido, fonte energética das pulsões que operam em tudo o que se refere ao amor. Amor é entendido na psicanálise não só como amor romântico, mas como relação de vínculo, originalmente sexual, que aproxima libidinalmente os corpos. Freud separa as massas espontâneas e as conduzidas por um líder (igreja e exército), dotadas de certa organização. Em Le Bon o acento estava nas massas espontâneas, não em sua organização. Freud está preocupado justamente com a organização, com o vínculo. Há dois eixos estruturais: um vertical (membros - líder) e outro horizontal (vínculos entre membros). Em caso de desagregação, surge pânico e angústia. Para Freud o vínculo vertical é mais determinante (líder ou ideia ou ideal unificador).

Freud trata esses vínculos a partir da identificação e das formas de investimento do sujeito em objetos libidinizados. A criança investe na mãe como um objeto libidinal, mas se aproxima do pai como um modelo simbólico, pela identificação, como um terceiro que aponta para onde se dirige o desejo da mãe. Freud não leva a sério, portanto, a sugestão, nem concorda com o sentido que Le Bon dá ao inconsciente, complexificando a análise. Quando amamos, o Eu se torna mais modesto e o objeto mais sublime, o que desemboca num encolhimento do Eu: o objeto ocupa o lugar do ideal de eu. Freud diferencia identificação de enamoramento: na identificação o Eu introjetou o objeto, enquanto no enamoramento o Eu se rendeu a ele, substituindo-o por aquilo que é mais importante em sua constituição.

Ele diferencia eu e ideal de eu, que é uma parte diferenciada do eu relativa à consciência moral. É no lugar do ideal do Eu que o sujeito instala o objeto de sua fascinação amorosa, bem como o hipnotizador ou o líder, ficando assim esse conceito no centro do principal eixo de constituição do coletivo como fenômeno. Esse ideal daria lugar em 1923 ao supereu (no texto “O eu e o isso”, em FREUD, 2011aFREUD, Sigmund. O eu e o id. In: Sigmund Freud. Obras Completas. Volume 16. Tradução de Paulo César de Souza.São Paulo: Companhia das Letras, 2011a.).

Uma massa organizada sofre duplo processo: a) instalação pelos membros da massa de um objeto externo no lugar de seu ideal de eu (eixo vertical); b) identificação recíproca entre esses mesmos indivíduos (eixo horizontal), pelo vínculo amoroso com dimensão sexual sublimada (identificação entre eus). Ao entrar na massa dá-se uma limitação do narcisismo a partir da instalação do líder na posição de ideal de eu de cada um dos membros. “O vínculo amoroso que se estabelece entre os membros age como uma compensação, em troca do ataque narcísico aceito” (ROUDINESCO; PLON, 1998ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998., p. 614).

O ideal de eu e o supereu vêm do Outro. Como diz Dean:

O eu ideal é como o sujeito se imagina. O ideal do eu é o ponto a partir do qual o sujeito olha para si mesmo. E o supereu é o juiz que atormenta o sujeito ao apontar seu inevitável e inescapável fracasso em alcançar qualquer um desses ideais. Esses três pontos estão ligados: o ideal do eu verifica a imagem do sujeito. Uma vez que há a expectativa de que o ideal do eu forneça essa verificação, o sujeito tem certos investimentos nele. O sujeito precisa desse ideal do eu para garantir sua estabilidade ou senso de autonomia. (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 228).

Em resumo, Freud agrega novos conceitos para entender as multidões, principalmente as organizadas, buscando entender o pulsional, a libido que agrega.

Laclau e as lógicas sociais multitudinárias

Laclau relê Freud em seu A razão populista (2013), enfatizando que, ao fim e ao cabo, haveria no texto de Freud, apesar das sinuosidades do argumento, vários tipos evocados de política. Em primeiro lugar há trechos em que Freud fala da aquisição para o grupo dos traços do indivíduo que ele perdeu quando veio ao grupo. Aí são colocados dois modos de constituição do social: a) um baseado na organização, mediante a qual a sociedade adquire as características secundárias do indivíduo; e b) um fundamentado no laço libidinal com o líder. Laclau interpreta esses tipos como lógicas sociais que, em graus variados, entram na constituição de todos os grupos sociais. O grupo totalmente organizado e o líder puramente narcisista são os extremos de um continuum no qual as duas lógicas sociais são articuladas de várias maneiras, havendo composições intermediárias possíveis. Diz Laclau (2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 106): “Sempre que a necessidade de um líder forte se encontra apenas na metade do caminho, o líder será aceito somente se apresentar, de modo particularmente marcado, características que compartilha com aqueles que se supõe que deve liderar”.

Daí decorrem três consequências: a) o algo em comum partilhado que produz identificação não pode consistir “exclusivamente de amor ao líder, mas de algum traço positivo que líder e liderados compartilham” (LACLAU, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 106); b) a identificação não ocorre somente entre eus; c) se o líder comanda por apresentar traços comuns a todos os membros, ele não pode ser um dirigente despótico narcisista. “Sua identidade é dividida: é o pai, mas também é um dos irmãos” (LACLAU, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 107). Ele é responsável pela comunidade. Aqui se chega a uma concepção mais democrática do que a de déspota narcisista (o pai da horda primitiva).

Para Laclau (2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 108), de Taine até Freud houve um tema recorrente sobre as reflexões da sociedade de massas: a renegociação teórica da dualidade entre a homogeneidade e a diferenciação social. Para Taine a sociedade permitiu as forças homogeneizantes somente às custas de sua coesão interna; a Revolução Francesa teria sido o resultado da uniformidade introduzida pelo absolutismo, que fez desaparecer os organismos intermediários que ligavam o indivíduo ao Estado. Mas, posteriormente, novas teorias permitiram a ascensão de uma lógica social2 2 Em Laclau (2015) lógica social é um sistema de regras que estrutura um horizonte em que alguns objetos são representáveis (são contados por um), enquanto outros são excluídos. homogeneizante compatível com o funcionamento de um corpo social viável. Isso pode ser traduzido em termos das lógicas (de Laclau) da diferença e da equivalência. Se apenas as diferenças operam no social, então os grupelhos não conversam, e isso mantém o isolamento; se, porém, há a possibilidade de diminuir a carga diferencial dos grupos, uma lógica equivalencial atua para ligar as diferenças atenuadas. Isso ocorre quando os grupos estão enfrentando um adversário comum e precisam unificar o diálogo, costurar suas diferenças, o que produz homogeneização. Não há organização sem a lógica da equivalência. Segundo Laclau, com essas lógicas, diferenciação e homogeneidade passam a não ser mais antípodas, como eram em Taine. Com Freud some o dualismo e tudo gira em torno da identificação. O ponto de partida para explicar uma pluralidade de alternativas sociopolíticas deve ser encontrado no grau de distância entre o eu e o ideal de eu, como vimos. Se a distância aumenta, diz Laclau, ocorre a identificação entre os pares enquanto membros do grupo e a transferência do papel do ideal de eu para o líder: nesse caso os princípios fundantes da ordem comunitária transcenderão o líder e a identificação de equivalência entre os membros do grupo aumentará. Se, por outro lado, a distância entre eu e ideal de eu for menor, o líder será escolhido pelos membros, mas ele fará também parte do grupo, participando do processo geral de mútua identificação (LACLAU, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 110). No caso de ocorrer a anulação da brecha entre eu e ideal de eu, haverá a total transferência das funções do indivíduo à comunidade, através da organização.

A seguir, Laclau discute os temas da nomeação e do afeto. Quando o significante emerge, ele introduz uma descontinuidade na realidade; é o puro significante que retroativamente totaliza o campo discursivo, na posição de ponto nodal, que é a expressão de Laclau para o capitonê lacaniano, ponto em que se costura uma cadeia significante para totalizar retroativamente um discurso. Nessa posição de costura do ponto nodal deve cair um significante vazio, cujo significado vai surgir dentro do discurso que ele está costurando; aí um conteúdo parcial assume uma função universal (LACLAU, 2015).

Ao redor de demandas sociais não atendidas pode se constituir uma equivalência, a partir de um nome, que exerce uma atração sobre outras demandas vividas como insatisfeitas, podendo provocar a lógica da equivalência. Com isso, a costura de um discurso equivalencial que diminua as diferenças dispersas no campo discursivo provoca a constituição de uma demanda global, que envolve a formação de fronteiras políticas e a construção discursiva do poder como força antagonista. Há nesse ponto um intenso investimento afetivo, que caracteriza uma lógica acontecimental. Poderíamos chamar essa multidão de diferenças atenuadas costuradas pela lógica equivalencial de multidão acontecimental, conforme termo de Jodi Dean (2022)DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022..

Para Laclau, a relação entre significação e afeto é íntima. Não há linguagem sem afeto e vice-versa. Qualquer todo social resulta da articulação entre dimensões significantes e afetivas. As demandas insatisfeitas produzem a ideia de plenitude, ou seja, a presença de uma ausência. É essa aposta na busca da ordem ausente que provoca a equivalenciação das diferenças.

Em Lacan, o primeiro objeto de satisfação da criança é a mãe que a alimenta. Há aí um gozo da criança com essa mãe, que é perdido, à medida que a criança entra na linguagem, por um processo de descompressão ontológica: o sujeito é sugado para dentro da linguagem, perdendo o mundo e passando a partir de então a acessá-lo via linguagem. Mas traços desse gozo primordial (perdido) permanecem nos objetos parciais, que deixam de ser parcialidades que evocam a totalidade perdida e se tornam “o nome dessa totalidade” (LACLAU, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 177). No desmame, o seio perdido se torna separado, um objeto parcial, um objeto a, lacaniano, que é um objeto da falta. A plenitude mãe-criança corresponde à plenitude não alcançada, mas a aspiração a essa plenitude permanece. Como diz Laclau (2013)LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., essa plenitude é transferida aos objetos das pulsões (parciais).

Investimento radical para Laclau significa, portanto, tornar um objeto a, o objeto da perda (por exemplo, o seio perdido com o desmame, perdido mas cujo gozo se conserva), corporificação de uma plenitude mítica. Dessa forma, o afeto é a própria essência do investimento. É a substância do gozo, jouissance, na terminologia lacaniana. Diz Laclau: “sendo a plenitude da mãe primordial um objeto puramente mítico, não existe gozo alcançável a não ser através de um investimento radical em um objeto a” (LACLAU, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 179). Em termos sociais: “nenhuma plenitude social é realizável exceto através da hegemonia; e esta nada mais é que o investimento, num objeto parcial, de uma plenitude que sempre nos escapará, porque é puramente mítica” (LACLAU, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013., p. 179-180).

No bolsonarismo vimos em operação o discurso mítico de uma plenitude do Brasil gigante buscado, contra o inimigo da esquerda, unindo grupos de extrema direita muito diversos, como militares, tradicionalistas, neoevangélicos, conservadores históricos, em torno de um enunciador-mito, homem comum dinamitador de verdades tradicionais, como as certezas da ciência, a potência da educação progressista, o poder da fala da autoridade etc. Cada subgrupo se integra ao bolsonarismo, mas mantém relações específicas entre si e com o líder-mito: os militares ao ganharem poder e enfrentarem o “comunismo”, os tradicionalistas ao buscarem seu Brasil mítico gigante, os empresários reacionários ao adquirirem poder e dinheiro, os violentos ao terem armas liberadas, os neoevangélicos ao aumentarem o poder no Congresso e barrarem as conquistas progressistas, etc.

Assim, Laclau relê Freud e propõe entender os coletivos como lógicas sociais em que os antagonismos se movimentam entre lógicas da diferença e equivalência, entendendo as possibilidades de organização dos muitos como um continuum entre dois polos. Mas vimos, anteriormente, que Nunes (2022)NUNES, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre o bolsonarismo e um mundo em transição. Edição kindle. São Paulo: Ubu, 2022. pontua que Laclau minimiza os laços horizontais entre as pessoas, o que é bastante relevante na dinâmica atual das redes, principalmente através da memética, em intimidade com a fala das celebridades distribuídas no ciberespaço, e superestima o vínculo vertical com o líder.

A emergência acontecimental

Aprofundemos agora o conceito de acontecimento, para depois abordarmos o acontecimento-de-multidão. A filosofia de Badiou insere-se no que tem sido chamado de esquerda lacaniana (STAVRAKAKIS, 2007STAVRAKAKIS, Yannis. The lacanian left. New York: State University of New York Press, 2007.). Sua filosofia se dedica a investigar, como diz Peter Hallward (2003, p. xxi), “como pode algo novo ocorrer no mundo” e “que tipo de inovações convidam e merecem completa afirmação universal”3 3 A tradução de todos os trechos citados neste texto é de minha responsabilidade. . Como sustentar essa inovação? Seu modo de filosofar é bastante distinto de várias correntes da filosofia do século XX. Ele não se guia pela guinada linguística, não defende o pós-modernismo, que ele chama de sofística, não se impressiona com a dedicação dada nas últimas décadas ao corpo, não considera política a gestão condominial que tem sido implantada nas últimas décadas de neoliberalismo. Não acha que a política deva ser reduzida a uma ética do Outro.

O que mais distingue Badiou da filosofia do século XX talvez seja sua aposta na verdade e sua relação com o universal. O estabelecimento de um processo de verdade rompe com o status quo que normatiza os juízos. No início do livro Lógicas de los mundos, Badiou (2008BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: el ser y el acontecimiento, 2. Traducción de María del Carmen Rodrigez. Buenos Aires: Manantial, 2008., p. 17) critica a tese fundamental do materialismo democrático que vige em nossas sociedades neoliberais pós-modernas: “Não há senão corpos e linguagens”. Essa é nossa crença “natural”. Como diz Badiou: “quem não subscreve nos fatos, na pragmática dos desejos, na evidência do comércio, ao dogma de nossa finitude, de nossa exposição carnal ao gozo, ao sofrimento e à morte?” (BADIOU, 2008BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: el ser y el acontecimiento, 2. Traducción de María del Carmen Rodrigez. Buenos Aires: Manantial, 2008., p. 18). Para esse materialismo democrático, ou pós-modernismo, “o corpo é a única instância concreta dos indivíduos produtivos que aspiram ao gozo. O homem, no regime da ‘potência da vida’, é um animal convencido de que a lei do corpo abriga o segredo de sua esperança” (BADIOU, 2008BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: el ser y el acontecimiento, 2. Traducción de María del Carmen Rodrigez. Buenos Aires: Manantial, 2008., p. 18). Para validar a equação que equaliza existência, indivíduo e corpo, diz Badiou, a doxa contemporânea reabsorve a humanidade em uma animalidade ampliada. A visão dos direitos humanos recebe aí uma crítica de esquerda ao igualar o homem a uma vítima que deve ser protegida. Trata-se de um biomaterialismo, ou, na visão de Agamben (2002)AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. de validar o homem a partir de sua vida nua. Contra esse pós-modernismo parlamentar, Badiou (2008BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: el ser y el acontecimiento, 2. Traducción de María del Carmen Rodrigez. Buenos Aires: Manantial, 2008., p. 18) propõe uma dialética materialista: “Não há apenas corpos e linguagens, senão que há verdades”.

Para Bosteels (2011)BOSTEELS, Bruno. Badiou and politics. Durham: Duke University Press, 2011. devemos entender a dialética acontecimental de Badiou em termos de vazio e excesso, mais que totalização; de cisão e torsão sintomal de identidades fraturadas ao invés de negação e de negação da negação; e de colapso da representação, mais que da indescritível autoapresentação do conceito. Para Bosteels a questão não é se Hegel deveria ser revivido, mas qual Hegel. Esse movimento de uma reconstrução de um Hegel que teria lido Lacan também se dá em Žižek (1991)ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.; em minha visão trata-se de um Hegel que, após estágio sanduíche em Paris, teria vindo à Amazônia indígena, por sugestão de Viveiros de Castro.

Como pensar em suplemento de uma situação, que rompe com o status quo, que é ainda imanente a essa situação? Como tal verdade emerge em uma situação existente? Ao invés da obsolescência dialética entre fatores objetivos e subjetivos, entre consciência e agir social ou entre teoria e prática, Bosteels (2011)BOSTEELS, Bruno. Badiou and politics. Durham: Duke University Press, 2011. argumenta que a lógica das verdades emergentes pede um novo conjunto de categorias dialéticas, a partir do qual o novo possa ser pensado como processo.

Em Can politics be thought?, Badiou afirma que

[...] a dialeticidade da dialética consiste precisamente em ter uma história conceitual e dividir a matriz hegeliana a tal ponto que ela se torna uma doutrina do acontecimento e não a aventura guiada do espírito. Uma política, mais que uma história. (BADIOU, 2018aBADIOU, Alain. Can politics be thought?. Translated by Bruno Bosteels. Durham: Duke University Press, 2018a., p. 57).

[...] Assim, a dialética significa uma forma de pensamento que apreende a verdade de uma situação não pelo caminho da mediação, mas através de uma interrupção, ou de uma cisão, de um corte na representação. (BADIOU, 2018aBADIOU, Alain. Can politics be thought?. Translated by Bruno Bosteels. Durham: Duke University Press, 2018a., p. 15).

Para Badiou o povo pensa, se consideramos a história geral de sua resistência à exploração e opressão. Assim, um acontecimento4 4 Ver sobre o acontecimento: Prado (2013; 2016; 2017a; 2017b; 2020; 2022). na política é aquele que põe “o povo a pensar e, acima de tudo, produz formas de pensamento coletivo que são essencialmente justas” (BOSTEELS, 2011BOSTEELS, Bruno. Badiou and politics. Durham: Duke University Press, 2011., p. 19). Se examinamos o Congresso eleito em 2022, fica difícil aceitar a proposição de Badiou (2018a)BADIOU, Alain. Can politics be thought?. Translated by Bruno Bosteels. Durham: Duke University Press, 2018a., dada a carga de fisiologismo e de conservadorismo ali vigente. Mas isso só mudará se cidadãos engajados com a política dedicarem energia a essa mudança. A ligação entre pensamento e política só pode ser entendida dentro de um processo militante. A dialética materialista opõe ao princípio da finitude que reina no capitalismo a infinidade real das verdades. O que interessa é saber se um corpo, ou uma multidão de corpos, participa, através das linguagens, da exceção de uma verdade: esta começa com um acontecimento5 5 Badiou (in BADIOU; TUSA, 2020, p. 35) afirma: “acredito ter demonstrado que na realidade não há dimensão acontecimental no genocídio, no massacre, porque não se trata de uma proposição ou de uma possibilidade; ao contrário, o genocídio é por si mesmo a realização de um fim preestabelecido, o de que, para que a Alemanha cumprisse seu destino historial, era preciso passar pelo extermínio do que tornava a negação imanente, ou seja, os judeus”. Esse trecho é importante para a diferenciação entre acontecimento e eventos reacionários ou fascistas, que não abrem para o advento de novos mundos possíveis. que emerge subitamente, sem planejamento, se houver sujeitos que apostem no processo que aí se inicia.

A partir de Badiou e sua teoria do acontecimento é possível pensar na constituição de uma montagem (assembly) de sujeitos acontecimentais no pós-acontecimento, em que o campo de presença carregado de discursos em disputa absorve as consequências políticas do acontecimento, instaurando, a partir dos sujeitos que apostaram no acontecimento, novos mundos possíveis. Falamos aqui de acontecimento como ponto de origem de uma política emancipatória, de transformação.

Da multidão acontecimental à forma partido

Para Jodi Dean (2022)DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., o exame da multidão tem como foco a crítica do individualismo ligado ao liberalismo e neoliberalismo, indicando que multidão não é soma de indivíduos, mas se liga a um sujeito que é desde sempre coletivo. Porém, esse sujeito não é político:

[...] a multidão é um componente necessário, mas incompleto, da subjetividade política, é a abertura rasgada pela pressão concentrada exercida por muitos, é o poder disruptivo da quantidade [...]. A multidão não é um sujeito político. O povo aparece como o sujeito da política quando a ruptura do acontecimento de multidão puder ser atribuída a ele retroativamente como um efeito dela (e em fidelidade à) descarga igualitária da multidão. (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 147).

Dean fala em acontecimentos de multidão ao discutir a emergência de um novo poder coletivo no início do século XXI, em que os muitos

[...] vêm colocando experiências de coletividade no lugar de expectativas de multiplicidade. A questão que emerge dessas experiências é como fazer com que elas perdurem e se estendam. Isto é, de que forma a descarga momentânea de igualdade que as multidões liberam pode se tornar a base para um novo processo de composição política? (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p.40).

De que acontecimentos de multidão ela fala aqui? Dos eventos na praça Tahrir, do movimento dos indignados em Madri, do Occupy, em que os muitos gritavam: “Somos os 99%”. Podemos mencionar também as multidões brasileiras de junho de 2013, embora o que de início nos pareceu um acontecimento tenha conduzido ao desastre. A questão de Dean é:

[...] formam-se multidões, mas elas não perduram. Em contraste, as conquistas iniciais do Syriza demonstram uma dinâmica entre multidão e partido: a multidão pressiona o partido a superar expectativas, o partido identifica na urgência articulada pela multidão a coragem do povo. (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 42).

Desde que deixou de ser central o antagonismo entre capital e trabalho, diversificando-se as demandas dos movimentos sociais por igualdade/reconhecimento e redistribuição, a partir dos anos 1960 e 1970, o foco da política passou a ser saber se “a ampla gama de associações de esquerda tem condições de se unir de modo a conquistar um verdadeiro avanço político” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 43). Dean (2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 43) aposta que sim, e para isso constrói “uma abordagem do partido inspirada na multidão”. Diz: “fiel à ruptura igualitária do acontecimento de multidão, o partido comunista mantém aberta a lacuna por meio da qual o povo aparece como sujeito político” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 43). Quem é o povo? É a aliança dos oprimidos, dos que não têm voz na política, dos invisíveis. Isso lembra Rancière (1996)RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996., quando diz que política não é polícia; esta é gestão, controle de entradas e saídas, regulação. Política só acontece quando o invisível passa à praça dos acontecimentos e se torna visível, passando sua voz, que era considerada ruído, a ser reconhecida como produzindo sentidos.

Para Dean (2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 43-44), sob as condições do capitalismo comunicativo6 6 Dean fala em capitalismo comunicativo, mas preferimos a expressão “capitalismo comunicacional”. O fato de envolver comunicação não o torna comunicativo, aliás, ao contrário, muitas vezes os espetáculos da cultura do consumo são pouco comunicativos. Sobre isso ver: Prado; Prates (2017). , “as multidões são os muitos proletarizados, aqueles cujas atividades comunicativas lhes são expropriadas em processos de acumulação e despossessão que beneficiam o capital enquanto classe”. Nessa argumentação o partido é lugar de experimentação e mudança, devendo incorporar as consequências do acontecimento de multidão, para que elas não se dissipem.

No capitalismo comunicativo se põe e repõe a individualidade comandada; esse imperativo diz: “seja você, se encontre, tenha sucesso, seja autoempreendedor, invista em você mesmo, busque o a-mais”7 7 Sobre isso ver: Prado (2011; 2013) . Para Dean:

Esse comando circula de várias formas. Ouvimos, repetidamente, que somos únicos; e somos estimulados a cultivar essa singularidade. Aprendemos a insistir em nossa diferença e a desfrutar dela, intensificando processos de auto-individuação. Não há ninguém como nós (como eu). A injunção do “faça você mesmo” é tão incessante que o “cuidar de si” aparece como algo dotado de significado político, não como sintoma de um fracasso coletivo - deixamos a rede de seguridade social desmoronar - e de um aperto econômico - em um mercado de trabalho ferozmente competitivo, só nos resta a escolha de trabalhar em nós mesmos, constantemente, só para não ficarmos para trás. Diante da exigência constante de descobrir, decidir e expressar tudo por conta própria, passamos a enxergar a coletividade política como uma nostalgia por solidariedades impossíveis de outra era. (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 45).

João Freire Filho tratou desse espírito do tempo no livro Ser feliz hoje (2010FREIRE FILHO, João (Org.) Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: FGV, 2010.). Temos hoje obrigação de buscar sucesso e felicidade nos mercados de bens e serviços. Em O show do eu (2008SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.), Paula Sibilia aborda o eu espetacular e a gestão de si como uma marca8 8 Ver também: Prado (2011). . . A celebridade, o vencedor do Big Brother Brasil (BBB), o investidor de sucesso, o executivo multimilionário de tecnologia, o youtuber com milhões de seguidores e o esportista ganhador de medalha são os ideais de empreendedor de si dessa era. No livro Sintoma e fantasia no capitalismo comunicacional, discutimos os pontos sintomáticos do capitalismo globalizado ou comunicacional (PRADO; PRATES, 2017PRADO, José Luiz Aidar; PRATES, Vinicius. Sintoma e fantasia no capitalismo comunicacional. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.). A diferença é o que nos retira da multidão do consumo, da mesma forma que se escolhe um produto na prateleira das commodities. O medo é de acabar no lixo pela indiferenciação. Aqui cresce o problema:

Quando fazemos da diferença individual a base de nossa política, fica difícil distinguir capitalismo comunicativo e política igualitária emancipatória. Pior, fortalecemos a ideologia que desarticula a formação de coletividades politicamente poderosas. Convocar as pessoas a fundamentar sua política nas experiências pessoais que as diferenciam das outras é reforçar a dinâmica capitalista de individuação. (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 50).

Dean aponta várias figuras do empreendedor de si que se baseiam na construção de uma identidade imaginária (sem ancoradouro simbólico): o individualista bruto, o jogador corporativo narcisista e o sobrevivente. Sobre essa última, ela diz:

A figura do sobrevivente é a do empreendedor de si que só conta consigo mesmo e desconfia de todos, e tem de navegar numa cultura empresarial de concorrência e desigualdades: sentir raiva, suspeitar de todos e agir na defensiva são condutas e emoções justificáveis - afinal, no fundo, só podemos contar com nós mesmos - e potencialmente úteis como armas psíquicas capazes de ajudar a sustentar uma individualidade impossível. (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 67).

A questão é: como esse indivíduo que luta pela sobrevivência, de preferência com semblante fálico da medalha do sucesso e bíceps energizado, se agrega às multidões em rede? Ele capitaliza sua imagem pela visibilização e pela aquisição de atenção, e isso lhe traz retorno financeiro (capitalização); esse processo é criador de conexões, marcador de incorporação e pertencimento na cidade de projetos, ligada à formação de redes necessárias para os autoempreendedores flexíveis sobreviverem no capitalismo tornado “flexível”, em que o trabalho pode não durar muito, sendo necessário estar sempre colocando um projeto em andamento, enquanto se pensa no próximo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.).

Pertencemos aos muitos, mas, ao mesmo tempo, queremos ser únicos, marcados pelo valor-signo do capitalismo comunicacional, em que todos somos caçadores de atenção capitalizável. Ao falar do alívio que um indivíduo consegue ao entrar na massa, Elias Canetti (1995)CANETTI, Elias. Massa e poder. Tradução: Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. afirma que se trata da redução do medo do contato, mas no mundo das redes é preciso entrar na multidão apresentando sua diferença, pois estar na massa nem sempre é capitalizável. Nas massas em rede, em que não há a presença dos corpos aqui e agora na montagem (assembly), na assembleia em ato, é preciso atividade incessante ao redor dos sentidos geradores de atenção. O bolsonarismo soube como ativar essa potência da rede, que quando necessário também vai às ruas. Como diz Türcke (2010)TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas, Editora da Unicamp, 2010., sem ativar a sensação não se tem o espetáculo gerador de atenção, promovendo a circulação intensa da sociedade hiperexcitada. Nessa forma social os muitos lá estão na maioria das vezes para agitar, para se unir contra os inimigos, contra os adversários, produzindo uma atenção ora capitalizável, ora gerando pertencimento, ou ambos. As multidões não são apenas as virtuais, mas aquelas presenciais ou semipresenciais, que ora estão nas telas, ora nas praças. Algumas são organizadas em função da identificação com o líder autoritário, como no bolsonarismo, outras estão a meio caminho entre a auto-organização com identificação horizontal entre os membros e o líder que compartilha democraticamente algum traço ou discurso com os membros. A teoria da multidão de Dean desarticula a distinção entre o físico e o virtual, pois o que importa é a dinâmica de agregação que se dá numa mistura dos modos de presença da coletividade. O que a montagem em multidão traz é a emergência contingencial do acontecimento em ato, com alta afetividade (ou gozo), provocando descontinuidade, ruptura do funcionamento em dispositivo segundo as normatividades oficiais9 9 Não falaremos em acontecimento no caso do bolsonarismo porque se trata de uma política que gira em torno do fake e da mentira e não de processos de verdade que visam à mudança em direção a novos mundos. . Na psicologia das multidões o que interessava era a massa “psicológica”. Hoje experimentamos a força dos muitos, da multiplicidade, em presença de outros corpos, mas também on-line, em rede, que é um tipo de presença cada vez mais ancorada em tecnologias de presença. Como diz Dean, a multidão, virtual e física, se move e se intoxica. Nesse contexto as esquerdas não têm conseguido construir lógicas de equivalência entre lutas distintas, reinando a diferença nos grupos e movimentos, nem têm conseguido responder à angústia e ao mal-estar dos muitos que frequentemente não têm expressão clara:

A fragmentação de uma política de esquerda em um conjunto cada vez maior de vertentes populistas, progressistas, trans, pluralistas, verdes, multiculturalistas, antirrascistas, democratas radicais, feministas, identitárias, anarquistas, queer, autonomistas, horizontalistas, anti-imperialistas, inssurrecionistas, libertárias, socialistas e comunistas é sintomática de tal realismo, cujas premissas se manifestam reiteradamente como suspeitas - em discussões entre ativistas e acadêmicos, réplicas em reuniões e bate-boca nas mídias sociais. (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 90).

Nesse sentido a coletividade resulta indesejável e impossível, como quer o projeto neoliberal. Para sair disso seria preciso “não deixar que a realidade que produz o individualismo determine nosso horizonte político” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 93). Apelar para o indivíduo e nele investir não nos tira da busca neoliberal: “Longe de ser um lócus de criatividade, diferença, agência e responsabilidade, o indivíduo é o que restou, sobrecarregado, do desmantelamento das instituições e solidariedades” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 95). O indivíduo é uma forma de captura, de cercamento, operação por meio da qual “o comum é apropriado e colocado a serviço do capitalismo” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 107). O sujeito, por outro lado, é lacuna na estrutura, pela resposta à interpelação (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 113), o que ecoa Althusser, por um lado, e Lacan e Žižek, por outro. Para Dean isso não resolve a política, pois esta ficaria reduzida “à espera de uma chegada impossível de alguém que, no final das contas, também não poderia fazer muita diferença” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 115). Ela propõe inverter Althusser em relação ao enunciado “a interpelação ideológica produz o sujeito”, colocando: “o sujeito emerge ali onde a ideologia falha, porque o sujeito é coletivo. Quando a ideologia burguesa falha, a individuação falha, e o fato da coletividade se imprime” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 115). Nessa direção o sujeito não é o lócus linguístico da liberdade e escolha individual; a política “se dá na não identidade, na lacuna ou na torção entre as pessoas e seu autogoverno” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 116). Quando surge o sujeito? Através “de uma ocupação ativa da falta constituinte do povo. Há política porque o sujeito político é coletivo e é cindido” (DEAN, 2022DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 116).

Lembrando Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista. São Paulo: Intermeios, 2015., a sociedade como um todo, como um sistema fechado, com fronteiras estabelecidas, não existe. Ou seja, não há sociedade sem antagonismo. É preciso estudar a multidão a partir da qual o indivíduo é interpelado e recrutado, de modo a não partir de visões que enclausuram o coletivo na forma indivíduo, naturalizando-o. E é preciso considerar que nem toda multidão constitui uma coletividade democrática, como no caso da extrema direita que invadiu e vandalizou o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso em 8 de janeiro de 2023 em nome de uma pátria mítica e obscura, fascista. Grande parte das vezes a multidão expressa um grito surdo, um gozo sem expressão em linguagem e isso deveria ser acolhido.

A desindividuação acompanha o pertencimento intenso, em que os muitos exercem força de desejo e gozo coletivos. Quando se acumulam em espaços não avalizados pelo capital ou pelo Estado, afrontam o existente, instalando uma lacuna de possibilidade (acontecimento) e instaurando a possibilidade de um impossível na regulação da situação. A questão é como acolher essa energia, esse gozo da multidão. O sentido pode emergir após a abertura acontecimental, mas as explicações sobre o que aconteceu podem divergir e outras vezes não há linguagem para expressar o mal-estar, o gozo. Alguns querem apostar nessa abertura acontecimental, outros são reativos, resistem. É essa divergência, o conflito entre as versões, que assinala a divisão política10 10 Essa divisão não ocorre somente entre direitas e esquerdas, mas nas próprias esquerdas, entre as lutas por reconhecimento e aquelas por redistribuição (cf. FRASER; HONNETH, 2006). . Não é possível permanecer na beleza do momento de indeterminação acontecimental. A política nasce daí, dessa divisão. O momento caótico da multidão é indeterminado, mas fetichizar essa indeterminação, diz Dean (2022)DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., desmaterializa a multidão. Para esse autor, o partido é uma forma de responder a esse desafio, entrando em cena no pós-acontecimento. Mas é preciso reinventar o partido. A questão é retomar a forma partido considerando a psicodinâmica da coletividade, evitando que poucos dominem muitos. O partido não é liso, pois nele se repete a lacuna, o antagonismo que rasga a sociedade.

O conceito de inconsciente lacaniano remete a uma lacuna, ao não realizado, que exerce uma pressão. Isso requer um corpo, um portador. As formas políticas (partidos, Estados, líderes etc.) situam-se na divisão da subjetividade. Por mais que tais formas sejam fetichizadas, isso não deve impedir de ver a lacuna. O partido é uma forma que acessa a descarga que terminou, carregada com a intensidade que começou com o acontecimento, instaurando o local para as forças transferenciais do Outro.

Política é, em Dean (2022)DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022., exercício de fazer como um movimento de negatividade prática, a partir da lacuna, trabalho autorreflexivo da coletividade: as pessoas, ao se reconhecerem entre si, constroem relações imaginadas de trocas de reconhecimento, mas o Outro como campo de validação social resulta despercebido. A perspectiva do partido não vem de lei ou de percepção individual, mas da coletividade. Dean pensa que é preciso encontrar a determinação política que integre as identidades, cujos princípios estão para além da identidade, que hoje está saturada como operadora política. Essa pontuação não é somente de Dean, mas de Badiou, Safatle e Butler, entre outros. Dean (2022)DEAN, Jodi. Multidões e partido. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2022. indica como sintomas dessa saturação: redução do espaço de mudança e transformação aos limites do indivíduo; a circulação de indignação momentânea nas redes afetivas do capitalismo comunicacional; as práticas de denuncismo e vexação que minam a solidariedade e o apego contraditório e destrutivo às especificidades nacional e étnica.

Emergência e acontecimento no trabalho do negativo

Safatle (2019)SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. examina em detalhe o trabalho do negativo em ação no acontecimento, tocando em um ponto importante em seu livro ao colocar em convergência a dialética negativa de Adorno com o pensamento deleuziano, em que Deleuze criticava a dialética, que sufocaria o infinito que ela procurava atualizar ao submetê-lo à negatividade. Safatle responde a tais críticas considerando que hoje temos sociedades ingovernáveis, produzindo mobilizações populares fascistas, como vimos em 2018 e 2022 no Brasil, nos EUA com Trump, na Hungria, Turquia, França etc. Para Safatle (2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 33), a dialética descreve uma “configuração estrutural a respeito da não-relação entre a falsa totalidade própria à situação atual e o acontecimento”. O pensamento dialético coloca a falsa totalidade em contradição ao mobilizar o impossível de uma situação, ou seja, aquilo que na situação é impensável a partir de sua estruturação. Isso leva à emergência do advento de um novo mundo em que esse impossível se tornará possível. Com o acontecimento, caso haja sujeitos que apostem nele, inicia-se um processo de construção pelo trabalho do negativo.

Safatle fala, assim, em uma dialética acontecimental emergente, que explicita as condições para o surgimento daquilo que poderia ser diferente e que ainda não começou. “A falsa totalidade, em seu funcionamento regular, produz contradições que ela não saberia como integrar” (SAFATLE, 2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p.36); mas ela também produz linhas de fuga que podem levar à emergência do acontecimento. Seguindo Adorno, Safatle considera possível pensar em uma existência pulsional da não identidade, que garante “o horizonte das lutas sociais para fora do capitalismo como forma de vida”. Mas a dialética deve confrontar o pensamento da identidade:

O recurso à identidade como dispositivo essencialista de mobilização política, tão recorrente nas forças reativas quanto naqueles que procuram fazer avançar a emancipação social, impede a emergência de uma implicação genérica que poderia abrir espaço a uma diferença radical em relação aos modos de reprodução das formas hegemônicas de vida, Como também coloniza os sujeitos em um campo de experiências previamente marcado pelo potencial de demandas e formas já declaradas, já enunciadas por movimentos sociais. (SAFATLE, 2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 38).

A verdadeira contraposição, para Saflatle, é entre demandas identitárias e emergências não identitárias que se coloquem como ponto de contradição global em relação às determinações sociais atuais por propriedades e por classes. Tal contradição ocorre quando identidades vulneráveis começam a falar em nome de uma universalidade até então impossível, como vimos também em Laclau quando ele fala da lógica das equivalências. Para Safatle (2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 39), a questão central não é “qual o lugar de minha fala”, mas “quem pode falar em nome de uma universalidade que implica em contradição global com a situação atual?”. A força do negativo opera então como dinâmica de passagem, como força dos invisíveis, atacando a precariedade a partir da performatividade, para lembrar do repertório de Butler (2018)BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.. A política do negativo é aqui modo de acesso à totalidade a partir de uma lógica do não todo, da não identidade, e como abertura a multiplicidades não representáveis na situação. Se pensarmos na defesa do partido trazida por Dean, a questão é: como um partido pode organizar-se a partir dessa lógica do não todo, acolhendo as lutas de reconhecimento e de redistribuição dos grupos-muitos da multidão?

Deleuze vê a dialética como anuladora da diferença, que é fundamental para o pós-estruturalismo pensar modelos não hegemônicos de luta social. Para Safatle, porém, a crítica deleuziana a Hegel está colocada em um lugar improdutivo, sendo preciso reposicionar o debate a partir das modalidades diversas de inscrição ontológica da diferença. Acompanhemos Safatle (2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 221): Deleuze considera a contradição figura inadequada da diferença; a dialética se restringe para ele ao infatigável movimento de superação da diferença, ou seja, é um astuto pensamento da identidade fundado na construção de mediações entre contraditórios, limitando-se a confirmar o que estava pressuposto no interior de um sistema prévio de possibilidades. Acontecimento é, como tratamos anteriormente, a emergência de um impossível desse sistema. Para Deleuze a dialética hegeliana impede o pensamento da diferença como diferença, sendo apenas possível pensá-la como diferença opositiva dentro de um quadro de representações. Por isso a dialética hegeliana seria para Deleuze pensamento da identidade, incapaz de pensar a produtividade da diferença. A diferença ficaria definida por oposição dos extremos, reduzindo-a a uma forma radicalizada de contrariedade, pois a representação é determinação finita, confrontando-se sem cessar com aquilo que a nega, preservando o finito.

Infinito e gozo

Para Safatle (2019)SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., a filosofia de Hegel e a de Deleuze pensam a atualidade do infinito, criticando o papel estabilizador do fundamento. A tarefa da filosofia, a partir dos conceitos, é adquirir consistência sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha. Badiou (2018b)BADIOU, Alain. L’immanence des vérités: l’être et l’événement, 3. Paris: Fayard, 2018b., em seu livro sobre a imanência das verdades, critica a finitude da representação, seja sob os modos de determinação do entendimento (Hegel), seja sob a forma de finitude ligada ao primado da identidade. Em Hegel o infinito “não descreve extensões, mas intensidades caracterizadas por atualizações que são movimentos contínuos de implicação com o que, até a emergência do acontecimento, aparecia como impossível” (SAFATLE, 2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 231). Infinito para Hegel, diz Safatle, é o que porta em si a própria negação e, em vez de se autodestruir, conserva-se em uma “determinidade”; é uma forma de movimento, de passagem, e não uma situação. É contínua ultrapassagem de si por si mesmo, por isso a infinitude é construída a partir da experiência da contradição, pois é atualização de impossíveis. A identidade do conceito em Hegel nada tem a ver com a identidade da representação: pensar o conceito é pensar para além da representação. A negatividade em Hegel não é privação ou falta, mas indeterminação produtiva.

A dialética emergente é ativada com o acontecimento, que pode ser acontecimento de multidão, costurando numa lógica das equivalências as diferenças através de um trabalho do negativo, conservando o não todo e a lacuna do social. A multidão é conjunto dinâmico de singularidades que não só têm desejos, mas corpos gozantes, o que leva a pensar a identificação não mais como laço abstrato, mas como laço corporal, inscrição no corpo, a partir do Lacan, de acordo com Laurent (2016LAURENT, Éric. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2016., p. 212) chamou de acontecimento de corpo. A insistência de Dean no partido repensado a partir do acontecimento-multidão talvez permita um aprendizado no movimento emergente equivalencial que nos tire desse fisiologismo pemedebista de que falava Marcos Nobre (2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.; 2016NOBRE, Marcos. Choque de democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.), mas é preciso que esse partido acolha o pensamento e o gozo da multidão, de modo a responder, como vimos com Laurent (2016)LAURENT, Éric. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2016., aos que não se expressam senão no grito, aos que marcham para Deus, aos que pedem uma lei de ferro, aos que apelam a um novo Leviatã, aos que se reúnem apenas pautados no pensamento da identidade.

  • 2
    Em Laclau (2015) lógica social é um sistema de regras que estrutura um horizonte em que alguns objetos são representáveis (são contados por um), enquanto outros são excluídos.
  • 3
    A tradução de todos os trechos citados neste texto é de minha responsabilidade.
  • 4
    Ver sobre o acontecimento: Prado (2013PRADO, José Luiz Aidar. Política do acontecimento. Revista Famecos, v. 20, n. 2, maio-ago. 2013, p. 495-520.; 2016PRADO, José Luiz Aidar. Comunicação e reinvenção acontecimental da política. In: JESUS, Eduardo et al. Reinvenção comunicacional da política. Salvador: Edufba, 2016.; 2017aPRADO, José Luiz Aidar. Da antipolítica ao acontecimento: o anarquismo dos corpos acontecimentais. Comunicação, Mídia e Consumo, v. 14, 2017a, p. 10-30.; 2017bPRADO, José Luiz Aidar. Reconhecimento tenso, acontecimento inaugural: na direção de outra comunicação. E-Compós, v. 20, 2017b, p. 1-15.; 2020PRADO, José Luiz Aidar. Da captura pulsional ao acontecimento de corpo. In: BARROS, Laan Mendes de; MARQUES, José Carlos; MÉDOLA, Ana Silvia (Org.). Produção de sentido na cultura midiatizada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020, p. 47-63.; 2022PRADO, José Luiz Aidar. Acontecimento como singularidade.Matrizes, v. 16, n. 1, p. 35-58, jan.-abr. 2022.).
  • 5
    Badiou (in BADIOU; TUSA, 2020BADIOU, Alain; TUSA, Giovanbattista. Do fim. Tradutor: Felipe Viccari de Carli. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020., p. 35) afirma: “acredito ter demonstrado que na realidade não há dimensão acontecimental no genocídio, no massacre, porque não se trata de uma proposição ou de uma possibilidade; ao contrário, o genocídio é por si mesmo a realização de um fim preestabelecido, o de que, para que a Alemanha cumprisse seu destino historial, era preciso passar pelo extermínio do que tornava a negação imanente, ou seja, os judeus”. Esse trecho é importante para a diferenciação entre acontecimento e eventos reacionários ou fascistas, que não abrem para o advento de novos mundos possíveis.
  • 6
    Dean fala em capitalismo comunicativo, mas preferimos a expressão “capitalismo comunicacional”. O fato de envolver comunicação não o torna comunicativo, aliás, ao contrário, muitas vezes os espetáculos da cultura do consumo são pouco comunicativos. Sobre isso ver: Prado; Prates (2017)PRADO, José Luiz Aidar; PRATES, Vinicius. Sintoma e fantasia no capitalismo comunicacional. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017..
  • 7
    Sobre isso ver: Prado (2011PRADO, José Luiz Aidar. De navios a estrelas na construção biopolítica do eu capital. In: FREIRE FILHO, João; COELHO, Maria das Graças Pinto. A promoção do capital humano. Porto Alegre: Sulina, 2011.; 2013PRADO, José Luiz Aidar. Política do acontecimento. Revista Famecos, v. 20, n. 2, maio-ago. 2013, p. 495-520.)
  • 8
    Ver também: Prado (2011)PRADO, José Luiz Aidar. De navios a estrelas na construção biopolítica do eu capital. In: FREIRE FILHO, João; COELHO, Maria das Graças Pinto. A promoção do capital humano. Porto Alegre: Sulina, 2011.. .
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    Não falaremos em acontecimento no caso do bolsonarismo porque se trata de uma política que gira em torno do fake e da mentira e não de processos de verdade que visam à mudança em direção a novos mundos.
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    Essa divisão não ocorre somente entre direitas e esquerdas, mas nas próprias esquerdas, entre as lutas por reconhecimento e aquelas por redistribuição (cf. FRASER; HONNETH, 2006FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. ¿Redistribucion o reconocimiento?. Madrid: Ediciones Morata, 2006.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2023
  • Aceito
    26 Out 2023
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