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O modernismo na perspectiva de Gilda de Mello e Souza

Modernism according to Gilda de Mello e Souza

RESUMO

A contribuição de Gilda de Mello e Souza ao debate sobre o modernismo é discutida a partir de três eixos: 1 – a análise do artigo sobre os precursores, que introduziram elementos esparsos de modernidade na pintura nacional; 2 – a análise do ensaio dedicado à tensão entre vanguarda e nacionalismo no primeiro momento do modernismo pictórico; 3 – a revisão de algumas de suas formulações a partir de pesquisas atuais.

PALAVRAS-CHAVE
Modernismo; pintura; Gilda de Mello e Souza

ABSTRACT

The review of the contribution of Gilda de Mello e Souza to the debate on Modernism is based on three axes: 1 – the analysis of the article on the precursors, who introduced some elements of modernity in Brazilian painting; 2 – the analysis of the essay dedicated to the tension between avantgarde and nationalism in the first period of modernist visual arts; 3 – the examination of some of her evaluations according to recent researches.

KEYWORDS
Modernism; painting; Gilda de Mello e Souza

O cinquentenário da Semana de Arte Moderna é celebrado em São Paulo pela exposição Semana de 22: antecedentes e consequências, organizada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. A mostra representa uma abertura em relação à seleção apresentada no Teatro Municipal em fevereiro de 1922, ao situar o começo da arte moderna na virada do século XIX para o XX. Os antecedentes englobam artistas que, por volta de 1900, romperam com um academismo rígido, enveredando por uma maneira de pintar mais livre e mostrando-se receptivos a correntes renovadoras. Aspecto a ser salientado na apresentação desse conjunto no catálogo oficial é a afirmativa de que figuras como Belmiro de Almeida, Décio Villares, Eliseu Visconti, João Timóteo da Costa, Antônio Parreiras, Benedito Calixto e Pedro Alexandrino tinham tornado possível o movimento que, “mais tarde, culminou na Semana” (ANTECEDENTS, 1972aANTECEDENTS. In: Semana de 22: antecedents and consequences. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1972a. , s. p.).

No segundo catálogo, distribuído gratuitamente ao público, é acrescentado o nome de Henrique Alvim Correia.3 3 É um equívoco ver em Correia um antecessor dos modernistas, pois sua obra se inscreve no âmbito do simbolismo/decadentismo franco-belga. Além de nunca ter atuado no Brasil, sua formação artística foi francesa. Viveu em Bruxelas, onde se aproximou da poética do pintor simbolista Félicien Rops. O texto de apresentação desse primeiro bloco difere um pouco daquele do catálogo oficial, pois faz referência a pintores nacionais, que estavam “numa brecha que não se pode apelidar de antiacadêmica, mas cuja importância não pode ser subestimada. Por exemplo, Belmiro, Villares, Visconti” (ANTECEDENTES, 1972bANTECEDENTES. In: Semana de 22: antecedentes e consequências. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1972b., s. p.). É possível estranhar a presença dos nomes de Parreiras, Calixto e Alexandrino entre os antecedentes, mas o que importa de fato é perceber que os organizadores da exposição deslocam o começo da modernidade nas artes visuais para o Rio de Janeiro, embora nenhum dos artistas selecionados tivesse despertado o interesse dos organizadores da Semana de Arte Moderna. A iniciativa de 1972 desdobra-se posteriormente em duas mostras realizadas pelo Museu Lasar Segall: Os precursores (1974) e O modernismo de 1917 a 1930 (1975).

OS PRECURSORES

Dedicada a Eliseu Visconti, Belmiro de Almeida e Artur Timóteo da Costa, os quais podem ser vistos como precursores, “mesmo que, pelas condições do ambiente, não conseguissem uma atualização digna de melhor nota” (BARDI, 1974BARDI, P. M. Os precursores – até 1917. In: Os precursores. São Paulo: Museu Lasar Segall, 1974., s. p.), a exposição de 1974 desperta o interesse crítico de Gilda de Mello e Souza, manifestado no longo artigo “Pintura brasileira contemporânea: os precursores”, publicado naquele mesmo ano, no número 5 da revista Discurso. Indo além do recorte da mostra, a autora propõe pensar em dois “precursores dos precursores”, por acreditar que os pintores selecionados mantinham uma relação profunda com o passado, enquanto Almeida Júnior e Georg Grimm, embora “mais plenamente acadêmicos”, apresentavam “elementos renovadores em relação ao seu tempo” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 223).

A multiplicação das figuras dos precursores demonstra que Mello e Souza não leva em conta o aspecto contraditório desse postulado no âmbito das formulações modernas. Como lembra Renato Poggioli (1968, p. 70-71)POGGIOLI, Renato. The theory of the avant-garde. Cambridge-London: Harvard University Press, 1968., o conceito de precursor representa um “anacronismo espiritual”; busca identificar em artistas de um passado mais ou menos remoto a antecipação de preocupações atuais, enquanto a vanguarda se anuncia como uma “arte de exceção”, não só em relação ao presente, mas à tradição como um todo. Discutível enquanto conceito, a ideia de precursor, porém, funciona como um mito, ao apontar para um futuro moldado pelas expectativas de uma nova geração. Essa visão mítica reponta de imediato na apresentação de Almeida Júnior: sem ele, “não é possível entender bem a pintura brasileira anterior ao modernismo”, pois “ajudou a suprimir a monumentalidade das obras, a renovar os assuntos e as personagens, a vincular organicamente as figuras e o ambiente e talvez reformular o tratamento da luz” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 224). Essa última observação será atenuada pela afirmação de que o artista se inspirou em acadêmicos franceses secundários, que injetaram alguns elementos impressionistas no código tradicional, adaptando “esse sistema híbrido à luminosidade do país”. Se, nessa perspectiva, Almeida Júnior é um pintor tradicional, a crítica não tem dúvidas de que ele foi um inovador, quando empreendeu, “sozinho e sem precursores”, a notação da dinâmica dos gestos do caipira, “lutando contra reminiscências artísticas, que lhe impunha, a cada momento, a postura europeia civilizada” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 224-225, 231).

Mello e Souza atribui ao segundo precursor dos precursores, Grimm, a introdução de uma nova notação luminosa, que ela não considera brasileira: este tinha trazido da Europa um modo particular de ver o mundo, difundido pelos pintores de Barbizon e posteriormente sistematizado pelos impressionistas. O artista alemão, portanto, implantou um esquema importado na Academia Imperial de Belas Artes, quando lá lecionou, entre 1882 e 1884, e o transmitiu a discípulos como Giovanni Battista Castagneto, Parreiras, Hipólito Caron e Domingo Garcia y Vasquez pela prática do ar livre. Atenta não apenas às possibilidades de transformação advindas do métier, mas também às peculiaridades do discurso crítico, a autora propõe articular em dois momentos a questão do clareamento da paleta, tendo como marcos temporais os anos de 1874 (chegada de Grimm) e 1907 (publicação da crônica em que Gonzaga Duque denota seu conhecimento dos princípios impressionistas). No primeiro momento, o ensino e a prática do ar livre teriam propiciado o surgimento de uma nova sensibilidade cromática; no segundo, destacam-se a análise e a teoria da decomposição da cor pelos raios solares, propostas pelo crítico. Mello e Souza faz um alerta: só o estudo das obras dos discípulos de Grimm poderá decidir se o universo cromático que elas exprimem “corresponde ao que supunha – ou desejava encontrar nelas – o olhar de Gonzaga Duque, enfastiado com a cor local, o claro-escuro, o apelo aos tons frios e a técnica do enevoamento da paisagem tradicional” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 228-230).

Encerrado esse parêntese, que problematiza a questão dos precursores, a autora dedica-se à análise das três figuras selecionadas para a mostra do Museu Lasar Segall. Se a posição de “pintor oficial” pode explicar o desinteresse dos modernistas por Visconti, outro motivo deve ser avaliado: além de retardatário, ele era europeu, não cabendo dentro do “nacionalismo de programa da Semana”. O perfil traçado no ensaio corrobora a exclusão de Visconti do rol de artistas que poderiam contar com a simpatia de uma nova geração. Essencialmente eclético, o pintor incorpora tendências diversas e contraditórias – pontilhismo, simbolismo, linearismo art nouveau e pré-rafaelismo – que, por vezes, faz coexistir numa mesma tela, pondo em risco sua unidade geral. Impressionista tardio, chega, no final da carreira, a trabalhar o óleo “com um vigor, que se diria expressionista, se sob as cores agressivas palpitasse um pouco mais de tormento” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 233-234, 239).

Mal representado na mostra, Almeida desperta o interesse da crítica com Retrato de senhora (1889), marcado por certa afinidade com Édouard Manet no tratamento do rosto e com Georges Seurat “na fatura impecável do corpete”. Se o quadro é “particularmente inovador” para o “acanhado meio artístico brasileiro”, a autora encontra outro índice de modernidade no trabalho de caricaturista, que teria aguçado o senso de observação de Almeida e abalado o convencionalismo de sua rigorosa formação acadêmica e “a crença num ideal absoluto de beleza”. É possível que o exercício cotidiano da sátira tenha favorecido um viés experimentador, como atestam Dampierre4 4 Mesmo citando a visão de “precursor”, que Aracy (Amaral 1970, p. 140) lhe confere, por suas “incursões experimentais e suaves pelo divisionismo de Signac e Seurat”, a autora não explora a relação de Almeida com o neoimpressionismo. e Mulher em círculos.5 5 Amaral (1970, p. 140) detecta um “pseudofuturismo” no quadro, pois ele não foi construído com “sobreposições de figuras geométricas”. Uma ideia semelhante é apresentada por José Roberto Teixeira (Leite 1988, p. 68), que o define um flerte com o futurismo, mas “por pura blague”. A composição tem um antecedente em Maternidade em círculos (1908), na qual Paulo (Herkenhoff 2002, p. 25) localiza “a consciência moderna da superfície mais radical do que tudo que se exporia na Semana”. Outra faceta dessa liberdade é localizada no “tom docemente irônico” de Arrufos (1887), que impede que a obra “naufrague no anedótico e no convencional”. Em contraposição às leituras correntes, que viam no quadro a representação de uma disputa conjugal, Mello e Souza propõe analisá-lo pela perspectiva da “introdução revolucionária na pintura da época do tema do adultério, tão explorado pelo vaudeville, pelo folhetim e pela caricatura de costumes” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 239-241, 244).

Temperamento “vigoroso, servido às vezes por uma pincelada fulminante”, Timóteo da Costa é apontado como “o pintor de personalidade mais definida” da mostra. Tendo como características centrais o senso de economia, um sentimento dramático da paisagem e o uso expressivo da cor, Costa é autor do melhor quadro exposto, A forja (1911), introdutor do tema do operário “no elenco de assuntos surrados da pintura brasileira do período”.6 6 A forja é antecedida por Ferreiro (1910). A descrição minuciosa e emotiva da obra vai num crescendo e culmina na constatação de que nela “não há vestígio de desenho” e que o assunto, a composição, o peso dos volumes, a cor, as linhas de força e a pincelada contribuem para a “expressão dramática do todo” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 244-247).

A análise das contribuições desse conjunto de pintores de formação acadêmica, mas portadores de “um princípio vago de renovação” leva a autora a apontar um limite na “brusca explosão” da Semana de Arte Moderna. Duas de suas principais características – atualização da pesquisa artística e instauração de uma estética normativa como o nacionalismo – impediram que “se divisassem no passado recente esses elementos esparsos de modernidade” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 247). A estrutura do artigo, que desloca o eixo da discussão proposta pelo Museu Lasar Segall para o gesto inaugural de Almeida Júnior, demonstra que Mello e Souza estava respondendo à distância ao que Mário Pedrosa tinha escrito sobre o pintor ituano em 1950. A estratégia escolhida é indireta: a autora evoca a “simpatia” do crítico por Visconti e discorda da ideia de que “o início da nova paisagem do Brasil” devia ser atribuído a este (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 233).

Partidário da ideia de que o “marco divisório” da pintura brasileira estava em Visconti, o crítico considerava que Almeida Júnior “não inovou em nada do ponto de vista puramente pictórico”. Apesar de ter atualizado temas e assuntos, o pintor os tratou “à moda rigorosa do Paris morto e fossilizado, de Cabanel”, representando não “a libertação artística nacional”, e sim “apenas um sintoma, um prenúncio, um regionalismo superficial de pintura acadêmica europeia”. (PEDROSA, 1998PEDROSA, Mário. Acadêmicos e modernos. São Paulo: Edusp, 1998., p. 120-122). A esse artista, definido “uma personalidade pela atitude”, o crítico contrapõe o exemplo de Visconti, “personalidade pelo desenrolar de sua obra pictórica”, apesar de algumas resvaladas no ecletismo, na disciplina acadêmica e na “fidelidade mais resignada às exigências de um realismo convencional”. Impressionista convicto, o pintor mergulha na natureza depois da volta definitiva de Paris e trata, com maestria ímpar, o “tema perigoso da luz tropical, na imensidão verde da matéria” (PEDROSA, 1998PEDROSA, Mário. Acadêmicos e modernos. São Paulo: Edusp, 1998., p. 118, 123, 130).

(Pedrosa 1998PEDROSA, Mário. Acadêmicos e modernos. São Paulo: Edusp, 1998., p. 128, 130, 132-133) lamenta a falta de sintonia entre os modernistas e o “velho artista, mais experimentado, senhor da técnica da luz, aprendida diretamente na escola do neoimpressionismo”. Em vez de nutrir-se apenas de ideias importadas da Europa, o modernismo teria encontrado na pintura de Visconti “indicações preciosas para o futuro e suscetíveis de desenvolvimento”, além daquele “senso de continuidade, indispensável a todas as revoluções”. As inovações a que o crítico se refere não dizem respeito apenas à capacidade de captar “a mais pura atmosfera, entre luzes densas ou vagas”, mas, sobretudo, ao entusiasmo demonstrado “pelos problemas puramente pictóricos e colorísticos” e à predileção pelos “retângulos alongados”, que fazem da tela um espaço de manifestação eminentemente plástica, e não mais temática. Por essas qualidades, Visconti encarna a figura exemplar do precursor: ao ligar o passado ao futuro, ele foi o elo que faltava ao modernismo para “prendê-lo à cadeia da tradição”.

Se Pedrosa falava em nome da abstração e da relação entre nacional e internacional (DOCTORS, 2001DOCTORS, Márcio. Desvio para o moderno. In: CAVALCANTI, Lauro (org.). Quando o Brasil era moderno: artes plásticas no Rio de Janeiro 1905-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 30-59., p. 49)7 7 Em oposição a Sérgio Milliet, que valoriza a recusa de Almeida Júnior em ser influenciado para preservar os valores brasileiros, Pedrosa detecta em Visconti a figura do artista totalmente aberto para seu tempo: não teme as experiências internacionais, porque vê nelas a possibilidade de discutir não só a autonomia do campo plástico como a de linguagem, “um fenômeno localizado da expressão de uma singularidade inserida em seu entorno” (DOCTORS, 2001, p. 50-52). , Mello e Souza estava retomando, por outro prisma, um assunto que marcava um ponto de convergência entre Monteiro Lobato e a crítica modernista nas figuras de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Luís Martins e Sérgio Milliet. A autora discorda dos modernistas no tocante à questão da “luz brasileira” e à nova temática que o pintor teria introduzido na arte nacional. Tampouco subscreve a tese de um artista que não se deixou contaminar pela pintura francesa moderna, mas, a partir da ideia de que a experiência de menino de fazenda se gravara na “memória de seu corpo” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 228), acaba por endossar a percepção de Oswald de Andrade de que Almeida Júnior era “precursor, encaminhador e modelo” de uma arte nacional, reforçando, sem querer, a defesa do caipirismo como uma “alegoria para a gênese da sociedade paulistana” (ARAÚJO, 2014ARAÚJO, Raquel Aguilar de. Desmistificando Almeida Júnior: a modernidade do caipira. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan-jun. 2014. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_aj_raa.htm. Acesso em: 16 ago. 2021.
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).

Essa visão autóctone foi recentemente revista por Fernanda (Pitta, 2013PITTA, Fernanda Mendonça. “Um povo pacato e bucólico”: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. 2013. 383 f. Tese (Doutorado). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 94-95, 113), que propõe outra interpretação para as qualidades de observação do pintor ituano e, particularmente, para a relativização dos códigos tradicionais de representação: elas faziam parte do realismo/naturalismo, não sendo “dados intrínsecos de sua ‘personalidade’ artística, preservados a todo custo ao longo de sua produção”. Segundo a pesquisadora, a ideia de esquema8 8 Como a autora esclarece numa nota de rodapé, Gombrich não acredita na “inocência do olho”, defendida por John Ruskin e pelos impressionistas, já que ver é um aprendizado, baseado em “hábitos conceituais” e em esquemas perceptivos derivados da tradição (SOUZA, 1980, p. 223-224). , derivada de Ernst Gombrich e utilizada para explicar o clareamento da paleta na pintura de paisagem a partir de Grimm, poderia ser aplicada também a Almeida Júnior. Sua habilidade em registrar a “mecânica do gesto” pode ser reportada a um esquema ensinado e aprendido pelos artistas da geração realista/naturalista, dentre os quais Jules Breton, incluído por Mello e (Souza 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 231) no grupo de “pintores acadêmicos de cunho ‘pitoresco’”, que poderiam ter transmitido ao artista brasileiro um novo modelo de composição, a meio caminho entre tradição e inovação.

CINCO PINTORES MODERNISTAS

Intitulado “Vanguarda e nacionalismo na década de vinte”, o texto9 9 O ensaio circula em duas versões: a integral, publicada num folheto, que era distribuído ao público, e a síntese “Vanguarda e nacionalismo”, estampada no catálogo. redigido para a exposição dedicada às manifestações visuais do modernismo entre 1917 e 1930 difere um pouco do artigo anterior. A autora opta por outro tipo de estrutura, que abarca uma caracterização geral do período, uma reflexão sobre a relação entre produção artística e consciência crítica e, ainda, uma análise das obras de cinco artistas escolhidos por oferecerem a possibilidade de avaliar os efeitos da plataforma nacionalista em seu processo criador.10 10 A mostra contava com a participação de José Maria dos Reis Júnior, Domingos Toledo Piza, Tarsila do Amaral, Paulo Rossi Osir, Lasar Segall, Ferrignac, Victor Brecheret, Oswaldo Goeldi, Antônio Gomide, John Graz, Alberto Guignard, Anita Malfatti, Belmonte, Alfredo Volpi, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Ismael Nery, Joaquim do Rego Monteiro e Cícero Dias. Momento “de conquistas da vanguarda, de pregação teórica ininterrupta, de revisões feitas através das pequenas revistas de vida efêmera, das polêmicas nos jornais, dos manifestos, das exposições”, o período que vai de 1917 a 1931 tem “dois marcos decisivos”: a exposição de Anita Malfatti, já bastante estudada; e o 38º Salão da Escola Nacional de Belas Artes, todavia pouco abordado pela crítica. E, no entanto, a iniciativa de Lúcio Costa havia sido fundamental não só por ter minado a visão tradicional ainda dominante, mas, sobretudo, por ter resgatado a figura de Malfatti, “deslocando-a de réu para juiz”, e consagrado Candido Portinari, numa sinalização da “vitória da arte moderna, que conseguirá finalmente desalojar a arte do passado do reduto em que até o momento se mantivera abrigada: o das encomendas oficiais” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 249-251).

Para detectar o “fio condutor da pintura modernista”, a autora recorre a uma “tarefa preliminar”: encontrar o teórico que, “no meio da confusão, conseguiu ver claro, comparando, estabelecendo normas, concluindo”. O escolhido, Mário de Andrade, é contraposto a Carlos Flexa Ribeiro, professor de História da Arte da Escola Nacional de Belas Artes entre 1918 e 1958, representante do passadismo. Dono de um pensamento “confuso, prolixo e às vezes contraditório”, Ribeiro considera o impressionismo “a maior renovação que se processa na arte de pintar, nestes últimos dois séculos”, e, em nome dessa ideia, ataca o cubismo e a Escola de Paris, que acusa de querer “destruir disfarçadamente o sentido ocidental das artes plásticas”. Vendo no modernismo uma “cópia servil” do cubismo, o autor salva Di Cavalcanti, que soube fugir das “últimas deformações geometrizantes”, mas não poupa Tarsila do Amaral, que trouxe para o Brasil “vinte anos de alguma coisa que desbotou e encardiu”. (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 251, 254-255).

Temendo ser taxado de acadêmico, mas incapaz de aceitar a arte do presente, Ribeiro lança mão de um “raciocínio viciado”, que o leva a apresentar o cubismo como retrógrado e sua visão do impressionismo como revolucionária e a valorizar artistas como Manuel Santiago, Alfredo Galvão e Armando Vieira, portadores de sua “mesma indecisão estética”. Enquanto o crítico carioca tenta se equilibrar “entre duas águas”, fechando os olhos para os representantes do “bom academismo” e ignorando “a alta qualidade de alguns retardatários”, Andrade é o melhor exemplo da “crítica militante dos modernos”. Definida por duas coordenadas – defesa do nacionalismo e busca de novos diálogos com as vertentes europeias –, esta representa uma revisão dos postulados da Semana de 1922. Corrigido o “atraso artístico”, que justificava a adoção de uma atitude modernista exagerada, o crítico paulistano propõe a adoção de um “nacionalismo pragmático” como “solução provisória”, e uma reavaliação das “influências europeias anteriores (futurismo e cubismo), que a partir daí passam a ser encaradas com extrema cautela” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 255-256).

Compatível com as informações disponíveis naquele momento sobre essa temática complexa, a análise proposta no ensaio aponta para a rejeição do extremismo da plataforma futurista e para a proximidade de Andrade dos postulados da revista Lacerba (1913-1915). A autora, porém, se equivoca quando define “dissidente” tout court o grupo associado à publicação, pois as relações entre florentinos e milaneses são bastante complicadas e abarcam diversos momentos, e quando cita Umberto Boccioni entre os nomes principais dessa divergência.11 11 Fundada em Florença por Giovanni Papini e Ardengo Soffici, Lacerba é publicada entre 1º de janeiro de 1913 e 22 de maio de 1915. Por partilhar alguns pressupostos do grupo de F. T. Marinetti – antitradicionalismo, nacionalismo, imperialismo, busca de manifestações artísticas novas e combate contra a filosofia idealista, o passadismo, a religião e Roma –, a revista torna-se a principal plataforma do futurismo entre 15 de março de 1913 e 15 de agosto de 1914. Em 1º de dezembro de 1914, o grupo da revista começa a dissociar-se de Marinetti, chegando à cisão definitiva em 14 de fevereiro de 1915. Sobre as relações dos modernistas com o pensamento de Papini e Soffici, ver (Fabris 1994, p. 100-124). A crítica ao cubismo, por sua vez, é colocada sob a égide de L’Esprit Nouveau (1920-1925), que leva o escritor a rejeitar a “tendência excessivamente estetizante” do movimento e a alertar a amiga Tarsila a aproveitar dele apenas a disciplina formal, deixando de lado “a atração do abstrato” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 257-258).

O afastamento das culturas italiana e francesa é paralelo à aproximação da cultura alemã, na qual se baseiam duas “convicções estéticas arraigadas” de Andrade: a ideia de que o expressionismo é a tendência mais viva do momento e a defesa da deformação como categoria estética dominante da arte moderna. Nacionalismo e expressionismo caminham paralelos nas formulações do escritor, que detecta no movimento alemão a “descoberta do homem novo, [...] cuja arte acolhia, como mais congeniais ao seu espírito, as manifestações do gótico, do barroco, da arte primitiva e popular, em vez das manifestações centradas no ideal de beleza e imitação, próprio da arte clássica” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 259).

Comparada com a de Flexa Ribeiro, a atitude de Andrade é “muito mais coerente e sistemática”, por ter como lastro uma escolha artística determinada e não um “conjunto desconexo de opiniões, flutuando ao sabor de preconceitos e ressentimentos”. Mello e (Souza 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 260) tem razão em evidenciar a diferença entre as duas posturas críticas em relação ao cubismo, mas não leva em conta que a defesa do desenho de Jean-Auguste-Dominique Ingres por parte de Ribeiro não era um índice de academismo em si, podendo representar, ao contrário, uma sintonia com os postulados da volta à ordem, vigentes na Europa desde o início da Primeira Guerra Mundial e presentes no período “ingresco” de Pablo Picasso (1915-1925).

A autora reconhece que o nacionalismo de Andrade não estava isento de tensões, podendo desempenhar um efeito duplo: ordenar o período, “favorecendo a superação das vanguardas”; e cercear a liberdade criadora por seu caráter de “corpo definido de ideias, com finalidade normativa”. O escritor acaba por dar-se conta dessa tensão em seu próprio trabalho criativo, no momento em que os problemas formais, “de certo modo intemporais”, começam a predominar sobre “as imposições circunstanciais de um programa de finalidade social”. Uma vez que esse impasse será compartilhado por outros artistas que sofreram o impacto do nacionalismo, Mello e Souza centra sua análise em quatro nomes significativos para a discussão dessa temática e num outsider como Lasar Segall (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 261).

Artista já plenamente formado quando se radica no Brasil (1923), Segall traz em sua bagagem uma pintura “de nítida vinculação expressionista, apresentando na preocupação humana ou social muitos pontos de contato com o grupo da Neue Sachlichkeit”, embora as deformações plásticas e a ordenação geral das formas demonstrassem “a disciplina cubista”. O contato com a nova realidade traduz-se em cores exacerbadas, no interesse por uma paisagem de “bananeiras, cactos, negros, lagartos” e na incorporação das mulheres do Mangue. A autora destaca um quadro “muito estranho”, intitulado Encontro (1924), no qual a figura masculina, apesar de evidentes traços brancos, é representada com a tez escura dos mestiços brasileiros. Como se trata de um autorretrato, Mello e (Souza 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 262-263) indaga se a obra trairia “um desejo de identificação” com o país, sobretudo levando em conta a atitude retraída da figura feminina, que poderia simbolizar uma resistência à integração. Se for lembrado que o pintor se inspirou na fotografia de seu casamento com a atriz Margarete Quack (1918), e que a união chegou ao fim em 1924, quando esta resolveu regressar à Alemanha, essa leitura estaria plenamente justificada. A possibilidade de o quadro ter sido iniciado na Alemanha poderia reforçar outra hipótese proposta no ensaio: o contraste cromático entre as figuras parece indicar sua proximidade com a produção anterior de Segall e com o “peso da tradição europeia”. Visto dentro desse contexto, Encontro assume uma significação “eterna e intemporal”: a declaração de afeto de um homem à companheira (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 264).

Depois do deslumbramento com a paisagem brasileira, o pintor volta à “concentração refletida das cores” e aos temas pessoais e europeus. As paisagens de Campos do Jordão, reproduzidas “através da nobreza marchetada de seu claro-escuro”, mostram que este, aos poucos, vai dobrando o país “à sua vontade, para melhor incorporá-lo à memória”. A partir desse quadro de referências, Mello e Souza acredita que a presença de Segall em São Paulo tenha levado Andrade a concentrar-se na questão expressionista e a valorizar seu rigor artístico. O ensaio final (1943) demonstra que o artista representa para ele “o verdadeiro sentido da arte engajada” e aquele equilíbrio “entre o ideal estético e a intenção combativa”, que ele procurou “tão penosamente pela vida afora” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 265-266).

Situada na confluência do cubismo e do nacionalismo, Tarsila do Amaral recebe uma leitura particular, já que Mello e Souza nem sempre concorda com as interpretações correntes de sua obra. A negra (1923) não é considerada “um arquétipo emergindo intacto das profundezas da memória coletiva”, pois sua proximidade com certas soluções de Ferdinand Léger faz dela “uma decorrência, embora curiosamente aculturada, do aprendizado parisiense”. A autora não nega que lembranças da infância possam estar na base da deformação da figura, mas chama a atenção para os dados compositivos, devedores do mestre francês: a “ordenação eminentemente plástica de linhas, ritmos, volumes” e o “contraste colorido da massa uniforme do corpo sobre o zebrado vibrante do fundo”. Léger está também na base da fase pau-brasil, em que Amaral confirma a “‘aposta’ difícil” em que se engajara: “ver a realidade primitiva e desordenada do país através de um crivo europeu, altamente racional”. Ao mesmo tempo em que se afasta do “requintado esquema colorístico” do mestre, ela retém sua estrutura de contrastes formais, reunindo na tela objetos heteróclitos como sinais ferroviários, postes, torres metálicas e mamoeiros de folhas espalmadas. O resultado é “um espaço ingênuo, analítico e enumerativo, de estruturas simétricas simples, cores puras e lisas”, que remete a “um mundo sem tensões, cuja ordenação mais melódica do que sinfônica nos obriga a uma leitura linear e parcelada” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 267-268).

Por se apoiar “francamente no mundo exterior, embora muito estilizado”, Amaral não é muito feliz quando insere a figura na paisagem. Supera esse problema na fase antropofágica, ao dispensar a figura humana e ao dispor na tela “formas vegetais gigantescas, tratadas num cromatismo selvagem”. Depois de 1929, a artista volta à estética pau-brasil, em obras caracterizadas por “ritmos cadenciados entre as verticais e as horizontas”, formas triangulares, semicírculos e um cromatismo “mais adocicado azul-rosa”. Temperamento “equilibrado, nítido, solar”, Amaral não é considerada “nem muito profunda nem excepcionalmente original”. Mello e Souza vê nela uma aluna “brilhante, disciplinada, cumpridora de tarefas, imaginosa, mas que só inventa sobre um esquema preexistente”. Tendo encontrado as normas de uma estética precisa e as linhas gerais de uma visão de mundo, acomodou-se a elas “com a docilidade de intérprete, de executante” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 268-269).

Bem outra é a visão de Anita Malfatti, que trouxe para o Brasil a influência alemã e teve de enfrentar três provas difíceis: a hostilidade do meio, o nacionalismo e a “companhia de Tarsila”. A autora ensaia uma revisão do papel de Monteiro Lobato no “insucesso posterior” da pintora, reconhecendo que sua diatribe não se dirigia a ela, mas à arte moderna em geral. O segundo obstáculo encarado pela artista é resumido na ideia do “desacordo entre o seu temperamento e o nacionalismo”, que não lhe permitiria dedicar-se a “sondagens de cunho mais pessoal”. O terceiro teste foi o mais sofrido, por implicar “o confronto diário com a beleza de Tarsila”. Partindo da constatação de que os modernistas não manifestavam um interesse “estritamente artístico” por esta, a autora formula uma pergunta:

Para a moça feia e sem afeto amoroso, o que teria sido mais traumatizante: o artigo genérico de um estranho, como Monteiro Lobato, ou o comportamento dos companheiros, cuja agressão, em geral inconsciente, podia às vezes ser direta, devassando em público o que a sua alma reservada procurava manter em segredo? (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 271-272).

Apesar de ver em Malfatti uma artista à qual não podia ser aplicado o estereótipo de um estilo “feminino” em virtude de “um senso dinâmico admirável, traduzido no desenho vigoroso, na cor, na composição”, de “um modelado geométrico, de planos coloridos estridentes, cortantes”, a autora não se furta a uma avaliação vitimária de sua trajetória:

Com efeito, o seu comportamento é de quem foi rejeitada: pela vida, que não a fez bonita; pela crítica, que investiu contra a sua arte; pela estética vigente, que não lhe permitiu extravasar o drama pessoal; pelos companheiros, que não a trataram como mulher (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 270, 272).

Esse viés psicológico desaparece na abordagem de Di Cavalcanti, que se adapta bem ao nacionalismo, no qual introduz novos temas como “as grandes festividades públicas, os divertimentos de rua, os assustados de subúrbio”. Vindo da charge política e de costumes, o artista nada tem do espírito caligráfico e da “delicadeza lúdica e agranfinada” de Aubrey Beardsley, que ele apresenta como uma figura determinante em sua formação. A primeira concepção mordaz, visível em Fantoches da meia-noite (1922), cede lugar a uma visão próxima dos expressionistas alemães, podendo-se dizer que o álbum Realidade brasileira (1930) evoca “o espaço opressivo e cruel” de Max Beckman e George Grosz. A tomada de posição contra “a hierarquia, o poder, a concupiscência masculina” e, por vezes, o “comentário sarcástico do corpo da mulher” revelam uma maior proximidade deste último. Mas Di Cavalcanti difere dele ao conferir a suas mulheres “certo encanto feminino, um ar de inocência e fragilidade”, como demonstra em Cinco moças de Guaratinguetá (1930), “versão cabocla” do picassiano As moças de Avignon (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 273-274).

Depois de passar pelas lições de Paul Cézanne e Picasso, o pintor aproxima-se de Henri Matisse, a quem pode ser atribuída sua concepção espacial, determinada pelo “hábito característico de tramar figura e fundo, de aliviar o peso excessivo das figuras através dos arabescos”. Guiado por uma visão “patriarcal”, Di Cavalcanti é o “intérprete de um mundo regido por rigorosa dicotomia, onde os homens têm tarefas, mas a função das mulheres é o amor”. “Estagnadas num outro tempo”, suas figuras femininas “parecem grandes animais disponíveis”; quase sempre prostitutas, “transmitem uma visão tranquila do amor vendido”. Graças a esses dispositivos, sua visão “admiravelmente plástica [...] abafa o sentimento de culpa, assentando-o sobre o grande álibi do nacionalismo” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 274).

Ismael Nery traz em sua obra uma concepção bem diferente sobre a mulher e o amor. Artista múltiplo, representa um tipo de intelectual raro no Brasil: “o do criador que se expressa indiferentemente em mais de um campo artístico e se apoia num corpo definido de ideias pessoais, que lhe servem de suporte à criação e crivo para interpretar a existência”. Pinta incansavelmente a própria figura e a da esposa Adalgisa para dar vida a uma “simbiose perfeita”, a um ideal “de parceria, de identificação”. Marcado pelo surrealismo e pela figura de Marc Chagall, Nery desenvolve uma concepção pessoal do masculino e do feminino e uma ideia de amor carnal, alheia a qualquer noção de pecado. Sua arte intemporal “representa um dos momentos mais originais da pintura brasileira moderna”, mas, por não pactuar com o nacionalismo, foi excluída de sua história por quase meio século (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 275-276).

Eixo central da discussão proposta por Mello e Souza, o nacionalismo, na qualidade de “programa artístico imperioso e pragmático, dificultou a livre expressão do impulso criador”. Segall soube evitá-lo; Nery o ignorou; para Malfatti, ele foi “uma linguagem em total desacordo com o seu tumulto interior”. No caso de Amaral e Di Cavalcanti, ele representou “solução adequada, a que aderiram espontaneamente”. Isso, no entanto, teve um preço que suas obras não conseguem disfarçar: “a filiação muito próxima dos mestres europeus e mesmo certos esquemas artísticos eruditos, camuflados sob a aparência selvagem dos temas” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 277).

REVENDO A LEITURA DE MELLO E SOUZA

Escrito num momento em que as pesquisas sobre os artistas selecionados se encontravam num estado incipiente ou nem tinham sido iniciadas, com a única exceção de Tarsila do Amaral, a quem havia sido dedicada uma retrospectiva em 1969, o ensaio de 1975 apresenta aspectos que merecem ser discutidos à luz de novas considerações. A ideia de que A negra é uma “decorrência [...] aculturada” da assimilação das lições de Léger foi aprofundada por Ana Paula Simioni, para quem a pintora consegue, a um só tempo, sintetizar os “clamores por exotismo” dos meios parisienses e satisfazer as expectativas do circuito nacional. A revisitação de uma agenda temática nativa tem como resultado uma representação “limpa, seca, direta, de linguagem identificável facilmente como pertencente à escola cubista”. Longe de ser uma intérprete “ingênua e espontânea” da cultura brasileira, Tarsila é uma pintora “bem formada e, sobretudo, bem informada, [...] sobre quais eram os meios de um artista estrangeiro, vindo das bordas do mundo, inserir-se no centro” (SIMIONI, 2018SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira. 2018. 384 f. Tese (Livre-Docência). Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 187-188, 353). A problemática da representação de uma nudez bruta e imóvel, destituída de qualquer idealização e apelo erótico, foi abordada também a partir de novas perspectivas. Enquanto (Simioni 2018SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira. 2018. 384 f. Tese (Livre-Docência). Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 189) insere a tela no âmbito das pesquisas das artistas mulheres que transformam o nu feminino num campo de experimentação e de contestação do olhar masculino, Thiago Gil (Virava 2018VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira. Um boxeur na arena: Oswald de Andrade e as artes visuais no Brasil (1915-1945). 2018. 639 f. Tese (Doutorado). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 151, 155) propõe confrontá-la com o imaginário sobre o corpo “selvagem”, que se difunde na Europa entre os séculos XIX e XX. Alicerçada na associação com o mundo natural, em oposição à civilização moderna, a representação de A negra enquanto uma “força terrestre” é considerada pelo autor como uma imagem que reforça uma concepção preconceituosa.

Outro aspecto da análise de Mello e Souza pode ser confrontado com um tipo de leitura diferente. Aplicada à representação da cidade de São Paulo, a ideia de um “mundo sem tensões” transforma-se numa leitura ideológica com Icleia (Cattani 1992CATTANI, Icleia Borsa. O desejo de modernidade e as representações da cidade na pintura de Tarsila do Amaral. In: BULHÕES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Bastos (org.). A Semana de 22 e a emergência da modernidade no Brasil. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1992., p. 35, 37-38). Caracterizada por “espaços vazios, espaços do silêncio”, esta cidade não existe. Ela é “o sonho do capitalista: ordem, controle, produção, circulação sem ninguém para incomodar”. Modelo “voluntariamente mítico e totêmico”, a cidade tarsiliana é possivelmente uma miragem, uma realidade a ser criada, sem colocar em risco a “imutabilidade da ordem social”, almejada pela oligarquia da qual a pintora provinha. Em seu silêncio e fixidez, as telas de São Paulo traduzem “um desejo paradoxal: alcançar a modernização sem que a ordem social anterior seja afetada”. Seria, portanto, uma modernização de superfície: “sem rupturas, sem dialética, limpa e suave ‘como um Rolls saindo da oficina’”.

Mello e Souza tinha se debruçado sobre as relações dos modernistas com a burguesia local ao escrever o prefácio de uma publicação de 1984. Partindo de outra perspectiva, a autora trata da luta empreendida pelo grupo para abrir um lugar para si no seio da burguesia:

A conquista foi lenta, em etapas, às vezes sub-reptícia e através de expedientes aparentemente fúteis, [...] e só alcançou um ponto de estabilidade no fim do decênio de trinta, com a instalação dos salões modernos de pintura [...] São eles que arrematam, definitivamente, a “rotinização da modernidade”, para a qual também contribuíram [...] dois fatores: o advento da arquitetura moderna – e, em consequência disso, de um novo estilo de conforto – e a instalação de uma concepção revolucionária de festa. (SOUZA, 1984SOUZA, Gilda de Mello e. Prefácio. In: BECCARI, Vera d’Horta. Lasar Segall e o modernismo paulista. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 13).

Em termos arquitetônicos, Gregori Warchavchic renova “o conceito de moradia, de conforto, de decoração, difundindo na burguesia [...] uma estética do cimento armado, das linhas retas e sem enfeites, despojamento que atingia também o mobiliário e os demais objetos de adorno”. Graças à casa de Segall, a burguesia acostuma-se com uma modernidade que vai além dos quadros cubistas e se espraia pelos jardins projetados por Mina Warchavchic, pelos móveis desenhados por Gregori Warchavchic e pelo dono da casa, pelas almofadas de Regina Graz e pelas xícaras de vidro ou cristal transparente. Realizadas entre 1932 e 1934, as festas, por sua vez, “obrigam o mundo oficial a enxergar o aspecto exterior das coisas, com o olhar cômico e sacrílego da população”. Mello e Souza, apoiando-se no pensamento de Mikhail Backhtin, faz referência à “grande carnavalização da burguesia”, que impõe a figura de um mundo de cabeça para baixo e novos conceitos de “rosto, vestimenta, urbanidade, poder, heroísmo, retórica”. Essa sátira da vida oficial serve de pretexto à direita para dar novas mostras de antissemitismo e desconfiança em relação às vanguardas. É numa perspectiva de pânico e autodefesa que a autora interpreta um artigo de fevereiro de 1934, no qual José Bonifácio de Souza Amaral entrevia o perigo representado pela adesão das classes altas ao modernismo, cuja acidez, “extravasando os limites puramente estéticos, podia acabar corroendo a confiança nos valores éticos tradicionais” (SOUZA, 1984SOUZA, Gilda de Mello e. Prefácio. In: BECCARI, Vera d’Horta. Lasar Segall e o modernismo paulista. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 13, 15-16).

No caso de Malfatti, a ideia das três provas enfrentadas quando da volta ao Brasil, em 1916, necessita de outras perspectivas analíticas. A relativização do papel de Lobato no “recuo vanguardista” da pintora pode ser enriquecida pela análise do significado de sua ação para o acanhado ambiente artístico de São Paulo. Mesmo tendo decepcionado a família com as obras trazidas dos Estados Unidos, que não se conformavam aos padrões da “pintura feminina”, levando o tio que tinha patrocinado seus estudos a defini-las “coisas dantescas”, a artista decide expor boa parte delas em 1917, por acreditar em seu valor artístico. Tenaz, mas apreensiva com o meio cultural paulistano, Malfatti não ousa apresentar obras mais “provocativas”, como os desenhos de nus masculinos realizados em 1915-1916 e quadros como Nu cubista e A boba, pintados no mesmo período (BATISTA, 1985BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM Brasil, 1985., p. 60, 65). Essa cautela não impede, porém, de perceber que ela introduziu na cidade uma consciência de vanguarda: tomou a dianteira ao confrontar o público com a arte moderna; aventurou-se no território institucional, representado por Lobato e sua proposta nacionalista; não ganhou a batalha, mas abalou os postulados estéticos do escritor, que acabou por obliterar toda distinção entre academismo e naturalismo12 12 Ver, a esse respeito, (Chiarelli 1995, p. 196-199). ; lançou as sementes de uma ação estruturada, que começa a se configurar em 1920, com a formação do grupo modernista (FABRIS, 1999FABRIS, Annateresa . O modernismo nas artes plásticas: algumas releituras. In: FERREIRA, Antonio Celso; LUCA, Tania Regina de; IOKOI, Zilda Grícoli (Org.). Encontros com a história: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 1999., p. 173-174).

O nacionalismo, por sua vez, não pode continuar a ser visto como um obstáculo, uma vez que a artista começou a lidar com essa problemática já por volta de 1915-1916. Regina Teixeira de Barros (2017, p. 7)BARROS, Regina Teixeira de. Anita Malfatti, 100 anos depois. Moderno MAM, São Paulo, ano 9, n. 6, fev/mar/abr. 2017. detecta a presença de índices nacionalistas em obras realizadas nos Estados Unidos. É o caso do pastel O homem de sete cores (1915-1916), no qual o motivo das folhas de bananeira é realçado pela opção por tons verdes, azuis e amarelos, as cores da bandeira brasileira. A autora estende essas considerações a A boba (1915-1916), em que esse cromatismo é também predominante. De volta a São Paulo, em agosto de 1916, a pintora interessa-se pelo “aspecto de inovação” do debate nacionalista, que propunha uma “mudança temática, dentro de uma continuidade técnica”. Além de Tr opical (1917) – que Mello e Souza não poderia desconhecer –, Malfatti fixa aspectos físicos e humanos do país em telas como Paisagem de Santo Amaro, A palmeira, Rancho de sapé, Capanga, Caboclinha (das quais não se conhece o paradeiro), além de uma lenda do folclore (O saci), que já tinha ofendido o senso estético de Lobato, levando a classificá-la no “gênero degringolismo”. Tropic al permite analisar como ocorre a adesão aos pressupostos do nacionalismo. A artista não abre mão das principais características do momento norte-americano – uso de deformações e estruturação clara da composição –, confere certo grau de estilização ao tratamento da vegetação, mas infunde um tom realista às frutas que ocupam o primeiro plano. Marta Rossetti (Batista 1985BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM Brasil, 1985., p. 61, 64) acredita que, com ele, Malfatti “ultrapassou a pregação nacionalista, pois tratou o tema nacional de maneira nova, inovando-o também tecnicamente”.

A terceira prova, por sua vez, envolve outra atitude discriminatória dos modernistas em relação a Malfatti, que extrapola o campo pessoal. Mesmo admitindo a decepção destes com as “concessões” feitas pela pintora depois do “escândalo” de 1917, não se justifica sua atitude em relação à sua contribuição na definição de um léxico moderno para a arte brasileira. O isolamento de Malfatti não é apenas pessoal, pois os modernistas também a isolam, ao concentrarem sua campanha em prol da arte moderna ao longo de 1920-1921 numa figura de mediação como Victor Brecheret. Portador de uma linguagem eclética, o escultor é celebrado pelo grupo a partir de categorias estéticas frequentemente equivocadas, quando não acadêmicas (FABRIS, 1999FABRIS, Annateresa . O modernismo nas artes plásticas: algumas releituras. In: FERREIRA, Antonio Celso; LUCA, Tania Regina de; IOKOI, Zilda Grícoli (Org.). Encontros com a história: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 1999., p. 174-176). Se a produção de Malfatti posterior a 1917 guardava um “tom de modernismo” equivalente às “tímidas inovações de alguns novos integrantes do grupo” (BATISTA, 1985BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM Brasil, 1985., p. 89), esse mesmo diagnóstico aplica-se a Brecheret, motivando uma pergunta: não haveria certo machismo nessa atitude? Mário de Andrade e Menotti Del Picchia redimem-se dessa postura em 1928 e 1929. O primeiro reconhece o papel pioneiro da pintora em 1917: “ela foi a primeira entre nós a sentir a precisão de buscar os caminhos mais contemporâneos de expressão artística, de que vivíamos totalmente divorciados” (M. DE A., 1928M. DE A. Anita Malfatti. Diário Nacional, São Paulo, 29 set. 1928., p. 7). O segundo, que, em 1920, tinha destacado sua audácia em romper “a nossa sonolência de retardatários e paralíticos da pintura” (HELIOS, 1920HELIOS. Uma palestra de arte. Correio Paulistano, São Paulo, 29 nov. 1920., p. 4), é ainda mais enfático em 1929. A pintora não só é apresentada como “chefe de vanguarda da arrancada inicial do movimento modernista de pintura de São Paulo” como tem bosquejado um perfil de mártir (MENOTTI, 1929MENOTTI. Annita Malfatti. Correio Paulistano, São Paulo, 20 fev. 1929., p. 3).

No caso de Di Cavalcanti, chama a atenção o fato de Mello e Souza não fazer referência ao recorte étnico efetuado por este, o que não lhe permite discutir sua condição de “mulatista-mor”, proposta por Mário de Andrade em 1932. Se o diagnóstico do crítico, que o define o “mais exato pintor das coisas nacionais”, parece dar razão a Mello e Souza, é necessário lembrar que a imagem da mulata não respondia apenas a uma visão nacionalista; segundo Ferreira Gullar, ela simbolizava também as camadas populares, expressando, portanto, sua solidariedade em relação a esse segmento da população (FABRIS, 2019FABRIS, Annateresa. Di Cavalcanti e Portinari: duas visões da arte social. Lumen et Virtus, v. X, n. 24, mar. 2019. Disponível em: http://www.jackbran.com.br/lumen_et_virtus/numero_24.
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, p. 115-116). A avaliação de Nery, por fim, demonstra que a autora, mesmo discordando da “etapa destrutiva” das vanguardas, é capaz de perceber a contribuição “fortemente individualista” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 277) de um criador que se identifica com a plataforma surrealista, representando em suas telas duas ideias principais: “um tipo humano ideal, liberto das contingências do sexo, e a celebração do amor como comunhão” (SOUZA, 1975SOUZA, Gilda de Mello e. Vanguarda e nacionalismo. In: O modernismo de 1917 a 1930. São Paulo: Museu Lasar Segall, 1975., s. p.).

Mais complexo é o caso de Segall, de quem Mello e Souza elabora um perfil um tanto diferente no texto de 1984, enquadrando-o dentro de um “expressionismo não ortodoxo, atenuado, de feição muito peculiar”, o que melhor responde a seu temperamento “apolíneo e, paradoxalmente, [...] cartesiano”. Obcecado pela “ordem”, como comprova a “construção exigente das telas”, Segall é apreciado por Mário de Andrade por alcançar o “equilíbrio harmonioso entre a pesquisa artística e a intenção expressiva” (SOUZA, 1984SOUZA, Gilda de Mello e. Prefácio. In: BECCARI, Vera d’Horta. Lasar Segall e o modernismo paulista. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 11). Se isso é verdade, assim como é verdadeira a percepção de que o pintor lituano ajuda a fortalecer em Andrade a associação entre expressionismo e debate nacionalista, no entanto, a autora não leva em conta um fato fundamental. Segall responde, sem dúvida, ao conceito central de Andrade – defensor de uma arte moderna de cunho humanista, capaz de recriar a realidade a partir de uma visão subjetiva, espiritualizada e distante da abstração –, mas não é o artista brasileiro buscado por ele. Em diversas ocasiões, Andrade destaca dois aspectos que não lhe permitem integrar o pintor no âmbito da cultura nacional. A personalidade “tão eslava” e a condição judaica de Segall representam, a um só tempo, uma contribuição importante para o ideário do crítico – que encontra nelas a possibilidade de apresentar a ingenuidade como um traço nacional e de postular um tipo de arte alicerçado no sentimento humano e na recusa de uma estética pura – e a marginalização do artista, considerado “não-brasileiro”, apesar dos esforços em contrário da Revista Acadêmica ao longo de 1943 e 1944 (FABRIS, 2006FABRIS, Annateresa . Moderno, mas não brasileiro. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Crítica e modernidade. São Paulo: ABCA/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006., p. 32-34).

Se Segall soube evitar o nacionalismo, seu nome, porém, foi associado por outros críticos, que não Andrade, à constituição de uma “escola’ brasileira de pintura” (FABRIS, 2006FABRIS, Annateresa . Moderno, mas não brasileiro. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Crítica e modernidade. São Paulo: ABCA/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006., p. 34), numa clara demonstração de que a questão nacional era um fato iniludível da plataforma modernista em geral. Mello e Souza acaba, afinal, por reconhecer esse fato quando, no início do ensaio, lembra que o reconhecimento de Portinari foi fundamental para “o futuro da arte moderna em nosso país”. Tal como Amaral e Di Cavalcanti, Portinari seria visto por ela como uma personalidade harmoniosa, “sem graves tensões psicológicas (como Anita) ou um corpo muito preciso de ideias, como era o caso de Ismael Nery” (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 250, 277) e, por isso, capaz de adequar-se ao nacionalismo? Ou a autora detectaria em sua “vitória” o surgimento de uma concepção de arte em consonância com um novo momento, em que o nacionalismo defendido por Mário de Andrade adquiria conotações sociais?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inserida num momento de revisão dos postulados do modernismo, a leitura crítica de Mello e Souza não pode ser dissociada da exposição pioneira do MASP, que propôs deslocar a discussão do começo da modernidade na arte brasileira para o Rio de Janeiro, chamando a atenção para figuras que começam a contestar as diretrizes acadêmicas, ainda que timidamente. As mostras sucessivas do Museu Lasar Segall são uma decorrência desse início de revisão, que se consolidará a partir de então graças, sobretudo, a pesquisas universitárias. Isso, no entanto, parece ter passado despercebido pelos críticos posteriores que, não raro, não estabeleceram critérios discriminatórios entre a autovisão dos modernistas e as leituras historiográficas produzidas desde então. É o caso de Paulo (Herkenhoff 2002HERKENHOFF, Paulo. Arte brasileira na coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2002., p. 17, 25-26), para quem Mário de Andrade ignorou a manifestação de “modos da modernidade” num conjunto de artistas cariocas finisseculares, por estar interessado na “implantação da ‘Pauliceia desvairada’”.

Mesmo uma exposição recente como Moderno onde? Moderno quando?, apresentada no Museu de Arte Moderna de São Paulo entre 4 de setembro e 12 de dezembro de 2021, parece desconsiderar essas contribuições pioneiras, quando propõe ampliar o território e as balizas temporais do modernismo para além dos festivais de 1922. Muitos dos artistas selecionados pela curadoria já tinham estado presentes nas exposições da década de 1970, e alguns deles tinham sido abordados nos escritos de Mello e Souza, numa demonstração de abertura em relação à narrativa modernista canônica e a suas escolhas estratégicas. O fato de A forja, de Timóteo da Costa, ter sido considerado por ela um quadro que apontava para uma concepção moderna de pintura pela temática e pelo tratamento da superfície pictórica ecoa na mostra atual em Ferreiro, de autoria do mesmo artista, confirmando o acerto de uma leitura cuidadosa e sensível, que merece ser lembrada num país destituído de memória e sempre em busca de um marco zero.

Agradeço a colaboração de Léia C. Cassoni, da Biblioteca Paulo Mendes de Almeida – Centro de Estudos Luís Martins do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

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    É um equívoco ver em Correia um antecessor dos modernistas, pois sua obra se inscreve no âmbito do simbolismo/decadentismo franco-belga. Além de nunca ter atuado no Brasil, sua formação artística foi francesa. Viveu em Bruxelas, onde se aproximou da poética do pintor simbolista Félicien Rops.
  • 4
    Mesmo citando a visão de “precursor”, que Aracy (Amaral 1970AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1970., p. 140) lhe confere, por suas “incursões experimentais e suaves pelo divisionismo de Signac e Seurat”, a autora não explora a relação de Almeida com o neoimpressionismo.
  • 5
    Amaral (1970, p. 140)AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1970. detecta um “pseudofuturismo” no quadro, pois ele não foi construído com “sobreposições de figuras geométricas”. Uma ideia semelhante é apresentada por José Roberto Teixeira (Leite 1988LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988., p. 68), que o define um flerte com o futurismo, mas “por pura blague”. A composição tem um antecedente em Maternidade em círculos (1908), na qual Paulo (Herkenhoff 2002HERKENHOFF, Paulo. Arte brasileira na coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2002., p. 25) localiza “a consciência moderna da superfície mais radical do que tudo que se exporia na Semana”.
  • 6
    A forja é antecedida por Ferreiro (1910).
  • 7
    Em oposição a Sérgio Milliet, que valoriza a recusa de Almeida Júnior em ser influenciado para preservar os valores brasileiros, Pedrosa detecta em Visconti a figura do artista totalmente aberto para seu tempo: não teme as experiências internacionais, porque vê nelas a possibilidade de discutir não só a autonomia do campo plástico como a de linguagem, “um fenômeno localizado da expressão de uma singularidade inserida em seu entorno” (DOCTORS, 2001DOCTORS, Márcio. Desvio para o moderno. In: CAVALCANTI, Lauro (org.). Quando o Brasil era moderno: artes plásticas no Rio de Janeiro 1905-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 30-59., p. 50-52).
  • 8
    Como a autora esclarece numa nota de rodapé, Gombrich não acredita na “inocência do olho”, defendida por John Ruskin e pelos impressionistas, já que ver é um aprendizado, baseado em “hábitos conceituais” e em esquemas perceptivos derivados da tradição (SOUZA, 1980SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 223-224).
  • 9
    O ensaio circula em duas versões: a integral, publicada num folheto, que era distribuído ao público, e a síntese “Vanguarda e nacionalismo”, estampada no catálogo.
  • 10
    A mostra contava com a participação de José Maria dos Reis Júnior, Domingos Toledo Piza, Tarsila do Amaral, Paulo Rossi Osir, Lasar Segall, Ferrignac, Victor Brecheret, Oswaldo Goeldi, Antônio Gomide, John Graz, Alberto Guignard, Anita Malfatti, Belmonte, Alfredo Volpi, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Ismael Nery, Joaquim do Rego Monteiro e Cícero Dias.
  • 11
    Fundada em Florença por Giovanni Papini e Ardengo Soffici, Lacerba é publicada entre 1º de janeiro de 1913 e 22 de maio de 1915. Por partilhar alguns pressupostos do grupo de F. T. Marinetti – antitradicionalismo, nacionalismo, imperialismo, busca de manifestações artísticas novas e combate contra a filosofia idealista, o passadismo, a religião e Roma –, a revista torna-se a principal plataforma do futurismo entre 15 de março de 1913 e 15 de agosto de 1914. Em 1º de dezembro de 1914, o grupo da revista começa a dissociar-se de Marinetti, chegando à cisão definitiva em 14 de fevereiro de 1915. Sobre as relações dos modernistas com o pensamento de Papini e Soffici, ver (Fabris 1994FABRIS, Annateresa . O futurismo paulista: hipóteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1994., p. 100-124).
  • 12
    Ver, a esse respeito, (Chiarelli 1995CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil. São Paulo: Edusp, 1995., p. 196-199).

REFERÊNCIAS

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  • ANTECEDENTS. In: Semana de 22: antecedents and consequences. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1972a.
  • ANTECEDENTES. In: Semana de 22: antecedentes e consequências. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1972b.
  • ARAÚJO, Raquel Aguilar de. Desmistificando Almeida Júnior: a modernidade do caipira. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan-jun. 2014. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_aj_raa.htm Acesso em: 16 ago. 2021.
    » http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_aj_raa.htm
  • BARDI, P. M. Os precursores – até 1917. In: Os precursores São Paulo: Museu Lasar Segall, 1974.
  • BARROS, Regina Teixeira de. Anita Malfatti, 100 anos depois. Moderno MAM, São Paulo, ano 9, n. 6, fev/mar/abr. 2017.
  • BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço São Paulo: IBM Brasil, 1985.
  • CATTANI, Icleia Borsa. O desejo de modernidade e as representações da cidade na pintura de Tarsila do Amaral. In: BULHÕES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Bastos (org.). A Semana de 22 e a emergência da modernidade no Brasil Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
  • CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.
  • DOCTORS, Márcio. Desvio para o moderno. In: CAVALCANTI, Lauro (org.). Quando o Brasil era moderno: artes plásticas no Rio de Janeiro 1905-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 30-59.
  • FABRIS, Annateresa. Di Cavalcanti e Portinari: duas visões da arte social. Lumen et Virtus, v. X, n. 24, mar. 2019. Disponível em: http://www.jackbran.com.br/lumen_et_virtus/numero_24
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  • FABRIS, Annateresa . O futurismo paulista: hipóteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1994.
  • FABRIS, Annateresa . O modernismo nas artes plásticas: algumas releituras. In: FERREIRA, Antonio Celso; LUCA, Tania Regina de; IOKOI, Zilda Grícoli (Org.). Encontros com a história: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
  • FABRIS, Annateresa . Moderno, mas não brasileiro. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Crítica e modernidade São Paulo: ABCA/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
  • HELIOS. Uma palestra de arte. Correio Paulistano, São Paulo, 29 nov. 1920.
  • HERKENHOFF, Paulo. Arte brasileira na coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2002.
  • LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário crítico da pintura no Brasil Rio de Janeiro: Artlivre, 1988.
  • M. DE A. Anita Malfatti. Diário Nacional, São Paulo, 29 set. 1928.
  • MENOTTI. Annita Malfatti. Correio Paulistano, São Paulo, 20 fev. 1929.
  • PEDROSA, Mário. Acadêmicos e modernos São Paulo: Edusp, 1998.
  • PITTA, Fernanda Mendonça. “Um povo pacato e bucólico”: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. 2013. 383 f. Tese (Doutorado). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • POGGIOLI, Renato. The theory of the avant-garde Cambridge-London: Harvard University Press, 1968.
  • SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira. 2018. 384 f. Tese (Livre-Docência). Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura São Paulo: Duas Cidades, 1980.
  • SOUZA, Gilda de Mello e. Prefácio. In: BECCARI, Vera d’Horta. Lasar Segall e o modernismo paulista São Paulo: Brasiliense, 1984.
  • SOUZA, Gilda de Mello e. Vanguarda e nacionalismo. In: O modernismo de 1917 a 1930 São Paulo: Museu Lasar Segall, 1975.
  • VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira. Um boxeur na arena: Oswald de Andrade e as artes visuais no Brasil (1915-1945). 2018. 639 f. Tese (Doutorado). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2021
  • Aceito
    10 Mar 2022
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