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Como estaremos em 2022

How will we be in 2022

RESUMO

O texto retoma alguns indícios históricos que, vistos a posteriori, parecem deixar claro que não há nenhuma novidade no que está acontecendo no Brasil hoje. No entanto, quando ocorreram, não se imaginou que eram signos de algo relativamente terrível. O caso mais grave parece ser a circulação de “politicamente correto”, expressão ao qual se deram sentidos inimagináveis. O texto cita e comenta os casos mais escabrosos.

PALAVRAS-CHAVE
Brasil; indícios; politicamente correto

ABSTRACT

The text takes up some historical signs that, seen a posteriori, seem to make it clear that there is nothing new in what is happening in Brazil today. However, when they occurred, it was not imagined that they were signs of something relatively terrible. The most serious case seems to be the circulation of “politically correct”, an expression to which unimaginable meanings were given. The text cites ad analyses the most lurid cases.

KEYWORDS
Brazil; indexes; politically correct

Este ensaio não trata de um tema só. A não ser que algo como “X fenômenos relevantes” possa parecer uma unidade. Também não será um artigo tradicional, “com bibliografia”, exceto em raros casos. Aliás, pretendo cada vez mais deixar ao leitor a busca de algumas das informações, apenas sugeridas, que lhe pareçam relevantes. De certa forma, é uma homenagem que faço aos tempos da Internet e, principalmente, a seus usuários.

A decisão tem a ver também com o fato de que vou mencionar temas que podem ser considerados de dois pontos de vista: o de pessoas que se interessam mais profundamente (profissionalmente?) por uma questão e o das pessoas para as quais bastam aquelas informações necessárias para que a leitura possa prosseguir. Vou considerar prioritariamente o ponto de vista do segundo grupo de pessoas. Assim, para acesso às informações suficientes para acompanhar o texto, remeterei à internet, mas não necessariamente a um link para cada referência, e sim a um tema ou a uma fonte genérica. Por exemplo, à expressão “politicamente correto” ou à Wikipédia. É claro que terei o cuidado de ler os verbetes em questão para avaliar se parecem suficientes para a finalidade do texto ou para determinada passagem. Especialmente, vou valorizar se ele remete a outras fontes.

Datas funcionam como lugares de memória, conforme Pierre Nora (ver em algum buscador, como o Google, tanto “lugar de memória” quanto “Pierre Nora”). Pode-se duvidar que a independência do Brasil tenha sido efetivamente proclamada e efetivada em 1822 às margens do Ipiranga. Mais provavelmente foi um processo relativamente longo (há quem pense que ainda não acabou...), como defendem historiadores. O que importa é que a data funciona como uma referência para a produção de um conjunto de ações e de discursos que a retomam, a problematizam, a reescrevem e lhe dão outros sentidos.

Os lugares de memória têm um papel fundamental para as sociedades. Entre eles estão certas datas, que marcam episódios históricos ou demarcam períodos. Assim, fala-se do 7 de setembro como o dia da independência do Brasil, do 14 de julho como o dia da queda da Bastilha, marco fundamental da revolução francesa. Por pouco que essas datas informem sobre o que de fato aconteceu – isto é, sobre o processo que culmina num brado às margens do Ipiranga etc., trata-se de datas marcantes – isto é, literalmente, que marcam, que demarcam. O mais relevante talvez seja que a elas remetem a numerosos discursos (a cada ano, pelo menos), desde os oficiais e quase burocráticos aos mais detalhados estudos do processo e mesmo das intrigas. Porque nem todos os acontecimentos são como estes – uma comitiva e um grito, uma multidão e a tomada de uma prisão (ou uma passeata de motoqueiros). Há acontecimentos que precisam ser descobertos, se não construídos.

Assim, seguido a lição de (Foucault 1972FOUCAULT, Michel. Retornar à história. In: FOUCAULT, Michel. (Org.). Ditos e escritos. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1972., p. 282-295), pode-se falar de outro tipo de acontecimento: o acontecimento da maturação (aparentemente) do processo democrático no Brasil desde o final da ditadura, mas, principalmente, a partir da Constituição de 1988, por exemplo. Parecia, pelo menos até 2013, que nada faria o Brasil se desviar de uma rota em direção a uma sociedade um pouco, ainda que muito, muito pouco, mais justa. Consolidava-se aos poucos um lugar diferente (pelo menos um pouco) para as mulheres, os negros, os indígenas, os quilombolas. Acontecimentos dentro deste acontecimento sugeriam que certas direções se confirmavam e afirmavam: por exemplo, as cotas, por exemplo, os direitos trabalhistas básicos para as empregadas domésticas, este claro reduto de trabalho escravo.

Desde 1988, apesar de nem tudo ter ocorrido pacificamente (chegou a haver processos de impeachment), parecia haver uma linha contínua em direção a maior justiça, a mais democracia. Rituais foram seguidos sem sobressaltos, Lula chegou ao poder, as coisas não degringolaram (pelo contrário), e aquelas conquistas poucas pareciam indicar um processo contínuo de melhoria: um pouco mais de consumo dos pobres, mais gente nas escolas, algum mudança de “cor” no alunado das universidades, algumas mulheres a mais em posições de comando ou de relevo. O racismo não diminuiu, mas alguns negros (ainda minoria) passaram a ocupar espaços antes vetados, o machismo não diminuiu, mas veio a Lei Maria da Penha. E uma mulher foi eleita presidenta da República. Aqui e acolá alguma coisa se movia. E parecia ser em direção que indicava mais democracia.

Curiosamente, o Brasil teve uma sorte (ou um azar) peculiar. É que foi exatamente em 1922, um século depois da independência, que aconteceu a Semana de Arte Moderna, um divisor de águas pelo menos cultural, embora tão discutível quanto a data da Independência: foi mesmo uma semana, foi mesmo moderna(ista), foi mesmo em (só) São Paulo, foi de fato encabeçada pelas figuras que se consagraram em função dela? Daí porque vale a pena torcer para que 2022 venha a ser outro lugar de memória, e não apenas pela coincidência de se completar mais um século a partir dos eventos anteriormente mencionados, mas também porque, se tivermos alguma sorte, poderemos vir a dizer um dia (oxalá!), que foi em 2022 que nos vimos livres do fascismo e até da discussão sobre se o bolsonarismo é ou não uma forma de fascismo.

OS INDÍCIOS

Ginzburg tentou mostrar que, ao lado do paradigma galileano, supostamente hipotético-dedutivo, haveria outro, que chamou de indiciário (1989, p. 143-179). Ele remete à obra de Giovanni Morelli, que se notabilizou por desnudar avaliações incorretas de quadros analisando detalhes aparentemente irrelevantes, aqueles aos quais os falsificadores davam menor importância: “os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” (1989, p. 144). Neles Morelli via os indícios de que os quadros não eram autênticos. Freud deu bastante importância a este trabalho. É que, de certa forma, viu nele uma antecipação do que ele mesmo fazia ouvindo seus clientes: lapsos de língua, detalhes dos sonhos, dos chistes.

O que é relevante nesse conceito para a história? Em retrospectiva, eles mostram que as coisas estavam claras, ou relativamente claras, mas ninguém viu do que se tratava, porque, em vez de olhar para as unhas dos pés, estávamos todos olhando para o rosto ou para a cabeleira do/a retratado/a2 2 Buscando “Ginzburg + paradigma indiciário”, encontram-se textos e vídeos de interesse; mas, claro, o melhor é ler o texto do historiador; melhor ainda, ler Eco & Sebeok (1983), que contém o texto de Ginzburg mencionado e outros nove. Acrescento que fãs de romances e de filmes e seriados policiais têm certa familiaridade com o método: de pequenas pistas para grandes descobertas. .

Vou comentar quatro indícios de que estava bastante claro aonde chegaríamos em 2016 e, mais decididamente, em 2018. O problema é que os indícios precisam ser decifrados. Alguns pareciam apontar para uma direção – houve interpretações até adequadas – mas o verdadeiro alvo, viu-se depois, era outro. Ou era também outro, situado atrás do primeiro, daquele que era mais visível. Assim, os efeitos pareciam menos graves do que se revelaram. A charge que faz as vezes de epigrafa é uma exceção: já em 2016 Laerte previu profeticamente o que aconteceria: os tucanos esperavam o resultado das manifestações contra Dilma para chegarem ao poder, mas o que estava sendo chocado no ninho dos tucanos era de fato o Jair.

O primeiro indício foi o programa “Mais Médicos”. Isto é, as reações a ele. Algumas foram corporativistas e foram discutidas como tais pela mídia que se opunha ao programa (exames, salários); outras eram estapafúrdias, como a francamente idiota que imaginou que se tratava de guerrilheiros, que, evidentemente, era inútil discutir. O indício que assinalava fatos mais graves foram as manifestações de racismo, eventualmente disfarçadas (médicas cubanas pareciam empregadas domésticas para algumas brasileiras – eram pretas e suas roupas não eram como as usadas por “nossas” médicas típicas). Podia parecer pouco, mas penso que ninguém imaginava que o racismo que sempre houve viria a ter um papel crucial nos tempos seguintes. Sua manifestação mais explícita foi o tratamento animalesco que deu aos quilombolas o candidato Bolsonaro, avaliando seu peso em arrobas. Longe de ser menos grave por parecer um discurso transverso – não se expressa a consequência, mas ela é captada: se pesa arrobas, então é um animal – que exige diversos passos para sua interpretação, é grave justamente porque evoca o inconsciente racista, que animaliza o negro, e em acréscimo, dada uma certa memória, predica-lhe velhos preconceitos sobre não serem trabalhadores. Não basta terem carregado o país nas costas durante séculos e continuarem a ser a mão de obra mais operosa, como se verifica todos os dias no trabalho das domésticas, dos explorados na construção civil, dos que servem todos os dias mais ou menos diretamente (motoristas, enfermeiros/ as, vendedores/as etc.). A maior evidência de que o racismo teve papel exponencial na virada de 2016 / 2018 é que, assim que caiu Dilma, caíram os ministérios que tratavam da questão e de outras próximas e/ou que a implica(va)m (Cultura, Mulher...).

Um segundo indício foram os rolezinhos. Os episódios foram poucos, porque reprimidos, mas mereceram um verbete na Wikipédia! (Veja lá, caro leitor). Recordo que foram fenômenos até bastante analisados, e por ângulos heterogêneos, claro, como é comum em casos assim. Mas os que viram nos diversos rolezinhos um problema relevante denunciaram basicamente o óbvio: uma divisão de classes, com a consequente divisão do espaço (um pouco repetida na reação à construção de uma estação do metrô no bairro de Higienópolis, cuja população, em sua maioria, não desejava conviver, dividir espaço, mesmo o da rua, com gente diferenciada, mesmo que fosse constituída por seus serviçais).

Mas a reação aos rolezinhos era de fato bem mais do que uma pretensa divisão do espaço, bem mais do que não aprovar desfiles de adolescentes da periferia nos espaços luxuosos dos shoppings (houve quem sugerisse que deveriam “desfilar” no sambódromo). Tratava-se de um misto de “medo” e desprezo: medo de supostos assaltos; desprezo pela “gentinha” que deveria conhecer seu lugar. Sintoma de que não se aceitava uma mudança em curso, por pequena que fosse: que a divisão social não continuasse a ser tão profunda. Pequenas melhorias na renda dos pobres traziam gente da periferia, com sua cor e seu jeito (seus habitus = correria, gritaria) para espaços que nunca tinham habitado, a não ser por seus pais como faxineiros. Estava presente não apenas uma recusa de partilhar espaço com os “diferenciados”, mas toda uma política que permitira que eles saíssem das suas casas na periferia. Mais do que isso, a recusa foi rancorosa: assim, veio à tona não um antipetismo que significava a recusa de uma política econômica ou energética, mas uma política que ameaçaria a manutenção de um regime de fato escravocrata: desejava-se que eles fizessem os serviços que “nos” devem e depois voltassem para seu lugar. O que significava, entre outras coisas, que não viajassem com os brancos.

O que me leva ao terceiro indício, um episódio cujo início pode ser visto em https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/professora-da-puc-debocha-de-passageiros-pobres-em-aeroporto.html.

A professora universitária Rosa Marina Meyer postou uma foto de um homem de bermuda e regata no seu perfil no Facebook na noite desta quarta (5) com o comentário: “aeroporto ou rodoviária?”. O conteúdo dos comentários que seguem a publicação da docente da PUC-Rio também critica a presença de passageiros pobres nos voos. “O ‘glamour’ foi para o espaço”, escreveu o reitor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), Luiz Pedro Jutuca. Ao que a docente respondeu: “Puxa, mas para glamour falta muuuitooo!!! Está mais para estiva.”

A postagem, enviada a amigos, mereceu comentários como o acima citado sobre o glamour e outros, dentre os quais “Isso é só uma amostra do que tenho visto pelo Brasil”. Soube-se depois que o homem que motivou os comentários não era um simples popular, mas o procurador de uma prefeitura mineira. Mas ele estava vestido informalmente, de regata e bermudas, como tem sido comum em viagens aéreas. As pessoas que comentaram é que estavam fora do mundo (ou sonhando com um espaço exclusivo), porque há tempo ninguém mais viaja vestido como se fosse a uma reunião formal.

Esse fato, como os dos rolezinhos, revela a profunda divisão da sociedade brasileira e explicita o desejo dos mais ricos (em geral brancos) de ficarem afastados dos pobres (ou dos que parecem sê-lo). Estes não incomodam, desde que fiquem nos seus lugares. Agravantes: o primeiro comentário (a denúncia) é de uma professora universitária, e uma das respostas é do então reitor de uma universidade federal. Ou seja, não se trata de discriminação praticada por ignorantes, mas por membros da “elite”.

O quarto indício foi a reação da plateia que foi à abertura da Copa do Mundo, em 12 de junho de 2014, que, em coro, gritou “Ei, Dilma, vai tomar no cu” (ver https://www.youtube.com/watch?v=xAtPR1rCA6I). Quem gritou foi uma massa da classe média branca e machista que podia pagar as entradas, de vez que, com a emergência das arenas, os “geraldinos” não puderam mais frequentar os estádios. Este episódio tem uma significação especial, porque revela não apenas as divisões de classe, mas uma entranhada misoginia, e uma grosseria talvez não imaginada. Não são poucos os que avaliam que o fato de Dilma ser mulher foi um poderoso fator a sustentar o golpe de que foi alvo. Aliás, a discussão, marcada pela empáfia e pela ignorância, sobre o emprego de “presidenta” poderia ser considerada outro sintoma de que algo de sinistro acontecia um pouco abaixo da superfície da sociedade.

Esses quatro indícios mostram uma profunda fissura social e a decisão de excluir os pobres. Uma pergunta frequente tem sido “como chegamos ao ponto em que estamos”. Os indícios mostram que, na verdade, não chegamos, não acabamos de chegar. É o mesmo lugar em que sempre estivemos3 3 Poderia acrescentar a esses indícios um quinto, que ouvi de uma amiga, em conversa informal: ela me contou de uma queixa que se ouvia de “pessoas de bem”, que não se encontrava mais ninguém que fizesse um serviço na casa (jardim etc.) em troca de comida. Todos queriam cobrar! Ao lado da resistência em aceitar os diretos trabalhistas mínimos devidos às domésticas, eis aqui o desejo de manter um regime escravocrata: o trabalho em troca de comida, no máximo. .

O POLITICAMENTE CORRETO

Creio que um dos fenômenos politicamente mais relevantes dos últimos anos (20? 30?) é o chamado “politicamente correto”. Ponho aspas na expressão para sugerir que seu sentido era bastante diferente quando o fenômeno se disseminou (ver pelo menos https://pt.wikipedia.org/wiki/Politicamente_correto).

Não importa muito como começou. Teria sido na URSS, e não tinha nada a ver com ser “correto” – isto é, não ofensivo – e muito menos tinha a ver com certas palavras. Uma coisa, uma ação, uma pessoa, um comportamento eram “politicamente correto” se estivesse de acordo com as regras políticas, com o poder (imagine Bolsonaro no comando e “politicamente correto” significando favorecer comércio de armas, proferir enunciados e realizar ações contra mulheres, negros, homossexuais, propagar a cloroquina etc.).

Durante um bom tempo, já em outro estágio da vida da fórmula, ser politicamente correto era evitar o uso de palavras derrisórias (veado, preto, empregado) e em seu lugar usar palavras ou expressões neutras ou positivas: “homoafetivo, afrodescendente, colaborador”. Ou, indo além das palavras: usar camisinha nas relações sexuais, por exemplo, era um comportamento avaliado como politicamente correto; recusar seria o contrário.

Enquanto se tratou disso, pode ter havido reclamações (de humoristas, por exemplo), porque as novas regras limitariam a liberdade dos “artistas”. Mas – é o que vai interessar aqui – a expressão adquiriu sentidos muito diferentes, expandiu-se para cobrir posições ideológicas e/ou jurídicas inimagináveis. Por exemplo, passou a ser considerado politicamente correto (por seus adversários) ser favorável à demarcação das terras indígenas, considerar que os colonizadores promoveram massacres de populações nativas, sustentar que a escravidão foi um regime brutal, que trabalho escravo deve ser punido e erradicado, que a natureza deve ser preservada. Não se trata mais de discutir qual é o nome correto (“escravizado” ou “escravo”, por exemplo, dadas as implicações de cada palavra), mas de discutir se a escravidão foi um horror ou se foi até benéfica – porque os descendentes puderam entrar em contato com a civilização e vieram a ter oportunidades que não teriam de outra forma...

Esta concepção ampla do politicamente correto tem duas manifestações que considero assustadoras. São elas que vou comentar brevemente, deixando de lado todos os outros aspectos. É que foi o embate ocorrido neste contexto que levou à situação política de hoje no Brasil.

Leandro Narloch escreveu um livro (Guia politicamente incorreto da História do Brasil, 2009) que pretendeu contar o que de fato aconteceu na história do Brasil, contestando as teses dominantes na historiografia brasileira – que seria politicamente correta! Para facilitar meu trabalho e fazer com que o leitor de fato tenha vantagens, faço a glosa de trecho do artigo de Wilson Honório da Silva, acessível em https://www.pstu.org.br/narloch-e-o-luxo-e-riqueza-das-sinhas-pretas/.

Nele se podem ler algumas das posições de Narloch: os povos indígenas eram bêbados inveterados que “queriam mesmo era ficar com os brancos, misturar-se a eles e desfrutar das novidades que traziam”; isso quando não estavam ocupados extinguindo muitas espécies animais ou fazendo “um belo estrago nas florestas brasileiras”, tendo destruído completamente a Mata Atlântica. Ainda mais: “centenas de milhares de mortes devem ter sido causadas na Europa por males americanos”, já que ao chegarem à América, espanhóis, franceses, portugueses e holandeses, penaram com doenças novas e as transmitiram para o mundo. Narloch também tenta resgatar os bandeirantes, uma nobre raça de gigantes, e não facínoras e assassinos como hoje alguns professores tentam apresentá-los. Já Zumbi mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares e “sequestrava mulheres”. Tais práticas, segundo ele, eram comuns: tratava-se de um costume tido como correto pela lei e pela tradição.

Seu “Guia” também lamenta que, em 2007, nenhum país da África ou movimento negro prestou homenagens ou agradecimentos aos ingleses, por terem realizado, 200 anos antes, a primeira campanha abolicionista vitoriosa. E, com o mesmo “rigor histórico” de uma telenovela, Narloch defende que o Império teve virtudes que são frequentemente esquecidas, ao mesmo tempo em que é alvo de acusações injustas e uma visão simplista de que teria atendido somente a interesses da elite (fim da glosa).

A orelha do livro de Narloch indica seu tom e seu papel:

O jornalista Leandro Narloch levantou estudos recentes sobre a História do Brasil para reavaliar conceitos arraigados – o ideal do bom selvagem e o massacre da Guerra do Paraguai, por exemplo – e desconstruir mitos – alguns dos autores mais incensados da Língua Portuguesa, como Machado de Assis. O resultado de pesquisas de historiadores que não se renderam à educação tradicional à qual todos somos passados a ferro na escola surge no livro “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil” num texto bem humorado e fluido que nos leva a refletir sobre os papéis de mocinho e bandido. Baseado em farta bibliografia, Narloch revê o Brasil e traz a luz histórias que poderiam ficar restritas às estantes especializadas das livrarias. O livro está dividido em nove capítulos: Índios, Negros, Escritores, Samba, Guerra do Paraguai, Aleijadinho, Acre, Santos Dumont e Comunistas. Sem negar as qualidades ou os erros que a História do país e alguns brasileiros acumularam ao longo de cinco séculos, Narloch propõe um olhar mais curioso e menos acomodado. (ORELHA, vol. 1).

Quem faz uma refutação factual, ponto por ponto das teses de Narloch é Renato Venancio, em O incorreto no “Guia politicamente incorreto da História do Brasil” (2021). Um exemplo:

Em pleno período colonial, muitos índios deviam achar bem chato viver nas tribos ou nas aldeias dos padres. Queriam mesmo era ficar com os brancos, misturar-se a eles e desfrutar das novidades que traziam.” (NARLOCH, 2009NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009.).

Resposta de Venancio:

Só faltou dizer que eles gostavam de shopping center … Seria interessante saber o que o autor entende por “achar bem chato viver”. Mas, conforme mencionamos, há sempre uma gota de realismo, mesmo nas afirmações mais absurdas do texto politicamente incorreto. De fato, estudos antropológicos mostram que os povos indígenas, não só do Brasil, tendem a aceitar “novidades” trazidas por colonizadores. Marshall Sahlins, em estudo clássico sobre a economia das sociedades “primitivas”, mostrou que, nelas, homens e mulheres trabalham cerca de duas ou três horas por dia para garantir a sobrevivência. Se o europeu introduz uma nova ferramenta – enxadas de ferro, por exemplo -, os índios tendem a adotá-la para diminuir ainda mais o tempo de trabalho. Não fazem isso por serem preguiçosos, mas sim por não terem a acumulação de bens como um valor cultural. Além disso, a adoção de novos instrumentos não significava abandono da cultura original, nem desejo de viver entre os brancos. Mostra apenas que é possível haver trocas culturais sem violência, bastando que duas culturas não se imponham uma a outra. Outra dúvida é saber se os índios “Queriam mesmo era ficar com os brancos”. Se isso existiu, por qual razão foi necessário tanto esforço dos jesuítas para convencê-los a se mudar para as proximidades das vilas e fazendas?! Se essa aproximação acontecia espontaneamente, por qual razão os bandeirantes tinham de ir caçá-los no mato?!

Outro exemplo: Leandro Narloch pretende fornecer uma versão “incorreta” (a seu ver, verdadeira) sobre os “índios brasileiros”. Os historiadores os retrataram como sendo incivilizados, quase animais que precisavam ser domesticados. A partir do século XIX, diz ele, propagou-se um indianismo romântico, os nativos como bons selvagens. Mas historiadores (sic)4 4 No original Narloch se refere ao patrono da sociologia brasileira como historiador. como Florestan Fernandes divulgaram uma visão retomando a versão de que a cultura pura e original foi destruída pelos gananciosos conquistadores europeus (NARLOCH apud VENANCIO, 2021VENANCIO, Renato. O incorreto no Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. Kindleunlimited, 2021., p. 112).

Venancio retruca que, no essencial, basta citar duas passagens: “É difícil saber quais seriam ‘os historiadores’ que retrataram os índios como bons selvagens. O remédio seria ler direito o livro de Fernandes citado por Narloch: ele dedica 70 páginas aos “ritos de destruição os inimigos”, com relatos apavorantes de massacres de prisioneiros” (2021, p. 112). Por estas amostras, pode-se ver o “rigor” de Narloch! E o sucesso de seu livro é um indício de que parte da sociedade estava esperando ouvir uma versão que acabasse com seus escrúpulos.

O livro de Venancio vale a leitura. Retoma frequentemente os mesmos autores citados no Guia e faz deles outra leitura, mostrando as reduções, simplificações e generalizações indevidas de Narloch.

Outro lugar em que encontrei esse uso um pouco estranho, para dizer pouco, de “politicamente correto” é a obra General Villas Boas: conversa com o comandante, organizado por Celso Correia Pinto de Castro e publicado pela FGV (existe uma versão para Kindle, que utilizei, de 2021). Confesso meu espanto diante do contexto das sete ocorrências da expressão nesse livro, que resulta de entrevistas e de posterior revisão demorada por parte do general.

A primeira ocorre neste trecho (o general exercia uma função na China e conta simpaticamente alguns episódios, entre os quais o seguinte):

Em 1993, percorremos a rota da seda até o deserto de Gobi, com início em Xian, onde vimos o Exército Terracota. No ano seguinte, em barco de passageiros, subimos o rio Yang Tse até a represa Três Gargantas, ainda na fase inicial de terraplanagem. Hoje, diante do pensamento que impera entre nós, dominado pelo politicamente correto, constato que aquela obra jamais seria levada a efeito no Brasil. Os chineses deslocaram mais de um milhão de pessoas e cerca de mil sítios arqueológicos. Gostemos ou não, foi assim procedendo que 800 milhões de pessoas ultrapassaram a linha da pobreza. (2021, p. 94; ênfase minha).

A interpretação sugerida é que, se um país ou governo quer construir obras importantes, não importam muito nem as condições dos trabalhadores (insinua-se que não eram nada boas) nem a preservação de objetos arqueológicos de valor (duas demandas do politicamente correto!!). Talvez ele estivesse pensando em grandes obras eventualmente questionadas ou obstruídas no Brasil, e certamente lamentando que isso ocorra ou tenha ocorrido.

Depois, falando sobre a Amazônia, diz, por exemplo, que há desinformação:

A grande imprensa tem parcela de responsabilidade. Em nosso principal veículo de comunicação, a Rede Globo, alguns setores são dominados pelo politicamente correto. Em consequência, expõem os assuntos sob um enfoque desconectado da verdade. (...) Se o fizesse [sem esses desvios] descobriria formas contemporâneas de imperialismo, movidas pelo grande capital, corporações, organismos internacionais e as ONGs. (2021, p. 120-121).

O que o general ataca, genericamente, é a defesa da “natureza” e as ações de ONGs e organismos assemelhados (que seriam politicamente corretos). O pano de fundo é recusa da pretextada desnacionalização da região e a crítica aos que a quereriam intocada. Vê-se em ação, no atual governo, uma política que desconhece o politicamente correto: defesa da mineração, da agropecuária, do corte de madeira e o desmonte das políticas de proteção ...

Falando de “bom humor” (que existiria nos ambientes de trabalho em que esteve durante sua carreira), afirma:

Não sei trabalhar com gente “de maus bofes”. O bom humor facilita os relacionamentos, estimula a criatividade, contribui para o bom ambiente e torna a vida mais leve. No mundo moderno, um inimigo do bom humor tem sido o politicamente correto, que resulta na inibição da espontaneidade e da criatividade. Bom humor, contudo, não significa licença para ser irresponsável, inconveniente e inoportuno. (2021, p. 145-146).

Apesar da ressalva final, sabemos muito bem de que humor se trata; é muito provável que seja derrisório, humilhante, típico do ambiente masculino dos quartéis; indiretamente, basta que tenhamos em mente o que as posições politicamente corretas condenam em relação ao humor.

Outra passagem do livro, mais longa:

Determinante, também, foi o fato de a esquerda, com pautas esvaziadas desde a queda do comunismo, ter aderido ao politicamente correto. Esse conjunto de pensamentos espraiou-se por nossa sociedade, estimulado pela militância da esquerda. Um religioso adepto da teologia da libertação esclareceu esta motivação. Afirma ele que o combate ao capitalismo com base na luta de classes tem a desvantagem de colocar as classes em oposição, ao passo que, se calcado no ambientalismo, alinha todas as classes harmonicamente. Será alguém contrário à preservação ambiental ou à proteção dos índios? (...) O ministro Aldo Rebelo o chama de teoria da separatividade, pois destrói nossa coesão social. Tem a intenção de obrigar a que todos pensem da mesma maneira. (...). Quando maior a ênfase, por exemplo, nas teorias de gênero, mais cresce o feminicídio; quanto mais se combate a discriminação racial, mais ela se intensifica; quanto maior o ambientalismo, mais se agride o meio ambiente; e quanto mais forte o indigenismo, piores se tornam as condições de vida de nossos índios. (2021, p. 156-157).

Aqui estão encadeados os domínios em que combatem o politicamente correto, somados aos que foram acima mencionados: teorias do gênero / defesa da igualdade de homens e mulheres / condenação da violência masculina; racismo; defesa do meio ambiente; defesa dos direitos dos indígenas (faltou a homofobia!). Perceba-se a (falta de) lógica: quem garante que, se não houvesse políticas progressistas em todos esses domínios a situação seria melhor? É muito mais razoável concluir que a situação seria muito pior. Bastaria considerar um dado em um dos espaços: o aumento do desmatamento e das queimadas com o fim do “politicamente correto” implementado no governo Bolsonaro, especificamente pelas mãos de Salles.

Nesta declaração se reconhece, creio, a transformação de tudo em comunismo, como se tais causas fossem resultado de um complô e não da descoberta de que minorias poderiam reivindicar direitos acessíveis aos outros, por um lado, e como se a questão ambiental fosse o resultado da descoberta de um espaço de militância que substituiria as lutas de estilo socialistas.

Finalmente, ele afirma que “Bolsonaro deu ênfase ao combate ao politicamente correto do qual a população estava cansada. A Globo, o reino do politicamente correto, foi o mais importante cabo eleitoral do presidente eleito” (p. 206). De fato, as sucessivas grosserias de Bolsonaro dirigidas às mulheres, aos negros, aos indígenas e a outros grupos que lhe permitem piadas grosseiras (japoneses, por exemplo) conferem a ela (o general percebeu) o lugar de representante principal das políticas mais conservadoras e regressivas, com as quais, creio, não sonhávamos mais desde 1988, pelo menos.

Para concluir, não poderia deixar de citar o famoso tuíte do general, publicado às vésperas do julgamento de um habeas corpus de Lula: a questão era a constitucionalidade da prisão após condenação em segunda instância. Dependendo do resultado (todos imaginavam que seria de 6 a 5, havendo dúvida em relação ao voto de uma das ministras), Lula poderia vir a ser candidato à presidência. O resultado o levou à cadeia.

O general insiste em dizer que foi uma advertência, mas cada dia foi ficando mais claro que se tratou de uma ameaça. Assim, seu papel na eleição seguinte foi decisivo. Eis o texto do tuíte:

Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?

Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. (8:39 PM ·3 de abr de 2018).

Não só houve os indícios acima mencionados sugerindo que algo acontecia um pouco abaixo da superfície. Houve outros, entre os quais a discussão sobre “presidenta” e sobre lugar de fala e sobre gênero, em mais de um sentido. Além disso, hoje se sabe que o papel dos militares foi mais expressivo do que se supunha. Eles agora são liberais (não mais nacionalistas) e a ocupação de muitos cargos na administração só pode ser vista com desconfiança.

Que em 2022 ocorra outra independência.

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    Buscando “Ginzburg + paradigma indiciário”, encontram-se textos e vídeos de interesse; mas, claro, o melhor é ler o texto do historiador; melhor ainda, ler Eco & Sebeok (1983)ECO, Umberto; SEBEOK, Thomas A. O Signo de Três: Dupin, Holmes, Peirce. São Paulo: Perspectiva, 1983., que contém o texto de Ginzburg mencionado e outros nove. Acrescento que fãs de romances e de filmes e seriados policiais têm certa familiaridade com o método: de pequenas pistas para grandes descobertas.
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    Poderia acrescentar a esses indícios um quinto, que ouvi de uma amiga, em conversa informal: ela me contou de uma queixa que se ouvia de “pessoas de bem”, que não se encontrava mais ninguém que fizesse um serviço na casa (jardim etc.) em troca de comida. Todos queriam cobrar! Ao lado da resistência em aceitar os diretos trabalhistas mínimos devidos às domésticas, eis aqui o desejo de manter um regime escravocrata: o trabalho em troca de comida, no máximo.
  • 4
    No original Narloch se refere ao patrono da sociologia brasileira como historiador.

Referências

  • ECO, Umberto; SEBEOK, Thomas A. O Signo de Três: Dupin, Holmes, Peirce São Paulo: Perspectiva, 1983.
  • FOUCAULT, Michel. Retornar à história. In: FOUCAULT, Michel. (Org.). Ditos e escritos. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1972.
  • GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. (Org.). Mitos, emblemas, sinais São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil São Paulo: LeYa, 2009.
  • PINTO DE CASTRO, Celso Corrêa. (Org.). General Villas Boas: conversa com o comandante Rio de Janeiro: FGV Editora, 2021.
  • VENANCIO, Renato. O incorreto no Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil Kindleunlimited, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2021
  • Aceito
    01 Jun 2022
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