Acessibilidade / Reportar erro

Brasis sobrepostos: fontes da conformação e transformação do tempo

O ano de 2022 parece nos convidar para o olho do furacão, com todo o seu caráter celebrativo em torno de efemérides que atualizam e associam 1822, 1922 e 2022. É importante termos atenção, pois, conforme Jacques Le Goff (1990)LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990. (Coleção Repertórios). argumenta, as celebrações têm sido apanágio dos conservadores. Nesses termos, compreendemos que o passado tem sido um tempo decorrido e inerte, o presente, fugaz, e o futuro, um tempo abstrato, ancorado em devir de esperança, progresso, desenvolvimento e revolução.

O ano de 2022 parece nos convidar para o olho do furacão, com todo o seu caráter celebrativo em torno de efemérides que atualizam e associam 1822, 1922 e 2022. É importante termos atenção, pois, conforme Jacques Le Goff (1990)LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990. (Coleção Repertórios). argumenta, as celebrações têm sido apanágio dos conservadores. Nesses termos, compreendemos que o passado tem sido um tempo decorrido e inerte, o presente, fugaz, e o futuro, um tempo abstrato, ancorado em devir de esperança, progresso, desenvolvimento e revolução.

Esse é o “ar do tempo” em que se insere este número 81 da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Ao divisar os textos em conjunto, podemos observar problemas modernos para os quais a modernidade não apresentou soluções (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010.). Longe de fatalismos, trata-se de observar que tudo está em disputa. Tomando em conta a atual instabilidade das noções que concorreram para explicar o mundo no qual nos inserimos (por herança e experiência, da Modernidade à Globalização), Boaventura de Sousa Santos (2010)SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010. considera este também um momento potente para desnaturalizar o passado, sem redimi-lo pelo futuro, e, com isso, aumentar a chance de expandir o presente, que é o tempo da ação.

Observando os textos como conjunto, veremos refletidas diferentes condições da sociedade brasileira e seus estudos. Temas analisados por variados campos do conhecimento têm como pano de fundo, por exemplo, o colonialismo e o desenvolvimentismo, suas concepções, políticas e artifícios. Nesta RIEB diferentes tempos históricos são mobilizados (entre o século XVIII e o XXI) para retomar agentes (individualidades e coletividades) e suas contribuições humanas, científicas, artísticas, políticas e, de um modo geral, culturais.

Abrindo a revista, Willi Bolle dedica-se à análise da obra de um cientista viajante em “O caráter exemplar da obra de Alexander von Humboldt”. Demarcando aspectos da vida de Humboldt (1769-1859), o texto relaciona a sua condição social, formação, influências e experiências com a sua posterior viagem à América. Ao comparar a atuação deste com a de viajantes que descreveram o Brasil no século XIX (Johann Baptist von Spix e Von Martius), Bolle chama a atenção para a postura anticolonialista e antiescravagista de Humboldt. Retomando as viagens deste a Venezuela, Cuba, Colômbia, Equador, Peru e México, o artigo associa as publicações que resultaram das observações dos aspectos naturais, culturais, sociais, históricos, econômicos e políticos. Aproximando a análise histórica dos desafios do presente, Willi Bolle, entre outros aspectos, relembra a preocupação de Humboldt em relação à preservação do meio ambiente e destaca que o cientista influenciou ambientalistas das gerações posteriores à dele.

Em “Observações e experiências de Alexandre Rodrigues Ferreira sobre agricultura no Pará (1784)”, Ermelinda Moutinho Pataca analisa o pensamento do naturalista, tomando em conta o texto “Estado presente” (1784) e outros escritos relativos às reflexões filosóficas e políticas sobre a agricultura. A autora analisa a construção do “estado presente” associado ao gênero epistêmico “observações”, remarcando que a observação e a experiência foram então valorizadas como metodologias para a construção do conhecimento. Sinaliza também como as expedições do naturalista se inserem no projeto iluminista de domesticação da natureza, que converge para a exploração dos recursos naturais. Ermelinda destaca ainda os discursos de opulência e decadência, que se vinculam ora à ideia de abundância natural, ora à de decadência agrícola.

Como o título indica, o texto “Celso Furtado, o Golpe de 1964 e a Ditadura Militar”, de Lilian Rosa, põe em relevo as contribuições desse autor para se analisarem os anos recentes da ditadura no Brasil. A autora situa aspectos do projeto nacional de desenvolvimento de Furtado, com destaque para a sua compreensão da necessidade de impulsionar a industrialização no Nordeste brasileiro. Diante de sua atuação profissional e da produção intelectual, Lilian observa como Furtado reelaborou processualmente parte de sua obra, relativamente às condições do subdesenvolvimento e aos caminhos para a sua superação, após o golpe de 1964, inclusive a respeito do papel dos EUA na manutenção do subdesenvolvimento.

Em “‘O que causa prazer’: lundu entre neoclássicos e românticos na Casa da Ópera de Ouro Preto”, Mariana Soutto Mayor parte de uma polêmica publicada em jornal liberal de 1826, em Minas Gerais. Por meio dessa fonte, a autora analisa o trabalho teatral na Casa da Ópera de Ouro Preto, atendo-se aos temas e às formas cênicas que se exprimem, tendo como pano de fundo a ideia de construção de “um Brasil independente”. Mariana contextualiza aspectos que circundam o teatro na Europa e no Brasil do século XIX para compreender a contenda que se estabelece em Minas Gerais. No centro da discórdia que motiva a análise da autora, está o “lundu”, um gênero de origem afrodiaspórica, aclamado e reclamado.

Em “Os carbonários, 40 anos, de Alfredo Sirkis (1950-2020): testemunho e sobrevivência”, Rogério Silva Pereira parte desse livro para problematizar as características de testemunho e sobrevivente. Analisa criticamente as 20 edições da obra, ressaltando acréscimos, indagando e criticando subtrações, principalmente após uma edição publicada em 1998. Pereira observa Sirkis enquanto sujeito histórico diante de seu próprio relato e dos desafios que o passado e o presente lhe impuseram em razão da tarefa de republicar Os carbonários entre 1980 e 2020.

A canção “Viaduto Santa Efigênia” é o eixo central de “O viaduto que não caiu: a cidade como perda em Adoniran Barbosa”, texto de Gabriel S. S. Lima Rezende e Rogério Machado Braga. Os autores o apresentam como uma tentativa de interpretar o conjunto da obra do sambista paulista, permeando suas análises com a noção de perda como experiência de quem vive a transformação dos espaços da cidade. A memória e o esquecimento figuram na vida e na obra de Adoniran também enquanto expressão do sentimento de quem testemunha o discurso do progresso e da modernidade naturalizado na cidade paulistana.

Em “Quem arrisca perde e ganha”, Fábio José Santos de Oliveira analisa o romance O sedutor do sertão, de Ariano Suassuna, postumamente publicado. Escrita nos anos 1960 e só publicada em 2020 - por motivos que o autor explica no artigo -, a obra relaciona fatos históricos, detalhes da geografia paraibana, expressões da cultura popular e os ricos artifícios da criação de Suassuna. Entre outras análises, a partir de referenciais teóricos, Fábio situa, compara e relaciona as personagens dessa obra com aquelas que protagonizam as demais produções de Suassuna.

O artigo seguinte é “Necropolítica e crítica interseccional ao capacitismo: um estudo comparativo da convenção dos direitos das pessoas com deficiência e do estatuto das pessoas com deficiência”, de Sérgio Coutinho dos Santos, Lorena Madruga Monteiro e Daniela do Carmo Kabengele. O ensaio retoma a noção de necropolítica de Achille Mbembe para então analisar o quanto as pessoas com deficiência são ou não tratadas de modo interseccional, algo que os autores demonstram ser indispensável para superarmos socialmente, coletivamente, o capacitismo.

A seção Criação apresenta “Hinário para corpos em desalinho/ I - Meninas”, que reúne quatro poemas de Mar Becker, intitulados “durante o banho”, “arroz”, “Lauren” e “nas unhas”. Nessa mesma seção também estão cinco poemas de Heitor Ferraz Mello - “Coworking”, “Restauração”, “Medir o tempo”, “Tempo de colher” e “Uma história de classe” -, reunidos sob o título “Medir o tempo e outros poemas”.

Na seção Documentação, o texto de Carlos Pires, intitulado “O diário de Anita Malfatti de 1914”, busca desvelar o contexto de fundo da primeira exposição individual de pinturas da artista. Partindo da análise de informações que Anita Malfatti registrou nesse diário (relacionando-as a outras fontes e referências), o autor observa, entre outros aspectos, como a artista modernista se relacionou com o campo das artes no começo do século XX. O texto também exibe algumas imagens do diário em questão, parte do acervo do IEB. No mesmo espírito, as imagens de capa e as que abrem a edição - vindas do Fundo Yan de Almeida Prado - nos lembram da potência do patrimônio documental, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros.

A resenha deste número foi escrita por Amailton Magno Azevedo, intitulada “Um olhar sobre o anjo negro na metrópole”, elaborada a partir da obra Pretos, prussianos, índios e caipiras: culturas e identidades, memórias e e invisibilidades históricas nos arredores da cidade de São Paulo”, de Salloma Salomão, livro publicado em 2021. Azevedo interpreta e analisa a obra destacando a relação do autor com os excluídos sociais (sobretudo da cidade de São Paulo) e com a música, em sua trajetória de “artista-educador”.

Registrando os nossos agradecimentos às pessoas que trabalharam para mais este número da Revista do IEB, desejamos que a leitura seja inspiradora para novos caminhos de pesquisa, produção e circulação do conhecimento. Que traga proveito e deleite cognitivo, que também é força para que sejamos capazes de inventar novos tempos de ação, na direção das análises críticas que nos oferecem aqui agentes-autoras-autores.

REFERÊNCIAS

  • LE GOFF, Jacques. História e memória Tradução de Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990. (Coleção Repertórios).
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2022
  • Aceito
    28 Mar 2022
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br